Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1659/07.3GTABF.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
DEPOIMENTO INDIRECTO
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CONCURSO DE INFRACÇÃO
CRIME ÚNICO
CRIME DE RESULTADO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 07/13/2011
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: <REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDÊNCIA>. - A. 141, Nº 3970 (SET./OUT. 2011) P. 18-68
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I - Não integra o conceito de «depoimento indirecto» o depoimento de uma testemunha, militar da GNR, que investigou o acidente de viação e as suas causa, limitando-se a referir o resultado de informações que recolheu no decorrer e no desenvolvimento da sua actividade funcional de investigação, transmitindo ao tribunal uma série de elementos factuais recolhidos através de várias fontes que identifica, e que o tribunal valorou no âmbito dos poderes de apreciação do art. 127.º do CPP.
II - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infacções) tem no art. 30.º, n.º 1, do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso heterogéneo) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo). Na indicação legislativa, o critério consagrado para determinar o concurso é, assim, teleológico referido ao bem jurídico.
III - A jurisprudência nacional, especialmente do STJ, desde há mais de 60 anos que tem expressivamente considerado que nas acções negligentes de resultado a pluralidade de resultados não conduz a uma pluralidade de crimes, em identidade e identificação dogmática da construção dos crimes dolosos de resultado com os crimes negligentes de resultado. Embora com modulações argumentativas, a jurisprudência tem entendido como uma unidade, e em consequência que constitui um só crime, a acção negligente típica com violação do dever objectivo de cuidado com resultados circunstanciais e acidentais múltiplos. A argumentação que serve esta solução recolhe, maioritariamente, as formulações da doutrina germânica sobre a construção do concurso ideal, com auxílio metodológico retirado da inexistência de uma pluralidade de resoluções na violação do dever de cuidado.
IV - Consideradas as várias posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a questão, não estão reunidos fundamentos que decisivamente façam apontar para a inversão das formulações largamente maioritárias do STJ: as novas (outras) formulações doutrinais e a reconstrução dogmática são apenas referências e tentativas, ainda não sedimentadas, sem que se tenham alcançado na negligência os mesmos consensos e certezas da dogmática do crime doloso.
V - Não obstante alguma reconfiguração nas doutrinas tradicionais sobre o concurso real, que tem sido fundamentada numa leitura do art. 30.º, n.º 1, do CP, a moderna construção da doutrina do crime com a concepção do tipo total, objectivo e subjectivo, pressupõe na pluralidade de crimes sempre a existência de vários juízos de censura para a pluralidade de resultados, seja nos crimes dolosos seja nos crimes negligentes de resultado.
VI - O preenchimento efectivo de um tipo de crime, na totalidade dos respectivos elementos constitutivos e integradores, pressupõe a acção típica, com o resultado nos crimes de resultado, a imputação ao agente e o juízo de censura; o juízo de censura não pode ser independente do resultado e tem de ser referido ao resultado e no resultado concreto nos crimes de resultado.
VII - Esta formulação e esta construção, típicas e próprias dos crimes dolosos, não se estendem ou podem ser aplicadas, tal qual, aos crimes negligentes, em que o juízo de censura é unitário e apenas pode ser formulado em relação à concreta violação do dever objectivo de cuidado ou à omissão do cuidado devido em concreto pelo agente. Nos crimes negligentes de resultado plural não podem ser dirigidos vários juízos de censura relativamente à mesma e única acção negligente, que consista numa única violação do dever de cuidado. Não existindo possibilidade de formular uma pluralidade de juízos de censura, não está configurada uma pluralidade de crimes. De outro modo, nos crimes negligentes produzir-se-ia um corte na construção da doutrina do crime, com tratamento dogmaticamente diferenciado em relação aos crimes dolosos, até com maiores exigências ao nível do juízo de censura nos crimes negligentes do que nos crimes dolosos.
VIII - Entendimento diverso, que, no rigor, faria reverter a negligência e dolo a uma (total) «comunidade dogmática», não estará, apesar da actualização funcional da negligência como categoria penal nas sociedades de risco e da exigência da ética do cuidado e do princípio da precaução, suficientemente densificado e com suporte consensual bastante para servir de fundamento a uma reconfiguração jurisprudencial.
IX - É pela unidade de acção constituída apenas pela unidade de violação do dever de cuidado que é objecto do juízo de censura, que se determina a unidade do juízo de censura; havendo unidade (um único juízo de censura) não poderá haver nas acções negligentes mais do que o preenchimento de um único tipo subjectivo e objectivo. Nestes termos, à violação do dever de cuidado no exercício da condução automóvel está unicamente associada, pela cognoscibilidade geral decorrente das regras da experiência e da vida, e das exigências decorrentes da ponderação do cuidado devido, a possibilidade de ocorrer a morte ou lesões de outra pessoa. Todavia, não podendo ser, e não sendo, em concreto, representados os resultados, o juízo de censura, dirigido unicamente à violação do dever de cuidado, não se projecta em relação a todos os resultados.
X - Se o arguido, ao aproximar-se de um entroncamento com sinalização luminosa, ultrapassou o sinal vermelho, mantendo a velocidade de que vinha animado, não inferior a 100 km/h, vindo a colher mortalmente duas pessoas, há apenas uma violação do dever objectivo de cuidado que lhe era exigido na condução (respeito dos sinais luminosos de prescrição), objecto de um único juízo de censura, pelo que cometeu apenas um crime de homicídio negligente. Com efeito, o juízo de censura não pode, assim, ser plural, em relação aos concretos resultados verificados.
XI - Pela sua natureza e fundamentos, a aplicação do dever penal dos jovens não constitui uma faculdade, mas antes um dever vinculado que o juiz deve e tem de usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, devendo considerar no juízo de prognose positiva imposto tanto pela globalidade da actuação do jovem, como a sua situação pessoal e social, o que implica um conhecimento da sua personalidade, das suas condições pessoais e da sua conduta anterior e posterior ao crime.
XII - A conjugação e a ponderação dos fins das penas, e do tratamento diferenciado conforme os fins prevalecentes no dolo e nos crimes negligentes, retira espaço de aplicabilidade ao regime penal dos jovens comandado por exclusivas finalidades de prevenção especial. Por isso, a aplicação do regime especial encontrará dificuldades insuperáveis nos casos em que não haja assunção da prática dos factos, sem possibilidade de o julgador substanciar o convencimento quanto ao comprometimento determinado do agente em assumir e interiorizar os valores e a dimensão ética das exigências impostas pelo respeito relacional dos deveres de cuidado.
XIII - Não se provando os factos demonstrativos da interiorização do desvalor da conduta, não é possível formular um juízo sobre as vantagens para a reinserção social do recorrente, especialmente na perspectiva essencial de interiorização das exigências de cuidado, como pressuposto da aplicação do regime penal específico dos jovens.
XIV - A filosofia e as razões de política criminal que estão na base do instituto da suspensão da execução da pena radicam, essencialmente, no objectivo de afastamento das penas de prisão efectiva de curta e média duração, garantido, ainda, quer um conteúdo bastante aos fundamentos de ressocialização, quer exigências mínimas de prevenção geral e de defesa do ordenamento jurídico: é central do instituto valor da ressocialização em liberdade.
XV - Não são, assim, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitem fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas. Por outro lado, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos formais e materiais.
XVI - A aplicação das penas nos crimes negligentes coloca questões de fronteira nos pressupostos de aplicação das penas de substituição, nomeadamente a suspensão da execução da pena de prisão. Neste domínio, importa considerar as circunstâncias do acidente e as suas consequências, densificando ao mesmo tempo a recolha de elementos sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida e o seu comportamento anterior e posterior ao crime.


Decisão Texto Integral:

                        Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

   1. No processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 1659/07.3GTABF, do 1.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Loulé, foi submetido a julgamento o arguido AA, solteiro, ajudante de cozinha, nascido em Lisboa, em 07 de Setembro de 1987, e residente em Loulé, sob a acusação da prática, na forma consumada, em autoria material, e concurso real, de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º s 1 e 2, do Código Penal, um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.º s 1 e 2, do Código Penal, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código, um crime de condução ilegal de veículo ligeiro, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03-01, uma contra-ordenação p. e p. pelo artigo 27.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código da Estrada e uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelo artigo 146.º, alínea n), do mesmo diploma, por violação do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Decreto - Regulamentar n.º 22-A/98, de 01-10.

Na sequência do julgamento, o arguido foi absolvido da prática:
 - de um crime de condução perigosa de veículo, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
- das contra-ordenações, p. e p. nos artigos 27.º, 30.º e 146.º, do Código da Estrada;
e condenado pela prática, em concurso real:
- de dois crimes de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 2 e com referência ao n.º 1 do Código Penal, cada um deles, na pena de três anos e seis meses de prisão;
- de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º do Código Penal, na pena de um ano e três meses de prisão;
- de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, com referência ao n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03-01, na pena de um ano de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi fixada a pena única em 6 anos e 6 meses de prisão.

2. Não se conformando, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresentou, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:

1 - O arguido foi condenado pelo Tribunal a quo, pela prática, como autor material, em concurso real:

- na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes Homicídio Negligente, p. e p. pelo art. 137°, n.° 2, com referência ao n.° 1 do Código Penal;

- na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão, pelo crime de Omissão de Auxílio, p. e p. pelo art. 200° do Código Penal;

- na pena de 1 (um) ano de prisão, pelo crime de Condução Ilegal, p. e p. pelo art. 3º, n.° 2, com referência ao n.° 1 do Decreto-Lei n.° 2/98, de 03 de Janeiro.

2- As quais, em cúmulo jurídico, foram graduadas na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

3- Não se verifica, quanto ao crime de Homicídio Negligente, p. e p. pelo art. 137°, n.° 2, com referência ao n.° 1 do Código Penal, um concurso efectivo de infracções, mas sim um crime de resultado múltiplo, uma vez que a conduta do arguido é-lhe imputável a título de negligência, pois que, no caso dos crimes negligentes apenas será imputável um único juízo de censura, sendo a culpa resumida a apenas uma resolução criminosa, independentemente de ser violado várias vezes o mesmo tipo, uma vez que o dever objectivo de cuidado, foi ofendido uma única vez.

4- É adequada a condenação do arguido pela prática de um único crime de homicídio negligente e, não, pela prática de dois crimes de crimes de Homicídio Negligente, p. e p. pelo art. 137°, n.° 2, e com referência ao n.° 1 do Código Penal, conforme consta do acórdão recorrido, visto que, em situações de negligência, apenas é relevante e imputável um único juízo de censura pelo comportamento negligente adoptado, resumindo-se a culpa a uma só resolução conducente a tal comportamento negligente, independentemente de serem violados vários tipos legais ou várias vezes o mesmo tipo. Sendo que, só faz sentido punir o agente por mais de que um crime, quando este puder configurar a possibilidade de que da sua acção negligente possa resultar mais de que uma vítima.

5- Assim, e mesmo estando perante a prática de dois crimes de homicídio negligente, a conduta do arguido apenas seria de subsumir a uma situação de concurso ideal homogéneo, visto que o arguido, numa só acção violou, por duas vezes, a mesma disposição legal. (vide neste sentido, Acórdão do STJ de 21/09/2005, in Colectânea de Jurisprudência, 2005, III, 167 e Acórdão do STJ, in Colectânea de Jurisprudência 1998, STJ, III, 183).

6- Outra das questões a resolver no âmbito do presente recurso é, também, a de saber se foram tidos em conta os requisitos relevantes para a determinação da medida da pena.

7- Mostrando-se excessivas e desadequadas as penas de prisão aplicadas, bem como a pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, fixada em cúmulo jurídico,

8- Mostra-se adequada a redução desta pena de prisão, para pena a fixar entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses a 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

9- De acordo com o previsto no art. 40°, n.° 1 e 2 do Código Penal, a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente, sendo que, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa.

10- Aquando da determinação da medida da pena, o Tribunal deverá seguir o plasmado nos art. 70° e 71° do Código Penal, ou seja, terá que ponderar o passado criminal do agente; o valor da acção e o resultado; o valor dos bens jurídicos em causa; o dano causado; a manutenção da conduta posterior lícita; a culpa do agente e as exigências da prevenção de futuros crimes.

11- Atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que deponham a favor do agente.

12- O enquadramento fáctico-jurídico, prevê que a determinação da medida da pena, dentro dos limites mínimos previstos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção,

13- atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

14- Neste caso, milita a favor do arguido, o facto de este ter uma vida familiar estável, vivendo com uma companheira e com os dois filhos menores de ambos, com 2 (dois) e com 1 (um) ano de idade.

15- Tem apenas 22 (vinte e dois) anos de idade e é também pessoa integrada social e profissionalmente.

16- Assim, parece-nos, no nosso modesto entender e, salvo o devido respeito por diversa opinião, que, na determinação da medida deveriam ser tidas em conta todas estas circunstâncias.

17- Estabelecendo o art. 40°, n.° 1 e n.° 2 do Código Penal, que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente e, em caso algum, a pena poderá ultrapassar a medida da culpa.

18- Considerou o Tribunal "a quo", para efeitos de determinação da medida da pena que " A ilicitude dos factos, que se revela acentuadíssima atento o já exposto, tendo em conta que o arguido colheu, com o seu comportamento, duas vidas humanas, perdas que são já irreparáveis e que deixam o desamparo e ao sentimentos das familiares desertos de expectativas e dos afectos, e que deixam a sociedade diminuída de dois valores humanos numa idade ainda de muito projectos e anseios, que deixam a sociedade ferida pelo sentimento de abandono, de falta de solidariedade naquilo que tem de ser-lhe mais caro, como a inter-ajuda de todos com vista ao bem comum(...).

As consequências dos ilícitos assumem especial e acentuada gravidade, que dispensa mesmo qualquer adjectivação, na medida em que o arguido causa, ou contribui decisivamente, para que se cause um prejuízo humano elevadíssimo, relativamente a qualquer dos crimes em análise, o revelar de um sentimento de desrespeito firme pelas regras, sejam das autoridades, sejam de segurança comum e alheia. O grau da culpa que, mercê disso mesmo, se mostra bastante acentuado, tendo em conta que o arguido agiu com dolo directo quanto a dois dos crimes e quanto aos homicídios com negligência grosseira, a forma mais grave de violação dos deveres elementares de cuidado. As condições de vida do arguido- familiarmente e profissionalmente integrado, revelando embora antecedentes criminais mas por factos de natureza diversa (que não mencionou para efeitos do respectivo relatório social).

A personalidade do arguido, o comportamento anterior e posterior, verbalizando ele um arrependimento que não mostra consistência em face da postura assumida de alheamento, de desprendimento relativamente aos factos, aos familiares dos falecidos, pugnando em Tribunal, apesar da aceitação de parte dos factos, por uma postura de que não se lembra, não sabe, se desorientou. Todas estas circunstâncias que, num outro contexto lhe podiam ser até favoráveis, neste contexto particular concorrem fortemente para a convicção de que o arguido passou pelos factos com uma indiferença desusada e injustificada."

19- Ora, analisando o relatório social, junto aos presentes autos, pode-se constatar que "(...) Durante o processo de entrevista AA revelou uma postura cordata, embora associada a alguns traços de ansiedade manifesta e dificuldade em expressar as suas emoções/pensamentos."

20- Pelo que, a postura assumida pelo arguido recorrente, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, não se tratou de uma "postura de alheamento" ou de indiferença quanto aos factos em causa, mas sim das dificuldades que o mesmo apresenta em expressar-se, em expressar os seus pensamentos, sentimentos e/ou emoções.

21- Para além disso, foi até referido pelo recorrente em Audiência que desde o acidente nunca mais conseguiu sequer olhar para o carro que conduzia.

22- Foi ainda mencionado, neste Relatório Social que o arguido "No abstracto e em contexto estruturado, (...) revela aptidões de análise e de prever as consequências dos actos que pratica embora em situações de grande tensão emocional e face à sua imaturidade, estas possam ficar diminuídas."

23- Ora, isto vai de encontro ao que foi referido pelo arguido em sede de Audiência de Julgamento, quando mencionou que depois de ter embatido em algo que não percebeu o que era, entrou em pânico.

24- Podemos também verificar que o arguido, conforme menciona este relatório social, "(...) não surge associado a comportamentos desajustados e/ou ao consumo de substâncias alteradoras do estado de consciência, nem à integração de grupo de pares conotados com comportamentos de risco."

25- Constando também, deste mesmo relatório social que "em contexto profissional AA é referenciado com um jovem responsável e cumpridor."

26- Circunstâncias estas que, no entender do recorrente, não foram tidas em conta pelo Tribunal "a quo" para efeitos de determinação da medida da pena.

27- Há ainda que ter conta que o arguido, ora recorrente, demonstrou arrependimento, tendo relatado ao Tribunal os factos de que se lembrava, prestando todos os esclarecimentos que pôde.

28- Esclarecendo, no entanto, que haviam outros factos de que não se recordava.

29- Para além disso, não foi também tido em conta pelo o Tribunal "a quo" (e ficou provado), para efeitos de determinação da medida da pena, que o arguido vive com a sua companheira e com os dois filhos menores de ambos, os quais têm, à data, 2 (dois) anos e 1 (um) ano de idade.

30- Considerou ainda o Tribunal "a quo" que "apesar da falta de confissão do arguido (que seria inequívoco sinal de arrependimento e ponderação da sua parte), apesar da sua tentativa de desculpar as coisas com a falta de lembrança, ou o medo que invocou para não ter, até hoje, procurado os familiares das vítimas de tão grave situação, a prova fez-se com a tranquilidade de um outro depoimento que vem demonstrar que, não sendo presencial, foi determinante na avaliação do espaço, vestígios e consequências imediatas dos factos- a testemunha C........ De facto neste depoimento, conjugado com os elementos constantes do processo, retiram-se as circunstâncias integrais do acidente que o arguido não confessou."

31- O arguido podia até nem ter prestado declarações, em sede de Audiência de Julgamento, visto que este é um direito que lhe é conferido por lei e o seu exercício não o poderia vir a prejudicar.

32- No entanto, o arguido não fez uso deste direito ao silêncio, previsto no art. 61°, n.° 1, al. d) do Código de Processo Penal, tendo antes, optado por esclarecer o Tribunal e contribuir para a descoberta da verdade, na medida das suas possibilidades.

33- Cumpre ainda referir que a testemunha C...., agente do Destacamento de Trânsito de Albufeira, ao consignar em Auto e ao referir em sede de Audiência de Julgamento, que lhe foi transmitido que o arguido fazia aquele percurso diariamente, conduzindo a viatura interveniente no acidente, trata-se de depoimento "por ouvir dizer",

34- e, como tal, não poderá servir como meio de prova, de acordo com o previsto no art. 129° do Código de Processo Penal.

35- No entanto, foi valorado pelo Tribunal "a quo", pois consta do acórdão a propósito dessa questão, que "(...) nem o arguido veio convencer o Tribunal de que a informação constatada pela G.N.R. naquela data era falsa (...).

36- Por último, consta também do acórdão recorrido que, a testemunha, F...C..., tio do arguido, referiu que não notou alterações no comportamento do arguido, depois de ocorridos os factos em causa.

37- No entanto, cumpre acrescentar que esta testemunha terá também referido que não convive diariamente com o mesmo.

38- Não constando, porém, do acórdão  recorrido o que foi referido pelo sogro do arguido, a testemunha F...F..., no sentido de que o arguido, desde o acidente em causa, mudou muito, tendo-se tornado mais introvertido e isolado.

39- Assim, parece-nos no nosso modesto entender e, salvo o devido respeito por diversa opinião, que, na determinação da medida deveriam ser tidas em conta todas estas circunstâncias.

40- Entendendo o recorrente que as penas de prisão aplicadas, bem como, a pena única decorrente do cúmulo jurídico, fixada em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, mostra-se bastante elevada e excessiva.

41- Pois, e não obstante os antecedentes criminais do arguido (por crimes contra o património), estamos perante factos que se reportam aos anos de 2003 e de 2006, e, desde então, o arguido tem adoptado uma conduta conforme ao Direito.

42- Para além disso, o recorrente, actualmente, tem apenas 22 (vinte e dois) anos de idade.

43- Tem uma vida familiar estável, vivendo com a sua companheira e com os dois filhos menores de ambos, de tenra idade, os quais dependem e precisam do pai

44- Sendo também pessoa integrada, a nível social e profissional.

45- E, para além disso, encontra-se a tirar a carta de condução.

46- A medida da pena aplicada pelo Tribunal "a quo", mostra-se superior à medida da culpa e vem restringir a reintegração do ora recorrente, na sociedade,

47- tendo em conta que o arguido terá pela frente vários anos de vida na prisão, facto este, que certamente vem restringir as suas hipóteses de reintegração na sociedade.

48- Para além de que, como se sabe, as prisões estão longe de ser o local ideal para a reabilitação, tratam-se sim, do local que melhor instiga à criminalidade.

49- Isto, para além das consequências que a condenação do arguido neste pena terá a nível familiar, principalmente para os seus filhos, que irão crescer sem a presença do pai,

50- Havendo, em consequência da ausência do pai, uma consequente quebra dos laços que actualmente os unem.

51- Para além disso, há também que ter em conta o impacto, que a prisão efectiva do arguido, terá a nível económico, uma vez que o seu agregado familiar ficará privado dos rendimentos que o arguido, ora recorrente, aufere em resultado do seu trabalho.

52- Considerou ainda o Tribunal "a quo" não ser de aplicar aqui o regime penal especial para jovens adultos, previsto pelo Decreto-Lei n.° 401/82, de 23 de Setembro, invocando que: " (...) não é a idade que é factor objectivo de atenuação, muito embora possa concorrer para essa ponderação. O juízo que se faça deve buscar razões na lei geral penal, desde logo no art. 72° citado, de onde se devem retirar os factores que podem, e apenas podem, concorrer para a atenuação da pena ou de que esta atenuação resultem especiais vantagens para a reinserção social do arguido. Neste caso, porém, quer dos factos quer do julgamento, nada resulta de onde possa extrair-se a necessidade de atenuar especialmente a pena, antes pelo contrário. Resulta dos factos uma culpa acentuadíssima, uma ilicitude vincada e fortíssima e, ao invés de esta soma desaconselhar a aplicação da pena, ela aponta decisivamente para que as penas, singularmente consideradas ou no conjunto, se situem nos limites superiores das penas abstractamente previstas, como se viu."

Pelo que, nesta conformidade, entende o Tribunal não aplicar ao arguido a atenuação de pena que pode resultar da aplicação do art. 4o do diploma citado."

53- No entanto, no nosso modesto entender e, salvo o devido respeito por diversa opinião, parece-nos que o mesmo preceito seria aqui de aplicar, tendo em conta que o arguido, ora recorrente, à data dos factos, tinha apenas 20 (vinte) anos de idade

54- e a atenuação da pena traria grandes vantagens para a sua reinserção social, pelas razões acima aduzidas.

55- Parecendo-nos, e salvo o devido respeito por diversa opinião, que a pena aplicada pelo Tribunal "a quo" se mostra superior à medida da culpa e vem, em grande parte, restringir a reintegração do ora recorrente na sociedade,

56- Assim, afigura-se suficientemente adequada às finalidades da punição e da prevenção geral e especial, a redução das penas de prisão para 2 (dois) anos, quanto a cada um dos crimes de Homicídio Negligente, p. e p. pelo art. 137°, n.° 2, com referência ao n.° 1 do Código Penal, caso seja considerado estarmos perante a prática de dois crimes de homicídio negligente e, não perante a prática de apenas um crime, conforme o arguido, ora recorrente defende.

57- A redução para 8 (oito) meses de prisão, quanto ao crime Omissão de Auxílio, p. e p. pelo art. 200° do Código Penal.

58- Bem como, a redução para 1 (um) mês de prisão, quanto ao crime de Condução Sem Habilitação Legal, p. e p. pelo art. 3°, n.° 2, com referência ao n.° 1 do Decreto-Lei n.° 2/98, de 03 de Janeiro,

59- para uma pena única, a fixar, em cúmulo jurídico, entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão a 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, sujeita à obrigação de, durante um determinado período de tempo, o recorrente visitar, mensalmente, e ter contacto directo, com doentes que se encontrem em recuperação, na unidade de poli-traumatizados, que tenham sido vítimas de acidentes de viação, junto do Hospital do Alcoitão, nos termos do previsto nos art. 51° e 52° do Código Penal.

60- Pois, conforme dispõe o art. 77°, n.° 1 do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes, antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado na pena única, sendo nesta considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

61- Estabelecendo ainda no seu n.° 2 que, a pena aplicável terá como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas e, como limite mínimo, a mais elevada das penas aplicadas.

62- Considerando-se assim que a condenação do arguido recorrente nesta pena de prisão se mostrará suficiente para garantir que este não voltará a reincidir e suficientemente adequada para satisfazer as necessidades de prevenção, quer geral, quer especial.

63- Podendo ainda, ser de conceder ao ora recorrente uma última oportunidade que este certamente irá aproveitar.

64- De acordo com o disposto no art. 50° do Código Penal, esta pena de prisão poderá ser suspensa na sua execução, por se verificarem os legais pressupostos.

65- A questão que importa resolver é a de saber se o Tribunal "a quo", poderia ter concluído por um prognóstico favorável (na expressão de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 518, Pág. 342), relativamente ao comportamento do delinquente: isto é, se a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

66- Ora, o recorrente é bastante jovem, pois tem apenas 22 anos de idade e encontra-se integrado na sociedade, a nível familiar, social e profissional,

67- Vivendo com a sua companheira e com dois filhos, com 2 (dois) e 1 (um) ano de idade.

68- Tais factos permitem formular um juízo de prognose favorável.

69- Pelo que, e sendo a suspensão da execução da prisão, a mais importante das penas de substituição e, sendo, sobretudo, considerações de prevenção especial de socialização que justificam, em perspectiva político-criminal, o movimento de luta contra a pena de prisão, "o Tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou em todo o caso, provavelmente a mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontece (...)" (Cf. Ob. Supra cit., pág.332-333).

70- Pelo que, neste caso em concreto, e considerando-se as condições pessoais do arguido, parece-nos que a suspensão da pena, constitui a medida adequada, sendo suficiente a ameaça da execução dessa pena de prisão.

71- Considerando-se assim e atento o teor do disposto nos art. 40°, 50°, 51°, 52°, 70° e 71° e 77° do Código Penal, por razoável, que a condenação do arguido/recorrente numa pena a fixar entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão a 4 (quatro) anos e 9 (nove) de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sujeita à obrigação de, durante um determinado período de tempo, o recorrente visitar, mensalmente, e ter contacto directo, com doentes que se encontrem em recuperação, na unidade de poli-traumatizados, que tenham sido vítimas de acidentes de viação, junto do Hospital de Alcoitão, se mostra suficiente para garantir que este não voltará a reincidir e suficientemente adequada para satisfazer as necessidades da prevenção, quer especial, quer geral.

72- Podendo ainda, ser de conceder ao ora recorrente uma última oportunidade que este certamente irá aproveitar.

73- Pelas razões amplamente deduzidas, não tendo o Tribunal "a quo" considerado todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do arguido, na aplicação da medida concreta da pena aplicada ao arguido, foram violadas as disposições dos art. 40°, 50°, 51°, 52°, 70°, 71° e 77° do Código Penal, mostrando-se ainda, violadas as disposições do art. 129° do Código de Processo Penal, bem como, as disposições dos art. 1º e 4º do Decreto-Lei n.° 401/82, de 23 de Setembro.

No provimento do recurso, pede a revogação da decisão recorrida no que respeita à medida das penas, com a redução das penas de prisão ora aplicadas, bem como da pena de 6 anos e 6 meses de prisão, fixada em cúmulo jurídico, e, consequentemente:

a) a substituição por uma pena única, situada entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses a 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período;

b) sujeita à obrigação de, durante um determinado período de tempo, o recorrente visitar, mensalmente, e ter contacto directo, com doentes que se encontrem em recuperação, na unidade de poli-traumatizados, que tenham sido vítimas de acidentes de viação, junto do Hospital de Alcoitão.

O Ministério Público respondeu à motivação, concluindo:

1ª - O arguido recorrente não concorda com a sua punição, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, real, pela prática de dois crimes de homicídio negligente, cada um deles, p. e p. pelo art. 1379, n.9 2, com referência ao seu n.9 1, do C. Penal.

2ª - O arguido cometeu, a nosso ver, dois crimes de homicídio negligentes, p. e p. pelas normas acima referidas, uma vez que violou bens jurídicos de pessoais - isto é, com a sua condução temerária, imprudente e irresponsável, molestou, por negligência, a integridade física de duas pessoas (ora ofendidos).

3.ª - Nos crimes negligentes não fará sequer sentido falar-se em "resolução criminosa", ainda que o dever objectivo de cuidado tenha sido violado uma única vez, os bens jurídicos violados são distintos - os ofendidos são dois seres humanos.

4ª- O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio negligente, em concurso efectivo, real, quando ocorre a possibilidade de que da sua acção negligente possa resultar mais do que uma vítima, como é manifestamente o caso.

5ª - O acórdão recorrido não padece dos vícios previstos no art. 410º n.º 2 als. a) e b) do C.P.P., bem como não violou as normas ínsitas nos art.ºs 40º e 71º ambas do Código Penal.

6ª - Salvo o devido respeito, as penas parcelares aplicadas pelo Tribunal "a quo" ao arguido são ajustadas aos crimes de homicídio negligente, ao crime de omissão de auxílio e ao crime de condução ilegal de veículo ligeiro (a condução da viatura sem carta de condução foi, aliás, admitida pelo arguido em julgamento), à gravidade dessas condutas e à violação dos bens jurídicos violados com as suas condutas.

7ª - Na escolha e ponderação das penas parcelares aplicáveis a cada um dos crimes (integradores do cúmulo jurídico) importa considerar que as finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade.

8ª - Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do nºs 1 e 2 do artigo 71.º do Código Penal, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção. No caso, as exigências de prevenção geral (tenha-se em atenção o elevado grau de sinistralidade nas estradas portuguesas, e, em particular, na Estrada nacional 125, no Algarve) e especial, na consideração dos bens jurídicos violados, são muito fortes.

9ª - O Tribunal "a quo" afastou (e muito bem) a aplicação do regime previsto no DL n.e 401/82 de 26 de Setembro, isto porque do processo não resulta que o arguido agiu com culpa diminuta ["A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca." […] ou em que circunstâncias actuou que diminuam fortemente a ilicitude dos factos, ou que levem a concluir pela necessidade de diminuição da pena, elementos estes que resultam dos critérios do art. 72º do Código Penal […].

10ª - A idade só por si não é factor objectivo de atenuação. Muito pelo contrário, a inexperiência, imaturidade e inconsequência do arguido levou-o a conduzir sem carta, provocar um acidente rodoviário com negligência, lesar a integridade física de dois seres humanos e não lhes prestar auxílio após o acidente.

11ª - De resto, o arguido não confessou integralmente e sem reservas os factos, não revelou sentimentos de auto-censura, nem mostrou arrependimento sincero e, durante o julgamento, manteve uma postura de desinteresse e alheamento.

12ª - "Tem sido jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, em caso de acidentes de viação de que resultou a morte de alguém e o réu tendo actuado com culpa grave e exclusiva, decidir que não se mostra aconselhável o uso da medida de suspensão de execução da pena" [Acs. STJ, de 07.03.90, Proc. 40792, Relator: Conselheiro Ferreira Dias, in SIMP, jurisprudência, descritores: homicídio negligente, concurso de crimes].

13ª - "Em matéria de crimes rodoviários, impõe-se hoje, como meio de tratamento penal preventivo mais adequado ao desempenho e cada vez mais alarmante desregamento reinante nas estradas portuguesas, o recurso às penas de prisão, ainda que por vezes de curta duração - short sharp shock - por terem uma especial eficácia curativa, dado o seu cariz intimidatório sobre pessoas socialmente estabelecidas" [vide, entre outros, Acs. STJ, de 03.04.2003, Proc. 03P853, e do STJ, de 21.06.2007, Proc. 07P1777, ambos do Relator: Conselheiro Pereira Madeira, in SIMP, jurisprudência, descritores: homicídio negligente, concurso de crimes].

14ª. Tendo em conta todos os elementos objectivos e subjectivos e os bens jurídicos violados, somos de parecer que cada uma das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes cometidos pelo arguido, se mostra equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas.

15ª - Em nosso entender as medidas das penas - parcelares e em cúmulo - mostram-se, objectiva e subjectivamente, adequadas ao caso e deverão ser mantidas.

16ª- Isto porque, "O estabelecimento do cúmulo jurídico não constitui uma operação contabilística, ou um jogo de números, mas um verdadeiro julgamento em que expressamente se considera o peso que os factos e a personalidade do seu autor têm no ajuizamento da sua conduta" [cfr. Ac. STJ, de 27.09.2006, Relator: Conselheiro Dr. Soreto de Barros].

17ª - Aliás, o acórdão recorrido está muito bem fundamentado de direito, quer no que tange à integração jurídico-penal dos factos dados por provados, quer no que respeita à escolha da medida concreta das penas parcelares e, sobretudo, no que concerne à medida da pena a atribuir em sede de cúmulo jurídico com a sua especificidade própria.

18ª- Não existe fundamento algum, a nosso ver, para que sejam alteradas as penas parcelares aplicadas aos crimes cometidos pelo arguido, nem tão pouco que possa beneficiar de uma atenuação especial da pena, em cúmulo jurídico, sendo incongruente, discordarmos com a suspensão da sua execução, que seria, no mínimo, desajustada à personalidade revelada pelo arguido.

19ª- Por conseguinte, [o Exmº Magistrado entende] que não se verifica qualquer dos vícios apontados pelo recorrente - ou outros - devendo o acórdão da 1ª instância ser globalmente confirmado e, consequentemente, negado provimento ao presente recurso.

3. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP, considerando que foi violado o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, com a consequente nulidade a que se refere o n.º 1, alínea b) do artigo 379.º do mesmo Código e discorda da não aplicação ao arguido do regime dos jovens adultos, por entender que se justificar a formulação de um juízo de prognose favorável.

Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente nada disse.

            4. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

               5. O tribunal colectivo julgou provados os seguintes factos:


No dia 05.11.2007, pelas 22h00m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-ZU pela EN 125, ao km 125,760, no sentido Albufeira-Boliqueime.
Ao passar pelos primeiros semáforos de controle de tráfego e de velocidade de Patã de Cima, que antecedem em 100m o entroncamento que aquela via faz com a EM que liga Patã de Baixo a Patã de Cima, e ao dar-se conta de que aqueles semáforos se encontravam com a cor amarela, acelerou o veículo que conduzia até velocidade não apurada, mas não inferior a 100kms/ hora.
Já junto dos segundos semáforos, existentes à entrada do entroncamento, e pese embora bem se apercebesse que a luz vermelha deles se encontrava acesa e sabendo que, como tal, deveria interpretar aquele sinal luminoso como ordem de imobilizar o veículo antes de atingir a linha do semáforo, o arguido manteve a velocidade.
Nas mesmas circunstância de lugar e tempo, entrava transversalmente na hemi-faixa de rodagem direita da EN 125 (atento o sentido de marcha em que seguia o arguido) o veículo ligeiro de passageiros de matrícula VJ-..., proveniente da EM que liga Patã de Baixo a Patã de Cima, depois de o seu condutor, BB, ter constatado que os semáforos que condicionam o acesso daquela EM à EN 125 (no seu sentido de marcha) acenderam a luz verde.
BB transportava como passageira no lugar do pendura a vítima CC e como passageiro traseiro DD. 
Quando o veículo de matrícula VJ-... ultrapassou a linha de separação das duas hemi-faixas de rodagem da EN 125, e já nesta via tomava a mão de trânsito orientando o veículo no sentido de marcha Boliqueime - Albufeira, foi embatido violentamente na sua lateral esquerda (atento o seu sentido de marcha) pelo veículo conduzido pelo arguido que, ao dar-se conta que o veículo de matrícula VJ-... se atravessava à sua frente guinou para a esquerda, tentando contornar aquele pelo lado esquerdo.
A violência do embate - quando o veículo VJ-... se encontrava a meio da hemi-faixa direita da EN 125, atento o sentido Boliqueime-Albufeira, por efeito da velocidade que o arguido imprimiu à sua viatura - ocasionou o arrastamento do veículo VJ-... pelo veículo ...-ZU, no sentido Albufeira-Boliqueime, numa extensão de 37,75m, imobilizando-se na posição de assentamento lateral e transversalmente à berma esquerda da EN 125, atento aquele sentido de marcha.
Por sua vez, o veículo ...-ZU ficou imobilizado a 30m de distância do local do embate, na mesma berma e sentido de arrastamento do veículo VJ-....
Como consequência, necessária e directa, do embate sofreu BB as seguintes lesões: escoriações no dorso da mão esquerda e cotovelo esquerdo; escoriações frontal mediana com 5cmsX4cms e do nariz; escoriação mentoniana esquerda com 1cm; laceração das falanges distais dos 2° e 3° dedos da mão direita; deformidade do joelho esquerdo; deformidade do maxilar inferior; fractura do 3° arco costal à esquerda pelo terço médio com laceração pleural; focos de contusão pulmonares bilaterais com laceração; escoriação da face pulmonar; focos com contusão hemorrágica do mediastino posterior; ruptura do hilo pulmonar esquerdo; hemotórax bilateral (cerca de 1.500cc à esquerda e 500cc à direita); laceração do diafragma; hemoperitoneu (cerca de 500cc); ruptura do hilo esplénico; hemorragia do intestino delgado; hemorragia da cápsula renal esquerda e direita e do parênquima renal; hematoma retroperitoneal; hemorragia subaracnoideia; fractura esquirilosa do joelho esquerdo (fémur e tíbia); fractura do maxilar inferior.
Tais lesões foram causa adequada, necessária e directa da morte no local de BB, designadamente as lesões no hemotórax, o hemoperitoneu, o hematoma retroperitoneal e o traumatismo tóraxico-abdominal.
Igualmente em consequência necessária e directa do embate sofreu CC escoriação circular do cotovelo esquerdo; escoriações ponteadas no dorso de ambas as mãos; escoriação da face posterior do antebraço direito; escoriação da pálpebra superior do olho esquerdo; escoriação figurada da região frontal esquerda; fractura de arcos costais à esquerda pelo terço médio da 2ª a 8ª com laceração pulmonar e pleural; fractura da 1ª costela pelo terço anterior e da clavícula direitas; laceração da subclávia direita; focos de contusão pulmonares bilaterais; focos de contusão hemorrágica do mediastino posterior; ruptura do hilo pulmonar esquerdo; ruptura da aorta torácica; hemotórax bilateral; laceração do diafragma com herniação do estômago para a cavidade torácica; hemoperitoneu; fractura esplénica; fracturas estrelares hepáticas; focos de contusão hemorrágica do intestino delgado; focos de contusão hemorrágica renal esquerda; hematoma retroperitoneal.
A morte no local de CC adveio em consequência necessária e directa das lesões descritas, designadamente do hemotórax, hemoperitoneu, do hematoma retroperitoneal e do traumatismo tóraco-abdomina, lesões estas que constituem causa adequada de morte.
O acidente ficou a dever-se à ligeireza, temeridade, desatenção e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir, acto em que desprezou os mais elementares deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal.
Pois bem sabia que, ao aproximar-se de entroncamento com sinalização luminosa, representava como altamente provável que tivesse de imobilizar o veículo que conduzia antes de alcançar os semáforos já com a luz vermelha, pelo que não desconhecia que deveria imprimir uma velocidade ao veículo que lhe permitisse deter o mesmo no espaço livre à sua frente.
O que não respeitou, porquanto ultrapassou o sinal luminoso vermelho, mantendo a velocidade de que vinha animado, desadequada, por excesso, atentas as circunstâncias do local, velocidade não apurada em concreto, mas não inferior a 100kms/hora.
Igualmente representou o arguido a eventualidade de, por efeito de se confrontar com o sinal luminoso vermelho na sua via, dever encontrar-se verde o semáforo que condicionava, à sua direita (atento o seu sentido de marcha) a entrada na EN 125 de veículos provenientes da EM da Patã de Baixo para a Patã de Cima.
Representando igualmente a eventualidade de vir a embater em veículos provenientes daquela EM.
O troço da EN 125 onde ocorreu o sinistro configura uma recta, com piso seco e limpo e em boas condições de conservação e aderência.
A faixa de rodagem do mesmo troço tem a largura de 7,30m, sendo que as bermas têm 2,30m de largura (a direita) e 3,10m de largura (a esquerda), atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido.
Acresce que o arguido, imediatamente após o embate, abandonou o local para destino incerto, não curando de saber qual o estado das vítimas nem diligenciando no sentido de lhes vir ser prestada a assistência pelos serviços de emergência médica, pese embora representasse como altamente provável que os sinistrados do veículo VJ-... se encontrassem gravemente feridos, atenta a violência com que os embateu.
Igualmente não era o arguido titular de carta de condução ou de outro documento que o habilitasse a conduzir legalmente aquele veículo, ou qualquer outro, na via pública.
Sabia o arguido que lhe estava vedado circular no local a velocidade superior a 50kms/h e sabia também que era obrigado a deter a marcha do seu veículo antes de alcançar os semáforos.
Agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, com total desrespeito e ponderação dos deveres de cuidado a que estava vinculado, não representando sequer, apesar disso, a possibilidade de da sua conduta resultar a morte ou lesão corporal de terceiros.
O arguido sabia que estava obrigado a providenciar por assistência médica para os sinistrados do veículo em que embateu, sob pena de poderem não sobreviver às lesões, nada fazendo, agindo assim de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo a punibilidade da sua conduta.
O arguido conduzia de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.

Mais se provou,

O arguido não confessou os factos integralmente e sem reservas, aceitando embora que conduzia sem carta, sabendo que o não podia fazer, aceitando ainda que acelerou o carro à passagem dos primeiros semáforos de controlo de velocidade e passou os segundos já no vermelho a velocidade que aceita ter sido superior a 100 Km/h e que sabia que a velocidade no local permitida era de 50 Km/h.

Disse o arguido que não se apercebeu do outro veículo, que não se lembra se o tentou contornar, e que depois do embate ficou com medo e em pânico e abandonou o local, sendo encontrado depois pelo sogro, não se lembra onde, na estrada andando a pé.

Após o embate, a GNR foi chamada ao local, onde compareceu, comparecendo também ali o INEM alertado por eles, que transportou os sinistrados para o hospital distrital de Faro.

A GNR, identificando os veículos, encontrou dentro do veículo conduzido pelo arguido a documentação respectiva, tendo-se deslocado à morada onde foi informada de que era o arguido que conduzia normalmente a viatura, fazendo aquele trajecto diariamente para ir e vir do trabalho em Albufeira.

Foi na sequência destas diligências que o sogro do arguido soube do acidente e foi procurar o arguido, informado que foi pela GNR de que tinha abandonado o local após o acidente.

O local do acidente é comummente reconhecido como local perigoso, tendo na EN 125 e no sentido em que seguia o arguido (bem como no sentido inverso) uns semáforos de sinalização vertical a três cores que são accionados por um sensor de controlo de velocidade que lhe antecede 25 metros (atento ainda o sentido de marcha do arguido), também com indicação semafórica.

Na aproximação ao local, os condutores que circulem no sentido de marcha de onde provinha o arguido têm, ainda, sinalização de limite de velocidade para 70 Km/h e, antes do sensor de velocidade, nova imposição sinalética para velocidade não superior a 50 Km/h.

O local do embate foi identificado pela GNR de acordo com os vestígios existentes, desde ligo, bocados de plásticos e de faróis fragmentados e que eram frescos e visíveis no pavimento, localizados já após a linha de intercepção do sinal luminoso com o entroncamento de onde provinha a viatura das vítimas, e no sentido de marcha da EN 125 contrário àquele de onde provinha o arguido (portanto, no sentido Boliqueime – Albufeira).

Desse local ao local em que ficou imobilizada a viatura em que seguiam as vítimas distam 37,75m.

A sinalização existente no local é visível, e a semafórica estava, naquela circunstância, a funcionar normalmente.

O arguido só compareceu no posto da GNR no dia seguinte ao acidente.

Nessa ocasião, verificando os militares que apresentava dores, foi conduzido pela mesma GNR ao hospital de Faro.

O arguido, embora verbalize arrependimento, não demonstra qualquer sinal do mesmo, tendo mantido em julgamento uma postura de alheamento e desinteresse, não se comovendo em qualquer circunstância.

O arguido está a tentar tirar a carta de condução, tendo já chumbado uma vez.

Conduzia habitualmente aquele veículo.

BB não era titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir veículos na via pública.

Os pais das vítimas souberam do falecimento delas no dia seguinte, através da comunicação social.

Provou-se ainda,

O arguido tem antecedentes criminais por crimes contra o património.

Tem o 6º ano de escolaridade.

Vive com a companheira e dois filhos menores de ambos, trabalhando num restaurante do sogro, vivendo todos na casa deste, e trabalhando a companheira numa pastelaria de um tio seu.

Não procurou os familiares das vítimas até hoje, não demonstra qualquer preocupação em dar-lhes uma satisfação, moral que seja, argumentando que teve medo de o fazer. 

Em consequência do acidente, a vítima sobreviva DD, sofreu lesões físicas que importaram, até esta data, a sua sujeição a nove intervenções cirúrgicas, desconhecendo-se se voltará a ter de ser operado, tendo-lhe sido, após o acidente e nessa sequência, induzido o coma e tendo estado internado por período não apurado em concreto, mas de cerca de um mês no hospital.

Não se apuraram em concreto as lesões sofridas por causa deste acidente, e sequelas delas, relativamente ao citado DD nestes autos.

          6. As conclusões apresentadas pelo recorrente, que, todavia, não traduzem de forma condensada as razões da divergência com a decisão impugnada, permitem, não obstante, identificar como objecto do recurso as seguintes questões suscitadas pelo recorrente:

I Questão – Depoimento indirecto - Violação do artigo 129.º do CPP -  conclusões 33.ª, 34.ª e 35.ª; 

II Questão – Qualificação jurídica – Unidade ou pluralidade de infracções no homicídio negligente – conclusões 3.ª, 4.ª e 5.ª;

III Questão – Aplicação do regime penal de jovens adultos – conclusões 52.ª, 53.ª e 54.ª;

IV Questão – Medida das penas parcelares – conclusões 6.ª a 32.ª, 36ª a 51.ª e 55.ª a 63.ª;

V Questão – Medida da pena única – conclusões 8ª, 54ª;

VI Questão – Suspensão da execução da pena – conclusões 64º a 72.ª

7. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscita a questão da nulidade do acórdão em consequência de uma violação do artigo 358.º, n.º 1, do CPP, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código.

No entendimento do Exmº Magistrado, o tribunal não teria comunicado ao arguido uma alteração não substancial de factos constantes da acusação, constituída pela seguinte formulação:
 “Agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, com total desrespeito e ponderação dos deveres de cuidado a que estava vinculado, não representando sequer, apesar disso, a possibilidade de da sua conduta resultar a morte ou lesão corporal de terceiros”.

O artigo 358.º, nº 1 do CPP («Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia»), determina que «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa». 

A formulação da norma revela, por si, directamente, os fundamentos, os valores e os interesses a cuja realização está determinada.     
Sobre esta questão há que dizer em primeiro lugar que o MP não tem legitimidade para a arguição, uma vez que as finalidades da comunicação prevista no artigo 358.º têm a ver com a salvaguarda da posição processual do arguido e dos seus direitos de defesa e a garantia do contraditório, de modo a que não possa ser surpreendido com o aditamento de factos ou a hipótese de diverso enquadramento jurídico do que consta da acusação, constituindo, assim, a invocação direito seu e estabelecido em seu exclusivo benefício.
Por outro lado, o arguido aceitou a alteração, não manifestando qualquer posição, certamente por ter entendido que não prejudicava o exercício do seu direito de defesa.  

Mas, por outro lado, poder-se-á dizer que a norma indicada na acusação – artigo 137.º, n.º 2, do Código Penal – dá o critério de valoração, revelando ao acusado que é em função do desvalor penal que traduz que é requerido o seu julgamento.

Não variando sequer o tipo incriminador, não há qualquer alteração do critério essencial de valoração do interesse e o arguido não fica defraudado no direito de defesa.  

O arguido foi acusado de dois crimes de homicídio com negligência grosseira, que integra a negligência consciente e inconsciente, e que era do seu conhecimento.

No caso, a referida modificação constituiu apenas uma explicitação, que fez reverter a situação à negligência inconsciente, sendo uma forma não equivalente, mas integrante da manifestação do mesmo tipo legal, com a condenação do arguido pelo mesmo crime; não haveria, por isso, necessidade de comunicação da alteração.

Pelo exposto, decide-se não se verificar a aludida nulidade.

8. I Questão – Depoimento indirecto - Violação do artigo 129.º do CPP

Pretende o recorrente que o depoimento da testemunha C....... da GNR seria inválido por se tratar de um depoimento de ouvir dizer, relativamente à parte relacionada com a condução pelo arguido do veículo no percurso em causa no dia a dia - conclusões 33.ª a 35.ª

O facto provado, que poderia estar inquinado por estar fundamentado em depoimento alegadamente inválido, é o seguinte:

Após o embate, a GNR foi chamada ao local, onde compareceu, comparecendo também ali o INEM alertado por eles, que transportou os sinistrados para o hospital distrital de Faro.

A GNR, identificando os veículos, encontrou dentro do veículo conduzido pelo arguido a documentação respectiva, tendo-se deslocado à morada onde foi informada de que era o arguido que conduzia normalmente a viatura, fazendo aquele trajecto diariamente para ir e vir do trabalho em Albufeira.

O tribunal considerou provado que o arguido «conduzia habitualmente aquele veículo».

            Nesta parte, os fundamentos da decisão sobre a matéria de facto são as declarações do arguido, que «acrescentou que conhecia o local por lá passar diariamente, conhecendo os limites de velocidade e sinais, que já tinha levado o carro nesse dia para o trabalho mas costumava ir de boleia, porque não podia perder o emprego», em confronto com «as testemunhas [que] vieram, conjugando os depoimentos com a restante prova, infirmar esta versão».
«De facto, a testemunha C..., militar da GNR, teve um depoimento determinante, muito objectivo e isento, revelando um sentido apurado de investigação a que deu perfeito uso na ocasião.
Esta testemunha não assistiu ao embate. No entanto, quando compareceu no local, alertada que foi a GNR telefonicamente, foi minucioso na avaliação dos vestígios e preservação da prova.
Caracterizou o local amplamente (…), e confirmou todos os aspectos do auto, denotando lembrança dos pormenores importantes.
«Descreveu ao pormenor as diligências que fez para recolha da documentação dos veículos, tendo chegado à morada do arguido através dos documentos existentes dentro do carro que conduzia, tendo-se deslocado à morada e apurado que era o arguido que, habitualmente conduzia aquele carro».

O artigo 129º do CPP dispõe sobre «depoimento indirecto», estabelecendo no nº 1 que «se do depoimento resultar que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas».

Muito embora se não possa dizer que exista uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule), e que, consequentemente, o princípio hearsay is no evidence sofre limitações, assegurando, ainda assim, o processo penal todas as garantias de defesa e a conformação do processo como due process of law, o depoimento, nas circunstâncias do caso, da testemunha referida revela que não há espaço para aplicação das regras do depoimento indirecto; na verdade, a testemunha, militar da GNR, que investigou o acidente e as suas causas, limitou-se a referir o resultado de informações que recolheu no decorrer e no desenvolvimento da sua actividade funcional de investigação, transmitindo ao tribunal uma série de elementos factuais recolhidos através de várias fontes que identifica, e que o tribunal valorou no âmbito dos poderes e apreciação do artigo 127º do CPP.

No aspecto contestado pelo recorrente, constituem apenas factos meramente circunstanciais e adjacentes, sem relevo determinante para a matéria da causa.

Improcede, pois, este fundamento do recurso.

9. II Questão – Qualificação jurídica – Unidade ou pluralidade de infracções no homicídio negligente – conclusões 3.ª, 4.ª e 5.ª;

            O recorrente foi condenado, em concurso efectivo, pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, p. no artigo 137º, nº 1 do Código Penal.

Submete à cognição do Supremo Tribunal como um dos fundamentos do recurso a questão de saber se deve ser condenado por concurso efectivo de crimes ou apenas um crime de homicídio negligente (conclusões 3.ª, 4.ª e 5.ª).

      (i) Nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade ide infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

            O critério para determinar o concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

Na distinção da unidade e pluralidade de crimes, Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, p. 989, ss.) salienta que «têm sido seguidas desde que se iniciou até aos nossos dias duas vias fundamentais: ou a de atender prioritariamente à unidade e pluralidade de tipos legais de crime violados; ou a de conferir relevo decisivo à unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente. A primeira via parece pois ser claramente aceite e prosseguida pela nossa lei vigente. A segunda via impôs-se na jurisprudência e na doutrina germânica e, a partir destas, em diversos países; através dela se alcançando a distinção entre concurso ideal (a mesma acção viola várias disposições penais ou várias vezes a mesma disposição penal) e concurso real (diversas acções autónomas violam varias disposições ou várias vezes a mesma disposição penal». Dir-se-ia assim que de acordo com o disposto no art. 30.º-1 não há espaço para a distinção germânica entre um “concurso real” e um “concurso ideal”: «no ordenamento jurídico-penal português ou existe um concurso efectivo ou verdadeiro (hoc sensu, se quisermos, “real”), ou há unidade do facto punível e, por conseguinte, de crime». 

E – acrescenta - «decisivo da unidade ou pluralidade de crimes não parece poder ser a unidade ou pluralidade de acções em si mesmas consideradas, mas a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pela conduta de um mesmo agente e submetidos, num mesmo processo penal, à cognição do tribunal. Foi este o critério sempre vivamente sufragado por Eduardo Correia e, na sua esteira, pela jurisprudência portuguesa largamente dominante na vigência do nosso Código Penal actual».

           Ao tipo legal de crime referir-se-ia a fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de factos puníveis, mas tornando dispensável, ao menos em princípio, o apelo à categoria da culpa.       

Cavaleiro de Ferreira, face ao Código Penal de 1982 (“Lições de Direito Penal”, Editorial Verbo, 2.ª edição, 1987, a págs. 381/6), entende que «o n.º 1 do artigo 30º não atenta na unidade ou pluralidade de factos (condutas) para definir o concurso de crimes. Quer seja um facto ou vários factos que infringem plúrimas vezes normas incriminadoras, há concurso de crimes. Ou, dito singelamente, há concurso de crimes desde que o agente cometa mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos».

         «Com a definição legal, obnubila-se a distinção entre concurso real e concurso ideal, como desnecessária ou irrelevante», precisando que «o mesmo facto pode simultaneamente realizar um ou mais “tipos de crime”. Mas o “tipo de crime” realizado abarca o conteúdo global da norma incriminadora, isto é, o tipo legal, objectivo e subjectivo. Não basta produzir pelo modo previsto na mesma ou em várias disposições legais o evento jurídico de cada uma. É indispensável que relativamente a cada crime concorrente se verifique vontade culpável. É preciso que cada crime seja doloso ou culposo, e como tal punível».

 «A vontade culpável, como dolo ou como negligência, por um só acto de vontade ou por actos plúrimos da vontade, deve ter por objecto todos os crimes concorrentes, que serão dolosos ou culposos, consoante a vontade tomar quanto a cada um deles a forma de dolo ou negligência». 

            A indicação da lei hoje acolhe, segundo a doutrina, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se podem remeter às noções de concurso efectivo, homogéneo ou concurso efectivo heterogéneo. Há concurso heterogéneo quando o agente pratica vários actos (pluralidade de acções), ou quando através de uma mesma acção (unidade de acção) preenche autonomamente vários crimes, e concurso homogéneo quando se viola a mesma norma repetidas vezes ou várias vezes o mesmo crime.

            O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe concurso efectivo de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Poder-se-á dizer que a lei consagra o chamado critério teleológico ou normativo para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, que já vinha sendo perfilhado na vigência do Código Penal de 1886, na sequência da tese de Eduardo Correia em “Unidade e Pluralidade de Infracções”.

       Por aplicação do critério teleológico com esta formulação, o número de crimes determina-se, em princípio, pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos (concurso heterogéneo), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso homogéneo) – artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal

A jurisprudência, seguindo o critério teleológico, tem todavia, utilizado metodicamente as categorias formuladas pela doutrina germânica, que, trabalhando com base no § 52, 1 do Código Penal alemão, considera maioritariamente existir concurso ideal, com o correspondente tratamento penal, quando a mesma acção lese várias normas penais ou várias vezes a mesma norma penal; o concurso ideal caracterizado como unidade de facto com uma pluralidade de lesões típicas de bens jurídicos – homogéneo com pluralidade de realização do mesmo tipo por uma acção; e heterogéneo com a realização de vários tipos penais com a mesma acção (cf., v. g., R. Maurach, K. H. Gössel, H. Zipf, “Derecho Penal”, 2, 1995, p. 565, ss.; H. H. Jescheck (“Tratado de Derecho Penal, Parte General”, 5ª ed., p. 773, ss.).

                    «Segundo o critério distintivo do artigo 30.º, quanto à determinação do número de infracções, há que considerar que haverá pluralidade de delitos quando o agente, com a sua acção, preencher mais do que um tipo de ilícito ou o mesmo tipo por mais do que uma vez».

E, como consequência, haveria «concurso legal, aparente, impróprio ou impuro, também chamado de mero concurso de normas, em que as leis penais concorrem só na aparência e em que a aplicação de uma norma punitiva que prevalece, exclui a das demais, por força dos princípios da especialidade, da consunção, da subsidiariedade ou da impunibilidade do facto posterior; no fundo o que se pretende evitar é uma dupla incriminação - situações em que não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes, casos de concurso aparente e de crime continuado, ou ao concurso efectivo, verdadeiro, próprio ou puro (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções, que pode ser meramente ideal, se decorrente de uma só acção violadora de tipos diferentes, ou seja, quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes - unidade de acção - concurso ideal heterogéneo – ou do mesmo tipo por mais do que uma vez – concurso ideal homogéneo; ou real se resultante de uma pluralidade de acções, quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime» (cf., v. g., acórdão de 23-10-2002, processo n.º 2133/02, da 3.ª Secção, in CJSTJ, 2002, tomo 3, pág. 217).

       (ii) A matéria de concurso de crimes não é, porém, tratada no artigo 30.º de forma abrangente e esgotante, na medida em que as soluções indicadas na norma se limitam a estabelecer um critério mínimo de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, tratando-se, por isso, tão-só, de um ponto de partida estabelecido pelo legislador a partir do qual caberá à doutrina, e à jurisprudência em última análise, encontrar soluções adequadas, tendo em vista a multiplicidade de casos e situações sobre que tenha de apreciar e decidir.

Estabelecendo um critério, assumidamente distintivo, o artigo 30.º contém a indicação de um princípio geral de solução do problema do concurso de crimes, sendo também uma base de decisão, a partir da qual há que olhar outras dimensões da violação de bens jurídicos, do conteúdo global da norma incriminadora e do conceito de crime.

O critério teleológico, que a lei acolhe na definição da categoria de concurso de crimes como indicação ou princípio e solução - mas, naturalmente, porque não é função da lei, sem marcados ou definitivos compromissos dogmáticos - é fundado na consideração dos tipos legais violados através da (de uma) acção ou omissão ou da pluralidade de acções ou de omissões.

            Deste modo, no critério da lei, como já resultava das construções dogmáticas que influenciaram a escolha e a delimitação do critério, a realização dos tipos legais - materialmente a violação de bens jurídicos – constitui um instrumento metodológico adequado como princípio de determinação da unidade ou a pluralidade de crimes.

Numa perspectiva que tem sido aceite de modo quase unânime pela jurisprudência, decisiva da unidade ou da pluralidade de crimes, na integração e densificação do conteúdo categorial do artigo 30º, nº 1 do CP, a unidade ou pluralidade de crimes não é unidade ou pluralidade material de acção, mas unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados pelo mesmo agente.

Na lição de Eduardo Correia (“Direito Criminal”, II, ed. 1968, nº 35, II, a), p. 200) – de acordo com a concepção normativista do conceito geral de crime -, «decisivo da unidade ou pluralidade de crimes só pode ser o número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminaís» e existe, por conseguinte, uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e será o caso, apenas de uma única infracção”

«Pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico: a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes». (cf. Figueiredo Dias, op. cit. p. 986).

Em cada situação concreta, determinar se a unidade de acção pode integrar uma pluralidade de crimes (ou se, em outra perspectiva que não importa ao caso sub judice, uma pluralidade de acções não constitui uma pluralidade de crimes) parte da escolha (e aplicação) de critérios que constituem cânones de concretização ou de passagem entre os princípios, as construções dogmáticas sobre conceitos e o campo operativo com relevância jurídico-penal.

Nesta proposição metodológica, o primeiro critério da unidade ou pluralidade de crimes, e independentemente de algumas modulações doutrinais, reporta-se, pois, ao tipo legal violado – unidade ou pluralidade de violações.

No entanto, o tipo legal de crime apresenta-se não como uma entidade abstracta, mas, antes, como entidade concreta, portadora de um concreto juízo de censura, sendo o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados o tribunal e o intérprete (Eduardo Correia, in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, Colecção Teses, 1996, pág. 90). 

O que tem de contar para determinação da unidade ou pluralidade de crimes não são, por uma parte, acções externas, como tal indiferentes ao sentido do comportamento; nem, por outro lado, tipos legais de crime como entidades abstractas, mesmo que concretamente aplicáveis ao caso. O que se tem de considerar são sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global. Seja o facto punível como violação de bens jurídico-penais que integram um tipo legal, seja o critério da pluralidade de valores jurídicos negados com a formulação várias vezes de um concreto juízo de reprovação, não se trata de entidades abstractas, mas concretizadas em determinado contexto, situação objectiva, e numa específica e individualizada relação subjectiva com um agente concreto.

(iii) Segundo a concepção actual da doutrina do crime, para que exista infracção criminal a realização do tipo pressupõe que uma determinada conduta seja anti-jurídica, que se verifique o desvalor de acção como o desvalor de resultado, e também que possa ser reprovada ao agente, isto é, que seja culposa. O injusto consiste sempre numa união de todos estes elementos.

            Assim, a acção só é antijurídica quando seja obra de um determinado agente; a anti-juridicidade é sempre a desaprovação de um facto referido a um determinada autor. Por isso, injusto é o “injusto pessoal” da acção referido ao autor (Claus Roxin, “Derecho Penal, Parte General”, Tomo I, § 89, 90, p. 319 s.).

Ao lado do juízo que refere a actuação do agente a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se exige como pressuposto do crime e que se analisa ou compreende na censura de um certo facto à pessoa de um determinado agente.

A violação do bem jurídico através de uma acção ou omissão não pode ser puramente objectivada e separada de um concreto juízo de reprovação que tenha de ser formulado apenas uma ou várias vezes.

O todo, enquanto encerra a violação do mesmo bem jurídico, só se fragmenta na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo desse modo independência e individualidade.                 

(iv) É bem de ver, porém, que as construções da doutrina do concurso e da unidade ou pluralidade de infracções foram sendo elaboradas e densificadas em relação aos crimes dolosos.

A teoria geral, condensada nas Partes Gerais dos códigos penais, refere-se em princípio a crimes dolosos. Os crimes negligentes constituem verdadeiramente excepções, sendo construídos como prolongamento de um tipo já existente que é um tipo doloso - v. g., homicídio, ofensas à integridade física, sendo a  negligência punida apenas nos casos especialmente previstos na lei - artigo 13.º do Código Penal.

A moderna construção da doutrina do crime, compreendida na conjugação de todos os elementos objectivos e subjectivos – acção material mais ou menos vinculada; ilicitude; culpa – influenciará necessariamente, e não pode estar ausente como critério da definição e delimitação da unidade ou da pluralidade de crimes.

As normas penais, com efeito, são normas de valoração objectiva, mas também normas de determinação subjectiva (normas de dever). Na função de determinação (subjectiva) da norma, na violação que se verifique várias vezes, hão-de ser plúrimos os juízos concretos de censura - uma pluralidade de resoluções e de resoluções no sentido da vontade a comandar a actividade do agente.

A construção dos crimes dolosos e dos crimes negligentes é, pois, pela sua própria natureza, fundamentalmente diversa.

O tipo de crime negligente e a qualificação da conduta negligente incluem, como elemento base, o desvalor de acção, com a infracção de dever objectivo de cuidado, a que podem acrescer a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado. A violação do dever de cuidado, ou a contrariedade ao cuidado devido, constitui o desvalor de acção, discutindo-se na doutrina o lugar dogmático do resultado nos crimes negligentes de resultado: se pertence ainda ao tipo de crime negligente ou se constitui unicamente uma condição objectiva de punibilidade que se situa fora do tipo de injusto.

            Mas o elemento estrutural e estruturante do crime negligente (acção ou omissão negligente) é o dever objectivo de cuidado. O ilícito negligente supõe sempre a violação de um dever objectivo de cuidado; a acção negligente de resultado pressupõe uma violação de um dever objectivo de cuidado, valorada por um critério individual e geral, mas também a exigência de uma conexão de condições objectivas e subjectivas entre a violação de dever e o resultado.

            A norma de valoração e a norma de determinação nos tipos legais negligentes apresentam uma construção complexa; o crime negligente, embora teoreticamente uno, é um tipo de crime complexo. A complexidade da construção da negligência manifesta-se acentuadamente nos intrincados problemas dogmáticos que se colocam nos crimes negligentes de resultado.

            A complexidade é manifestada em particular precisamente na construção dos suportes teóricos respeitantes à unidade e pluralidade infracções nos crimes negligentes de resultado.

Nas diversas formulações doutrinais que têm procurado definir modelos dogmáticos na construção de soluções para o problema da unidade e pluralidade de infracções, o que está presente é sempre o crime doloso, que constitui e tem sido o modelo referencial. As formulações compreendem-se e assumem coerência intramodelar quando estejam presentes tipos de crimes dolosos.

            Mas o problema, como expressamente já advertia Eduardo Correia (in “A Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Almedina, Colecção Teses, 1996, p. 95, nota (1)), tem uma «cor própria» na negligência. E também H. H. Jescheck (“Tratado de Derecho Penal, Parte General”, 5ª ed., p. 768, ss) salienta que nos factos negligentes surgem algumas especialidades para a aceitação da unidade e pluralidade de infracções.

            Este é, porventura até mais do que outros, um acentuado nó problemático, sem consensos nem clareza na dogmática dos crimes negligentes. E, como Roxin salienta, não obstante a intensidade dos esforços científicos e a formação de conceitos, a teoria dos crimes negligentes, tanto na ordenação sistemática, como nos resultados práticos, não produziu tanto consenso e clareza como na dogmática do crime doloso.

            É que a infracção da norma de determinação analisa-se diferentemente no caso de negligência.

            Nos crimes cometidos por negligência a pluralidade dos juízos de censura em que se analisa a culpa há-de derivar também da pluralidade de resoluções tomadas e executadas que causaram as violações jurídico-criminais. Mesmo na negligência por violação do dever de cuidado a que o agente, «segundo as circunstâncias e os seus conhecimentos pessoais e capacidade era obrigado», a norma deixou de ter a força determinadora que queria alcançar, e tantas vezes quantas as resoluções tomadas ou que poderia esperar que o agente tomasse; nestas circunstâncias, outros tantos juízos de censura são possíveis, pois às diversas resoluções corresponde uma reiteração da ineficácia da vontade de determinação.

Na presença de vários resultados típicos, ou um mesmo resultado várias vezes, haverá que atender à circunstância de o agente estar novamente em situação de cumprir o dever de diligência no intervalo que medeia entre a produção dos diversos resultados.

            Na negligência, em que o elemento estrutural e estruturante (acção ou omissão negligente) é a violação do dever objectivo de cuidado, a pluralidade de processos resolutivos depende da forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, atendendo fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente, que revele externamente se o agente renovou ou não renovou os respectivos processos de motivação pela norma de determinação.

            A especificidade e as particularidades do crime negligente determinam, mas são também consequência da complexa construção da norma que define o tipo legal negligente. Faria Costa (“O Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 1992, p. 495 ss, nota (68)), salienta que a estrutura normativa complexa do tipo legal nas acções negligentes de resultado danoso «consubstancia duas realidades normativas»: a definição das condutas e resultados proibidos de realização não vinculada e a ideia da necessária violação do dever objectivo de cuidado.

            Mas, ao contrário dos casos de dolo em que o agente representa e quis o facto e o resultado, nas acções negligentes de resultado «o agente em caso algum quer o facto»; «o agente, quando viola o dever de cuidado, não pode controlar, em termos de cognoscibilidade, os resultados, porque, precisamente, desde logo, não os quis».

            As metódicas de imputação subjectiva nas acções dolosas e das acções negligentes são, pois, estruturalmente diversas.

            Por isso, não existe nem pode existir uma inteira relação de «comunidade dogmática» entre os crimes dolosos e os crimes negligentes, quando os segmentos estruturantes dos tipos são radicalmente diferentes. A (não) previsão e a (não) cognoscibilidade do resultado (rectius, da exacta configuração final de um resultado) que não foi previsto e muito menos foi representado como possível, que constitui um elemento estrutural e estruturante da concepção global do tipo de crime negligente – facto típico, ilícito, com violação do dever de cuidado e juízo de censura pela ausência da cuidado devido a que o agente, nas circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz – afasta a «comunidade» da formulação de princípios e dos elementos estruturantes das acções dolosas.

            O conteúdo interior da relação de «comunidade dogmática» com o crime doloso não pode chegar ao ponto de conjunção de um juízo unificador dos elementos precisamente estruturantes na negligência, que são essencialmente diversos – o juízo de censura é radicalmente diferente, de todos os modos possíveis de abordagem, no dolo e na negligência: o juízo de censura pela vontade do facto e do resultado, no dolo; e na negligência, a não previsão do resultado concreto, com o juízo de censura apenas a poder ser dirigido à violação de dever de cuidado, que, numa perspectiva natural-circunstancial, por acidente, veio a causar resultados não previstos e não queridos.

Lobo Moutinho (“Da unidade à pluralidade dos crimes no Direito Penal Português”, p. 524-525) entende, segundo se interpreta a sua posição, que «o excesso advindo da indeterminação não pode, por si só, trazer pluralidade ao facto criminoso», nem determinar a existência de «crimes independentes».

            Este posicionamento intra-dogmático entre a natureza do juízo de censura apenas em relação à violação do dever objectivo de cuidado, e a não previsibilidade do resultado, tem consequências determinantes na solução do problema da unidade e pluralidade de infracções nos crimes negligentes de resultado.

            A construção do crime negligente, vista a natureza estruturante do juízo de censura nos crimes negligentes de resultado, tem razoavelmente de evitar as situações de «simbolismo expiatório» e afastar o pensamento «arbitrariamente consequencial inerente ao versari in re illicita» (cf. Faria Costa, cit., p. 485-486).

            Relevante doutrina, no entanto, assume perspectiva diversa sobre o problema.

Figueiredo Dias (“Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, pág. 114, p. 1009-1010), em comentário ao artigo 137º, considera que «se através de uma mesma acção são mortas várias pessoas estar-se-á perante uma hipótese de concurso efectivo, sob a forma de concurso ideal, com absoluta indiferença por que a negligência tenha sido consciente ou inconsciente».

E em “Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007”, explicita que «relativamente a todos os tipos que protegem bens de carácter eminentemente pessoal, a pluralidade de vítimas - e, consequentemente, a pluralidade de resultados típicos  - deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos do ilícito e conduzir à existência de um concurso efectivo».

«Esta ideia da pluralidade de eventos típicos ligados a uma pluralidade de vítimas, se é importante em caso de concurso de crimes dolosos, assume particular relevo no concurso de crimes negligentes, trate-se de negligência consciente ou inconsciente, trate-se de concurso homogéneo ou heterogéneo. Uma doutrina muito difundida sustenta que nos crimes negligentes deve concluir-se pela unidade do facto, ainda que este contenha uma pluralidade de resultados (e de vítimas), sempre que aquele seja consequência de uma única acção: ou porque o resultado, nos crimes negligentes, não constituiria senão uma condição objectiva de punibilidade, ou porque, na impossibilidade de se recorrer aqui à unidade ou pluralidade do processo resolutivo (processo que, nos crimes negligentes, a ter existido, não pode relacionar-se tipicamente com o resultado), o agente seria, nestes casos, passível de um único juízo de culpa; ou – e essencialmente – porque à unidade de acção corresponderia a unidade da violação do dever objectivo de cuidado. Quanto a estes argumentos, já o nosso tratamento da negligência revela as razões de discordância. Nomeadamente, quanto ao último, parece esquecer que o dever objectivo de cuidado de que na negligência se trata não é um dever geral, mas o dever tipicamente referido a um certo evento (…). Esta circunstância deve conduzir à conclusão de que também em casos como os de que agora curamos são individualizáveis tantos sentidos de ilícito quantas as vítimas da lesão do dever objectivo de cuidado tipicamente corporizado em cada um dos resultados ou evento típicos, verificando-se por consequência, em princípio, um concurso efectivo».             

            (v) A jurisprudência nacional, especialmente do STJ, desde há mais de 60 anos, tem expressivamente considerado que nas acções negligentes de resultado a pluralidade de resultados não conduz a uma pluralidade crimes, em identidade e identificação dogmática da construção dos crimes dolosos de resultado com os crimes negligentes de resultado.

            Embora com modulações argumentativas, a jurisprudência tem entendido como uma unidade, e em consequência que constitui um só crime, a acção negligente típica com violação do dever objectivo de cuidado com resultados circunstanciais e acidentais múltiplos.

            Os fundamentos e a metodologia da argumentação e construção das decisões, com referência consistente ao precedente como factor de estabilidade da jurisprudência, têm sido, com uma ou outra especificidade, a natureza (e a consequente unidade) do juízo de censura nos crimes negligentes e a qualificação do concurso como concurso ideal.

            Para tanto, a jurisprudência maioritária tem aceite, no essencial, as formulações da doutrina germânica sobre a construção do concurso ideal, com o auxílio metodológico e argumentativo retirado da inexistência de uma pluralidade de resoluções na violação do dever de cuidado.

            No projecto de acórdão elaborado pelo primeiro relator constava uma exaustiva investigação e recensão da jurisprudência do STJ sobre o tema, anterior e posterior ao Código Penal de 1982, que se retoma nos seus termos.

No acórdão de 24-06-1970, processo n.º 33246, BMJ, n.º 198, pág. 91, relevante na exposição argumentativa desta posição, o STJ decidiu que «na questão da unidade e pluralidade de infracções, é geralmente chamado a debate, o elemento culpa, por ser o elemento psicológico entre o agente e o resultado, elo este que é característico das infracções dolosas e esbatidamente daquelas praticadas com culpa consciente, ou seja daquelas em que o agente previu o resultado, mas agiu confiado em que o mesmo se não verificaria». «No caso de culpa ou de negligência inconsciente, esse elo entre o agente e o resultado não existe, [no caso] em que o réu não agiu prevendo a morte das vítimas».

«Nos casos em que o agente não prevê os resultados típicos, por agir com culpa inconsciente, só é, em regra, possível formular um juízo de censura por cada comportamento negligente, pelo que a pluralidade de eventos típicos não tem virtualidade para desdobrar as infracções».

«Assim, o condutor que, agindo com negligência inconsciente, dá causa à morte de várias pessoas, pratica um só crime de homicídio involuntário, embora agravado pelo resultado».   

«Trata-se de um típico concurso ideal de crimes de homicídio involuntário, não podendo, como tal, ser punido como concurso real», havendo «um só crime a punir, não obstante do mesmo e único facto tenha resultado uma pluralidade de eventos lesivos, fora da intenção do seu autor».

Se o agente «não quis, nem previu, o resultado, dado que a sua acção foi involuntária, como é normal e própria dos acidentes de viação», «há, pois, um só crime de homicídio involuntário, embora plúrimos fossem os resultados, donde uma única pena a aplicar», sem exclusão [na medida concreta da pena] «do grave resultado da delituosa conduta […]».

No acórdão de 16-01-1985, processo n.º 37646, BMJ, n.º 343, pág. 184, o STJ considerou que existia uma acção de natureza contravencional, imputável ao transgressor a título de negligência. O agente apenas «quis a condução, naquele momento, indefinidamente perigosa. Portanto, cometeu um só acto, quer objectiva (transgressão apontada), quer subjectivamente (resolução correspectiva). “Semelhante unidade normativa não foi posteriormente subdividida pela pluralidade de eventos, já que estes apenas eram previsíveis. O agente, não os tendo representado, ao menos como possíveis, não deve ser acusado de falta de sensibilidade ética ante os direitos à vida, à integridade física e à propriedade».

E no acórdão de 28-05-1985, processo n.º 37788, BMJ, n.º 347, pág. 214, o STJ considerou «não convencer o argumento» que «a pluralidade de eventos letais conduz necessariamente a uma pluralidade de crimes, por os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora se reportarem às pessoas das vítimas», concluindo «que a ilicitude da conduta reportou-se a um único acto e tudo o mais não passou de meras consequências dele decorrentes».

Embora reconhecendo a complexidade e a dificuldade dogmática «no rigor dos princípios», o acórdão de 25-06-1986, processo n.º 38410, BMJ, n.º 358, pág. 283, manteve a «orientação tradicional» em situações de negligência inconsciente, «essencialmente porque», embora aceitando «o critério normativo para concluir se foram cometidas uma ou várias infracções – com o que o concurso não é afastado pelo facto de uma só conduta violar diversos preceitos -, a verdade é que a opção advirá […] dos concretos juízos de reprovação que se formulem, número esse a determinar pelas resoluções ou determinações de vontade do agente».

[As formulações próprias para os crimes dolosos] «(resoluções - vontade de realizar infracções), não se ajusta[m], em princípio, aos […] crimes involuntários».

No acórdão de 29-10-1997, processo n.º 571/97- 3.ª Secção, in CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 212, consignou-se que «na orientação dominante não é possível conceber a realização de vários crimes, como imporia o art. 30.º na sua pureza, porque não pode afirmar-se que existia da parte do agente, ao adoptar um comportamento negligente e inconsciente, uma pluralidade de resoluções, mas uma só, merecedora assim de um único juízo de reprovação de modo que, à imposição do art. 30.º para termos como verificados vários crimes tantas vezes quantos os tipos legais preenchidos, aparece-nos a contrariá-la a ideia de que só teria havido da parte do agente uma única resolução e daí um só delito e não vários».     

Em segmento argumentativo novo, acrescenta que «esta dificuldade só pode ser torneada quando se entenda que o artigo 30.º merece uma interpretação restritiva de molde a que se exclua do seu âmbito de previsão o concurso de infracções executadas por conduta negligente do agente».

Não haveria, assim, um concurso de infracções mas apenas um único crime, «valendo as restantes como agravação da pena da mais grave».

No acórdão de 17-12-1997 processo n.º 1195/97-3.ª, decidiu-se que «um só facto pode ofender vários interesses jurídicos ou repetidamente o mesmo interesse jurídico. Se a tais ofensas corresponderem outros tantos juízos de censura, verifica-se o concurso efectivo de crimes – real ou ideal. […], na definição de concurso efectivo de crimes, não basta o elemento da pluralidade de bens jurídicos violados; exige-se a pluralidade de juízos de censura. O número de juízos de censura é igual ao número de decisões de vontade do agente dos crimes. Uma só resolução, um só acto de vontade, é insusceptível de provocar vários juízos de censura […]».

No acórdão de 07-10-1998, processo n.º 131/98-3.ª, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 183, estando em causa «a morte de oito doentes insuficientes renais crónicos e a omissão por parte do arguido médico dos deveres de fiscalização da qualidade da água tratada para diálise, da qual era o único responsável», o STJ entendeu que «os factos provados [integravam] um caso de concurso ideal, pois os […] resultados mortais foram consequência necessária, directa e única da conduta negligente - omissão [pelo agente] dos deveres de fiscalização da qualidade da água tratada para diálise […]», sendo a censura dirigida a uma só conduta, e a omissão do dever referida apenas a essa conduta; «daí a punição ser só uma, embora haja tantos ofendidos quanto as vítimas». Referindo ser esta a jurisprudência do STJ «quando de uma conduta negligente resultam várias lesões de bens jurídicos», entendeu ser «um caso de negligência inconsciente», em que o arguido não chegou a representar a possibilidade de morte […] por não proceder com o cuidado a que estava obrigado», verificando-se um único crime de homicídio involuntário.

E de modo semelhante, na argumentação e na fundamentação, acórdão de 23-02-1945, processo n.º 25934, publicado no Boletim Oficial do Ministério da Justiça, ano V, n.º 37, pág. 84; acórdão de 04-07-1951, processo n.º 27892, BMJ n.º 26, pág. 113; acórdão de 30-07-1952, processo n.º 28267, BMJ n.º 32, pág. 166; acórdão de 18-02-1953, processo n.º 28423, BMJ n.º 35, pág. 129; acórdão de 28-04-1954, processo n.º 28861, BMJ n.º 42, pág. 105; acórdão de 18-05-1955, processo n.º 29208, BMJ n.º 49, pág. 159; acórdão de 05-03-1958, processo n.º 29824, BMJ n.º 75, pág. 431; acórdão de 26-11-1958, processo n.º 29887, BMJ n.º 81, pág. 313; acórdão de 10-12-1958, processo n.º 29953, BMJ n.º 82, pág. 325; acórdão de 17-12-1958, processo n.º 29956, BMJ n.º 82, pág. 340; acórdão de 07-01-1959, processo n.º 29942, BMJ n.º 83, pág. 309 Acórdão de 15-07-1959, processo n.º 30140, BMJ n.º 89, pág. 401; acórdão de 04-11-1959, processo n.º 30136, BMJ n.º 91, pág. 411; acórdão de 09-11-1960, processo n.º 30436, BMJ n.º 101, pág. 443; acórdão de 07-12-1960, processo n.º 30455, BMJ n.º 102, pág. 270; acórdão de 08-02-1961, processo n.º 30535, BMJ n.º 104, pág. 197; acórdão de 02-06-1965, processo n.º 31736, BMJ n.º 148, pág. 135; acórdão de 16-02-1966, processo n.º 31994, BMJ n.º 154, pág. 172; acórdão de 01-03-1967, processo n.º 32338, BMJ n.º 165, pág. 227; acórdão de 02-07-1975, processo n.º 34255, BMJ n.º 249, pág. 421; acórdão de 20-03-1971, processo n.º 33489, BMJ n.º 210, pág. 68; acórdão de 14-03-1979, processo n.º 35406, BMJ n.º 285, pág. 153; acórdão de 31-05-1989, processo n.º 40055, BMJ n.º 387, pág. 320; acórdão de 07-03-1990, processo n.º 40742, BMJ n.º 395, pág. 258; acórdão de 14-03-1990, processo n.º 40687, BMJ n.º 395, pág. 276 e CJ 1990, tomo 2, pág. 11; acórdão de 09-01-1991, processo n.º 41436, BMJ n.º 403, pág. 150; acórdão de 21-01-1998, processo n.º 1095/97, CJSTJ 1998, tomo 1, pág. 173; acórdão de 21-09-2005, processo n.º 2119/05-3.ª Secção, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 167, todos recenseados no projecto de acódão.

Em sentido diverso, alguma jurisprudência do STJ , mais recente, considera a existência de pluralidade de crimes nas acções típicas negligentes de resultado com resultados plurais.

O acórdão de 11-11-1998, processo n.º 891/98 - 3.ª Secção constitui, pode dizer-se, o case leading da jurisprudência que considera a existência de pluralidade de infracções nas acções negligentes de resultados múltiplos.

Considerou que «não há, em suma […], razão válida para se continuar a defender que, ainda que só nos casos de negligência inconsciente, o concurso ideal heterogéneo deve ser punido como um único crime. Logo, o que se impõe concluir, é que, qualquer tipo de concurso ideal – homogéneo ou heterogéneo, doloso ou negligente – se integra na previsão do art. 30.º, n.º 1, do actual Código Penal, o que significa que o agente que, com uma só acção, realiza diversos tipos legais ou realiza diversas vezes o mesmo tipo legal de crime, independentemente de agir com dolo ou com negligência (consciente ou inconsciente), comete tantos crimes quantos os tipos preenchidos ou o número de vezes que o mesmo tipo foi realizado», a punir nos termos do art. 77.º, do Código Penal.    

A posição que sustenta, nos casos de culpa inconsciente, que não se pode fragmentar o juízo de censura correspondente à única actividade do agente em tantos quantos os tipos legais realizados, por a cada um destes não corresponder uma resolução autónoma daquele, é, no entender da decisão, «equívoca, pois a pluralidade de infracções não tem de assentar necessariamente ou ser função da pluralidade de resoluções».

O acórdão justifica a qualificação de equívoco, que seria tributário de uma leitura menos atenta da lição de Eduardo Correia, “A Teoria do Concurso – Unidade e pluralidade de infracções” ed. de 1963, p. 120, nota (1).

De modo essencialmente idêntico, no acórdão de 08-07-1998, processo n.º 343, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 237, decidiu-se que existe pluralidade de juízos de censura «sempre que seja possível desdobrar o elemento da culpa constituído pelo elo psicológico entre o agente e o resultado. Elo que é característico dos crimes dolosos (com consistência variável consoante o dolo seja directo, necessário ou eventual), mas que, embora mais ténue, também existe nas infracções praticadas com culpa consciente (conf. art. 15.º a) do CP), ou seja, nas infracções em que o agente prevê o resultado mas actua confiado em que este não irá acontecer», concluindo que «em matéria de crimes involuntários praticados com negligência consciente e violadores de bens jurídicos eminentemente pessoais, o agente comete tantos crimes quantos os resultados que previu e, injustificadamente, confiou que se não produziriam».

Decidiram também neste sentido os acórdão de 25-11-1993, processo n.º 45169, da 2.ª Subsecção Criminal; acórdão de 16-11-1995, processo n.º 47437, da 2.ª Subsecção Criminal; acórdão de 02-06-1999, processo n.º 257/99 – 3.ª Secção; acórdão de 11-12-2002, processo n.º 2104/02 - 3.ª Secção, SASTJ , n.º 66, pág. 48; e acórdão de 22-11-2007, processo n.º 3638/05-5.ª Secção.

            (vi) Consideradas as posições doutrinais e jurisprudências sobre a questão, não se considera que estejam reunidos fundamentos que decisivamente façam apontar para a inversão das formulações largamente maioritárias na jurisprudência do Supremo Tribunal.

            As novas (outras) formulações doutrinais e a reconstrução dogmática são apenas isso mesmo, referenciais e tentativas, ainda não sedimentadas: como Roxin salientou, na negligência não se alcançaram consensos e certezas como na dogmática do crime doloso.

            Não obstante alguma reconfiguração nas teorias tradicionais sobre o concurso real e o concurso ideal, que tem sido fundamentada numa leitura do artigo 30º, nº 1 do Código Penal, a moderna construção da doutrina do crime com a concepção do tipo total, objectivo e subjectivo, pressupõe na pluralidade de crimes sempre a existência de vários juízos de censura para a pluralidade de resultados, seja nos crimes dolosos seja nos crimes negligentes de resultado.

            O preenchimento efectivo de um tipo de crime, na totalidade dos respectivos elementos constitutivos e integradores, pressupõe a acção típica, com o resultado nos crimes de resultado, a imputação ao agente e o juízo de censura; o juízo de censura não pode ser independente do resultado, e tem de ser também referido ao resultado e ao resultado concreto nos crimes de resultado.

            Esta formulação e esta construção, típicas e próprias dos crimes dolosos, não se estendem ou podem ser aplicadas, tal qual, aos crimes negligentes, em que o juízo de censura é unitário e apenas pode ser formulado em relação à concreta violação do dever objectivo de cuidado ou à omissão do cuidado devido em concreto pelo agente. Nos crimes negligentes de resultado plural não podem ser dirigidos vários juízos de censura relativamente à mesma e única acção negligente, que consista numa única violação do dever de cuidado. Não existindo possibilidade de formular uma pluralidade de juízos de censura, não está configurada uma pluralidade de crimes. De outro modo nos crimes negligentes produzir-se-ia um corte na construção da doutrina do crime, com tratamento dogmaticamente diferenciado em relação aos crimes dolosos, até com maiores exigências ao nível do juízo de censura nos crimes negligentes do que nos crimes dolosos.

            Entendimento diverso, que, no rigor, faria reverter a negligência e o dolo a uma (total) «comunidade dogmática», não estará, apesar da actualização funcional da negligência como categoria penal nas sociedades de risco e da exigência da ética do cuidado e do princípio da precaução, suficientemente densificado e com suporte consensual bastante para servir de fundamento a uma reconfiguração jurisprudencial.

            Aliás, o enunciado nuclear do fundamento da assimilação da doutrina sobre a unidade e pluralidade de infracções na negligência e nos crimes dolosos de resultado, que respeita muito à particularidade do juízo de censura, explicitado por Pedro Caeiro e Cláudia Santos (“Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, Fasc. 1.º, Jan-Mar (1996) págs. 133 a 142), dá por adquirido e como base da construção crítica que existe nas acções negligentes de resultado múltiplo «uma (incontestável) pluralidade de tipos preenchidos». E que, por isso, seria necessário «mostrar que a falta de representação dos factos só permite a formulação de um juízo de censura».

            No entanto, esta fórmula parece dar por adquirido o que se pretende ou deveria metodologicamente demonstrar. É que será precisamente pela unidade de acção constituída apenas pela unidade de violação do dever de cuidado que é objecto do juízo de censura, que se determina a unidade do juízo de censura; havendo unidade (um único juízo de censura) não poderá haver nas acções negligentes mais do que o preenchimento de um único tipo subjectivo e objectivo.

            À violação do dever de cuidado no exercício da condução automóvel está unicamente associada, pela cognoscibilidade geral decorrentes das regras da experiência e da vida, e da exigências decorrentes da ponderação do cuidado devido, a possibilidade de ocorrer a morte ou lesões de outra pessoa. Todavia, não podendo ser, e não sendo, em concreto, representados os resultados, o juízo de censura, dirigido unicamente à violação de dever de cuidado, não se projecta em relação a todos os resultados.

            (vii) Retomando o caso suj judice:

O recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio por negligência grosseira, p no artigo 137º, nº 2 do Código Penal.
   O acidente a que a recorrente deu causa, e que causou a morte de duas pessoas, ficou a dever-se, de acordo com a matéria de facto, «à ligeireza, temeridade, desatenção e imprudência postas pelo arguido no acto de conduzir, acto em que desprezou os mais elementares deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal».
«Pois bem sabia que, ao aproximar-se de entroncamento com sinalização luminosa, representava como altamente provável que tivesse de imobilizar o veículo que conduzia antes de alcançar os semáforos já com a luz vermelha, pelo que não desconhecia que deveria imprimir uma velocidade ao veículo que lhe permitisse deter o mesmo no espaço livre à sua frente».
«O que não respeitou, porquanto ultrapassou o sinal luminoso vermelho, mantendo a velocidade de que vinha animado, desadequada, por excesso, atentas as circunstâncias do local, velocidade não apurada em concreto, mas não inferior a 100kms/hora».
«Igualmente representou o arguido a eventualidade de, por efeito de se confrontar com o sinal luminoso vermelho na sua via, dever encontrar-se verde o semáforo que condicionava, à sua direita (atento o seu sentido de marcha) a entrada na EN 125 de veículos provenientes da EM da Patã de Baixo para a Patã de Cima».
Representando igualmente a eventualidade de vir a embater em veículos provenientes daquela EM».
«Agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, com total desrespeito e ponderação dos deveres de cuidado a que estava vinculado, não representando sequer, apesar disso, a possibilidade de da sua conduta resultar a morte ou lesão corporal de terceiros».
Há, assim, uma violação do dever de cuidado que era exigido ao recorrente na condução, respeitando as indicações dos sinais luminosos de prescrição, e esta violação do dever é objecto de um juízo de censura. Mas, como também está provado, não representou sequer a possibilidade da ocorrência da morte de terceiros.
O juízo de censura não pode, assim, ser plural, em relação aos concretos resultados verificados.
O recorrente só deve, pois, ser punido por um crime de homicídio por negligência, p. no artigo 137º, nº 2 do Código Penal.

10. III Questão - Aplicabilidade do regime penal para jovens - Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro – conclusões 52ª a 54ª.

O recorrente nasceu em 7 de Setembro de 1987, tendo vinte anos de idade em 5 de Novembro de 2007, data em que ocorreram os factos do processo.

     Nos termos do artigo 9.º do Código Penal «Aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial».

A legislação especial para que remete consta, ainda hoje, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, que institui o “Regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos”, que entrou em vigor simultaneamente com o Código Penal. Para efeitos de aplicação do regime, e como fixa o Código Penal, o artigo 1º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 401/82 determina que «É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos».

   Como se refere no preâmbulo, «trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção».

   «As medidas propostas não afastam a aplicação - como ultima ratio - da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos».

O direito penal dos jovens pode ser considerado como uma «categoria própria», adaptado a circunstâncias por vezes comuns no processo de desenvolvimento e da passagem à idade adulta, «envolvendo um ciclo de vida», referente a um período de «lactência social», de descompromisso com a relação escolar, familiar e profissional, com um «potencial de delinquência», em moldes efémeros, que se perspectiva e adequa os méis de reacção penal em função da prognose favorável sobre a capacidade de mutação e regressão em fase de mais avançada idade (cf. acórdão de 21-10-2009, processo n.º 872/05.2PEGDM.S1).

Pese embora a fórmula possa ser mais uma questão de linguagem que de substância, poder-se-á dizer que o regime penal aplicável a jovens adultos não constitui propriamente um regime especial, mas o regime penal geral relativo aos jovens delinquentes, sendo o regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária (cf., v. g., acórdãos de 27-10-2004, processo n.º 1409/04-3.ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 212 e de 28-06-2007, processo n.º 1906/07-5.ª).

De entre as medidas previstas no Regime penal de jovens, o artigo 4.º Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro dispõe que, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal (artigos 72.º e 73.º, após a versão dada ao Código Penal pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
            Pela natureza e fundamentos, a aplicação do regime penal dos jovens não constitui uma faculdade, mas antes um poder dever vinculado que o juiz deve e tem de usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, devendo considerar no juízo de prognose positiva imposto tanto a globalidade da actuação do jovem, como a sua situação pessoal e social, o que implica o conhecimento da sua personalidade, das suas condições pessoais, da conduta anterior e posterior ao crime; a aplicação aos jovens com idades entre os 16 e os 21 anos do regime previsto no artigo 4.º do DL n.º 401/82 depende do juízo sobre a existência de razões sérias para crer que de tal medida resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado e não apenas do juízo sobre a gravidade dos factos praticados e das fortes necessidades de prevenção geral que se fazem sentir em relação a determinados tipos de crime (acórdão de 29/4/2004, processo n.º 1679/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 177).
 Na base da aplicação do regime previsto no artigo 4.º do DL n.º 401/82, está a formulação pelo tribunal da condenação de um juízo de prognose favorável ao arguido jovem, no sentido de que a adaptação da pena irá concorrer decisivamente para a observância futura dos padrões de inserção social e de assunção e respeito por valores fundamentais; o juiz há-de concluir que o regime específico é vantajoso para a reinserção social, inteirando-se, por um juízo prognóstico favorável, que esse regime vai ser sendo aproveitado pelo jovem para se não confrontar com a lei. Na formulação daquele juízo, há-de concluir-se que a aplicação de um regime adaptado, pela atenuação como pela natureza e espécie de penas e da respectiva execução, é vantajosa para o jovem delinquente, no sentido de que com a sua aplicação não venha novamente a delinquir, atendendo-se, entre outras coisas, à imagem global dos factos praticados, designadamente ao seu processo executivo (acórdão de 22-09-04, processo n.º 1795/04-3.ª, in CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 159: cf. também, recenseados no projecto de acórdão, os acórdãos de 21-10-2004, processo n.º 3442/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 192; de 27-10-04, processo n.º 1409/04-3.ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 212); de 06-07-2005, processo n.º 2256/05-3.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3169/06 - 3ª; de 28-06-2007, processo n.º 1906/07 – 5.ª; de 28-06-2007, processo n.º 2284/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 231; de 07-11-2007, processo n.º 3214/07 – 3.ª; de 18-02-2009, processo n.º 3775/08-5.ª; de 23-09-2009, processo n.º 27/04.3GBTMC.S1-3.ª; de 17-12-2009, processo n.º 187/08.4GISNT.L1.S1-5.ª; de 04-02-2010, processo n.º 145/07.6 SLSB.L1.S1-5; de 15-04-2010, processo n.º 1423/08.2JDLSB.L1.S1-3.ª).

     A natureza e as finalidades do regime penal de jovens determinam que os pressupostos da respectiva aplicação sejam positivos e de afirmação, e não negativos ou de afastamento. Para recusar a aplicação não basta que se possam colocar reservas à capacidade de ressocialização do jovem. Quando posa estar em equação, a atenuação especial da pena p. no art. 4.º do DL 401/82 não se funda nem exige “uma diminuição acentuada da ilicitude e da culpa do agente”, nem, contra ela, poderá invocar-se “a gravidade do crime praticado e/ou a defesa da sociedade e/ou a prevenção da criminalidade”. Pois que, por um lado, a lei não exige – para que possa operar – a «demonstração de» (mas a simples «crença em») «sérias razões» de que «da atenuação resultem vantagens para a [sua] reinserção social» (cf. cc. do STJ de 27-02-03, Proc. n.º 149/03 - 5.ª). Por outro, «a atenuação especial da pena a favor do jovem delinquente não pressupõe, em relação ao seu comportamento futuro, um “bom prognóstico”, mas, simplesmente, um “sério” prognóstico de que dela possam resultar “vantagens” para uma (melhor) reinserção social do jovem condenado». «O que o art. 9.º do CP trouxe de novo aos chamados jovens adultos foi, além do mais, a imperativa atenuação especial (“deve o juiz atenuar”), mesmo que o princípio da culpa o não exija, quando “haja razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” (art. 4.º do DL 401/82)» (cf. Ac. do STJ de 29-01-04, Proc. n.º 3767/03 - 5.ª); e  de 28-06-2007, processo n.º 1906/07 – 5.ª).

Relativamente aos jovens condenados, a finalidade ressocializadora sobrepõe-se aos demais fins das penas, não podendo recusar-se a atenuação especial com fundamento na retribuição ou na prevenção geral, cujos interesse deverão ser secundarizados se for de concluir que a atenuação especial favorece a ressocialização do arguido; o que está verdadeiramente em causa no regime penal especial para jovens são razões de prevenção especial, ligadas à reinserção social do menor, e não razões de culpa ou mesmo de ilicitude (cf. acórdãos de 24-10-2007, processo n.º 3263/07 – 3; de 24-10-2007, processo n.º 3263/07 – 3.ª (,; de 14-11-2007, processo n.º 3859/07 – 3.ª; de 23-04-2008, processo n.º 821/08 – 3.ª; de 17-09-2009, processo n.º 169/07.3GCBNV.S1-5.ª).

Pode, pois, dizer-se que a decisão sobre a atenuação especial determinada por aplicação do regime dos jovens adultos constitui um poder-dever vinculado, de conhecimento oficioso, que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, e deve ser aplicada sempre que procedam sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

Para a aplicação da atenuação especial da pena do artigo 4.º do DL 401/82, basta que se apure que a atenuação favorece a ressocialização do agente, haja ou não diminuição de ilicitude ou de culpa. É um regime específico de atenuação especial, próprio do regime penal dos jovens, segundo o qual as finalidades de ressocialização prevalecem sobre os demais fins das penas. Por isso, sempre que se prove a vantagem da atenuação especial da pena para a ressocialização do jovem condenado, a atenuação não pode ser denegada com base em considerações puras de prevenção geral.

A aplicação do regime especial para jovens não depende de se terem provado circunstâncias susceptíveis de demonstrar que da sua aplicação resultam vantagens para a reinserção social do condenado, mas de o tribunal ter sérias razões para crer que da atenuação especial resultam vantagens para a reinserção do condenado.

      Para avaliar se da atenuação podem resultar vantagens para a reinserção social, torna-se, fundamentalmente, exigido reconstituir a personalidade e a ambiência ou modo de vida do agente.

A reinserção constitui, é certo, o resultado de estímulos externos, mas há-de depender, sobretudo, da atitude interna do agente. A ressocialização do arguido partindo, embora, da sua vontade em querer conformar-se pelo respeito dos valores ético-jurídico comunitários e em respeitar os bens jurídicos, que tem de manifestar-se em atitudes comportamentais que permitam a prognose a efectuar pelo juiz sobre o real interesse do agente no caminho da ressocialização.

O acórdão recorrido fundamentou a não aplicação do regime penal dos jovens, para além da gravidade das condutas, uma culpa acentuadíssima, uma ilicitude vincada e fortíssima.

Estes fundamentos, como se salientou, não são adequados para decidir sobre a aplicação, ou a aplicabilidade, do regime penal de jovens.
O fundamento não está no facto ou na culpa, mas no prognóstico favorável («sérias razões para crer») sobre a vantagem da atenuação para a reinserção social do jovem condenado.
A fundamentação do regime penal de jovens, e os pressupostos da respectiva aplicação, estão, porém, construídos muito em função dos conteúdos valorativos que são próprios dos crimes dolosos.
Os crimes por negligência colocam, a este respeito e quanto às questões relativas à determinação da pena (mais na espécie que, em rigor, na medida) especiais problemas e dificuldades. As construções teoréticas subjacentes às políticas criminais definidas para o tratamento penal dos jovens, relativamente a factos em que se projectam características da personalidade manifestadas em tempo marcado e contingentes dos modelos da passagem para a idade adulta, não se adequam, em boa medida, ao tratamento das acções negligentes e às respectivas consequências, especialmente quando a consciência da assunção dos deveres de cuidado em circunstâncias da vida quotidiana, e a interiorização da prevenção dos riscos nas modernas sociedades de risco – no rigor, a ética do cuidado – não e projectam diferentemente, nem emergem diferentemente, em adultos e jovens adultos.
A necessária interiorização dos deveres de cuidado em múltiplos comportamentos relacionais e de interacção necessária no anonimato da indiferenciação com os outros em vários domínios, mas particularmente na circulação rodoviária e na condução automóvel, tem idêntico relevo, sem diferenciações, para os agentes que, mesmo sendo jovens adultos, têm condições para aceder, como se fossem adultos, ao uso de meios comuns da vida quotidiana; não existirão, aqui, os fundamentos que sustentam teleologicamente o regime penal dos jovens.
A conjugação e a ponderação dos fins das penas, e do tratamento diferenciado conforme os fins prevalecentes no dolo e nos crimes negligentes, retira espaço de aplicabilidade ao regime penal dos jovens comandado por exclusivas finalidades de prevenção especial.

Por isso, a aplicação do regime especial encontrará dificuldades insuperáveis nos casos em que não haja assunção da prática dos factos, sem possibilidade de o julgador substanciar o convencimento quanto ao comprometimento determinado do agente em assumir e interiorizar os valores e a dimensão ética das exigências impostos pelo respeito relacional dos deveres de cuidado.

Numa dada perspectiva, o acórdão recorrido move-se por caminho semelhante quando refere que «a personalidade do arguido, o comportamento anterior e posterior, verbalizando um arrependimento que não mostra consistência», uma atitude «assumida de alheamento, de desprendimento relativamente aos factos, aos familiares dos falecidos apesar da aceitação de parte dos factos», numa posição «de que não se lembra, não sabe, se desorientou», são «circunstâncias que, num outro contexto lhe podiam ser até favoráveis», mas «neste contexto particular concorrem fortemente para a convicção de que o arguido passou pelos factos com uma indiferença desusada e injustificada».  

         Nestas condições, não ficaram provados factos demonstrativos da interiorização do desvalor da conduta, não sendo possível formular um juízo sobre as vantagens para a reinserção social do recorrente, especialmente na perspectiva essencial de interiorização das exigências de cuidado, como pressuposto da aplicação do regime penal específico dos jovens.

  Nas circunstâncias do caso, as exigências são mais de prevenção geral que de prevenção especial.

       Nestes termos, não é caso de aplicar o disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

IV Questão - Medida das penas parcelares

O recorrente pretende a redução das penas aplicadas, com a fixação de uma pena inferior a cinco anos de prisão, que permita a sua suspensão – conclusões 6.ª a 32.ª, 36ª a 51.ª, 55.ª a 58.ª.

O crime de homicídio negligente, p. no 137.º, n.º 2, do Código Penal, é punível com pena de prisão de um mês até cinco anos.
Ao crime de omissão de auxílio, nos termos conjugados dos artigos e 200.º, n.º 2, do Código Penal, cabe pena de prisão de um mês até dois anos ou multa de 10 dias até 240 dias.
O crime de condução ilegal, p. p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03-01, é punido com pena de prisão de um mês até dois anos, ou multa de 10 até 240 dias.

Dispõe o artigo 40º do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - nº 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - nº 2.

   Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz.

   A norma do artigo 40º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.

   Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo.

            O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do artigo 40º determina, por isso, que os critérios do artigo 71º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

            O modelo de prevenção  -  porque de protecção de bens jurídicos  -  acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

            O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.).

A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, pois, nos termos do artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.

Nestes limites funcionam as circunstâncias referidas no artigo 71º, nº 2 do Código Penal, que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

- A intensidade do dolo ou da negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

No caso do crime de omissão de auxílio, p. no artigo 200º do Código Penal, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a vida, a integridade física e a liberdade (incluindo a liberdade pessoal, a liberdade sexual e a autodeterminação sexual) de outra pessoa. A solidariedade justifica, em «caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum», a imposição de um dever geral de auxílio, mesmo relativamente a todos aqueles que não estejam vinculados por um particular dever de garante (artigo 10. 2), salvo situações de não exigibilidade enunciadas no nº 3 do artigo 200º.

Com a incriminação da condução ilegal visa-se a segurança da circulação rodoviária, com a exigência de que quem circula nas estradas esteja devidamente habilitado a fazê-lo, de modo certificado pelas entidades competentes, detendo os condutores conhecimento das regras de condução, de modo a que possa funcionar o princípio da confiança e que cada um possa contar com a condução habilitada do outro.

No caso, para além de duas mortes resultaram lesões físicas num passageiro do veículo, que permanecendo gravemente ferido no interior do veículo até ser desencarcerado, necessitaria do auxílio imediato de quem pudesse prestá-lo na medida dessa possibilidade. E o recorrente estava particularmente obrigado nos termos do nº 2 do artigo 200º do Código Penal.

À época dos factos, o recorrente tinha 20 anos, contando actualmente 23.

            Na determinação da pena nos crimes negligentes de homicídio cometidos no exercício da condução automóvel é possível que se verifique a coexistência de valores confituantes, que é natural numa matéria em que se cruzam, por vezes em difícil acomodação, as mais complexas questões teóricas sobre os fins das penas e a necessária coordenação, proporcionada e justa, entre as finalidades que estão exigência conflitual de concordância prática.

            Na base, a consciência de que os crimes negligentes cometidos no exercício da condução, podendo ter resultados devastadores para bens jurídicos essenciais – desde logo, a vida -  têm como característica mais imediata «a elevada probabilidade» de serem cometidos «por cidadãos com adequada inserção social, com o que isso implica no plano da prevenção especial», e de que a determinação da pena é, por vezes, «ainda manifestamente tributária duma ideia de prevenção geral negativa (ou de intimidação), actualmente em crise declarada» (cf. Mário Serrano, “Medida da pena nos homicídios negligentes estradais”, Sub Judice, nº 17, Janeiro/Março, 2000, p. 43, ss.).

            Numa análise sistemática da jurisprudência na matéria, Lourenço Martins (“Da Media da Pena – Finalidades – Escolha”, Coimbra Editora, 2001, p. 341-356, des. 352) considera «paradigmático» das posições do STJ o acórdão em que, assumindo «a corrente jurisprudencial do Supremo», se afirma que «em caso de homicídio cometido com negligência grosseira, não deve a pena de prisão, em principio, ser suspensa na sua execução, pelas fortes exigências ias de prevenção geral e especial, todavia, logo acrescenta não se dever excluir tal possibilidade de suspensão, tudo dependendo de as circunstancias particulares do caso concreto fundamentarem de forma suficientemente segura um juízo de prognose positivo sobre o comportamento futuro do arguido» - acórdão de 21 de Março de 1990, proc. nº 40639.

            Nesta linha, «os tribunais vem fazendo (progressivamente) um apuramento cada vez mais minucioso do factualismo dos “acidentes” e suas consequências, densificando ao mesmo tempo a recolha de elementos sobre a personalidade do agente, as condições da sua vida, o seu comportamento, anterior e posterior ao crime. A partir daí, atentos a gravidade do delito, medida pela ilicitude e pelo grau de culpa, embora por regra chamando a terreiro a teoria da prevenção geral, concluem por aplicar as sanções de acordo não apenas com essa finalidade mas fazendo intervir todas as tradicionalmente referidas no confronto com a especificidade do caso concreto, nomeadamente o comportamento do arguido e o seu impacto social, dando relevância principal a uma ou outra consoante as circunstâncias, na tentativa do equilíbrio e sensatez perante componentes contraditórias».

O Supremo Tribunal, com uma fundamentação teórica em que coloca o acento na prevenção geral, atende à especificidade de cada caso concreto, ponderando casuisticamente o problema. 

Sobre a determinação da medida das penas parcelares pronunciou-se o acórdão recorrido nos termos seguintes:

«Em face da repetição da prática do crime em análise, demonstrada pelos elevados índices de sinistralidade estradal, com especial acuidade nesta zona do País e, em concreto na EN 125, são de considerar elevadas as exigências de prevenção geral. E o mesmo se diga do crime de condução ilegal, atento o facto ser com alguma frequência este fenómeno andar associado à prática de outro tipo de crimes, designadamente contra a vida ou/e integridade física de terceiros, e bem assim de o crime de omissão de auxílio acabar por revelar um sentimento de irresponsabilidade mais ou menos generalizado, de alheamento dos valores sociais fundamentais de humanidade e solidariedade, que põe em crise as mais básicas instituições da vida em cidadania, resultando num individualismo crescente e absolutamente condenável.
Por outro lado, não podemos descurar as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir, na medida em que, pese embora o arguido não tenha passado criminal neste tipo de crime documentado pelas autoridades, o facto é que a ligeireza demonstrada em todo este percurso deixa antever uma inabilidade pessoal do arguido para se conformar com as normas gerais de cuidado, análise e ponderação sobre as circunstâncias da vida, sem que demonstre capacidade de avaliação da preponderância de determinados valores sociais antes daqueles que individualmente julga ter.
Assim, pelo exposto, com vista à promoção de uma consciência ética social, sendo inequívoca a necessidade de lhes aplicar em todos estes crimes penas de prisão efectiva – uma vez que em face da gravidade dos factos e das suas consequências mediatas e imediatas não revelou o arguido uma personalidade capaz de demonstrar estarem reunidas as condições para que a simples condenação em multa (no que seja possível) ou da ameaça de pena de prisão (caso se ponderasse a eventual suspensão da pena única final) consiga satisfazer as finalidades da punição, há que determinar o quantum das mesmas.
Atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, e à prevenção geral a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é considerado pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida moldura de prevenção, e que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
Na determinação da medida concreta da pena, há que ponderar factores:
A ilicitude dos factos, que se revela acentuadíssima atento o já exposto, tendo em conta que o arguido colheu, com o seu comportamento, duas vidas humanas, perdas que são já irreparáveis e que deixam o desamparo e ao sentimentos das familiares desertos de expectativas e dos afectos, e que deixam a sociedade diminuída de dois valores humanos numa idade ainda de muitos projectos e anseios, que deixam a sociedade ferida pelo sentimento de abandono, de falta de solidariedade naquilo que tem de ser-lhe mais caro, como a inter-ajuda de todos com vista ao bem comum.
As consequências dos ilícitos assumem especial e acentuada gravidade, que dispensa mesmo qualquer adjectivação, na medida em que o arguido causa, ou contribui decisivamente, para que se cause um prejuízo humano elevadíssimo, relativamente a qualquer dos crimes em análise, o revelar de um sentimento de desrespeito firme pelas regras, sejam das autoridades, sejam de segurança comum e alheia.
O grau da culpa que, mercê disso mesmo, se mostra bastante acentuado, tendo em conta que o arguido agiu com dolo directo quanto a dois dos crimes e quanto aos homicídios com negligência grosseira, a forma mais grave de violação de deveres elementares de cuidado.
As condições de vida do arguido – familiarmente e profissionalmente integrado, revelando embora antecedentes criminais mas por factos de natureza diversa (que não mencionou para efeitos do respectivo relatório social.
A personalidade do arguido, o comportamento anterior e posterior, verbalizando ele um arrependimento que não mostra consistência em face da postura assumida de alheamento, de desprendimento relativamente aos factos, aos familiares dos falecidos, pugnando em Tribunal, apesar da aceitação de parte dos factos, por uma postura de que não se lembra, não sabe, se desorientou. Todas estas circunstâncias que, num outro contexto lhe podiam ser até favoráveis, neste contexto particular concorrem fortemente para a convicção de que o arguido passou pelos factos com uma indiferença desusada e injustificada».
No essencial, neste aspecto, as considerações e a fundamentação do acórdão recorrido não merecem reparo.

            Com efeito, no caso sub specie, as circunstâncias específicas do exercício da condução revelam um acentuado grau de violação do dever de cuidado; as razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração -  que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação da validade da norma jurídica violada - são muito elevadas, justificando uma pena adequada a assegurar a confiança efectiva da comunidade na validade das normas jurídicas.

Nestes termos, pelo crime de homicídio com negligência grosseira, deve ser aplicada a pena de dois anos e nove meses de prisão.

Não obstante a sua diversa natureza de crime doloso, o crime de omissão de auxílio, nas circunstâncias do caso, está inteiramente ligado ao acidente; o juízo é autónomo por natureza, mas a relação de causa e efeito tem de ser devidamente ponderada na medida concreta da pena. Neste condicionalismo, atendendo ao grau de ilicitude, e ainda permitida pela medida da culpa, considera-se adequada a pena de um ano de prisão.

O crime de condução ilegal, que não é causal, mas meramente circunstancial, ganha, por isso, autonomia em relação aos restantes, mas não pode ser desconsiderado que, como está provado, «o arguido que conduzia normalmente a viatura, fazendo aquele trajecto diariamente para ir e vir do trabalho em Albufeira», devendo, por isso, a pena que ser determinada de modo diverso da infracção observada em circunstâncias normais de fiscalização de trânsito.

Assim, considera-se adequada a pena de nove meses de prisão.

11. V Questão – Medida da pena única                                                                  

Nas conclusões 7.ª, 59.ª a 63.ª, defende o recorrente a fixação da pena única em medida inferior.

A alteração das penas parcelares a que se procedeu terá naturais reflexos na pena conjunta.

Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que «Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Assim, nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, o agente do concurso de crimes é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

A pena única do concurso, formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.

Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena do concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente.

No caso concreto, a moldura de punição das penas de prisão será de três a quatro anos de prisão, a que acresce a pena de multa pelo crime de condução ilegal.

Há que valorar o ilícito global, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relação com a personalidade do recorrente. 

Não obstante a diversidade de actuações, não é de considerar o ilícito global agora julgado como resultado de uma tendência criminosa, reportando-se o caso a situação de pluriocasionalidade, com diversas formas de culpa, e com imediata sequência temporal - acidente de que resultaram duas mortes e ainda lesões num terceiro e a atitude subsequente de deixar entregues à sua sorte os sinistrados.

A ilicitude dos factos é muito elevada, pois as condutas afectaram bens de carácter pessoal.

Neste contexto, valorando o ilícito global e ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a personalidade do arguido, com reflexos sociais negativos na omissão de auxílio, entende-se ser de fixar a pena conjunta em três anos de prisão e em 120 dias de multa a 10 (dez) € por dia.

12. VI Questão - Suspensão da execução da pena

O artigo 50º, nº 1 do Código Penal determina que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo a personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

            A pena de substituição de suspensão da execução constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores socialmente mais relevantes.

            A ameaça da prisão, especialmente em indivíduos sem anterior contacto com a justiça criminal, contém por si mesma virtualidades para assegurar a realização das finalidades da punição, nomeadamente a finalidade de prevenção especial e a socialização, sem sujeição ao regime, estigmatizante e muitas vezes de êxito problemático, da prisão.

            A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

            A filosofia e as razões de política criminal que estão na base do instituto, radicam essencialmente no objectivo de afastamento das penas de prisão efectiva de curta e média duração, garantindo ainda, quer um conteúdo bastante aos fundamentos de ressocialização, quer exigências mínimas de prevenção geral e de defesa do ordenamento jurídico: é central no instituto o valor da socialização em liberdade

            Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.

            Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos formais e materiais.

            A aplicação das penas nos crimes negligentes coloca questões de fronteira nos pressupostos de aplicação das penas de substituição, nomeadamente a suspensão da execução da pena de prisão. A jurisprudência dos tribunais superiores e especialmente do Supremo Tribunal tem construído na matéria alguns modelos referenciais, verdadeiras linhas-guia, que constituem precedentes orientadores para a realização da justiça, respeitando a proporcionalidade comparativa e, consequentemente, a igualdade.

A concordância prática de finalidades das penas, entre a prevenção geral e a necessidade ou desnecessidade de prevenção especial, tem, aqui, um espaço problemático de afirmação. Como se salientou, importa a consideração cada vez mais minuciosa das circunstância do acidentes e das suas consequências, densificando ao mesmo tempo a recolha de elementos sobre a personalidade do agente, as condições da sua vida, o seu comportamento, anterior e posterior ao crime; com uma fundamentação teórica em que coloca o acento na prevenção geral, a jurisprudência do Supremo Tribunal atende à especificidade de cada caso concreto, ponderando casuisticamente o problema. 

E, assim, acentuando as exigências de prevenção geral, tem sido decidido que em relação a acidentes de viação mortais ocorridos por culpa grave e exclusiva do condutor, a pena de prisão aplicada não deve ser substituída por multa, e só muito excepcionalmente poderá ser suspensa a sua execução» (ac. de 26-02-9, proc. nº 045169; predominantemente convergem fortes razões de prevenção no sentido de negar a suspensão da execução da pena em crimes de homicídio negligente, nomeadamente no âmbito rodoviário, com culpa grave e exclusiva do agente (ac. STJ, de 05-02-1997, BMJ nº 464. p. 176); imperam fortes razões de prevenção geral para não decretar a suspensão quando é reduzido o valor das atenuantes provadas, sendo consistente a corrente jurisprudencial no sentido de que as penas de prisão correspondentes a crimes de homicídio por negligência, com culpa exclusiva e grave, cometidos com negligência grosseira, não devem, em principio, ser suspensas na sua execução (ac. STJ, de 20-02-2002; proc. 2104/02).

Só não estará excluída a possibilidade de suspensão quando as circunstâncias especiais do caso concreto fundamentem de forma suficientemente segura um juízo de prognose positiva no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão se mostram como muito provavelmente adequadas a realizarem de forma bastante as concretas exigências de prevenção especial, e desde que assegurada a indispensável satisfação das necessidades concretas de prevenção geral, muito elevadas em grande número de casos face a uma situação de sinistralidade rodoviária, com frequente causa em condutas negligentes graves.

No caso, como revelam os factos, as consequências – muito graves – da violação, em grau elevado, de dever de cuidado pelo recorrente, exclusivo responsável, e as condições pessoais e de atitude como que enfrentou os factos – que a decisão recorrida salienta – as exigências de prevenção especial são ainda relevantes, e as finalidades de prevenção geral, muito elevadas em condutas negligentes graves de que resultam mortes, impõem-se, não sendo para este efeito suficiente a simples ameaça da execução.

Não é, pois, caso de aplicação do artigo 50º, nº 1 do Código Penal.

13. Nestes termos, na procedência parcial do recurso, o recorrente AA:

(i) é condenado por um crime de homicídio por negligência, p. e p. no artigo 137º, nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e nove meses de prisão;

(ii) é condenado por um crime de omissão de auxílio, p. e p. no artigo 200º, nº 1 e 2 do Código Penal, na pena de um ano de prisão;

(iii) é condenado por um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, com referência ao n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de nove meses de prisão;

(iv) Em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nº 1 do Código Penal, vai condenado na pena única de três anos de prisão.              

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Julho de 2011

           
Henriques Gaspar (relator)
Raul Borges (com voto de vencido quanto à qualificação jurídico-criminal do homicídio negligente, pelas razões que sumariamente a seguir se explicitam, e na parte respeitante às penas, propondo 2 anos e 8 meses de prisão para cada um dos crimes de homicídio negligente, de 1 ano de prisão pelo crime de omissão de auxílio e de 10 meses de prisão pelo crime de condução ilegal e na pena conjunta de 4 anos de prisão.
Na distinção entre unidade e pluralidade de infracções, o art. 30.º do CP 82 elege o critério teleológico.
No que respeita à qualificação jurídica dos crimes negligentes, em sentido contrário ao tradicional na jurisprudência, entende-se que, existindo resultados múltiplos, e estando em causa bens jurídicos eminentemente pessoais, haverá tantos crimes quantos os resultados verificados, quanto os ofendidos, a punir pelas regras do concurso de infracções – concurso ideal equiparado ao concurso real – operando a punição à luz dos arts. 30.º e 77.º do CP, quer se esteja perante a lesão plúrima do mesmo preceito legal, quer a violação se dirija a diversos preceitos incriminadores.
À posição tradicional, que nos casos de negligência esgota numa única infracção o resultado plúrimo da conduta do agente, acolhendo como categoria agravante a atender na graduação da pena os demais resultados emergentes dessa actuação, assinala-se a dificuldade de eleição do bem jurídico efectivamente protegido, num quadro em que está presente mais de que uma violação dum bem jurídico e quando na realidade todos os eventos típicos assume relevância ímpar, tratando-se de bens pessoais.
No caso específico dos acidentes de viação, a consideração da unicidade do evento, contraria a concreta existência de um dano social de maior amplitude provocado pelo condutor, não se atendendo ao desvalor de resultado.
A vida, a honra, a integridade física e a liberdade são bens jurídicos tutelados pelo legislador, não como valores comuns, mas como valores encarnados em cada uma das individualidades e personalidades dos seus portadores.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, refletindo o art. 24.º da CRP, que confere sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de Direito.
Na actuação negligente, a censura coloca-se na produção de resultado, incidindo sobre a capacidade ou possibilidade do agente de prever correctamente a realização do tipo legal de crime e de não ter querido preparar-se para representar tais resultados ou não os querer representar correctamente. De facto, o que se pune na negligência não é a vontade do resultado que, por definição falta, mas sim o resultado ou a lesão do bem ou bens jurídicos violados com a conduta negligente. O mesmo é dizer que, actuando com negligência, se pune o agente por não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para, perante certa conduta perigosa, os representar justamente (negligência consciente) ou mesmo para os representar (negligência inconsciente.
No caso em apreço, em causa estão, assim, dois crimes de homicídio negligente, crimes de resultado, em que há uma protecção directa do bem jurídico vida), entendendo-se que o arguido devia ser condenado nessa conformidade.
Pereira Madeira (com voto de desempate).