Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1268/03.6TBPMS.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
ERRO GROSSEIRO
ILEGALIDADE
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 10/11/2011
Votação: MAIORIA COM 3 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RESPONSABILIDADE CIVIL
DIREITO PROCESSUAL PENAL - MEDIDAS DE COACÇÃO - PRISÃO PREVENTIVA
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 202.º, 225.º.
Sumário :
I - No âmbito do regime previsto no art. 225.º do CPP (na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29/08), para que nasça o dever de indemnizar por parte do Estado, não basta que a detenção ou prisão preventiva seja ilegal, é ainda necessário que essa ilegalidade seja manifesta ou notória.

II - Na falta de critério legal, será manifesta a ilegalidade da detenção ou prisão preventiva quando for evidente, fora de qualquer dúvida razoável, que foram efectuadas sem estarem presentes os respectivos pressupostos legais.

III- A lei distingue entre prisão preventiva ilegal e prisão preventiva manifestamente ilegal. A simples ilegalidade fundamenta, desde logo o direito de recorrer ou de lançar mão da providência de habeas corpus mas não justifica o pedido de indemnização, que apenas se sustenta na ilegalidade manifesta.

IV - A prisão preventiva ilegal pode ter origem em erro de direito, isto é, num erro que recai sobre a existência ou conteúdo duma norma jurídica (erro de interpretação), ou sobre a sua aplicação (erro de aplicação).

V - Em todo o caso, a relevância do erro, para o efeito de constituir o Estado no dever de indemnizar nos termos do n.º 1 do art. 225.º do CPP, só surge se se tratar de erro manifesto, isto é, grosseiro, notório, crasso, evidente, indesculpável, que se encontra fora do campo em que é natural a incerteza. Só esta notoriedade do erro transforma a prisão preventiva decretada à sua sombra em manifestamente ilegal.

VI - A previsão do art. 225.º, n.º 2, do CPP, apesar de falar em erro grosseiro, abrange também o chamado acto temerário, sob pena de se tornar praticamente inaplicável à generalidade dos casos.

VII - Entende-se por acto temerário aquele que, integrando um erro decorrente da violação de solução que os elementos de facto notória ou manifestamente aconselham, se situa num nível de indesculpabilidade e gravidade elevada, embora de menor grau que o erro grosseiro propriamente dito.

VIII - A apreciação a fazer no sentido de qualificar o eventual erro como grosseiro (ou temerário), terá de reportar-se, necessariamente, ao momento, em que a decisão impugnada teve lugar.

IX - A medida de coacção de prisão preventiva, além de subsidiária em relação às demais previstas na lei, só pode ser aplicada se “houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos”, como prescreve o art. 202.º do CPP, o que implica, necessariamente, e antes de mais, que, no momento da aplicação da medida, sejam ponderados concreta e criticamente todos os indícios até então recolhidos, que só serão relevantes para fundamentar a medida se forem fortes, isto é, se, tendo em conta as regras da experiência comum, revelarem uma séria probabilidade de ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados. Não basta, por isso, a existência de indícios da prática do crime se estes não forem firmes e seguros ou forem exclusivamente indirectos ou circunstanciais.

X - Se o despacho judicial que ordenou a prisão preventiva do autor teve como indiciados os crimes constantes da acusação pelo simples facto de dela constarem, sem qualquer apreciação concreta da prova indiciária, para a qual remeteu acriticamente, presumindo que, tendo sido deduzida acusação pelo MP, existiriam suficientes indícios da actividade criminosa que lhe era imputada, mostra-se inadmissível e, portanto, manifestamente ilegal tal interpretação da lei.

XI - Ainda que se entenda que a remissão para a acusação implica, também, remissão para a prova indiciária, mesmo assim é difícil sustentar que o decisor judicial ponderou, ele próprio, e concretamente a dita prova indiciária, como tinha obrigação de fazer, se o despacho não aponta minimamente nesse sentido.

XII - Se a acusação deduzida contra o autor se fundou em prova indiciária genérica, conclusiva e inconcludente, manifestamente insuficiente para se ter como indiciada a prática de qualquer de qualquer dos crimes que lhe foram imputados, existindo meras suspeitas do envolvimento do autor, mas sem base factual em que as apoiar, não se verificam os fortes indícios a que a lei se refere e que justificam, em primeira linha, a aplicação da medida da coacção mais gravosa, isto é, a medida de prisão preventiva (art. 202.º, n.º 1, al. a), do CPP).

XIII - Se o despacho que determinou a prisão preventiva do autor fez aplicação manifestamente errada das normas que estabelecem os pressupostos de aplicação da referida medida, maxime, do art. 202.º, n.º 1, al. a), do CPP, na medida em que não analisou a prova indiciária existente (e que era completamente inconsistente) no sentido de verificar e ponderar, como era elementar, da existência de fortes indícios da prática dos crimes imputados ao autor na acusação, condição primeira e necessária da aplicação da medida, estar-se-á no campo do erro de direito, que se mostra grosseiro, evidente e fora do campo em que é natural a incerteza, gerador, por isso, da manifesta ilegalidade da prisão preventiva decretada (art. 225.º, n.º 1, do CPP).

XIV - Estar-se-á no âmbito do erro do facto, ou seja, no âmbito do erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da medida a que se refere o n.º 2 do art. 225.º, perante o erro na apreciação dos indícios disponíveis da prática dos crimes, que é a primeira operação a realizar pelo julgador e da qual depende, desde logo, a aplicação da medida.

XV - Verificando que a factualidade existente, na data em que a prisão preventiva foi ordenada, não passava de meras suposições ou suspeitas genéricas e inconcludentes, que de modo nenhum autorizavam o decisor a concluir pela existência de fortes e seguros indícios de que o autor tivesse cometido os crimes que se lhe imputavam na acusação, a valoração da prova indiciária (a ter sido realmente efectuada) que incidiu sobre o primeiro e essencial pressuposto de que dependia o decretamento da prisão preventiva, traduziu-se numa valoração manifestamente errada e inadmissível, visto que a factualidade recolhida no inquérito, não suportava, com toda a evidência, tal valoração.

XVI - Tratando-se de erro grosseiro ou, pelo menos, de acto temerário que o decisor podia e devia ter evitado, verifica-se a obrigação do Estado indemnizar o autor pela prisão que injustamente suportou.
Decisão Texto Integral:


Relatório
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No Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós,
AA,
intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra o
1) Estado Português,
peticionando a condenação do R. na indemnização de 204.500,00€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, com fundamento na prisão preventiva, ilegalmente decretada por erro grosseiro, que lhe foi aplicada pelo juiz do Tribunal Judicial do Barreiro, em 27/Agosto de 1999.
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Na contestação o R. invocou a caducidade do direito de acção e alegou que a prisão preventiva sofrida pelo A. não foi ilegal, nem derivou de erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos.
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Replicou o A., concluindo como na petição.
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Proferiu-se despacho saneador, que declarou improcedente a excepção de caducidade arguida pelo R., fixaram-se os factos assentes e organizou-se a base instrutória.
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O R. interpôs recurso do saneador na parte em que julgou improcedente a dita excepção, o qual foi admitido como de apelação a subir diferidamente a final.
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Procedeu-se a julgamento e, após a leitura da decisão de facto, proferiu-se sentença final que julgou improcedente a acção, com a consequente absolvição do R. do pedido.
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Inconformado apelou o A..
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A Relação conheceu dos dois recursos, julgando ambos improcedentes.
Confirmou, portanto, a sentença final recorrida.
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É agora o A. que, inconformado, recorre de revista para este S.T.J..
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Conclusão
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Apresentadas tempestivas alegações, formulou o recorrente (A.) as seguintes conclusões:
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1ª- Improcedeu o recurso interposto da sentença proferida na 1ª instância uma vez que o douto acórdão ora em apreciação considerou que no momento da aplicação da prisão preventiva ao autor existiam indícios suficientes a essa mesma aplicação.
2ª- A prisão preventiva é subsidiária relativamente às demais medidas de coacção uma vez que é a mais gravosa, obrigando o julgador a um maior cuidado na sua aplicação.
3ª- Daí a necessidade na motivação do despacho que a aplica, entendendo-se por essa motivação, entre outros, a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido e a enunciação dos elementos do processo que indiciam essa imputação (art° 194° n°3 do CPP).
4ª- Ora, no caso em apreço, o despacho que aplicou a prisão preventiva limitou-se a remeter para os factos descritos na acusação e para a moldura penal dos crimes imputados ao arguido, não fazendo qualquer enumeração dos factos concretamente imputados ao arguido,
5ª- E sem reparar que a lei tem um maior grau de exigência na gravidade dos indícios para os casos em que se pretende aplicar a prisão preventiva (indícios fortes - art° 202° n° 1 al. a) do CPP), do que para os casos em que se fica pela acusação pública (indícios suficientes - art° 283° n° 1 do CPP).
6ª- Pelo que, sendo que o despacho que aplicou a prisão preventiva se limitou a remeter para os indícios constantes da acusação, aplicou a prisão preventiva com base apenas em indícios suficientes do cometimento do crime e não com base nos fortes indícios exigidos pelo art° 202 n°1 do CPP, incumprindo o disposto neste artigo.
7ª- Só que se o erro na aplicação da prisão preventiva ao autor já se começava a desenhar com as incongruências acima referidas, ele surge inegável e "grosseiro" quando, analisada a acusação para a qual o referido despacho remete se constata que a mesma não individualiza qualquer actuação do então arguido,
8ª- Não definindo qual o seu papel ou actuação no crime de associação criminosa,
9ª- Sendo que, nas palavras do douto despacho de não pronúncia que se reproduz: "...finalmente, não resulta da prova produzida indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, dos factos descritos na acusação ou quaisquer outros, sendo que o seu nome não é mencionado em lugar algum da acusação, sendo que ficou excluída a associação criminosa, bem como indícios da prática de actos ilícitos relacionados com o veículo Nissan Patrol ...".
10ª- Mas o erro grosseiro não se fica por aqui: a acusação refere a viciação de um Jipe Nissan Patrol, propriedade do autor (aliás, único veículo da propriedade do autor enunciado nos autos), facto reproduzido por remissão sem mácula no despacho que aplicou a prisão preventiva.
11ª- Sucede que muito antes do momento da dedução da acusação, já constava nos autos uma análise efectuada ao referido veículo pelo laboratório de polícia científica (fls. 576 e ss do inquérito), na qual se concluía não haver indícios no referido veículo de qualquer viciação.
12ª- Ora, em erro crasso, a acusação invocou tal viciação, acrescentando a lista dos crimes de falsificação de documento com base nesse erro, não reparando na informação laboratorial,
13ª- Erro esse reproduzido acriticamente pelo despacho que aplicou a prisão preventiva, por remissão para a acusação.
14ª- Erro esse, diga-se ainda, que se evitava pela simples leitura dos elementos do inquérito.
15ª- E tanto mais decisivo, que, relativamente a outro veículo não viciado (Hyundai Accent ...-...-FQ), foram os autos arquivados.
16ª- Ou ainda, quanto ao arguidoBB, por não ter sido apurado o seu grau de participação nos factos, foram os autos arquivados.
17ª- Ora, que dizer do tratamento dado ao autor, não obstante também não se ter apurado o seu grau de participação nos factos (a acusação é omissa quanto a tal factualidade), e o veículo por si possuído não apresentar sinais de viciação? Seria de aplicar a prisão preventiva? Ou os autos arquivados, como sucedeu aos demais?
18ª- E que indícios contra o arguido resultavam do inquérito? Segundo o relatório da PJ, não foi possível provar qualquer facto contra o ora autor (fls. 676 do inquérito).
19ª- Apesar da douta sentença em apreciação elencar um determinado número de alegados indícios, os mesmos são tão ténues e indirectos que não anulam a conclusão do relatório da PJ acima referido.
20ª- Aliás, tanto assim são que, em sede de instrução, sendo que o único acto de prova efectuado foi uma acareação entre o autor e CC, os mesmos não se reconhecendo, tal facto foi suficiente a despronunciar o autor e a acabar com a prisão preventiva.
21ª- Ora, se os indícios fossem fortes (como a lei o exigia), tal acareação não seria bastante para tal resultado.
22ª- Reproduz-se aqui a douta promoção do MP em sede de debate instrutório: "Em resultado das diligências de instrução efectuadas, nomeadamente as que o foram no dia de hoje e já na sequência do que parecia resultar de todo o processado, creio não existir fundamento para imputar ao arguido AA o crime de que vem acusado. Na verdade o veículo que a si pertencia veio a apurar-se não se mostrar viciado por qualquer forma; por outro lado, não se compreendendo a que título surge o arguido AA em toda a situação em apreço, até porque em resultado da acareação ora efectuada resulta que o mesmo nunca foi visto nas instalações onde ocorreram as apreensões que originaram os autos...".
23ª- Assim, conclui-se pela existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos da prisão preventiva, uma vez que a factualidade existente no inquérito não era suficiente sequer à acusação do autor, e muito menos à sua prisão preventiva.
24ª- Não só não resultavam indícios concretos da sua actuação criminosa, como os que foram reproduzidos no libelo acusatório e subsequentemente no despacho que aplicou a prisão preventiva continham factos errados, nomeadamente quanto à viciação do veículo propriedade do autor, não individualizando a sua actuação.
25ª- Perante a inexistência de indícios fortes contra o então arguido, nunca lhe poderia ter sido aplicada uma prisão preventiva, saltando aos olhos que a factualidade inserida na acusação contra si deduzida, e que serviu de justificativo à aplicação da prisão preventiva, nem sequer individualizava a actuação criminosa do autor.
26ª- Pelo que se verificam os pressupostos do art° 225° n°1 al. b) do CPP, devendo o réu ser condenado no pagamento da indemnização peticionada pelo autor, com base na factualidade provada quanto aos danos por si sofridos.
27ª- Mesmo que assim se não entendesse, a nova redacção dada ao art° 225 do CPP (pela inclusão na alínea c) no n°1) confere um direito indemnizatório a todo aquele que sofra prisão preventiva e relativamente ao qual se venha a provar que não foi agente do crime.
28ª- Ora, o autor encaixa nesta previsão legal.
29ª- Sendo que tal norma mais não faz do que explicitar o conteúdo do princípio constitucional subjacente ao art° 225 do CPP,
30ª- Pelo que se poderá considerar que a nova redacção do art° 225 do CPP, sendo uma norma interpretativa, é também aplicável a casos pretéritos (art° 13° do Código Civil), como o que se aprecia, servindo de base legal ao direito indemnizatório do autor.
31ª- Ainda quanto à redacção do art° 225 do CPP, padece a mesma de uma inconstitucionalidade material uma vez que restringe a aplicação dos princípios inseridos nos arts. 22° e 27° n° 5 da CRP, princípios esses que estabelecem a vinculação estatal no pagamento indemnizatório decorrentes dos erros da sua actuação, quer administrativa quer judicial.
32ª- De facto, nos princípios constitucionais inseridos nos arts. 22° e 27° n° 5 não se extrai qualquer necessidade adjectivante do erro estatal (derivado da actuação dos seus órgãos, entenda-se), nomeadamente pela exigência de que o erro seja "grosseiro" ou que a ilegalidade seja "manifesta".
33ª- Assim, conforma o art° 225° do CPP uma restrição ao princípio constitucional, confrontando a norma, de forma clara, o princípio que lhe subjaz - daí decorrendo a inconstitucionalidade formal da redacção dada ao art° 225 do CPP.
34ª- Razão pela qual, com a correcta interpretação desse mesmo artigo 225° do CPP (interpretação constitucionalmente conforme), bastaria à pretensão indemnizatória do autor a demonstração do erro de actuação estatal (neste caso na actuação judicial), situação perfeitamente evidente no caso sub judice.
35ª- Por fim, por lapso, foi fixada a Unidade de Conta (relativamente aos honorários fixados ao Patrono subscritor) em Euros: 96,00 quando deveria ter sido fixada em 102,00 Euros, lapso que se pretende ver rectificado. -
36ª- Deverão ainda ser fixados os honorários decorrentes do recurso interposto para a 2ª instância, bem como para a elaboração do actual.
37ª- A douta sentença de que se recorre violou entre outras, as disposições dos artigos 194° n°3, 202° n° 1 al. a) e 283° n° 1, 225° n°1 al. b) todos do Código de Processo Penal, art. 13° do Código Civil, bem como ainda os arts. 22° e 27° n° 5 da CRP pela não interpretação consentânea com os mesmos dada ao art° 225 do CPP; todos os demais artigos citados foram violados ao não lhes dar a interpretação defendida nas alíneas anteriores e ao longo de todo o presente recurso.
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Contra-alegou o R., pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:
1) A decisão judicial que determinou a prisão preventiva do ora recorrente, não assentou em pressupostos errados por força dum acto temerário, não estando eivada de erro grosseiro.
2) O facto do recorrente ter sido despronunciado dos crimes de que havia sido acusado, face à avaliação feita pelo Tribunal de elementos probatórios, produzidos em sede de instrução, não lhe confere o direito de exigir do Estado o pagamento de uma indemnização pela privação de liberdade que sofreu.
3) O Estado não é, assim, civilmente responsável, nos termos do artigo 22° da CRP, por acto praticado no exercício da função jurisdicional.
Nestes termos, e nos demais de direito, deve ser negado provimento ao recurso de revista, mantendo-se, em conformidade, a decisão recorrida.
Os Factos
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A Relação fixou a seguinte matéria de facto:
1. O autor foi constituído arguido, no processo n° 547/96.1TABRR, que correu termos no 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro, materialmente apensado a este processo, cujo teor se deu por integralmente reproduzido.
2. No mesmo processo, a folhas 846 e seguintes, com data de 12 de Fevereiro de 1999, foi deduzida acusação, na qual foi imputada ao autor a prática, em co-autoria material e concurso real, de um crime de associação criminosa previsto e punido no artigo 299° n.° 1, do Código Penal, de seis crimes de falsificação de documento autêntico previstos e punidos pelo artigo 256° n°s 1 e 3, e de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelo artigo 275° n°s 1 e 2, do Código Penal.
3. No referido processo, eram, também, arguidos, DD, CC, EE e FF
4. A folhas 1083, na sequência de promoção do Ministério Público, com a data de 15 de Julho de 1999, foi pedido o interrogatório de AA, o ora autor, no processo acima referido, para decidir da oportunidade de aplicação a este arguido da medida de prisão preventiva.
5. O ora autor encontrava-se, nessa data, a cumprir pena à ordem de um processo que tinha corrido termos no Tribunal de Círculo de Coimbra, estando preso no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, encontrando-se ainda envolvido noutros processos, que se encontram enumerados a folhas 1087.
6. Na sequência do interrogatório ao ora autor, o Juiz de Instrução Criminal proferiu o despacho de folhas 1105 a 1107, cujo teor é o seguinte: "O arguido encontra-se acusado nestes autos pela prática de um crime de associação criminosa previsto e punido pelo art. 299° 1 CP, seis crimes de falsificação de documento autêntico, previstos e punidos pelo artigo 256°, 1, 3 do mesmo diploma e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 275°, 1, 2, CP. Foi requerida a abertura de instrução, a qual se encontra a decorrer pese embora ainda não tenha sido efectuada qualquer diligência instrutória, sendo certo que o presente interrogatório foi apenas designado para aferir da possibilidade de aplicação ao arguido de medida de coacção de prisão preventiva, tal como havia sido requerido pelo MP aquando da prolação da acusação. Face ao teor da acusação, a qual só poderá ser infirmada em sede de debate instrutório e subsequente despacho de não pronúncia, resulta indiciada a prática pelo arguido dos crimes que aí lhe são imputados. Tais crimes são objectivamente graves, sendo puníveis em abstracto, cada um deles, com a pena de prisão superior a 3 anos, com excepção do crime de detenção de arma proibida, ao qual corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias. Face à elevada moldura penal em causa e à mobilidade do arguido enquanto comerciante, nos diversos negócios em que se meteu (tal como resulta das próprias declarações aqui prestadas pelo mesmo), verifica-se existir um forte perigo de fuga do arguido à justiça. Para tal contribui, também, o seu já largo cadastro criminal. Assim, não se afigura suficiente a aplicação de qualquer medida não detentiva, entendendo-se, não obstante a sua subsidiariedade, ser de aplicar ao arguido a prisão preventiva, única medida que, sendo proporcional à gravidade dos crimes indiciados, é adequada a evitar o referido perigo de fuga. Pelo exposto, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, prestando de imediato TIR - arte. 299°,1, 256°, 1, 3 CP, e 191°, 192°, 193°, 1,2,194°, 1,2,195°, 196°, 202°, 1.° e 204° a), todos do CPP".
7. Na sequência, e, em cumprimento desse despacho, o ora autor foi colocado, em prisão preventiva, em 27 de Agosto de 1999, situação em que permaneceu até ao dia 30 de Dezembro de 1999, durante quatro meses e três dias.
8. Por decisão instrutória de 30 de Dezembro de 1999, o ora autor foi despronunciado dos crimes pelos quais vinha acusado e de quaisquer outros, constando da fundamentação de tal decisão o seguinte excerto: "da mesma [prova produzida] não resulta a prática, pelos arguidos, de actos que consubstanciem acordo de vontades de todos com vista à prossecução de um programa criminoso, caracterizado por alguma estabilidade ou permanência. Não existem, pois, indícios suficientes da prática do crime de associação criminosa que se caracteriza pela aludida finalidade da prática reiterada de crimes e assim se distingue da mera comparticipação" e, pouco depois, em novo extracto, "finalmente, não resultam da prova produzida indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, dos factos descritos na acusação ou quaisquer outros, sendo que o seu nome não é mencionado em lugar algum daquela acusação, sendo que ficou excluída a associação criminosa, bem como indícios da prática de actos ilícitos relacionados com o veículo Nissan Patrol M-33I4-B", e tal despacho de não pronúncia transitou em julgado.
9. O autor sofre de perturbações mentais provocadas pelo stress pós-traumático que advém da sua participação na guerra do Ultramar.
10. Em 11 de Julho de 2000, o autor apresentou uma queixa, na Procuradoria Geral da República, reclamando uma indemnização pelo tempo em que havia estado preso preventivamente, conforme documento de folhas 33 a 38, e recebeu, em 29 de Setembro de 2000, a resposta que consta do documento de folhas 40.
11.0 autor sempre teve a convicção de que estava preso, à ordem do processo n° 547/96, sendo inocente, e, durante o tempo em que esteve à ordem deste processo, passou inúmeras noites sem dormir, chorou, gritou de raiva e sofreu de depressão durante a maior parte do tempo.
12. O autor deixou, muitas vezes, de ter controlo sobre a sua pessoa tomando vivências fictícias e sonhos pela realidade.
13. Durante o período de prisão preventiva, o autor foi sujeito a diversos exames e consultas do foro psiquiátrico.
14. Foi transportado em carrinhas celulares que, muitas vezes, não eram lavadas e se encontravam impregnadas de fezes humanas e restos de vómito, com vários dias, e, nos tempos de espera dentro da carrinha, o ar tornava-se irrespirável, provocando mesmo a perda de consciência.
15. A mulher do autor adiou cirurgia para implantação de prótese num dos membros inferiores, facto que o desgostou e fez sofrer.
16. A mulher e os filhos do autor visitaram-no durante todo o tempo de prisão preventiva, pelo menos, uma vez por semana.
17. Do artigo 1º da acusação do Ministério Público consta que "em data que se situa em finais do ano de 1995, os arguidos, mediante acordo prévio e agindo em comunhão e conjugação de esforços, com outros indivíduos, cuja verdadeira identidade e paradeiro não foi possível obter, conhecidos como BB, de alcunha "o J... F..." e HH, de alcunha "o Brasileiro", decidiram constituir entre si uma associação, tendo em vista o furto e falsificação de viaturas, bem como dos respectivos documentos identificativos, para a sua ulterior revenda em Portugal e em países africanos - para o que constituíram, em Moçambique, a sociedade denominada "M... - Empresa de Transportes e Turismo, Lda", com o propósito de alcançarem elevados proventos económicos" - Documento de folhas 846 e seguintes.
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Ainda no domínio da factualidade relevante para a decisão, o acórdão recorrido teve por demonstrado que, com vista a fundamentar a aplicação da prisão preventiva, existe indiciada a seguinte matéria fáctica:
A - No terreno .... referido, foram apreendidas 30 viaturas e contentores com diverso material e documentação, relacionados, na sua maioria, com esses veículos de marcas diferentes, alguns sem matrícula, com sinais de arrombamento nos canhões e de falsificação;
B - Havia contentores com peças de viaturas desmontadas, e, num barracão, vários jogos de punções de números e letras utilizados para gravar números de chassis, matrículas e chaves, novas e usadas, de diferentes viaturas, ferramentas, auto-rádios com fios cortados ou arrancados, chassis cortados no local do número de série e apreciável quantidade de documentos de automóveis;
C - Estavam lá seis veículos viciados por alteração das matrículas, substituição de placas de identificação, número do quadro, alguns ainda não tinham registo de propriedade, sete tinham sido furtados e três tinham apostas matrículas falsas, e ainda uma carabina e 130 munições e uma espingarda de caça;
D - EE, filho de DD, foi interceptado na condução de um veículo automóvel, da marca "Mercedes Benz", tendo no interior um saco com chaves virgens para a adaptação a automóveis, dinheiro, cheques à ordem do segundo e chaves usadas de diferentes marcas de viaturas automóveis;
E - Foram apreendidos naquele terreno um jipe e dois atrelados pertença do autor, inicialmente sob suspeita de falsificação do número do quadro, posteriormente afastada na sequência de posterior exame;
F - Os referidos reboques podiam ser utilizados no transporte de carros, não havia indícios de avaria do jipe nem dos atrelados, nem o local onde se encontravam era uma normal oficina;
G - O autor, HH,BB e DD eram amigos de longa data, e o último fora empregado do primeiro;
H - O autor, DD e HH, este representado por A...D..., constituíram, em 1995, em Moçambique, a sociedade M...-Empresa de Transporte e Turismo, Lda, para onde o primeiro pretendia exportar veículos.
I - Para esse efeito, o autor deslocou-se à Alemanha, no Verão de 1996, com DD, HH e BB, onde adquiriu o jipe.
J - Em interrogatório realizado em processo criminal que corria termos no Tribunal de Abrantes, DD referiu que o autor o ameaçou de morte, mostrava-se nervoso e pediu ao tribunal protecção e condições de segurança que lhe permitissem falar sobre os factos;
L - DD, em carta dirigida ao processo, em 26 de Março de 199.9, referiu haver outro processo de Abrantes, serem as pessoas as mesmas e ter falado à juíza de Abrantes num nome, e o único nome por ele referido foi o do autor;
M - Noutras investigações, o autor aparece sempre, directamente envolvido no tráfico e viciação de veículos, e, nos meios ligados ao furto, tráfico e falsificação de automóveis, DD e o autor eram considerados perigosos e vingativos, que não olhavam a meios para atingir os seus fins;
N - DD sempre se dedicou ao tráfico e viciação de veículos furtados em Portugal ou no estrangeiro, que depois armazenava, transformava e tornava a vender, em Portugal ou nos países africanos;
O - No processo criminal que corria termos, no Tribunal de Tomar, à ordem do qual o autor foi detido, este atribuiu a autoria dos factos que lhe são imputados a HH e ao BB;
P - Houve deslocações do autor ao terreno onde eram viciados os veículos, e onde estavam o jipe e os dois atrelados de sua pertença;
Q - CC, no interrogatório judicial de 1 de Outubro de 1997, referiu recordar-se de um indivíduo que se fazia transportar num veículo automóvel preto, da marca Mercedes, que entrou no seu terreno e a quem DD abriu os portões e tratou por V...;
R - Num interrogatório conduzido por agentes da Polícia Judiciária, em 14 de Outubro de 1998, CC afirmou ter visto o autor, no seu terreno, pelo menos, uma vez, em que ia a sair e ele ia a entrar, para se encontrar com DD, este referiu que o autor era o padrinho;
S - Em 1979, o autor foi condenado, em pena de prisão, pelo crime de falsificação, e, em 3 de Agosto de 1999, estava a cumprir pena de 30 meses de prisão, por falsificação de documento.
Fundamentação
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A questão essencial a decidir traduz-se em saber se ao A. assiste o direito à indemnização peticionada, por ter sido vítima de prisão preventiva manifestamente ilegal ou sendo esta formalmente legal, por ter o julgador incorrido em erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de dependia, como pretende o recorrente e lhe foi negado pelo acórdão recorrido.
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Intimamente conexionado com esta problemática, suscita igualmente o recorrente a questão da inconstitucionalidade material da anterior redacção do Art. 225º do C.P.P., na medida em que restringe o alcance dos princípios inseridos nos Art.ºs 22º e 27º, n.º5, da C.R.P., nomeadamente por exigir que o erro seja “grosseiro” ou a ilegalidade “manifesta”. (exigências que não encontrariam apoio nos preceitos constitucionais, que se contentariam com a demonstração do erro ou ilegalidade independentemente das ditas qualificações).
Por outro lado, defende ainda o recorrente a aplicação retroactiva ao caso concreto da nova redacção do Art. 225º do C.P.P. (isto é, da sua alínea c) n.º 1) por se tratar de lei interpretativa, o que só por si, levaria à procedência da acção.
Começando por esta última questão, diremos, desde já, que a nova alínea do Art. 225º do C.P.P. não tem qualquer aplicação ao caso concreto por uma dupla razão.
Por um lado, não se trata de preceito interpretativo e por outro, não estão presentes os pressupostos que justificariam a sua aplicação.
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Vejamos.
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O n.º 1 c) do Art. 225º do C.P.P., introduzido pela Lei 48/2007 de 29/8 (que entrou em vigor no dia 15/9/2007) determina que
quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente”.
Portanto, este novo fundamento do direito à indemnização exige a comprovação ou demonstração em processo criminal, de que o arguido sujeito a prisão preventiva, afinal, não foi agente do crime ou actuou justificadamente. Ora, no caso concreto, o que se passa é que o A., foi constituído arguido e acusado no inquérito pelos crimes de associação criminosa, falsificação de documentos autênticos e detenção de arma proibida, sendo que posteriormente, no âmbito da instrução e por decisão final proferida em debate instrutório, não foi pronunciado pelos crimes de que vinha acusado, uma vez que da prova não resultaram indícios suficientes da prática pelo arguido de qualquer dos crimes descritos na acusação.
É, pois, evidente, que não ficou provado ou demonstrado que o A. não praticou os ditos actos criminosos, mas, o que é diferente, não se recolheram indícios suficientes para suportar a acusação.
Não estão presentes, por isso, os pressupostos que justificariam a aplicação do novo preceito legal, pelo que não seria por esta via que o Estado se constituiria na obrigação de indemnizar o A..
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Mas, decisivamente, a nova redacção dada ao Art.º 225º do C.P.P., com a inclusão da referida alínea c) ao seu n.º 1, não foi qualificada pelo legislador como lei interpretativa, nem assume tal qualificação pela sua própria natureza, uma vez que não veio consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adoptado, em virtude de a solução ser controvertida ou incerta, no domínio da vigência da lei anterior (cof. Baptista Machado – Sobre a Aplicação no Tempo no Novo C.C. – 1968, 285 e ss. -).
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Estamos, pois, perante lei inovadora, que regulamenta o regime da indemnização civil por danos causados pelo Estado no exercício da função jurisdicional. Como se diz no recente acórdão de 22/3/2011 deste S.T.J., proferido na Revista n.º 5715/04.1TVLSB.L1.S1 “... é uma regra de direito privado comum ou civil, uma norma sobre a responsabilidade civil extracontratual. Daí que a nova formulação do mencionado art. 225º só logra aplicação aos casos de detenção ou prisão preventiva após o início da vigência da Lei 48/2007, ou seja, após 15/9/2007, nos termos do art. 12º do C.C.”.
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No caso o A. foi submetido a prisão preventiva em 27/8/1999 que durou até 30/12/1999, pelo que não tem aplicação, a nova redacção do Art.º 225º do C.P.C., mas sim a sua anterior redacção.
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Afastada, assim, a aplicação retroactiva da nova redacção do Art.º 225º do C.P.P., há que considerar o regime estabelecido no mesmo preceito legal, na redacção anterior, designadamente, a sua conformidade com os Art.ºs 22º e 27º, n.º 5, da Constituição.
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É o que se passa a apreciar.
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É certo que o Art.º 27 da C.R.P. a todos garante o direito à liberdade e segurança e que o Art.º 22 responsabiliza solidariamente o Estado e demais entidades públicas, com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa delas, de que resulta a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
Certo é também que, depois do direito à vida e à integridade física e moral das pessoas, o direito à liberdade de cada um é o mais importante dos direitos pessoais.
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Todavia, apesar dessa importância, não se trata de um direito absoluto ou ilimitado.
É que, a par desse direito, tem também o Estado de garantir a segurança das pessoas, o que pode colidir, e colide frequentemente, com o direito à liberdade.
Como costuma dizer-se, a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro. De facto, a vivência democrática num Estado de Direito, tem, necessariamente, os seus custos.
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Ora, a segurança dos cidadãos implica, cada vez mais, a repressão de actividades criminosas, o que confere legitimidade ao Estado para a perseguição criminal de tais condutas (é este, de resto, um dos seus deveres essenciais para com a sociedade), com a consequente privação da liberdade no caso de condenação em pena de prisão, no caso de prisão preventiva e em outras situações de detenção ou internamento expressamente ressalvados nas diversas alíneas do nº3 do citado Art.º 27.
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Portanto, a ilegalidade ou ilegitimidade da privação da liberdade, designadamente da prisão preventiva, só se coloca quando é efectuada em desacordo com a Constituição ou com a lei.
Daí o nº5 do Art.º 27 determinar que “A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.
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Posto isto é já fácil conciliar e compreender os princípios constitucionais contidos nos Art.ºs 22 e 27 da C.R.P.
O primeiro, estabelece o princípio geral de responsabilidade civil directa do Estado, enquanto o segundo, alarga essa responsabilidade em especial ao exercício da função jurisdicional, impondo o dever de indemnizar aquele que for lesado por privação ilegal ou injustificada da liberdade, dever cujo conteúdo é definido pela lei ordinária (nos termos que a lei estabelecer, lê-se no preceito).
Daí que na sequência do comando constitucional tenha surgido o Art.º 225 do C.P.P., como até decorre claramente do disposto no Art.º 2º, nº2, alínea 38, da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86 de 26 de Setembro (concedida para aprovar o novo C.P.Penal).
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Determina o nº1 do referido Art.º 225 que “quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o Tribunal competente indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade” e o nº2 estabelece, que “ o disposto no numero anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia…”
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Como observa Castro e Sousa (Jornadas de Direito Processual Penal – 162/163 –)”… o nº1 do Art.º 225, respeita à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante do nº5 do Art.º 27 da Constituição e ao disposto no nº5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996 e no nº5 da Convenção Europeia -, reparação essa que “é extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que vem a revelar-se injustificada por erro grosseiro…”
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Que o referido Art.º 225 do C.P.P. concretiza e desenvolve o comando constitucional contido no nº5 do Art.º 27 é também a opinião avalizada de Gomes Canotilho e Vital Moreira (- C.R.P. anotado – 3º ed- 187).
“O Art.º 225 do novo C.P.P. interpreta correctamente o sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelarem injustificados por erro grosseiro na apreciação da matéria de facto de que dependia… Haverá, pois, aqui, uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito à liberdade” (estabelece-se neste preceito algo que hoje tem igualmente assento na Lei n. 67/2007 de 31/12, conforme se vê do disposto no Art.º 12 a 14 do citado diploma legal).
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No mesmo sentido vai o Ac. do T.C. nº 160/95 de 15/3/95 – B.M.J. – Suplemento nº 446 – pg. 584 e seg. onde pode ler-se: “… no quadro do mesmo instituto da responsabilidade civil do Estado o artigo 22 (do C.R.P.) regula essa responsabilidade em geral, e o art.º 27 nº5 (da mesma L.F.) regula-a para a situação específica de privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei…
Como já ficou dito no Ac. Nº 90/84 (do Tribunal Const.), trata-se aqui de situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador – dito de outro modo: em que remete para o legislador a efectivação de um certo princípio ou do direito por este reconhecido.”
“Ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas verdadeiramente, lho reserva.”
“ O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no nº1 do Art 225, prevendo aí os casos de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e distinguindo no nº2, os casos em que ela não é ilegal.
Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o nº5 do Art.º 27 limita-se a prever a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei, derivando, no plano da responsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade”.
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Consequentemente o Art.º 225 do C.P.P. define, em consonância com a disciplina constitucional, os casos de responsabilidade do Estado em função de decisão judicial que decrete a prisão preventiva, visto que o legislador constitucional devolveu à lei ordinária a definição dos termos em que haverá lugar a indemnização.
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Neste sentido cofr. Ac. Deste S.T.J. de 27/11/2003 proferido no processo 03B3341, relatado pelo Exm.º Cons. Oliveira Barros, onde se pode ler “Estabelecido no artigo 22 da Constituição um princípio geral de directa responsabilidade civil do Estado, é em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função jurisdicional para além do clássico erro judiciário que a lei fundamental lhe impõe, no seu artigo 27 nº5, de modo especial, o dever de indemnizar quem for lesado por privação ilegal da liberdade «nos termos que a lei estabelecer».
É nesses termos, e não, se bem parece, noutros, que se mostra instituída «uma responsabilidade directa do Estado por actos da função jurisdicional, por lesão grave do direito à liberdade»; e é um cumprimento da injunção final daquele artigo 27º nº 5 que o artigo 225 do C.P.P./87 tal regula”.
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Podemos, assim, concluir não ser de aceitar a responsabilidade objectiva geral do Estado por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger a prisão preventiva legal, efectuada e mantida justificadamente, sem erro grosseiro (pelo menos em termos de direito constituído).
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Consequentemente o Art.º 225 do C.P.P. (quer na redacção aplicável ao caso concreto, quer na sua actual redacção) nada tem de inconstitucional.
Aliás, a constitucionalidade do referido preceito, tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional – Col. Ac. do TIC. Nº 160/95 de 15/3/95; nº 12/2005 de 12/1/2005; nº 13/2005 de 13/1/2005; nº 185/2010 de 12/5/2010.
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É aliás este o sentido dominante na jurisprudência deste S.T.J. como pode ver-se dos seguintes arestos:
Ac. do S.T.J. de 3/12/99 – Rev. 864/98- 2º;
Ac. do S.T.J. de 11/11/99- Rev. 743/99 - 2º;
Ac. do S.T.J. de 9/12/99 – Rev. 762/99- 1º;
Ac. do S.T.J. de 6/1/2000 – Rev.. 1004/99-7º;
Ac. do S.T.J. de 4/4/2000 – Rev. 104/2000-6º;
Ac. do S.T.J. de 20/06/2000 –Rev 433/2000-6º;
Ac. do S.T. J. de 19/11/2004 –Rev 2543/2004-7º;
Ac. do S.T. J. de 29/6/2005 – Rev 2490/2005-7º;
Ac. do S.T. J. de 20/10/2005 –Rev. 2490/2005-7º;
Ac. do S.T. J. de 15/2/2007 – Rev. 4565/2007 –2º;
Ac. do S.T. J. de 22/1/2008 – Rev. 2381/2007- 1º;
Ac. do S.T. J. de 19/6/2008 – Rev. 1091/2008 –7º;
Ac. do S.T.J. de 11/9/2008 – Rev. 1748/2008- 2º;
Ac. do S.T.J. de 22/6/2010 – Rev. 3736/2007 – 1º;
Ac. do S.T.J. de 22/3/2011 – Rev.5715/2004- 6º;
Ac. do S.T.J. de 19/9/2002 – Rev. 2282/2002-7º;
Ac. do S.T.J. de 13/5/2003 – Rev. 1018/2003 – 6º;
Ac. do S.T.J. de 27/11/2003 – Rev. 3341/2003 – 7º;
Ac. do S.T.J. de 27/11/2003 – Rev.1534/2004 – 1º;
Ac. do S.T.J. de 1/6/2004 – Rev. 1572/2004 - 6º;
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Vejamos agora, ainda que sucintamente, os traços essenciais do regime previsto no Art.º 225 do C.P.P. na redacção anterior à lei 48/2007.
- nº 1 do Art.º 225 do C.P.P. – “Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade”.
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Vê-se, assim, desde logo, que, para que nasça o dever de indemnizar por parte do Estado, não basta que a detenção ou prisão preventiva seja ilegal.
É ainda necessário que essa ilegalidade seja manifesta ou notória.
Ora, na falta de critério legal, será manifesta a ilegalidade da detenção ou prisão preventiva quando for evidente, fora de qualquer dúvida razoável, que foram efectuados sem estarem presentes os respectivos pressupostos legais, ou, como se diz no Parecer nº 12/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria da República de 30/3/92 “ É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa dúvidas. Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em causa…”
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Portanto, a lei distingue entre prisão preventiva ilegal e prisão preventiva manifestamente ilegal.
A simples ilegalidade fundamenta, desde logo o direito de recorrer ou de lançar mão da providência de habeas corpus mas não justifica o pedido de indemnização, que apenas se sustenta na ilegalidade manifesta.
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Ao distinguir as duas situações, terá pretendido o legislador tornar admissível” um certo grau de discricionariedade vinculada na aplicação da lei pelos juízes, cuja consequência pode traduzir-se numa ilegalidade.
Dando-se a estes uma margem, dir-se-ia, de liberdade, que lhes permita, quando decidem, ter opiniões porventura divergentes sobre os fundamentos da prisão preventiva, não se coarcta o direito fundamental a decidir com liberdade e sujeito a critérios de legalidade. É, ainda aqui, a preservação da independência dos juízes na administração da justiça que está em causa, sendo certo que, no exercício da sua competência funcional, aqueles apenas se encontram limitados pelo dever de obediência à lei e à Constituição, não podendo ser responsabilizados pelos juízos técnicos emitidos nas respectivas decisões, ainda que estes possam ser alterados por via de recurso.
Essa margem de liberdade tem, no entanto, limites, que se repercutem afinal, no conceito de ilegalidade manifesta ou notória.”
(Cofr. A responsabilidade civil do Estado pela privação da liberdade decorrente da prisão preventiva, da autoria de José António Mouraz Lopes – BºMºPº nº 88,pg. 85-).
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A prisão preventiva ilegal pode ter origem (e terá frequentemente) em erro de direito, isto é, num erro que recai sobre a existência ou conteúdo duma norma jurídica (erro de interpretação) ou sobre a sua aplicação (erro de aplicação).
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Pense-se, por ex., no erro de interpretação de determinada lei de amnistia, por via do qual se manteve a prisão preventiva anteriormente decretada, quando uma interpretação efectuada com o exigível cuidado e ponderação, levaria à imediata libertação do arguido, ou no erro de qualificação de determinado crime, em virtude do qual se lhe atribui uma moldura penal superior a 3 anos de prisão, e na sequência se ordenou a prisão preventiva, quando, na realidade, se tratava de um crime punido com pena de prisão inferior a esse limite.
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Em todo o caso, a relevância do erro para o efeito de constituir o Estado, no dever de indemnizar nos termos do nº1 do Art.º 225 do C.P.P. só surge se se tratar de erro, manifesto, isto é, grosseiro, notório, crasso, evidente, indesculpável, que se encontra fora do campo em que é natural a incerteza.
Só esta notoriedade do erro transforma a prisão preventiva decretada à sua sombra em manifestamente ilegal.
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Posto isto, resta indicar alguns casos, que a doutrina e jurisprudência geralmente apontam como incluídos no conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal:
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- Prisão preventiva ordenada por entidades administrativas, designadamente policiais, mas também a ordenada por magistrados judiciais desde que desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício das suas funções, ou, mesmo no exercício delas, se actuarem determinados por fins alheios aos princípios deontológicos e estatutários que regem a profissão, ou determinados por motivos com relevância criminal, como por ex. por peita, suborno ou concussão.
- Prisão preventiva fundada na indiciação da prática de crime punido com pena de prisão inferior a 3 anos.
- Prisão preventiva mantida para além dos prazos previstos na lei.
- Prisão preventiva decretada quando inexistam fortes indícios da prática de crime punido com pena de prisão superior a 3 anos.
- Prisão preventiva decretada, sendo claramente adequados e suficientes alguma das restantes medidas de coacção.
- Prisão preventiva decretada, quando, no caso concreto, estão manifestamente ausentes todos os requisitos gerais previstos na lei (fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito ou da instrução, perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, perigo de continuação da actividade criminosa).
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Note-se que os requisitos gerais assinalados não têm de verificar-se cumulativamente.
Trata-se de requisitos taxativamente enumerados, com carácter alternativo.
Basta a verificação de um deles para suportar a prisão preventiva, verificadas que sejam as outras condições especiais que a justificam.
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Vejamos agora o regime estabelecido no nº2 do Art.º 225 do C.P.P.
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O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro”.
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Antes de mais há-de notar-se que o erro relevante, para o efeito que ora interessa, é o erro de facto, isto é, aquele que incidiu sobre a apreciação dos pressupostos de facto e não sobre os fundamentos de direito.
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Como é sabido, o erro, em geral, consiste no desconhecimento ou na falsa representação da realidade fáctica ou jurídica que subjaz a uma determinada situação e será erro de facto quando incida sobre qualquer outra circunstância, que não a existência ou o conteúdo de uma norma jurídica (cofr. Manual de Andrade – T. Geral).
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No caso do nº2 do preceito em análise, estamos perante uma prisão preventiva com cobertura legal, pelo que o erro só pode incidir sobre a factualidade que o julgador considerou para fundamentar a decisão de aplicar a medida de coacção excepcional de prisão preventiva (Art.º 202 do C.P.P.).
Tal factualidade pode nem existir no processo, ser falsa, ou existindo, ter sido apreciada e valorada de forma totalmente inusitada, reveladora de uma completa desconformidade entre a realidade processual concreta (emergente do processo) e a realidade representada pelo julgador na qual ele assentou a sua decisão.
É, pois, nesta falta de correspondência entre os motivos de facto em que o julgador fundou a decisão e a realidade concreta revelada de forma clara e inequívoca pelo processo que se move a figura do erro sobre os pressupostos de facto de que depende a prisão preventiva.
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Mas, não releva qualquer erro, pois exige-se que esse erro se configure como grosseiro.
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Ora, erro grosseiro, será, como ensina Manuel de Andrade (T. Geral II-239)
O erro escandaloso, crasso, supino que procede de culpa grave do errante; aquele em que não teria caído uma pessoa dotada de normal inteligência, experiência e circunspecção”.
Noutra formulação, igualmente expressiva e de sentido idêntico, é grosseiro ou indesculpável (error intolerabilis) aquele que o sujeito, dotado de uma normal capacidade de pensar e agir coordenadamente, tinha obrigação de não cometer (cofr. Aveiro Pereira).
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Mas, como tem sido defendido na jurisprudência deste S.T.J., a previsão do Art.º 225 nº2, apesar de falar em erro grosseiro, abrange também o chamado acto temerário, sob pena de se tornar praticamente inaplicável à generalidade dos casos.
Entende-se, então, por acto temerário, aquele que, integrando um erro decorrente da violação de solução que os elementos de facto notória ou manifestamente aconselham, se situa num nível de indesculpabilidade e gravidade elevada, embora de menor grau que o erro grosseiro propriamente dito, ou, nas palavras do douto acórdão deste Supremo Tribunal de 12/10/2000, relatado pelo Exm.º Cons. Noronha de Nascimento, actual Presidente do Supremo, acto temerário, ou erro temerário, que também o nº2 do Art.º 225 comporta é “aquele que – perante a factualidade exposta aos olhos do jurista e contendo uma duplicidade tão grande no seu significado, uma ambiguidade tão saliente no seu lastro probatório indiciário – não justificava uma medida gravosa de privação de liberdade mas sim uma outra mais consentânea com aquela duplicidade ambígua”.
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Por outro lado, há-de ainda registar-se que, a apreciação a fazer no sentido de qualificar o eventual erro como grosseiro (ou temerário), terá de reportar-se, necessariamente, ao momento, em que a decisão impugnada teve lugar.
Será, pois, com base nos factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decretada ou mantida, que ele tem de ser (posteriormente embora) avaliado e qualificado (como grosseiro e temerário).
Daí que seja irrelevante, para tal qualificação, “o facto de, mais tarde, o detido ter vindo a ser absolvido ou mesmo não submetido a julgamento por, entretanto, haver surgido novas provas que afastam a sua anterior indiciação (ou inculpação)” (cofr. Ac. do S.T.J. nº 04B2543 – JSTJ 000).
No mesmo sentido cof. Ac. do T.C. nº 3/2000 de 12/1/2005 (D.R. II S. de 28/7/2005), onde se escreveu, no que aqui interessa “para avaliar se se verificou erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, de que fala o nº2 do artigo 225 do C.P.P., temos que nos colocar na posição do juiz de instrução, sem a omnisciência que o decurso do tempo permite”.
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Postas estas prévias considerações resta averiguar se, no caso concreto, a prisão preventiva do A. foi manifestamente ilegal, ou se ocorreu erro grosseiro (ou acto temerário) na apreciação dos seus pressupostos de facto.
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Sabemos que no âmbito do processo 547/96 do 2º Juízo Criminal do T. Judicial da Comarca do Barreiro, foi deduzida acusação contra o A., na qual se lhe imputou a prática em co-autoria material e concurso real, de um crime de associação criminosa, p. e p. no Art.º 229º n.º 1, de seis crimes de falsificação de documento autêntico, p. e p. pelo Art.º 256º n.ºs 1 e 3 e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo Art.º 275º n.ºs 1 e 2, todos do C.Penal.
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Nessa altura o A. encontrava-se a cumprir pena de prisão à ordem de outro processo.
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O M.º P.º pediu o interrogatório do A. para se decidir da oportunidade da aplicação da medida de prisão preventiva.
Procedeu-se a esse interrogatório, findo o qual foi proferido despacho judicial cujo teor consta do ponto 6 da matéria de facto provada, que aqui se reproduz, salientando-se que à data do interrogatório, embora estivesse pedida a abertura da instrução, designadamente pelo A., não tinha ainda sido efectuada qualquer diligência instrutória.
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Consta do referido despacho que “... Face ao teor da acusação, a qual só poderá ser infirmada em sede de debate instrutório e subsequente despacho de não pronúncia, resulta indiciada a prática pelo arguido dos crimes que aí lhe são imputados. Tais crimes são objectivamente graves, sendo puníveis em abstracto, cada um deles, com pena de prisão superior a 3 anos, com excepção do crime de detenção de arma proibida, ao qual corresponde pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Face à elevada moldura penal em causa e à mobilidade do arguido enquanto comerciante, nos diversos negócios em que se meteu ... verifica-se existir forte perigo de fuga do arguido à justiça. Para tal contribui também o seu já largo cadastro criminal.
Assim, não se afigura suficiente a aplicação de qualquer medida não detentiva, entendendo-se, não obstante a sua subsidiariedade, ser de aplicar ao arguido a prisão preventiva, única medida que, sendo proporcional à gravidade dos crimes indiciados, é adequada a evitar o referido perigo de fuga ...”.
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Na sequência deste despacho o A. foi colocado à ordem do referido processo, na situação de prisão preventiva, em 27/8/99, situação que permaneceu até 30/12/99 (4 meses e 3 dias), quando, por decisão instrutória de 30/12/99, o A. não foi pronunciado por qualquer dos crimes constantes da acusação, tendo sido restituído à liberdade.
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Analisando o despacho que determinou a prisão preventiva do A., verifica-se que o decisor, ao que parece, teve como indiciados os crimes constantes da acusação, pelo simples facto de dela constarem, sem qualquer apreciação concreta da prova indiciária, para a qual, na melhor das hipóteses, remeteu acriticamente.
É, pelo menos, o que resulta da interpretação objectiva do despacho quando refere que “... face ao teor da acusação, a qual só poderá ser infirmada em sede de debate instrutório e subsequente despacho de não pronúncia, resulta indiciada a prática pelo arguido dos crimes que lhe são imputados ...”.
Quer dizer, enquanto não fosse contrariada a acusação em sede de instrução, seria indiscutível o valor da prova indiciária que a suportaria!!!
Afigura-se-nos inadmissível e, portanto, manifestamente ilegal, tal interpretação da lei.
De facto, a medida de coacção PRISÃO PREVENTIVA, além de subsidiária em relação às demais previstas na lei, só pode ser aplicada se “houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a três anos ...” como prescreve o Art. 202º do C.P.P..
Tal implica, necessariamente, e antes de mais, que, no momento da aplicação da medida, sejam ponderados concreta e criticamente todos os indícios até então recolhidos, que só serão relevantes para fundamentar a medida, se forem fortes, isto é, se, tendo em conta as regras da experiência comum, revelarem uma séria probabilidade de ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados. Não basta, por isso, a existência de indícios da prática do crime se estes não forem firmes e seguros ou forem exclusivamente indirectos ou circunstanciais.
Ora, a existência de fortes indícios, não é minimamente garantida pelo facto de o M.º P.º ter deduzido acusação contra o arguido.
Diferentemente, a acusação há-de ser sempre submetida ao crivo do juiz, que, em última análise, terá de a avaliar em conformidade com a prova indiciária recolhida, pronunciando ou não o arguido, caso tenha ocorrido instrução, ou aceitando ou rejeitando a acusação, no caso contrário.
Da mesma forma, também quando se trata de fixar a medida de coacção – PRISÃO PREVENTIVA –, torna-se indispensável a apreciação crítica e concreta da prova indiciária recolhida, para se concluir pela existência de fortes indícios da prática dos concretos actos criminosos imputados ao arguido, condição primeira da aplicação da medida.
Ora, no caso concreto, não se vê que tal tenha sido feito pelo decisor quando aplicou ao A. a medida de prisão preventiva, que assentou, desde logo, na própria acusação, cujo teor foi tido como suficientemente indiciado, sem qualquer apreciação crítica do juiz de instrução.
Como que se presumiu que, tendo o A. sido acusado pelo M.º P.º, existiriam suficientes indícios da actividade criminosa que lhe era imputada.
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Já se referiu, tal interpretação afigura-se-nos manifestamente ilegal.
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Mas, noutra perspectiva, dir-se-á, como fez o R., nas alegações da apelação, que o juiz de instrução remeteu a fundamentação do despacho em que aplicou a medida de coacção aqui em questão para outra peça processual, no caso, para a acusação, o que seria prática que a redacção então em vigor do Art. 194º do C.P.P. perfeitamente comportaria.
Salvo melhor opinião não parece de acolher tal interpretação do Art.º 194º, na anterior redacção. Tratando-se de decidir sobre a liberdade das pessoas, nunca se justificaria que a decisão assentasse a sua fundamentação na remissão para outra peça processual, para mais da autoria de um dos intervenientes processuais, como é o M.º P.º.
Acresce que os despachos judiciais devem ser sempre fundamentados, não sendo fundamentação válida a simples adesão a fundamentação alheia, mas sobretudo, remeter para a acusação, é remeter para a descrição de um conjunto de factos que são afirmados e qualificados como criminosos, mas não para a prova indiciária em que essa acusação se baseou.
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Mas, se se quiser entender que essa remissão implica, também, a remissão para a prova indiciária, mesmo assim, é difícil sustentar que tal remissão possa significar que o decisor judicial ponderou, ele próprio, crítica e concretamente, a dita prova indiciária, como tinha obrigação de fazer.
O despacho em causa, como resulta dos seus termos expressos, não aponta minimamente nesse sentido.
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Todavia, dando de barato que é neste sentido que deve interpretar-se o despacho que determinou a aplicação ao A. da prisão preventiva, então teremos de concluir, face à factualidade disponível, que a apreciação judicial (implícita) da prova indiciária recolhida, assentou numa valoração grosseiramente errada ou pelo menos temerária.
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Na verdade, vêm descritos na matéria de facto, quais os essenciais factos que à data do despacho que ordenou a prisão preventiva do A., se indiciavam, tal como decorre do processo crime.
Ora, da conjugação e análise dessa factualidade indiciária, nada de concreto e concludente resulta no sentido de permitir, com a necessária segurança, imputar ao A. a prática dos crimes referidos na acusação do M.º P.º.
Trata-se de indícios absolutamente indirectos, meramente circunstanciais, que de modo algum podiam ter-se como fortes indícios de modo a fundamentar a medida de coacção de prisão preventiva.
Não passam de meras suspeitas, alicerçadas, sobretudo, no anterior cadastro do A., que não em factos concretos e actuais que lhe pudessem ser seriamente imputados.
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Em resumo, mas no essencial, a factualidade indiciária disponível limita-se ao seguinte:
- Foram apreendidos em determinado terreno (pertencente a um dos arguidos – CC –) 30 viaturas, algumas sem matrícula, com sinais de arrombamento e de falsificação, outras viciadas e furtadas, bem como uma carabina, munições e uma espingarda de caça;
- Nesse terreno havia contentores com peças de viaturas desmontadas e vários jogos de punções de números e letras utilizados para gravar números de chassis, matrículas e chaves, novas e usadas, de diferentes viaturas, auto-rádios com fios cortados ou arrancados, chassis cortados no local do número de série e apreciável quantidade de documentos de automóveis;
- EE, filho de DD, foi interceptado na condução de um veículo de marca Mercedes, tendo no interior um saco com chaves virgens para adaptação a automóveis, dinheiro, cheques à ordem do segundo e chaves usadas de diferentes marcas de viaturas automóveis;
- No mesmo terreno foi apreendido um jipe e dois atrelados, pertencentes ao A.;
- Inicialmente suspeitou-se que o dito jipe (Nissan – Patrol) se encontrava falsificado no que respeita ao número do quadro. Porém, como também resulta dos autos, mesmo antes de deduzida a acusação, o jipe foi submetido a prova pericial, tendo-se constatado não existir viciação alguma;
- o A. e outros arguidos (HH, BB e DD) eram amigos de longa data;
- O A., o DD e o HH, constituíram em 1995, em Moçambique, a Sociedade M... – Empresa de Transporte e Turismo Ld.ª, para onde o A. pretendia exportar veículos;
- Em interrogatório realizado em processo criminal que corria termos no Tribunal de Abrantes, o DD referiu que o A. o ameaçou de morte e se mostrava nervoso;
- O DD, em carta dirigida ao processo, em 26/3/1999, referiu haver outro processo em Abrantes, sendo as pessoas os mesmos, e ter falado à juíza de Abrantes num nome e que esse nome foi o do A.;
- Noutras investigações, o A. aparece directamente envolvido no tráfico e viciação do veículos;
- nos meios ligados ao furto, tráfico e falsificação de automóveis, o DD e o A. eram considerados perigosos e vingativos, que não olhavam a meios para atingir os seus fins;
- O DD sempre se dedicou ao tráfico e viciação de veículos furtados, que depois vendia;
- Houve deslocações do A. ao terreno onde eram viciados os veículos e onde se encontrava o jipe e os dois atrelados da sua pertença;
- O CC (proprietário do dito terreno) no interrogatório de 1/10/1997, referiu recordar-se de um individuo que se fazia transportar num veículo automóvel preto, de marca Mercedes, que entrou no seu terreno e a quem o DD abriu os portões e tratou por V...
- O mesmo CC, num interrogatório conduzido por agentes da Polícia Judiciária, em 14/10/1998, disse ter visto o A. no seu terreno, pelo menos uma vez, quando ia a sair e ele a entrar para se encontrar com o DD, tendo este referido que o A. era o padrinho;
- Em 1979 o A. foi condenado em pena de prisão pelo crime de falsificação, e, em Agosto de 1999 estava a cumprir pena de 30 meses de prisão, por falsificação de documento.
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Ora, como é bom de ver, os factos acima referidos não descrevem qualquer actuação concreta do A. que permita, de acordo com as regras do bom senso e da experiência comum, imputar-lhe, ainda que em sede de mera probabilidade, a prática de um crime de associação criminosa, de falsificação de documentos ou de detenção de arma proibida.
Que factos terá o A., juntamente com os demais arguidos, levado a cabo, no sentido de organizarem uma associação criminosa com vista ao furto e falsificação de viaturas para posterior comercialização?
Ao que consta da descrita prova indiciária nenhum facto concreto permite tal afirmação ou sequer suposição. Ou seja, não há o menor indício da constituição da associação criminosa que a acusação imputa ao A., pois, seguramente, não constitui indício dessa situação o facto de o A. e outro arguido, em 1995, terem constituído, em Moçambique, a Sociedade M... para onde se pretendia exportar viaturas, quando não se descreve qualquer actuação do A. ou da dita sociedade que possa ter-se por criminosa.
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Da mesma forma, nenhuma conduta vem descrita que permita, de perto ou de longe, configurar a prática pelo A. dos crimes de falsificação ou viciação de veículos ou de documentos a eles respeitantes, imputados na acusação e no despacho que ordenou a sua prisão preventiva, assim como nada se diz, na analisada prova indiciária, sobre qualquer conduta do A. relativamente às armas apreendidas num terreno que nem consta pertencer-lhe, ou de qualquer outra.
A respeito da viciação de viaturas, o único facto concretamente comprometedor, seria a apreensão do jipe do A. no terreno de outro arguido, caso estivesse viciado, como inicial e apressadamente se supunha.
Todavia, mesmo antes da acusação, veio a apurar-se, em exame pericial, que nenhuma viciação existia.
Ficou, assim, completamente destruída a única prova concreta contra o A. de que dispunha a investigação, razão porque não se compreende que se lhe tenha imputado vários crimes de falsificação (designadamente em relação ao dito jipe, que comprovadamente não sofreu qualquer viciação) sem qualquer base factual indiciária.
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Seguramente não será pela circunstância de o A. ser amigo de pessoas que praticaram determinados crimes, de ter constituído com um deles, uma sociedade destinada à exportação de automóveis, ou de ter sido visto uma vez no terreno aqui em causa, que permite ter-se por indiciado que praticou os crimes que lhe foram imputados, mesmo sabendo-se que o A. tem cadastro no âmbito de crimes de tráfico de veículos automóveis, tanto mais que o A. sempre negou a participação em tais actividades criminosas.
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A forte indiciação da prática de crimes que a lei exige como condição primeira para que possa ser decretada a prisão preventiva, não pode presumir-se de factos inconcludentes, como eram os disponibilizados pela prova colhida no inquérito ...
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A verdade é que os elementos disponíveis nos autos apontam no sentido de que a acusação deduzida contra o A. (na qual se fundou o despacho judicial que decretou a prisão preventiva do A.) assentou em simples suspeitas, ao que parece, decorrentes do seu anterior passado criminal, mas não tem por base qualquer actuação concreta do A., como resulta do que acaba de dizer-se.
Aliás, é o que se infere claramente do relatório da Polícia Judiciária, no qual, apesar das suspeitas que recaiam sobre o A., expressamente reconhecia não existirem provas que permitissem incriminá-lo.
No mesmo sentido vai a promoção do próprio M.º P.º durante o debate instrutório onde refere não se compreender a que título surge o arguido AA em toda a situação em apreço.
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E que a ausência de indícios minimamente credíveis era manifesta, resulta ainda do despacho de não pronúncia do A. quando refere que da prova produzida “não resulta a prática, pelos arguidos, de actos que consubstanciem acordo de vontades de todos com vista à prossecução de um programa criminoso…. “Relativamente ao crime de detenção de arma proibida, excluída a associação criminosa, não estando individualizada a acção de cada um dos arguidos nesta parte, à excepção do arguido HH, só a este é possível imputar a prática de factos integrantes de um crime de detenção de armas proibidas”.
Lê-se, ainda no mesmo despacho “A referência, na acusação, a sinais de viciação no veículo «Nissan Patrol», de matrícula nº ..., só pode ser resultado de mero lapso, em face das conclusões do exame pericial de fls 577, pelo que fica excluído um dos crimes de falsificação….”
E finalmente “…não resultam da prova produzida indícios suficientes da prática, pelo arguido AA, dos factos descritos na acusação ou quaisquer outros, sendo que o seu nome não é mencionado em lugar algum daquela acusação, sendo que ficou excluída a associação criminosa, bem como indícios da prática de actos ilícitos relacionados com o veículo «Nissan» Patrol ...”.
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Pode, portanto, concluir-se da análise acima efectuada, que a acusação deduzida contra o A. se fundou, em relação a ele, em prova indiciária genérica, conclusiva e inconcludente, manifestamente insuficiente para se ter como indiciada a prática de qualquer de qualquer dos crimes que lhe foram imputados.
No fundo, o que existiam, eram meras suspeitas do envolvimento do A., mas sem base factual em que as apoiar.
Estamos, assim, muito longe dos fortes indícios a que a lei se refere e que justificam, em primeira linha, a aplicação da medida da coacção mais gravosa, isto é, a medida de prisão preventiva (Art.º 202º nº 1 a) do C.P.P.).
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Ora, como se viu, o despacho judicial que ordenou a prisão preventiva do A., remeteu para a acusação, a qual, segundo se escreveu “…só poderá ser infirmada em sede de debate instrutório e subsequente despacho de não pronúncia…”
Nessa conformidade, teve-se por indiciada a prática pelo A. dos crimes que na acusação lhe eram imputados.
Assim sendo, como atrás já se deixou esboçado, das duas uma:
- Ou o despacho judicial aqui em causa se bastou com o conteúdo da acusação sem sindicar, concreta e criticamente a prova indiciária em que a acusação se fundou (mal, como vimos), presumindo a existência de indícios fortes dos crimes ali imputados ao A. pelo simples facto de a acusação lhos imputar,
- ou a remissão para a acusação implicou a análise da prova indiciária existente à data do despacho e na qual se baseou a acusação, aceitando-a como indiciando fortemente a prática pelo A. dos crimes que lhe foram imputados.
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No primeiro caso, o despacho que determinou a prisão preventiva do A. fez aplicação manifestamente errada das normas que estabelecem os pressupostos de aplicação da referida medida, maxime, do Art.º 202 nº1 a) do C.P.P., na medida em que não analisou a prova indiciária existente (e que, como se viu já, era completamente inconsistente) no sentido de verificar e ponderar, como era elementar, da existência de fortes indícios da prática dos crimes imputados ao A. na acusação, condição primeira e necessária da aplicação da medida.
Estaremos, assim, no campo do erro de direito, que se nos afigura grosseiro, evidente e fora do campo em que é natural a incerteza, gerador, por isso, da manifesta ilegalidade da prisão preventiva decretada (Art.º 225º nº1 do C.P.P.)
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No segundo caso, caímos no âmbito do erro do facto, ou seja, no âmbito do erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da medida a que se refere o nº2 do Art.º 225. No caso, estamos perante o erro na apreciação dos indícios disponíveis da prática dos crimes, que é a primeira operação a realizar pelo julgador e da qual depende, desde logo, a aplicação da medida. Só se estiverem presentes indícios fortes é que se coloca a questão da apreciação dos restantes requisitos gerais da medida, como é evidente.
Já vimos que, nesta sede, face à lei aplicável ao caso concreto, só releva o erro grosseiro, tal como inicialmente o definimos ou, também, acto temerário, igualmente acima caracterizado.
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Ora, se nos reportarmos ao momento em que a decisão impugnada foi proferida, isto é, se considerarmos a factualidade existente na data em que a prisão preventiva foi ordenada, vimos já que não passava de meras suposições ou suspeitas genéricas e inconcludentes, que de modo nenhum autorizavam o decisor a concluir pela existência de fortes e seguros indícios de que o A. tivesse cometido os crimes que se lhe imputavam na acusação.
Quer dizer que, no caso concreto, a valoração da prova indiciária (a ter sido realmente efectuada) que incidiu sobre o primeiro e essencial pressuposto de que dependia o decretamento da prisão preventiva, traduziu-se numa valoração manifestamente errada e inadmissível, visto que a factualidade recolhida no inquérito, não suportava, com toda a evidência, tal valoração.
Estamos, então, no domínio do erro grosseiro, ou pelo menos, perante acto temerário que o decisor podia e devia ter evitado.
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Consequentemente, por qualquer das vias acima equacionadas, está determinada a obrigação do Estado de indemnizar o A. pela prisão que injustamente suportou.
Da Indemnização
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O A. reclamou o pagamento da indemnização global de 204.500€ a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, sendo que quantificou os primeiros em 200.000€ e os segundos em 4.500€.
Como se vê da prova não ficaram demonstrados quaisquer danos de natureza patrimonial (cof. Respostas negativas aos quesitos 20, 21 e 22), pelo que, nesta sede, não é devida indemnização.
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Quanto aos danos não patrimoniais
Como resulta dos autos o A. esteve preso preventivamente à ordem do processo crime a que se refere a presente acção, durante 4 meses e 3 dias (entre 27/8/1999 até 30/12/1999).
Como se viu, a dita prisão foi manifestamente ilegal ou pelo menos, decorreu de erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
Não consta dos autos, nem foi alegado que o A. tenha concorrido com dolo ou negligência para a verificação do referido erro, sendo óbvio que a referida prisão injusta lhe causou prejuízos atendíveis pelo direito.
Na verdade, como ficou provado, o A. sempre teve a convicção de que se encontrava preso, apesar de inocente, e, durante todo o tempo em que essa situação se manteve, passou inúmeras noites sem dormir, chorou, gritou de raiva e sofreu depressão durante a maior parte do tempo.
Deixou, muitas vezes, de ter controlo sobre a sua pessoa, tendo sido sujeito a diversos exames e consultas do foro psiquiátrico.
Foi transportado em carrinhas celulares que, muitas vezes, não eram lavadas e se encontravam impregnadas de fezes humanas e restos de vómitos, de modo que, nos tempos de espera no interior da carrinha, o ar se tornava irrespirável, provocando mesmo a perda de consciência (cfr. pontos 11º,12º,13º,14º e 15º da matéria de facto provada, correspondentes às respostas positivas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 4º , 5º, 6º, 8º, 14º, 15º, 16º e 17º).
Para além destes factos que o A. alegou e provou e que revelam um significativo sofrimento derivado da injustificada prisão preventiva que suportou, não pode esquecer-se, por ser facto notório, que a privação da liberdade causa sempre sofrimento moral do visado por afectar directamente um bem essencial do ser humano, inerente à sua personalidade.
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Ora, o dano não patrimonial, tradicionalmente designado por dano moral, é aquele que tem por objecto a face subjectiva da pessoa humana, representando a ofensa objectiva de bens que, em regra, têm reflexo subjectivo na vítima, traduzindo-se na dor ou sofrimento de natureza física ou moral.
Tal dano é sempre passível de indemnização, desde que, pela sua gravidade, mereça a tutela do direito, independentemente do apuramento que se faça da sua eventual incidência patrimonial.
Certo, porém, que a satisfação pelos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido de um equivalente do dano, isto é, de um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, pretendendo, tão-só, atribuir ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente.
Daí que o respectivo montante terá de ser fixado pelo tribunal de acordo com critérios de equidade.
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Como se referiu, o A. peticionou a este título a indemnização de 200.000€.
Porém, da factualidade que alegou em fundamento, apenas provou a que atrás se descreveu.
A restante factualidade concorrente, porventura a apontar para um sofrimento mais gravoso, não ficou provada, como resulta das respostas negativas aos quesitos 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, e 18º.
Consequentemente, tendo em conta a factualidade provada e relevante para o efeito, considerando o período relativamente curto de duração da prisão sofrida, julga-se equitativo fixar a indemnização devida pelo Estado ao A., em 15.000€ (quinze mil euros), a que acrescerão os juros de mora, à taxa legal em cada momento em vigor, desde a citação até integral pagamento.

Decisão
Termos em que, acordam neste S.T.J. em conceder parcial provimento à revista do A. e, consequentemente:
- revogam o acórdão recorrido
- Condenam o réu Estado Português a pagar ao autor AA , a título de danos não patrimoniais, a quantia de 15.000€ (quinze mil euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
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Custas pelo A. na proporção do decaimento.
O R. está isento de custas face ao C. das C. aplicável
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Lisboa, 11 de Outubro de 2011

Moreira Alves (Relator por vencimento)
Alves Velho
Paulo Sá (voto o acórdão, mas não acompanho integralmente a fundamentação no que toca à admissão subsidiária do erro grosseiro)
Hélder Roque (votei, apenas a decisão, nos termos da declaração que junto)
Sebastião Póvoas (com declaração de voto que junto)

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei, apenas, a decisão, porquanto não acompanho o essencial.da fundamentação constante da tese que fez vencimento, em conformidade com as proposições conclusivas que se seguem e que resultam do projecto de acórdão em que fiquei vencido:
I- Encontrando-se as autoridades judiciárias, por mais zelosas que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, sempre sujeitas a alguma margem de erro, a lei apenas releva, para fundamentar a responsabilidade do Estado e o consequente direito à indemnização, o erro grosseiro, onde se engloba o erro temerário, e a ilegalidade manifesta.
II- O erro é, apenas, sindicável quando estejam esgotados todos os meios de reacção, processualmente, consagrados na lei, de modo a evitar a escolha da alternativa entre o ressarcimento e o recurso.
III- Da mera revogação ou anulação de decisões judiciais que apliquem a prisão preventiva, com excepção do recurso extraordinário de revisão da sentença criminal, não decorre fundamento constitucional bastante para a exigência do direito à indemnização.
IV- O direito à indemnização constitui uma fase subsequente ao recurso extraordinário de revisão criminal, mas limitado àquelas hipóteses em que a decisão judicial errada venha a ser revista no sentido da absolvição do arguido.
V- A prisão preventiva não pode ser considerada injustificada e, muito menos, determinada por erro grosseiro, só porque o autor foi despronunciado pelos factos de que estava acusado e em que assentou a decisão de aplicação daquela medida de coacção, em consequência de novas provas que afastaram a sua indiciação, sob pena de ninguém poder ser preso, preventivamente, por, no limite, toda e qualquer prisão preventiva, não confirmada em julgamento ou, em sede de despacho de pronúncia, poder constituir o Estado na obrigação de indemnizar.
VI- E o erro notório na apreciação da prova só existe quando, perante o que resulta do texto da decisão impugnada, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, um homem médio, facilmente, se dá conta que o Tribunal violou essas mesma regras ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios
VII- A norma do artigo 225°, n° 1, c), do CPP, ao estabelecer diferenças de tratamento entre arguidos absolvidos por sentenças de primeira ou de segunda categoria, viola o princípio da presunção de inocência, em prejuízo do arguido que é absolvido, em consequência do funcionamento do princípio do «in dúbio pro reo», por ficar privado do correspondente direito à indemnização.
VIII - Deste modo, afastada a norma inconstitucional do artigo 225°, n° 1, c), do CPP, e suprindo o vazio legislativo subsequente resultante da falta de consagração ordinária do princípio constitucional da indemnização dos danos, no caso de privação ilegal da liberdade decorrente de prisão preventiva injustificada, torna-se aplicável o regime geral da responsabilidade civil objectiva directa do Estado, por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, determinantes de lesão grave do direito de liberdade, com base no disposto pelo artigo 22°, da CRP, e, analogicamente, do artigo 9o, do DL n° 48051, de 21 de Novembro de 1967.
IX - Tendo o autor sofrido uma prisão preventiva legal, mas que se veio a revelar, supervenientemente, injustificada na apreciação dos respectivos pressupostos de facto, não havendo interposto recurso da mesma decisão, concorreu, com negligência, para a sua verificação, por omissão dos meios processuais ao seu alcance, o que pode ser determinante da verificação de uma causa eximente da responsabilidade do Estado, cujo conhecimento oficioso não prescinde da alegação e demonstração da factualidade que essa excepção importa.

Hélder Roque
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Declaração de Voto

Voto, apenas, o segmento final conclusivo –condenação a indemnizar e respectivo montante- afastando-me da fundamentação por entender não ter havido erro grosseiro e, de qualquer modo, tal pressuposto não ser, sequer. , necessário para lograr o ressarcimento, pelas razões que passo a expor.

-Antes do mais, e como abertura reflexiva, devo citar a Secção I, Parágrafo 27 da Declaração e Programa de Acção de Viena, adoptada pela Conferência Mundial de Direitos Humanos em 25 de Junho de 1993: “Todos os Estados deverão oferecer um quadro efectivo de soluções para reparar injustiças ou violações dos Direitos Humanos. A administração da justiça, incluindo departamentos policiais e de acção penal e, especialmente, um poder judicial independente e um estatuto das profissões forenses em total conformidade com as normas aplicáveis em matéria de Direitos Humanos, são essenciais para a concretização plena e não discriminatória dos Direitos Humanos e indispensáveis nos processos de democracia e do desenvolvimento sustentável.”
1.1. Curial, por a questão “sub judicio” estar nesse âmbito, é referir a Resolução n.º 17 sobre prisão preventiva, adoptada pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, onde, e além do mais, se estabeleceram os seguintes princípios:

- “a prisão preventiva só deverá ser imposta quando existirem fundadas razões para crer que as pessoas em causa participaram na prática das infracções em apreciação e quando houver perigo, se deixadas em liberdade, de fuga, da prática de novas infracções graves ou de perturbação grave do decurso normal da justiça;

- antes de imposta a prisão preventiva, tomar-se-ão em consideração as circunstâncias de cada caso, em particular a natureza e a gravidade da infracção, a idoneidade das provas, a pena aplicável ao caso e a conduta e a situação pessoal e social da pessoa em questão, nomeadamente os seus laços em relação à comunidade; sempre que possível evitar-se-á a prisão preventiva substituindo-a por garantias de natureza patrimonial ou pessoal (…) no caso de não ser possível a aplicação de tais medidas, apresentar-se-á o fundamento de tal facto;

- no momento da condenação, o período de tempo passado em regime de prisão preventiva deverá ser deduzido da duração da pena a aplicar ou tomado em consideração a fim de reduzir a duração desta.”

A Declaração Universal dos Direitos do Homem – adoptada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas n.º 217-A (III) em 10 de Dezembro de 1948 e publicada no Diário da República, I-A, de 9 de Março de 1978 e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, assinado por Portugal em 7 de Outubro de 1976 e aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78, de 29 de Junho (DR-I-A, n.º 133/78), garantem os direitos a um processo equitativo, à presunção de inocência e ao recurso das decisões condenatórias e o último “o direito a compensação” a “todo o indivíduo vítima de prisão ou detenção ilegal.”

O n.º 1 do artigo 11.º da citada Declaração Universal dispõe que toda a pessoa acusada de um crime presume-se inocente até que a sua culpa “fique legalmente provada no decurso de um processo público em que lhe sejam asseguradas todas as garantias necessárias de defesa.”

Também o n.º 2 do artigo 14.º do Pacto citado estabelece que “qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida.”

Finalmente, as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, aprovadas no Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes (relatório preparado pelo Secretariado da ONU) refere que presos preventivos se presumem inocentes e como tal devem ser tratados (artigo 84.º, n.º 2).

Também direitos à liberdade e à não prisão arbitrária vêm consagrados nos artigos 3.º e 9.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 9.º, n.º 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; 6.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Nairobi, 26 de Junho de 1981); 7.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica); 5.º, n.º1 da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adoptado em Roma, 4 de Novembro de 1950), assinado por Portugal em 22 de Dezembro de 1976, aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro e rectificada pela Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, I, de 14 de Dezembro de 1978) a dispor, no artigo 5.º, n.º 5 que “qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção contrárias às disposições deste artigo (…) tem direito a indemnização.”

O preceito elenca as condições de legalidade da prisão e da detenção.

O Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas declarou que o conceito de arbitrariedade constante do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos deve ter uma interpretação ampla: “não equivale a contrário à lei, devendo antes ser interpretado de modo a incluir sentidos que tenham a ver com inadequação, a injustiça e a imprevisibilidade.”

A já atrás acenada natureza residual da prisão preventiva, e mesmo o seu desencorajamento, foram afirmadas no artigo 9.º, n.º 3 daquele Pacto Internacional, nos n.ºs 36.º, n.º 2, e 39 dos Princípios Relativos à Detenção, constantes da Resolução n.º 43/173 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 9 de Dezembro de 1988; e na regra 6.1 das Regras de Tóquio – Resolução 45/110 da AGNU de 14 de Dezembro de 1990.

Nesta linha, o Comité dos Direitos do Homem restringe a prisão preventiva à existência dos requisitos da legalidade, da razoabilidade e da necessidade, critérios também adoptados pela Comissão Europeia dos Direitos do Homem, como já se acenou.

As Nações Unidas, no seu Manual de Normas Internacionais sobre a Prisão Preventiva, enfatizam ser “conveniente que o arguido tenha o direito, em princípio, e com excepção dos casos previstos na lei, de permanecer em liberdade até que seja reconhecido culpado da prática de um crime. Se a acusação de que é objecto não se encontra compreendida nessas excepções, as autoridades judiciárias só devem ordenar a prisão preventiva quando haja razões para crer que o arguido fugirá antes do julgamento, alterará as provas ou constituirá um perigo para a comunidade.”

A natureza excepcional da prisão preventiva está hoje clara no n.º 2 do artigo 193.º do Código de Processo Penal.

1.2 Todos os instrumentos de direito internacional citados contêm cláusulas de salvaguarda que têm por finalidade recordar que as normas referentes a direitos humanos nunca devem ter interpretação restritiva ou limitativa desses direitos (cfr., artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do Pacto Internacional; o n.º 3 dos Princípios Relativos à Detenção (Resolução 43/173 da AGNU); n.º 4.1 das Regras de Tóquio; o artigo 17.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tendo presente o princípio afirmado no “Manual” das Nações Unidas que “quando a uma determinada situação se apliquem duas ou mais normas de direitos humanos, o interessado deve beneficiar da norma que conceda a protecção mais alargada. As disposições nacionais devem estar em conformidade com as normas internacionais e as normas e as convenções internacionais devem aplicar-se nos casos em que a legislação nacional não proteja adequadamente os direitos do detido.”

A referência (que pode parecer fastidiosa) a todos estes instrumentos de direitos internacional, surge na linha do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2010 – 11683/06 – 8TBOER.A.L1 – de meu relato, e em que foram adjuntos os, ora, 2.º e 3.º, onde se decidiu que “quando o Estado Português se vincula internacionalmente e incorpora essas normas na sua ordem jurídica, não pode criar normas contrárias, quer por revogação unilateral, quer por restrição ou ampliação injustificadas, se, e enquanto, não se desvincular externamente.”

E mais se desenvolveu:
“Tanto assim é que o artigo 70.º, n.º 1, alínea i) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro) diz caber recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos Tribunais ‘que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional (...).’
E não vemos razão para interpretar restritivamente este preceito, como o fazem os Profs. G. Canotilho e V. Moreira (ob. e vol. cit,) e, na sua esteira, o Conselheiro Lopes do Rego (in ‘Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional’, 210, 154 ss) no sentido de este recurso se limitar à questão de natureza jurídico-constitucional, como, e por exemplo, verificar se a norma convencional ainda é vigente ou se deixou de vincular o Estado Português pela ocorrência da cláusula ‘rebus sic stantibus’.
E, com o merecido respeito, não se adere ao defendido por este Autor na afirmação de que ‘no actual panorama jurídico constitucional, o Tribunal Constitucional não tem poderes para ao abrigo do disposto na alínea b) fiscalizar uma eventual ‘inconstitucionalidade indirecta’ (por violação do artigo 8.º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na sua contrariedade ao direito convencional.’
Parece-nos claro que quando o Estado Português se vincula internacionalmente perante outro(s) Estado(s) com quem acorda o exercício, conjunto ou partilhado de um dos seus poderes soberanos (o de legislar) e acolhe esse instrumento no seu direito interno, cria uma norma que passa a integrar um núcleo fundamental normativo de natureza qualificada, nos termos, e para os efeitos, da sua inserção no elenco hierárquico das fontes de direito (artigo 119.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República).
Nesta mesma linha, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 10 de Julho de 1985 – ACT00000288 assim julgou: «O artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República consagra uma regra de recepção automática do direito internacional convencional, condicionada apenas ao facto de a eficácia interna depender da sua publicação no Diário da República. Como os requisitos constitucionais de ratificação ou aprovação são requisitos da validade do Tratado, pode dizer-se que a ideia do legislador constituinte foi a de aceitar a vigência das normas internacionais como tais, pelo que essas normas não podem ser alterados por actos internos, deixando de vigorar na ordem interna (apenas) quando o tratado, por qualquer motivo deixa de vincular o Estado Português.»
Conclui de seguida pela ‘plena afirmação da superioridade do direito internacional convencional sobre a lei ordinária, apresentando-se, assim, as normas de direito convencional com uma eficácia supra legal, detendo primazia na escala hierárquica sobre o direito interno e posterior’.”

Quanto aos instrumentos a que o Estado não se vinculou, valem como mera doutrina qualificada se, e enquanto, não se operar tal recepção mas, e apenas, no âmbito do não abrangido por qualquer reserva.
2. Feitas estas considerações passarei à análise do caso “sub judice”.
2.1. O recorrente demanda o Estado pedindo a sua condenação a indemnizá-lo pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos com a prisão preventiva ilegal que sofreu, ilegalidade resultante de erro grosseiro, por inexistência de indícios de prática do crime que lhe foi imputado, sendo que, a final, não veio a ser pronunciado do por insuficiência de prova indiciária.

A prisão teve início em 27 de Agosto de 1999 e prolongou-se até 30 de Dezembro do mesmo ano.

2.2. Previamente, há que determinar o regime legal aplicável, ponderando a sucessão de leis e a respectiva natureza.

Recuando no tempo, para melhor enquadrar a “mens legislatoris”, fazemos um primeiro apelo ao Código Civil de 1867 que não consagrava a responsabilidade do Estado mas, e tão somente, a de seus agentes e, mesmo esta, com a cautela da prévia autorização do Governo (instituto ainda sem o “nomem juris” de garantia administrativa mas que já o era de facto [cfr., v.g., os artigos 2397.º, 2399.º e 2340.º do diploma de Seabra]).

Na sua revisão de 1930 (Decreto n.º 19126, de 16 de Dezembro de 1930) ficou estabelecida a responsabilidade solidária do Estado com os seus agentes, embora apenas pelos danos resultantes dos, ainda, qualificados de actos de gestão pública.

Posteriormente, o Código Administrativo de 1936-40 regulou a responsabilidade civil das autarquias por factos ilícitos culposos, no domínio da gestão pública, praticados por órgãos ou agentes daquelas, dos serviços municipalizados, das juntas de turismo, das federações de municípios e das uniões de freguesias.

Após a entrada em vigor do Código Civil de 1966 (a responsabilizar a Administração pelos danos causados no exercício de actividades de gestão privada) surgiu o Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967 a consagrar a responsabilidade extracontratual do Estado, por actos de gestão pública, sendo: “a) responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com culpa leve); b) responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência grave); c) responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo); d) responsabilidade exclusiva dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam os limites da função)” – cfr. Conselheiro Carlos Cadilha, “Responsabilidade da Administração Pública”, apud “Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado”, 2002, 238; cfr. também o Prof. Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo”, 9.ª ed., II, 1221, ss).

A pedra de toque do diploma em apreço é o “distinguo” entre responsabilidade civil da Administração e responsabilidade de seus agentes.

Diferença, portanto, entre actos funcionais, ou “faute de service”, por praticados “ (…) no exercício das suas funções ou por causa desse exercício (…)” – artigos 2.º do Decreto-Lei n.º 48051 e 366.º do Código Administrativo) e actos pessoais, ou “faute personnel”, (se os órgãos ou agentes da pessoa colectiva de direito público “ (…) se tiverem excedido os limites das suas funções (…)” – artigos 3.º e 367.º, respectivamente, daqueles diplomas).

Note-se, contudo, que não basta essa distinção só por si, havendo que reportá-la ao domínio da culpa, para determinar, nos termos acima acolhidos, se os danos provocados por um acto funcional são da responsabilidade exclusiva do Estado ou também do autor do facto ilícito que os gerou, o que por vezes acarreta problemas a importar delicada exegese (cfr., a propósito, o Prof. Marcello Caetano – “Responsabilidade da Administração Pública”, in “O Direito”, 90.º, 235, também com muito clara explanação, constante do “Manual”, cit, 1233/4: “Em caso de procedimento doloso (…) a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou os agentes. Quer dizer que, nesta hipótese, o lesado pode exigir a indemnização à Administração ou ao titular do órgão ou agente, conforme bem lhe parecer (…). Se, em lugar de dolo, tiver havido negligência, a responsabilidade perante o lesado compete exclusivamente à pessoa colectiva de direito público em causa (…). Mas aqui ainda importa encarar duas sub-hipóteses: ou os titulares dos órgãos ou agentes procederam com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo, ou não. No primeiro caso, a pessoa colectiva de direito público goza do direito de regresso contra os titulares dos órgãos ou agentes que praticaram o acto; no segundo não. Quer dizer: em caso de negligência grave, o lesado obtém a indemnização da Administração, mas esta pode depois reclamá-la do autor do facto ilícito culposo, que acaba por suportar o encargo correspondente; fora deste caso, é à Administração que cabe pagar a indemnização e suportar o encargo respectivo no seu próprio património.”).
2.3.Finalmente, há que considerar a responsabilidade por factos lícitos (deixando, por irrelevar na economia desta declaração, a responsabilidade pelo risco ou pelos factos causais).

Trata-se de sacrificar, certas e determinados interesses legítimos do cidadão em nome (ou benefício) de interesses legítimos da comunidade, ou seja, sacrificar o interesse individual ao interesse público.

Situação que, embora não prevista no Código Civil veio a ser consagrada no Decreto-Lei n.º 48051 cujo artigo 9.º dispõe a obrigação de o Estado indemnizar “os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenha imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais” (n.º1) e quando “tenha, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo.” (n.º2).

É hoje entendido que tal preceito abrange os actos jurisdicionais.

São, pois, pressupostos deste tipo de responsabilidade: a prática de actos administrativos legais ou de actos materiais lícitos; tendo como escopo o interesse geral ou colectivo; os prejuízos ou a imposição de encargos serem espécies ou anormais.

Certo, aqui, uma colisão de direitos entre o interesse social e público e os interesses dos particulares lesados, com prevalência do primeiro.

Porém, atenta a consagração do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei – constante dos instrumentos internacionais citados que Portugal incorporou (artigos 1.º, 2.º e 9.º da DUDH; 2.º do PIDCP e 2.º, n.º 2 do PIDESC) e do artigo 13.º da Constituição da República – não será legal (nem de justiça) que o particular sacrificado sofra sozinho o prejuízo de uma actuação só porque esta beneficia a comunidade (cfr., a propósito, Prof. Gomes Canotilho, “O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos”, 270 a 283 e RLJ n.º 124.º, n.º 3804, 86; Prof. Freitas do Amaral, “Direito Administrativo”, III, 519/21; Prof. Marcello Caetano, “Manual” cit, 1241 e Dr. Rui Medeiros, “Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos”, 235 e ss.; vejam-se, ainda, os Pareceres da Procuradoria Geral da República n.º 162/80, de 11/6/81 – Diário da República, II Série, de 18/3/82 e n.º 187/83, de 7/2/84 – Diário da República, II Série, 6/4/84).

Aqui chegado, é tempo de dizer que o regime, quanto aos actos ilícitos e ilegais, do Decreto-Lei n.º 48051 foi alvo de controvérsia após a Constituição da República afirmando certa corrente jurisprudencial a sua inconstitucionalidade superveniente (v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2001 – P. 47084) enquanto outra defendia que a Constituição não fez caducar o regime em causa (cfr., Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29/4/99 – P.º 40503).

Tendo por referência o artigo 22.º da Constituição da República, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira insinuam a certa incompatibilidade com aquele Decreto-Lei (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I, 4.ª ed., 423 e ss).

Para o Prof. Freitas do Amaral (in “A Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado”, cit. 46), o artigo 22.º da Constituição obriga a rever toda a matéria da responsabilidade solidária do Estado e seus agentes, admitindo que se mantenha “uma responsabilidade exclusiva do Estado em casos de culpa leve, apenas com responsabilidade solidária propriamente dita para os casos de culpa grave e dolo”, afirmando, porém, que tal não resulta do artigo 22.º mas do artigo 271.º da Constituição da República.

Já o Prof. Jorge Miranda insiste na vigência do Decreto-Lei n.º 48051, “salvo porventura na parte caducada por inconstitucionalidade superveniente, por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da solidariedade.” (in “A Constituição e a Responsabilidade Civil do Estado”, apud, “Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, 932; em defesa da solidariedade excepto nos casos de culpa leve, o Prof. Fausto de Quadros, in “Responsabilidade Civil e Penal dos Titulares dos Órgãos Funcionários e Agentes da Administração do Estado”, 489 e ss).
3. Aceitando a vigência do diploma de 1967 – até à sua revogação expressa pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (com a alteração da Lei n.º 31/2008) – irei considerar a sua aplicação ao caso dos autos, considerando as datas do ilícito e da propositura da acção.

Tudo sem prejuízo de, pontualmente não prescindir, se for caso, do cotejo dos dois regimes que se sucederam no tempo, em termos meramente doutrinários.

3.1 Passo agora à “pulcra quaestio” da prisão preventiva ilegal e das suas consequências a nível de responsabilidade do Estado.

Em sintonia com as citadas Declaração Universal dos Direitos do Homem, Pacto Internacional para os Direitos Civis e Políticos e a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, acima explanadas, a Constituição da República dispôs no n.º 5 do artigo 27.º (na redacção da Lei n.º 1/82, de 30 de Setembro) que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.” (veja-se a tese de mestrado do Dr. Mouraz Lopes, “A responsabilidade civil do Estado pela privação da liberdade decorrente de prisão preventiva” in “Revista do Ministério Público”, 22.º, 88, p. 78).

Mais uma vez, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit. I, 485) dizem que: “o facto da Constituição remeter para lei a regulamentação da indemnização, não tolhe a aplicabilidade directa e imediata [cfr. o artigo 18.º, n.º1] deste preceito devendo os órgãos aplicadores do direito dar-lhe eficácia, mesmo na falta de lei” (…) “Na falta de lei específica deve aplicar-se o Decreto-Lei n.º 48051, de 27/11/67 com as devidas adaptações.

Ora, não é de aplicar a Lei n.º 62/2007, nem a redacção do artigo 225.º do Código de Processo Penal (introduzida pela Lei n.º 48/2007), já que este preceito, embora inserido num diploma adjectivo, contém uma norma de direito substantivo, sendo de lhe ponderar o regime do artigo 12.º do Código Civil. (cfr., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Novembro de 2003 – 03B3341, e de 19 de Março de 2009 – 09 A0065 – e do Tribunal Constitucional n.º 160/95).

Dispunha o artigo 225.º Código de Processo Penal na redacção que aqui vale:
“1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva, que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade.
3. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.”

Certa jurisprudência (v.g., Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/95, 12/2005 e 13/2005) vem entendendo que o preceito surge “no exercício de uma liberdade que a Constituição quis deixar às opções da política legislativa.”

Não posso deixar de discordar.

Se a Constituição confere o direito a indemnização independentemente de culpa, o legislador ordinário não pode limitar a responsabilidade do Estado aos casos de prisão ilegal (“manifestamente”) ou injustificada (“por erro grosseiro”) – cfr. Mestre Luís Catarino, “A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça”, apud, o cit. “Responsabilidade Civil Extra-Contratual do Estado”, 355 e 380 e o Dr. João Aveiro Pereira in “Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais”, 215.

Por outro lado, questiona a Prof. Doutora Fernanda Palma “se é legitimo exigir-se em absoluto e sem condições, a cada cidadão, o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando o cidadão venha a ser absolvido. Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado causa a uma tal suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável lógica investigatória. (…) Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada injustificada ex post, devido à absolvição do arguido que se baseie apenas na legalidade ex ante da sua aplicação em face de elementos então disponíveis. (…) Muito menos será aceitável uma restrição da relevância ao erro grosseiro, deixando-se sem qualquer indemnização todos os casos de erro constatável ex ante (eventualmente por um jurista mais sagaz) mas que não atingem uma manifesta evidência. Não deve, assim, em geral, um juízo provisório de culpabilidade do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição, e em particular quando haja erro susceptível de ser ex ante configurado justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos.”

O Conselheiro Mário Torres ao entender ser inconstitucional o n.º 2 do artigo 225.º Código de Processo Penal na parte em que se refere ao “erro grosseiro” e aos “prejuízos anómalos e de particular gravidade”, já que “o artigo 27.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, ao proclamar que «a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer» não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão só a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa).” E mais adiante: “O fundamento do juízo de inconstitucionalidade que formulo radica em que considero não existir, no caso de danos causados pela privação ilegal (ou injustificada) da liberdade, nenhuma razão constitucionalmente válida para negar o direito de indemnização que seria devido de acordo com o regime geral de responsabilidade do Estado e demais entes públicos por acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem (artigo 22.º da CRP e Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967), regime geral que não restringe esse direito indemnizatório aos casos em que o agente tenha actuado com erro grosseiro. Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira do erro cometido pelo agente do Estado, e limitada à ocorrência de prejuízos anómalos e de particular gravidade, quando essas restrições não existem na indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em pena privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do CPP, em execução do artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essas restrições não existe no caso de danos patrimoniais, como sucede’ na indemnização por requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP) ou na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º da CRP). É incompreensível que a ofensa de um bem intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, em que se baseia o Estado de direito (artigo 1.º), como é o direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da CRP), tenha uma tutela mais débil que a ofensa a bens materiais.

A estas opiniões apendiculadas aos Acórdãos n.º 12/2005 e 13/2005, veio também aderir o Conselheiro Vítor Gomes (declaração no Acórdão n.º 185/2010) que doutamente acrescentou: “Numa interpretação valorativamente coerente da Constituição, à luz do princípio geral de ressarcibilidade dos encargos e danos que ultrapassem a álea geral e sejam geradores de uma desigualdade perante os encargos públicos, não existe razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade fique condicionada a existência de erro grosseiro na imposição desta. Nem sequer à existência de erro censurável no momento da aplicação. Esta restrição não existe no caso de danos causados – a outros direitos fundamentais por actos lícitos do poder público, designadamente pelo sacrifício do direito de propriedade, como sucede na requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP). Não se vê em salvaguarda de que valores haveria a Constituição de tolerá-la perante o sacrifício (materialmente) injustificado da liberdade. Seria incongruente admitir o dever de indemnizar do Estado sempre que um acto do poder público afecte licitamente, para prossecução do interesse público, os interesses patrimoniais do cidadão, deixando desprotegida a lesão, lícita mas não menos gravosa, de um valor elementar como o da liberdade pessoal, ao sujeitar o ressarcimento dos danos decorrentes da prisão preventiva à prova de erro do aplicador do direito avaliável por referência à realidade processual no momento em que a decretou (Cfr. MARIA PAULA RIBEIRO DE FARIA, Jurisprudência Constitucional, n.º 5, em anotação ao Acórdão do TC n.º 12/2005 e GOMES CANOTILHO, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3804, pág. 83, em anotação ao acórdão do STA de 9/10/1990).” (...) “Interpreto pois o n.º 5 do artigo 27 da Constituição como não restringindo o direito a indemnização pela prisão preventiva feita ‘contra a Constituição e na lei’ às hipóteses de ilicitude da imposição da medida. A prisão preventiva lícita, mas que vem a revelar-se materialmente injustificada, não deixa de constituir uma lesão do direito de liberdade individual. A conformidade à lei e a correcção de apreciação dos pressupostos de facto no momento da imposição da medida de coacção é o bastante para a privação da liberdade, mas não explica a privação da compensação pelo sacrifício. O legislador pode conformar o direito à indemnização, de acordo com a ampla liberdade que a parte final do preceito lhe outorgou (v.gr., limitação ou sistema de determinação dos danos atendíveis, prazos, mecanismos processuais), mas não pode eliminar o seu núcleo essencial.”

Assim, não pode deixar de ser irrelevando os argumentos “ad terrorem” de alguma jurisprudência que, com o muito e merecido respeito, qualifico de conservadora dos nossos Tribunais que justificam tais restrições do direito à indemnização com o dever de cidadania a cargo de todos que os obrigaria a suportar as privações de liberdade só sendo ressarcidas em casos excepcionais “para que não surgissem pedidos de indemnização indiscriminadamente, com consequências de enfraquecimento do instituto da prisão preventiva e o desgaste das respectivas decisões judiciais.”

A propósito, o Dr. João Aveiro Pereira (ob. cit, 215 e ss) reagiu ser iníquo “fazer suportar a um indivíduo, sem qualquer contrapartida, uma prisão sem fundamento válido, geradora de danos graves – mas irrelevantes face ao disposto no artigo 225.º, n.º 2, do CPP –, ainda que em benefício da realização do interesse público geral de eficácia da instrução criminal”. E continuou: “O princípio da repartição dos encargos públicos com a administração da justiça, aflorada neste último preceito da lei penal adjectiva, e o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias, consagrado no artigo 18.º da Constituição, impõem que ao lesado seja atribuído um direito de reparação dos danos causados por detenção ou prisão preventiva injusta, quer seja grosseiro ou não o erro verificado na apreciação dos pressupostos da sua aplicação ou manutenção. É certo que, como judiciosamente refere Maia Gonçalves, «os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos que procurem ser no cumprimento dos seus deveres, estão sempre sujeitos a alguma margem de erro». Porém, desde que para tal desacerto o preso não tenha contribuído (artigo 225.º, n.º 2, in fine), afigura-se-nos excessivo que seja ele a suportar definitivamente as consequências gravosas de actuações erróneas alheias. O Estado não deverá, pois, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. Basta, para o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito.”

Mas ainda que se transigisse com a constitucionalidade do preceito, afastando aquele acervo argumentativo (posição que não acolho) sempre tal formulação atentaria contra o princípio constitucional da irresponsabilidade dos juízes (artigo 216.º, n.º 2 da Constituição da República) já que o sindicar “o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto” que não pode deixar de ser equiparado a culpa grave, é abrir uma via para efectivar a responsabilidade civil do julgador (o que, aliás, a Lei n.º 62/2007, de 31 de Dezembro – artigo 14.º - já consagra, com a aberrante recuperação de um sucedâneo de “garantia administrativa”, instituto que acreditava definitivamente abolido).

A irresponsabilidade do juiz é um princípio de ordem pública, constitucionalmente consagrado (artigo 216.º, n.º 2 do Constituição da República Portuguesa) intimamente conectado com a independência dos Tribunais (artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa), sendo mesmo de duvidosa constitucionalidade a formulação do n.º 3 do artigo 5.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 31 de Julho, com a alteração da Lei n.º 143/99, de 31 de Agosto) no segmento referido à “culpa grave”.

As decisões dos Tribunais só são sindicáveis em sede de recurso e só aí é lícito julgar da sua bondade, não podendo ser reapreciados – muito menos noutra jurisdição – para eventual responsabilização (ainda que em sede de direito de regresso) do Magistrado julgador.
4. Qual, então, o caminho certo?

Afastamo-nos do princípio da responsabilização do Juiz pelo exercício do seu poder soberano de julgar, salvo em situações-limite de actuação dolosa ou comissão de ilícito criminal.

As decisões judiciais, enfatiza-se, só devem ser reapreciadas em recurso e só nessa sede é lícito verificar se ocorreu erro de julgamento, a dimensão do mesmo e a sua reparação.

Da separação de jurisdições e da existência de Tribunais de competência especializada resulta que o julgado só pode ser reapreciado nas respectivas hierarquias jurisdicionais.

E mesmo aí, não se olvide que “os recursos judiciais visam apenas o controlo material do conteúdo das decisões e não o controlo funcional da conduta dos juízes (…); visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado para o seu julgamento mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade ‘funcional’ da decisão do tribunal inferior.” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 90/84).

A prisão preventiva representa sempre um prejuízo por natureza anormal e grave, facto notório que dispensa alegação e prova.

Quando a prisão preventiva termina com a absolvição, ou com a não dedução da acusação, irreleva a causa da ilibação do arguido: se por não se terem provado os factos atribuídos, se por se ter demonstrada a sua não participação (comissão ou outra forma).

É que tal “distinguo”, e desvalorização da primeira situação, implica “penalizar” o demandante por um facto que não lhe pode ser imputado ou impor-lhe a demonstração da sua inocência, que a Constituição presume.

Ora se o arguido beneficia dessa presunção legal (cfr. os diplomas de DIP acima citados e o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República) à qual são aplicáveis os princípios probatórios dos artigos 349.º e seguintes do Código Civil não tem de “provar o facto que a ela conduz” (n.º 1 do artigo 350.º) – cfr. Prof. Vaz Serra, “Provas”, BMJ 112-271 – pois foi liberado ou dispensado do ónus da prova (“relevatio ab onere probatório”).

Dá-se uma inversão do ónus da prova cabendo à parte contrária (aqui Estado/Ministério Público) o ónus de que a presunção não vale para justificar o efeito que a lei lhe atribui, até porque se trata de uma presunção relativa.

E surge “articulada com o tradicional princípio ‘in dubio pro reo’. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. (…) Os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena.” (cfr. Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., I, 519).

Daí que não se aceite a jurisprudência (que, afinal, acaba por impor ao arguido não pronunciado ou absolvido que prove a sua inocência) não só por a Constituição lhe garantir essa presunção como obrigá-lo-ia à “probatio diabolica”, que é sempre a demonstração de um facto negativo.

Do exposto resulta que se o arguido detido preventivamente não é acusado, pronunciado ou é absolvido, ainda que com base no princípio “in dubio pro reo” não tem que demonstrar que não praticou os factos ou que a sua ilicitude está excluída, em acção intentada contra o Estado para obter o ressarcimento dos danos sofridos com a sua detenção.

Outrossim, e por tal violar o n.º 5 do artigo 27.º da Constituição da República, não há que fazer prova de qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto.

Não tem, por se tratar de facto notório, que fazer prova da prisão preventiva lhe ter causado “prejuízos anómalos ou de particular gravidade”.

Tem sim que alegar que esteve detido preventivamente e que o processo à ordem do qual foi privado da liberdade terminou sem a sua condenação.

Tanto basta para que o Estado tenha o dever de o indemnizar, a título de responsabilidade pelo acto lícito (que é a administração da Justiça) a favor da comunidade mas cujos sacrifícios um só cidadão não deve suportar (cfr. mais uma vez, o Prof. Gomes Canotilho, ob. cit, 219 e ss.), tudo nos termos conjugados dos artigos 22.º, 27.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 9.º do Decreto-Lei n.º 48051 de 21 de Novembro de 1967).

A Administração da Justiça que se desenvolve na fisiologia do Estado de Direito é sempre de qualificar de actividade lícita, sendo, em consequência, lícitos os actos decisórios que dela emanam.

E essa licitude não deixa de manter-se quando a decisão é revogada ou alterada pelas instâncias judiciais superiores, embora, sempre, e então, ocorra um erro de julgamento, ao menos na perspectiva do juízo “ad quem”.

Mas não sendo o Direito uma ciência exacta, o erro decisório (quer em sede de facto, quer de direito, já que, afinal, ambos se interligam pois o erro de direito traduz-se numa inadequada subsunção dos factos, enquanto aquele consiste numa imperfeita apreensão da realidade a subsumir) não torna a decisão ilícita, pois que esta, num sistema de cassação, desaparece do mundo jurídico para a revogatória tomar o seu lugar.

Nas, e muito raras, patologias do sistema é que pode falar-se em decisão ilícita, no sentido de se situar à parte do que o Estado deve garantir à comunidade que serve.

O Estado limita-se à defesa-regra de quando é demandado por acto lícito, e, nestes casos, a alegar e provar que o demandante concorreu com dolo ou negligência para que a sua detenção fosse ordenada.

Pode ainda discutir o montante pedido e a extensão dos danos, a caducidade do direito, para além, evidentemente, de toda a panóplia adjectiva.

Mas a excepção de conduta contributiva do arguido, não pode, em sede de acção e jurisdição cível, “reabrir” a discussão penal.

É que o Estado assume sobretudo o papel de guardião e zelador dos direitos subjectivos constitucionalmente garantidos aos seus cidadãos, devendo ter sempre presente a natureza muito excepcional da privação da liberdade, princípios que deve sedimentar na sua cultura jurídica.

A privação da liberdade sem condenação só deve acontecer quando qualquer outra medida coactiva é manifestamente insuficiente e a tranquilidade e paz social podem ser garantidas por medidas (v.g., julgamentos muito céleres ou até imediatos) que não pelo fácil e frequente recurso à privação da liberdade.

5- A última questão que se poderia pôr e que obstaria à condenação do Réu-Estado nesta lide seria ocorrer eventual alteração da causa de pedir.

Mas a resposta não pode deixar de ser negativa.

5.1-O Autor fundamenta o seu pedido na prisão preventiva que considera ilegal e resultante de erro grosseiro do Juiz e alega todo o “iter” desde a sua detenção até à restituição à liberdade.

Tudo se coloca no âmbito da causa de pedir e dos poderes de cognição do julgador.

Sabido que o conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula.

“Trata-se do facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor, como fundamento da sua pretensão e destina-se, além do mais, a impedir que o demandante seja compelido a defender-se de toda e qualquer possível causa de pedir só tendo que defender-se da concretamente invocada pelo autor.” (Prof. Vaz Serra, RLJ, 109, 313).

Como se disse no Acórdão de 27 de Abril de 2006 – 06 A945 –, da causa de pedir emerge o direito que o Autor pretende fazer valer. “Esse direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir (Prof. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”. 1979, 11) (…) O Prof. Castro Mendes (“Do Conceito de Prova em Processo Civil”, 140 e 141) afirma que a “causa petendi” tem de ser especificada ou determinada, tem de consistir em factos ou circunstâncias concretas ou individualizadas. “A causa de pedir é aposta pela lei ao objecto do processo, como elemento delimitador deste, ao lado do pedido. Objecto próximo do processo será então o pedido, delimitado em si e por certa causa de pedir.” (in “Direito Processual Civil”, II, 1969, 11).”

E, de acordo com o artigo 264.º do Código de Processo Civil “as partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as suas excepções” (n.º1), sendo que o julgador “só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º, de atender, ainda que oficiosamente, aos factos instrumentais que resultem da instrução e da discussão da causa e, finalmente, os factos que sejam “complemento ou concretização de outros” (…) “desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar” e garantido, que seja, o contraditório (n.º 2 e 3).

Para além deste preceito e dos artigos 273.º n.º 1 (modificação da causa de pedir) e 660.º, n.º 2 (questões a conhecer em sede de decisão e seus limites – artigo 661.º, n.º 1) importa aqui acentuar o princípio do artigo 664.º: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º”.

O demandante, antes de culminar com o pedido, tem de alegar os factos concretos que irão produzir o efeito jurídico que quer obter, de acordo com os artigos 467.º, n.º 1, alínea d) e 498.º, n.º 4, também do Código de Processo Civil, assim delimitando (ou caracterizando precisamente) a sua pretensão (cf., v.g., o Prof. Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil”, 53).

Trata-se de consagrar inequivocamente o princípio do dispositivo ou, na expressão do Prof. Teixeira de Sousa, o “princípio da disponibilidade do objecto” ou da “disponibilidade objectiva”.

E é perante tal que o juiz fica limitado nos termos do citado n.º 1 do artigo 661.º do CPC e, consequentemente, impedido de ir para além desses limites, quer em condenação, quer em absolvição) ou encontrar coisa diversa da que lhe foi pedida.

Se só assim fosse a questão não ofereceria grandes escolhos.

5.2- Mas a lei consagrou a teoria da substanciação, precisamente no n.º 4 do artigo 498.º da lei adjectiva.

A também chamada “teoria da consubstanciação” implica que a causa de pedir se traduza no facto jurídico em que se baseia o pedido.

É o título gerador do direito invocado que tem de se distinguir, em termos dogmáticos, quer dos factos materiais alegados, quer das razões jurídicas invocadas, devendo ser definida em função da qualificação jurídica dos factos necessários à determinação do direito (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Julho de 2004 – 04B853).

Daí que quando se define – como atrás de procurou fazer – causa de pedir, tem de entender-se não como o acto, ou facto jurídico, abstracto mas em concreto [aquele, o certo, o que foi determinado, o que o Autor individualizou]. (cf., o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 2003 -03 A1848).

É então que é exercida a função delimitadora, impedindo o julgador de ultrapassar essa barreira, deixando-lhe, tão-somente, a liberdade de buscar, interpretar e aplicar as regras do direito.

Já Pereira e Sousa distinguira causa próxima (o direito) e causa remota (o facto constitutivo do direito) - in “Primeiras Linhas de Processo Civil”, nota 261 – e Dias Ferreira referia-se-lhe como “identidade do direito”, consistindo em “ser o mesmo facto jurídico que é o fundamento directo e imediato do pedido.” (in “Código Civil Anotado”, IV, 383).

O Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 3 de Fevereiro de 2005 – 04B4773 – refere que “inspirada pelo princípio da consubstanciação, a causa de pedir é envolvida, além do mais, pelas características da facticidade e da concretização, estruturando-se na envolvência dos factos concretos correspondentes à previsão das normas substantivas concedentes da situação jurídica alegada pelas partes, independentemente da respectiva valoração jurídica.”

Assentes os conceitos, e da leitura atenta da petição inicial, pode concluir-se que o Autor formulou um pedido de indemnização alegando factos integradores de erro grosseiro no decretar da sua prisão preventiva o que lhe gerou danos indemnizáveis a título de responsabilidade aquiliana do Estado.

Trata-se de causa de pedir complexa que tanto podia gerar – em sede de interpretação dos factos alegados – responsabilidade por facto ilícito ou pelo facto lícito.

Para ali chegar ter-se-ia o arrimo de na base do pedido de ressarcimento tanto valer o dolo ou culpa grave como a não demonstração destes, bastando a injustificação da mesma.

Creio que, e face ao que acima tentei explanar quanto ao princípio da substanciação, ao terem sido alegados factos concretos permissivos de integrarem qualquer das modalidades de responsabilidade, é possível a eventual “convolação” da responsabilidade extra-contratual para a responsabilidade por facto lícito contendo-se na mesma “causa petendi” e se terem limitado ao uso da faculdade do artigo 664.º do Código de Processo Civil, sem que se contenda com o preceituado no artigo 264.º do mesmo diploma ou se exceda pronúncia já que a diversa indagação, interpretação e aplicação das regras de direito não implica o extravasar os poderes de cognição referidos no n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil.

Sebastião Póvoas