Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A055
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: REGISTO PREDIAL
QUESITOS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: SJ200802120551
Data do Acordão: 02/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1. A nulidade da alínea c) do n.º 1do artigo 668.º do Código de Processo Civil traduz-se num vício de raciocínio consistente na afirmação conclusiva não resultante do assente nas premissas do silogismo judiciário.
2. Aquando da selecção de factos a quesitar, no momento do artigo 511.º do Código de Processo Civil terá de atentar-se no “distinguo” entre facto, direito e conclusão, acolhendo, apenas, o facto simples e arredando da base instrutória os conceitos de direito – salvo as que transitaram para a linguagem corrente, por assimiladas pelo cidadão comum por corresponder a um facto concreto – e conclusões, que mais não são do que a lógica ilação de premissas.
3. Se o quesito integra uma mera conclusão que decide de imediato a lide, a sua resposta cai no âmbito do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil devendo ter-se por não escrito.
4. Se o quesito é conclusivo ou contém matéria de direito, é irrelevante que a resposta afaste esses conceitos sendo de não a aproveitar e tudo se passando como se, essa matéria, não tivesse sido incluída na base instrutória.
5. A presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a descrição física do prédio mas, apenas, os factos inscritos.
6. Porém, a descrição terá de conter um núcleo essencial indispensável à identificação do prédio sob pena de não se saber, exactamente, sobre que coisa incide o facto jurídico inscrito.
7. Reconhecendo a não inclusão na presunção de certos elementos não essenciais – confrontações, limites precisos, áreas exactas, identificações fiscais –esta terá de abranger alguns elementos acessórios que importam para uma identificação do prédio no seu confronto com prédios confinantes.
8. E assim relevará a inclusão de logradouro, ou a existência de outro espaço descoberto, ainda que sem precisa dimensão
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Na Comarca de Almeida, AA intentou acção, com processo sumário, contra BB e sua mulher CC pedindo, nuclearmente, que seja declarada dona do prédio identificado no petitório, incluindo todos os espaços descobertos; que se declarem os Réus donos do prédio apenas constituído por área coberta; que sejam condenados à não utilização do logradouro senão para acederem ao seu prédio; e a condenação a indemnizá-la com 3.600,00 euros por danos patrimoniais e não patrimoniais.

Os Réus contestaram e deduziram reconvenção pedindo, além do mais, o reconhecimento que o seu prédio integra um logradouro com 42 m2 de área e a condenação da Autora a indemnizá-los com 12.000,00 euros.

Na 1.ª Instância a acção foi julgada parcialmente procedente (excepto quanto ao pedido de indemnização) sendo procedente o pedido cruzado, apenas no tocante à declaração do domínio dos Réus da área coberta.

Apelaram os Réus, tendo a Relação de Coimbra julgado a apelação parcialmente procedente, condenando-os a reconhecerem a Autora como dona do prédio correspondente a uma casa de habitação com R/C, 1.º andar, SC – 90m2, uma varanda a céu descoberto com 20m2 e um logradouro com 62m2, um forno com 36m2, e uma loja com 16m2, absolvendo os Réus no mais pedido.

Julgou ainda parcialmente procedente o pedido reconvencional condenando a Autora a reconhecê-los como donos do prédio que identificam (casa com R/C e 1.º andar com balcão, SC – 72m2) absolvendo-a do mais pedido.

Inconformada, a Autora pediu revista, assim concluindo as suas alegações:

“- No Registo Predial, o prédio da A. é descrito como sito ao Largo ...... e com área coberta e descoberta.
- Os R.R. contestaram e deduziram reconvenção pedindo a condenação da A. a reconhecê-los como donos e legítimos proprietários de unia parcela de terreno com 42 m2 – b) do pedido reconvencional – ónus seu.
- No Registo Predial, o prédio dos R.R. não contem área descoberta.
- Em primeira instância a sentença deu razão à tese da A. procedendo totalmente (no que toca ao litígio relativo à parcela de terreno) o seu pedido, declarando-se que os R.R. – o prédio dos R.R. – não tem qualquer área descoberta (à excepção da varanda e escadaria).
- Os R.R. recorreram da sentença invocando (entre outros) a eliminação da resposta aos quesitos 18°, 22° o 27° por considerar que continham matéria de direito.
-O Tribunal da Relação de Coimbra deu razão à tese dos R.R. considerando que os quesitos supra-enunciados continham matéria de direito, mandando eliminar as respostas a eles dadas,
- Não compreendendo que essas respostas eram a continuação fáctica e lógica das respostas a múltiplos quesitos anteriores.
- Entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra que, excluindo-se a factualidade suprimida com a resposta a estes quesitos 18° e 22°, não se encontravam já reunidos os requisitos relativos à usucapião por parte da A. do espaço em litígio – área descoberta.
- A A. considera ter feito prova de que possuiu aquele prédio, incluindo o espaço objecto do litígio, ao longo de mais de 20 anos, continuamente, pacificamente, de boa fé, na convicção de que ao exercer aquele direito o fazia como de um verdadeiro direito de propriedade se tratasse.
- Toda esta prova foi feita quando se tornava inútil por via da presunção estabelecida pelo registo que nos termos do n°1 do artigo 344° do Código Civil invertia o ónus da prova, passando este a competir aos R.R..
- A A. tem área descoberta registada e os R.R. não têm um m2 no registo.
- A A. provou ainda que na área descoberta tem e possui passeios, jardins, canteiro, arbustos, roseiras, marmeleiro, portão, logradouro até ao Largo onde se situa o prédio – 22 a 39 da Matéria de Fundamentação da Sentença.
- Os R.R. nada conseguiram provar relativamente à hipotética posse do espaço em litígio – nem um quesito.
Até porque o doc. de fls. 89 – notificação para preferência – é fatal para os R.R., pois logo ali se declara que o prédio destes tem apenas direito de servidão de passagem e não qualquer área coberta.
- É pois nulo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra na medida em que os fundamentos que conduzem à decisão estão em contradição com a mesma [cfr. alínea c) do n°1 do artigo 668° do Código de Processo Civil).
- Sem prescindir, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra também andou mal ao interpretar os quesitos 18° e 22° como matéria de direito e/ou conclusiva.
- Interpretou incorrectamente os artigos 344° e 350.º do Código Civil colocando A. e R.R. no ‘mesmo prato da balança’ quando a A. gozava da presunção do registo sobre a área descoberta – logradouro.
- Provando a A. ter registada área descoberta e os R.R. não, provando a A. a usucapião sobre toda a área descoberta e os R.R. nem 1 m2 a acção só poderia ser procedente, como tem que ser.
- Mal interpretou o Tribunal ‘a quo’ os Artigos 342°, 344.º, 350.º do C.C. e 646°-4 do C.P.C..
Termos em que deve o presente recurso ter provimento, sendo revogado o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, e em consequência disso:
a) serem repostas as respostas aos quesitos 18° e 22°;
b) reconhecido que o prédio da A. tem registada a parte descoberta e o dos R.R. não;
c) ser dada como provada a usucapião da parcela de terreno por parte da A..”

Contra alegaram os recorridos pedindo a manutenção do Acórdão.

A Relação deu como assente a seguinte matéria de facto:

“1. A) Na Conservatória do Registo Predial de Almeida, freguesia de Almeida, encontra-se descrito sob o n° 000000/00000, e inscrito na matriz predial sob o artigo 851, o prédio urbano sito no Largo ..., correspondente a uma casa de habitação com Rés-do-chão e 1.º andar, S.C. – 90m2, uma varanda a céu descoberto – 20 m2, anexo um logradouro – 62 m2, um forno – 36 m2, uma loja – 16 m2, norte: Manuel ....; sul: José ....; nascente: Mário ....; poente: António ... – fls. 14 a 17.
2. B) Pela apresentação n° 03/00000000, na Conservatória do Registo Predial de Almeida, encontra-se inscrita a aquisição do prédio identificado em A) a favor da Autora AA, por doação – fls. 8 a 17.
3. C) Por escritura pública notarial de 28 de Setembro de 2001, AR e H... declararam doar à Autora e esta aceitar o prédio identificado em A) – fls. 8 a 13.
4. D) Pela apresentação n° 02/00000000, na Conservatória do Registo Predial de Almeida, foi inscrita a aquisição a favor de A... e H..., por partilha extra-judicial –fls. 14 a 11.
5. E) Pela apresentação n° 03/00000, na Conservatória do Registo Predial de Almeida, foi inscrita a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de AB, AR e H, por sucessão e dissolução da comunhão conjugal de MJ, que foi casada com AB – fls. 14 a 17.
6. F) Na Conservatória do Registo Predial de Almeida, freguesia de Almeida, encontra-se descrito sob o n° 01935/00000000, e inscrito na matriz predial sob o artigo 74, o prédio urbano sito no Largo dos Combatentes da Grande Guerra, correspondente a uma casa com Rés-do-chão e 10 andar com balcão, S.C. –72 m2, norte, nascente: HSS; sul: AV e poente: Rua, prédio que confina com o identificado em A) – fls. 14 a 17.
7. G) Pela apresentação n° 03/00000000, na Conservatória do Registo Predial de Almeida, foi inscrita a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito do prédio identificado em E), a favor de OA, ALA, JLA e MILL, por sucessão legítima de António Alves e mulher BLA – fls. 14 a 17.
8. H) Pela apresentação n° 03/20010510, na Conservatória do Registo Predial de Almeida, encontra-se inscrita a aquisição do prédio identificado em E), a favor de BB, casado com CC, no regime da comunhão geral, por compra – fls. 14 a 17.
9. I) No rés-do-chão do prédio identificado em E) está instalado um escritório.
10. J) No logradouro existiam arbustos e flores num canteiro.
11. L) Do Largo .... os Réus entram no logradouro e deste para uma escadaria – patamar que dá acesso ao primeiro andar da casa de habitação.
12. MJ tomou-se dona do prédio identificado em A) por transmissão de VSSM, na década de 60.
13. Que o comprara a ....., nos anos 40.
14. Pelo menos desde os anos 40, que os pais, tio e avós da autora vêm de forma sucessiva e contínua a ocupar o prédio mencionado em A).
15. E de forma pacífica.
16. Sem oposição de ninguém.
17. À vista de todos de todo o Povo de Almeida.
18. Ali habitando.
19. Dormindo.
20. Comendo.
21. Recebendo visitas.
22. Tratando-o e reparando-o.
23. Sem a oposição de ninguém e na convicção de que o faziam em nome próprio e sem prejuízo de ninguém.
24. Actualmente o prédio identificado em A) compõe-se de área coberta de 142 m2, composta por habitação, lojas, forno e arrecadações.
25. Com área descoberta, composta por passeios, jardins, escadarias e varandas.
26. Do lado nascente existiram já cortelhos e um barracão.
27. Existindo actualmente um jardim.
28. A alteração mencionada em 27 foi realizada há mais de 20 ou 30 anos, pelos antecessores da Autora.
29. No prédio mencionado em A) funcionou um forno colectivo.
30 Com mais de 100 anos.
31.O prédio identificado em F) tem 72 m2 de superfície coberta.
32. A D. Berta e marido ocuparam o prédio referido em 31.
33. Os Réus, por si ou a seu mando, cortaram flores do canteiro sito no prédio mencionado em A).
34. Cortaram arbustos e arrancaram roseiras.
35. Cortaram um marmeleiro.
36. Tudo em Janeiro de 2002.
37. Os anteriores donos do prédio identificado em F) sempre usaram a casa.
38. Em nome próprio, de forma ininterrupta e até à morte.
39. E através de familiares que se deslocavam à casa, semanalmente.
40. Incluindo a filha MILL e o marido VAL.
41. E aí dormiam.
42. Cozinhavam e tomavam as suas refeições.
43. E dando-o de arrendamento.
44. Nele fazendo obras, como sejam obras de restauro de fachadas.
45. Há uma torneira no vão das escadas da casa mencionada em F).
46. Há dois marcos no prédio mencionado em A).
47. Os RR reparavam a varanda e escadas existentes, pintando grades, limpando a escadaria.
48. Tudo de forma contínua.
49. À vista de toda a gente.
50. Sem oposição de ninguém.
51. E na convicção de que o faziam sem prejuízo de ninguém e no exercício de um direito próprio.
52. E há mais de 40 anos.
53. O prédio referido em F) é composto por uma varanda e escadaria, a qual deita para um logradouro.
54. Um dos marcos está colocado na ‘parede’ do canteiro.
55. E o outro está encostado à parede dos Correios.
56. E estão ambos na mesma direcção.
57. No alinhamento da parede divisória das casas de habitação mencionadas em A) e F)).
58. Por contrato datado e assinado de 13 de Janeiro de 2001, OA, ALA e MILLdeclararam prometer vender aos Réus, que declararam prometer comprar, o ‘prédio urbano sito no Largo dos Combatentes da Grande Guerra na freguesia e Concelho de Almeida, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n° 74, a confrontar do Norte com HS, sul com AV e poente com Rua, com a área de 72 m2 e logradouro com um balcão com a área aproximada de 42 m2’ – cfr. teor do documento de fls. 77 e 77v.
59. O pai da autora por vezes deixa uma auto-caravana no logradouro.”

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo.

1 – Nulidade do Acórdão
2 – Quesitação
3 – Presunção do artigo 7.º da Código de Registo Predial
4 – Conclusões

1 – Nulidade do Acórdão

Ao delimitar o objecto do recurso nas conclusões da alegação topam-se duas questões distintas: arguição da nulidade do Acórdão da Relação, nos termos da alínea c) do n.º1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil e violação da presunção resultante do registo predial, quanto à área descoberta do prédio da recorrente.

A nulidade arguida consiste, na perspectiva da arguente, em contradição entre os fundamentos e a decisão.

Trata-se de um vício intelectual, caracterizado pela ilogicidade entre as premissas e a conclusão do silogismo judiciário.

Se ocorrer apenas falta de idoneidade dos fundamentos para alcançar a decisão final, o que ocorre é um erro de julgamento, que não um vício de limite.

Ou seja, se o julgador faz errada subsunção dos factos ao direito não se verifica a nulidade da alínea c) do n.º1 do artigo 668.º da lei adjectiva.

Esta só ocorre se o julgador, ao arrepio da lógica de raciocínio, extrai uma conclusão impertinente, por, numa perspectiva discursiva coerente, se impor uma ilação diversa, sem que, contudo, tal tenha a ver com a adopção de determinada corrente doutrinária ou jurisprudencial ou com a aceitação de um facto como bastante para justificar uma decisão de direito.

Ora, o que a Recorrente verdadeiramente questiona é a alteração dada às respostas aos quesitos 18.º e 22.º que tiveram como consequência o provimento da apelação.

Mas a proceder a bondade da argumentação tal não integraria a nulidade do aresto por incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão mas “error in judicando”, na substância da decisão proferida, que não na sua forma.

Insiste-se em que a nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do diploma adjectivo só ocorre quando os fundamentos invocados conduziriam, por imperativo lógico, a resultado oposto ao encontrado a final, e que este se apresenta sem qualquer coerência perante o antes afirmado.

Como tal não acontece, improcede a arguição de nulidade.

2 – Quesitação

No tocante às alterações às respostas aos quesitos são curiais algumas considerações prévias.
Estamos no âmbito do recurso de revista.
A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto á matéria de facto, é muitíssimo limitada, apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material, artigo 722° n°2, ou mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, artigo 729°, n° 3 (Acórdão do STJ de 17 de Março de 2005 - 0SB2682 - onde ainda se decidiu caber ás ‘instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria factícia necessária para a solução do litigio, cabe à Relação a última palavra. Só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n°s 1 e 4 do artigo 712° - entre muitos outros.).
A regra é o Supremo Tribunal de Justiça limitar-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo tribunal “ a quo” o regime jurídico pertinente.
As situações de excepção (artigos 722° n° 2 é 729° n° 2 do Código de Processo Civil) ocorrem quando houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova. Isto é, o sindicar do modo com a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer, no âmbito do recurso de revista, se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como não dispensável para demonstrar a sua existência ou tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova .
Aqui chegados, resta verificar se a Relação, ao fixar a matéria de facto, incumpriu a segunda parte do n.º 2 do artigo 722° do diploma adjectivo, isto é, se deu como provado um facto sem produção de prova legalmente indispensável para a sua existência ou se foram infringidas as normas reguladoras da força probatória de determinado meio de prova.
Parece evidente que não ocorreu nenhuma dessas situações de excepção, que, aliàs, nem a recorrente identifica de forma apodíctica.

2.2 – Quanto aos quesitos e respectivas respostas valem as considerações do Acórdão de 19 de Dezembro de 2006 – 06 A4115 – desta mesma conferência onde se decidiu:
“No momento do artigo 511.º do CPC o juiz selecciona, de entre os factos alegados, e ainda controvertidos, os que, a título principal ou instrumental, interessam para a decisão da causa, na ponderação das várias e plausíveis soluções de direito.
Então terá de atentar no ‘distinguo’ entre facto, direito e conclusão, acolhendo tão somente o puro facto e arrendando da quesitaria os conceitos de direito – salvo se já transitados para a linguagem comum, por assimilação pelo cidadão vulgar como correspondente a um facto concreto – e conclusões, que mais não são do que a ilação lógica de premissas não correspondendo ao facto, em si mesmo. Apelando para o conceito lógico, dir-se-á que o facto é a premissa menor do silogismo judiciário a que, afinal, se reconduz qualquer lide.
Mas para que não surjam duvidas a final, há que encarar o questionário – base instrutória – como um todo coerente, evitando o dicotómico e moderando as formulações alternativas.
O quesito em si deve ser redigido com precisão e clareza, procurando reproduzir o que a parte alegou, mas acertando o alegado terminologicamente (apenas para melhor evidenciar o cerne do perguntado).
Aquando das respostas há que lograr que as mesmas sejam claras, coerentes, congruentes, minuciosas e pormenorizadas, para definir com rigor o sentido do perguntado no quesito.(...).
A tendência vai no sentido de, e para prosseguir também a verdade material, o juiz dever atentar nos factos instrumentais e de ‘outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório’ (n° 3 do artigo 264° CPC).
Esta ponderação pode ser feita aquando da redacção da resposta explicativa que, assim, e se contida naqueles precisos limites e com garantia de contraditório, não seria de considerar excessiva.”

2.3 – Feito este breve bosquejo, analisemos os quesitos postos em crise.

2.3.1 – Perguntava-se no quesito 18.º se o prédio identificado na alínea a) tem um grande portão de entrada e um logradouro que dão para o Largo ....

A Relação considerou que estando em causa precisamente a parcela que através do portão confina com aquele Largo, o perguntar-se se o prédio tem tal logradouro implica perguntar-se se essa área pertence ao prédio.

E bem concluiu.

Tal matéria foi alegada no artigo 26.º da petição inicial integrando, desde logo, uma conclusão que decidiria de imediato a lide, por conter ínsita uma questão de direito – a propriedade – do logradouro, sem recurso a factos que a permitam inferir.

Cai, em consequência, no âmbito do n.º 4 – primeira parte – do artigo 646.º do diploma adjectivo.

2.3.2 – A Relação também não exorbitou os seus poderes quanto ao quesito 22.º.

Aí se perguntava se o prédio dos Réus não tem logradouros, jardins ou áreas descobertas.

Respondeu-se que estava “provado com excepção da parte da varanda que o prédio tem”.

Valem as considerações feitas para o quesito 18.º.

E embora a resposta tenha sido explicativa arredando qualquer conclusão ou conceito de direito, o certo é que não pode ser aproveitada por se reportar a um quesito que não podia ter sido formulado nos termos em que o foi.

Tudo se possa, pois, como se essa matéria não tivesse sido levada à base instrutória.

3 – Presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial

3.1 – Perante a matéria de facto que ficou definitivamente assente, assiste razão à Autora quanto ao seu domínio sobre a parcela em crise.

E isto com base na presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial.

Certo que tal presunção não abrange a descrição física do prédio apenas incidindo sobre os factos inscritos (cf. v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993 – CJ/STJ I, 100, de 11 de Julho de 2006 – 06 A2105 e de 15 de Maio de 2007 – 07 A1273).

A descrição física de um prédio é notória, de percepção fácil, integrando pura matéria de facto sem que tenha de fazer-se apelo à interpretação e aplicação de textos legais. Já a referente às inscrições é de natureza jurídica sendo nessa sede conhecida e valorada.

Mas, mau grado os limites da presunção resultante do registo é certo que, sob pena de se esvaziar completamente o seu conteúdo, há que atentar nos precisos termos da inscrição e verificar se foram provados, ou improvados, quesitos em sentido oposto.

Como referem a Dr.ª Isabel Pereira Mendes (in “Estudos sobre Registo Predial”, 118) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 1992 – BMJ 420-597 – a presunção existe no sentido de se considerar que o registo é “exacto e integro”e que “o direito registado existe e emerge do acto inscrito; o mesmo pertence ao titular inscrito, nos termos em que o registo o define”, não incluindo, porém, todos os elementos de identificação dos prédios sujeitos, que estão, a eventuais alterações, por rectificação de áreas estremas.

E isto porque – e como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Fevereiro de 2005 (P.º 4594/04 – 1.ª) – “…para concluir que não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais (com finalidade essencialmente fiscal) numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que o mesmo é susceptível de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador, apesar da sua intervenção mesmo oficiosa (artigos 60.º, 90.º e 46.º do Código do Registo Predial; Acórdãos do STJ de 11 de Maio de 1995, 17 de Junho de 1997, 25 de Junho de 1998, 11 de Março de 1999, 10 de Janeiro de 2002 e 28 de Janeiro de 2003, in respectivas CJ/STJ – III-II-75, V-II-126, VI-II,134, VII-I-150; Sumários/2002, 28 e 249; Sumários/Janeiro, 2003, 27 e Isabel P. Mendes “Código do Registo Predial – Anotado e Comentado”, 11.ª Ed, 239).”

Mas este entendimento não pode ser acolhido acriticamente, antes devendo ser ponderado em termos hábeis.

A descrição reporta-se a uma realidade física, ostensiva e deve conter todos os elementos essenciais dessa realidade que terão de estar abrangidos por ela.

Só não estão os elementos acessórios e acidentais.

No relato do aresto de 22 de Fevereiro de 2005 escreve o Cons. Alves Velho que “assim sendo, há-de haver nela (descrição) um conjunto de elementos identificativos, que constituirão um âmbito mínimo ou núcleo essencial indispensável à definição ou identificação da coisa sobre a qual incide a inscrição do direito, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito.”.

E nesta linha diz o Cons. Moreira Alves, ao relator o Acórdão de 31 de Março de 2004 – P.º 81/04-1.ª –:

“Não se contesta que a presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial abrange apenas os factos jurídicos inscritos de onde se deduzem as situações jurídicas publicitadas pelo registo e não também a totalidade dos elementos de identificação física, económica e fiscal dos prédios, objecto da descrição predial e a sua única finalidade.

É essa a doutrina quase unânime e que aqui não se põe em causa.

Só que, uma coisa são as confrontações, a área, as estremas ou o valor dos prédios, outra aquilo que os define ou identifica na sua essencialidade.

Assim, da descrição fazem parte não só os elementos materiais essenciais à identificação dos prédios como os elementos meramente complementares ou acessórios.

Os primeiros, como que são inerentes à própria inscrição, pelo que só os segundos devem estar fora do alcance da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial, sob pena de esta não ter qualquer relevância prática.”

E mais adiante:

“Portanto, das inscrições constam os factos jurídicos sujeitos a registo, conforme o elencado no artigo 2.º do C.R. Predial, ou sejam, constam deles os factos da vida real, que, por força da lei produzem determinados efeitos jurídicos, no caso, constitutivos, aquisitivos, modificativos ou extintivos do direito de propriedade.

Ora, como tal direito incide sobre coisas a inscrição tem de as identificar, o que faz por referência à descrição, sendo certo que alguns desses elementos identificativos são essenciais, no sentido de que, sem eles, não se saber sobre que coisa incide a inscrição (ou melhor, o facto inscrito).

Esse núcleo essencial da descrição não pode deixar de estar protegido pela presunção do artigo 7.º sob pena de se presumir a propriedade de coisa nenhuma.”

Daí que se no registo um prédio vem descrito como tendo uma área descoberta, ou logradouro, ou como tendo, apenas, um terraço descoberto, tais elementos, – que não limites, áreas precisas, valores, identificação fiscal, confrontações e âmbito – fazem parte do referido núcleo essencial descritivo, que, no fundo são marcas diferenciadoras, ou de identificação, do prédio, que estão a coberto da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial.

3.2 – “In casu”, é questionada a existência de um logradouro como integrando o prédio da Autora.

No registo o prédio vem descrito como tendo, além do mais, “anexo um logradouro – 62m2”.

Já a descrição do prédio dos Réus, que disputam o domínio dessa parte, não contém qualquer referência à área descoberta, à excepção do “balcão” do 1.º andar.

Ora a resposta não escrita ao quesito 18.º, pelas razões antes aduzidas, apenas pode equivaler à não quesitação do facto, que não à resposta negativa ao perguntado.

Daí que tudo se passe como se esse ponto da petição de onde foi extraído o quesito eliminado, por conclusivo, não surgisse na base instrutória valendo, nessa parte, e quanto a ele a presunção “tantum juris” do citado artigo 7.º do Código do Registo Predial, já que o logradouro integra um elemento essencial do facto inscrito.

Outrossim, acontece quanto à eliminação do quesito 22.º – cuja resposta foi considerada não escrita – valendo, nesta parte, a descrição do prédio dos Réus que não os faz presumir danos de qualquer logradouro, sendo que, também, não lograram ilidir a presunção da Autora.

Ademais, constando da matéria de facto assente que a área coberta do prédio da Autora é de 142 m2 (n.º 24), e sendo o total inscrito de 204 m2, poderiam aceitar-se, por cálculo aritmético, os 62 m2 de logradouro, nos precisos termos da inscrição.

Mas este raciocínio implicaria considerar que a área total inscrita está a coberto da presunção, só assim podendo realizar-se a operação aritmética de dedução.

O que iria contudo contrariar o acima afirmado quanto às áreas e a sua inconsideração na presunção “tantum juris”.

Daí que, embora reconhecendo, por esta via a existência do logradouro e o seu domínio da Autora não pode afirmar-se a respectiva dimensão como julgaram as instâncias.

Em tudo o mais valem os argumentos da decisão da 1.ª Instância que aqui se recuperam.

4 – Conclusões

Pode concluir-se que:
a) A nulidade da alínea c) do n.º 1do artigo 668.º do Código de Processo Civil traduz-se num vício de raciocínio consistente na afirmação conclusiva não resultante do assente nas premissas do silogismo judiciário.
b) Aquando da selecção de factos a quesitar, no momento do artigo 511.º do Código de Processo Civil terá de atentar-se no “distinguo” entre facto, direito e conclusão, acolhendo, apenas, o facto simples e arredando da base instrutória os conceitos de direito – salvo as que transitaram para a linguagem corrente, por assimiladas pelo cidadão comum por corresponder a um facto concreto – e conclusões, que mais não são do que a lógica ilação de premissas.
c) Se o quesito integra uma mera conclusão que decide de imediato a lide, a sua resposta cai no âmbito do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil devendo ter-se por não escrito.
d) Se o quesito é conclusivo ou contém matéria de direito, é irrelevante que a resposta afaste esses conceitos sendo de não a aproveitar e tudo se passando como se, essa matéria, não tivesse sido incluída na base instrutória.
e) A presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial não abrange a descrição física do prédio mas, apenas, os factos inscritos.
f) Porém, a descrição terá de conter um núcleo essencial indispensável à identificação do prédio sob pena de não se saber, exactamente, sobre que coisa incide o facto jurídico inscrito.
g) Reconhecendo a não inclusão na presunção de certos elementos não essenciais – confrontações, limites precisos, áreas exactas, identificações fiscais –esta terá de abranger alguns elementos acessórios que importam para uma identificação do prédio no seu confronto com prédios confinantes.
h) E assim ali relevará a inclusão de logradouro, ou a existência de outro espaço descoberto, ainda que sem precisa dimensão.

Face ao exposto, acordam conceder parcialmente a revista e revogar o Acórdão recorrido subsistindo a sentença da 1.ª Instância, á excepção da área do logradouro do prédio da Autora.

Custas a cargo da Recorrente e dos Recorridos nas proporções de 1/3 e 2/3.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2008

Sebastião Póvoas (relator)
Moreira Alves
Alves Velho