Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1503
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: DEVER DE VIGILÂNCIA
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200607110015036
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 - É de meios, não de resultado, a obrigação a que o cirurgião se vincula perante a doente com quem contrata a realização duma cirurgia à glândula tiróide (tiroidectomia) em determinado hospital.
2 - Por se reconhecer que existe então um dever de vigilância no período pós- operatório, deve entender-se que a obrigação complexa a que o cirurgião e, reflexamente, o hospital ficaram vinculados perdura para além do momento da conclusão da cirurgia.
3 - O médico cirurgião e o hospital não respondem civilmente se os danos morais cuja reparação a doente exige se traduzirem na angústia originada por uma complicação pós-operatória para cujo surgimento não concorreu qualquer erro cometido no decurso da operação.
4 - Ainda que a angústia da doente se tenha agravado por se sentir desacompanhada, subsiste a desresponsabilização do cirurgião e do hospital se antes de abandonar as instalações deste o cirurgião se tiver assegurado de que a doente, despertada da anestesia, respondeu com lógica, clareza e normalidade fonética a perguntas que lhe foram dirigidas para verificar isso e a correcção do acto cirúrgico, e se, apesar da ausência do cirurgião, lhe tiver sido facultada no período pós-operatório a assistência adequada às circunstâncias.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Síntese dos termos essenciais da causa e da revista

"AA" propôs no Tribunal do Porto uma acção ordinária contra BB, médico, e a Irmandade da Nossa Senhora do Terço e da Caridade, pedindo a condenação de cada um dos réus na quantia de 15.000,00 € por danos não patrimoniais: o primeiro réu pelo facto de ter faltado ao cumprimento do dever contratual de proporcionar à autora uma assistência médica eficaz e diligente, observando a legis artis e assistindo-a no período pós operatório, quer psicológica, quer clinicamente; a segunda ré por não lhe ter proporcionado, de igual modo, um serviço eficaz dentro das suas instalações hospitalares, não contactando o primeiro réu logo que tal se revelou necessário, para que ali comparecesse para medicar a autora ou reoperá-la, e ainda por nem sequer ter proporcionado à autora uma ambulância para o seu transporte ao Hospital de Santo António.
Os réus contestaram, separadamente, recusando qualquer espécie de responsabilidade, e alegando, em suma, que cumpriram com os respectivos deveres, o primeiro réu enquanto cirurgião que operou a autora e a segunda ré enquanto estabelecimento hospitalar em que a intervenção cirúrgica teve lugar.

Sob a invocação de para ela ter transferido a sua responsabilidade civil perante terceiros, a segunda ré requereu e viu admitida a intervenção principal da Empresa-A.
Realizado o julgamento foi proferida sentença, confirmada pela Relação, julgando a acção improcedente e absolvendo os réus do pedido.
Apelou a autora, mas sem êxito, pois a Relação confirmou a decisão da 1ª instância.
Mantendo-se inconformada, a autora pede revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª - Era exigível ao recorrido, Professor BB, que estivesse disponível para acompanhar a doente - aqui Apelante - no período pós-operatório;
2ª - Durante todo o longo período que medeou entre a sua saída do Hospital e a «alta», com transferência para o HGSA - não menos de 5,5 horas - a recorrente esteve desacompanhada do recorrido, Professor BB, que ali não compareceu, o que lhe agravou a angústia que sentia pelas dificuldades de respiração crescentes;
3ª - E esteve, mesmo, desacompanhada de assistência médica adequada, do ponto em que o médico de serviço à Ordem nem sequer sabia que ela, recorrente, havia sido operada e, muito menos, a quê;
4ª - A falta do médico, Professor BB, foi determinante para o gerar das angústias e medo sofridos pela Recorrente e
5ª - Essa falta de comparência e de assistência não foi determinada por qualquer razão excludente da culpa do Professor BB;
6ª - Ora, entre os deveres contratuais do Professor BB estava, seguramente, o de disponibilizar-se para, em tempo útil, assistir à sua doente, no pós-operatório, aliviando-lhe a tensão psicológica;
7ª - Notório, como é, que a palavra de conforto e de confiança do médico assistente - que a recorrente conhecia e em quem confiava - seria, porventura, suficiente para debelar ou atenuar o medo e a angústia provocados pelas dificuldades de respiração crescentes, padecidos pela mesma recorrente;
8ª - Por outro lado, a Ordem incumpriu - porque não cumpriu in integris - os termos do contrato com a Recorrente, já que
9ª - Não conseguiu demonstrar a razão pela qual não logrou chamar o médico operador à presença da recorrente;
10ª - Não prodigalizou à recorrente assistência médica adequada - o Dr. CC desconhecia mesmo o motivo do internamento da recorrente - o qual só foi dele conhecido (através do marido da paciente) pouco antes de a doente ser transferida para o HGSA;
11ª - E não proporcionou à recorrente um meio adequado ao transporte da recorrente até ao Hospital - uma ambulância própria com meios de socorro e com acompanhamento médico ou de enfermeiro - forçando a recorrente a socorrer-se de um vulgaríssimo táxi onde viajou na companhia de seu marido;
12ª - A angústia, medo e incómodos sofridos pela recorrente merecem a tutela do direito, pela sua gravidade e, como tal, merecem ser indemnizados;
13ª - Os montantes peticionados na inicial - 15.000 € por cada recorrido - adequam-se à gravidade dos factos demonstrados e à situação económica dos obrigados;
14ª - Acham-se demonstrados os danos, a sua relevância, e a sua relação causal e adequada relativamente aos actos e omissões em que se traduziu o incumprimento contratual por banda de cada um dos recorridos;
15ª - Outrossim, nenhum dos réus demonstrou qualquer facto excludente da sua responsabilidade pelo incumprimento;
16ª - A sentença recorrida violou os comandos dos artºs 762º, n°2, 798°, 799°, 496º, 349º e 351º do CC e 514° do CPC.
Com base nestas conclusões a recorrente pediu que, revogando-se as decisões recorridas, se julgue a acção procedente, condenando-se cada um dos recorridos a pagar-lhe 15.000 €, com juros moratórios desde a citação.
Os recorridos contra alegaram, defendendo a manutenção do julgado.

II Fundamentação
A) Matéria de facto:
São factos a considerar, definitivamente assentes (art.º 729º, nºs 1 e 2, do CPC):
1) A autora é beneficiária de um seguro médico celebrado com a Empresa-B (MEDIS) que entre outros lhe garante o direito de em caso de doença contratar médico e escolher hospital privado.
2) No dia 24.7.02, na execução do referido contrato de seguro, a autora foi internada no hospital da 2ª ré - Irmandade de Nª Sª do Terço e da Caridade - a fim de ali ser submetida a uma cirurgia à glândula tiróide a efectuar pelo 1° réu.
3) Cerca das 19 horas do referido dia a autora foi submetida a intervenção cirúrgica (tiroidectomia) realizada pelo primeiro réu no bloco cirúrgico daquele hospital.
4) Cerca das 22,30 horas daquele dia, a autora deixou o bloco cirúrgico e foi encaminhada para um quarto do mesmo hospital.
5) Ao abrigo do acordo celebrado com a Medis, a autora acordou com o Professor Dr. BB e respectivo corpo clínico a realização da cirurgia necessitada, tudo com recurso às técnicas modernas, mais adequadas à obtenção do resultado e com a obrigação de acompanhamento no pós-operatório.
6) Também mercê do mesmo acordo, à segunda ré incumbia acolher nas suas instalações hospitalares e colocar à disposição da autora e à disposição do 1º réu os meios técnicos e humanos necessários para que o acto cirúrgico e o pós-operatório pudessem decorrer com normalidade.
7) Enquanto proprietária do Hospital de Nª Sª do Terço e da Caridade, a 2ª ré, por contrato de seguro válido e em vigor titulado pela apólice nº 54607558, transferiu para a interveniente a responsabilidade civil por danos a terceiros, incluindo a responsabilidade civil de médico, paramédico e de enfermagem que compõem o quadro do próprio hospital.
8) O Professor BB entregou à autora, antes de a internar, uma receita relativa ao internamento e à cirurgia.
9) A autora foi medicada.
10) Terminada a cirurgia o 1º réu aguardou que a autora fosse despertada da anestesia, assegurou-se que ela recuperara a consciência e que se encontrava com a faculdade de locução intacta respondendo com lógica, clareza e normalidade fonética a perguntas que lhe foram efectuadas precisamente com vista a ser verificada a inteireza da sua consciência e capacidade de locução e fonação e a correcção do acto cirúrgico.
11) Após o que foi ao quarto da autora, onde o marido desta a aguardava, informando-o de que a operação apesar de trabalhosa correra bem e a doente se encontrava bem.
12) O Professor Dr. BB, realizada a cirurgia, após os factos referidos em 10) e 11), ausentou-se das instalações da 2ª ré.
13) Após se ter desvanecido o efeito da anestesia, a autora queixou-se de dificuldades respiratórias crescentes e graves, evidenciando forte pressão na zona da garganta.
14) Alertada para o estado da autora, a enfermeira de serviço, assalariada da 2ª ré, informou o marido da autora que se tratava de estado normal face ao tipo de intervenção cirúrgica efectuada.
15) A pressão sentida pela autora foi-se agravando e perante isso a enfermeira de serviço respondia sempre da mesma forma: "É normal".
16) Cerca das 3,30 horas da manhã a aludida enfermeira consultou o médico de serviço e acrescentou ao soro fisiológico uma dose de cortisona, destinada a aliviar a pressão que a autora sentia na zona do pescoço.
17) Cerca das 5 horas do dia 25.07 e porque a área do pescoço da autora revelasse uma crescente dilatação, a enfermeira informou a autora e marido de que estavam a tentar localizar o Prof. BB, mas que não conseguiam localizá-lo.
18) O marido da autora decidiu pedir a transferência desta para que fosse assistida no HGSA, por recear que a situação da autora se agravasse.
19) O médico de serviço, Dr. CC, tendo constatado que a autora não estava a reagir à medicação, pois havia um edema crescente na zona do pescoço, área onde a autora havia sido operada, e porque a autora iria necessitar de outra intervenção, entendeu que dado o seu estado de ansiedade seria melhor efectuar a transferência para o HGSA de imediato.
20) Foram então efectuados diversos telefonemas para conseguir uma ambulância para o transporte da autora, não tendo nenhum dos organismos contactados demonstrado disponibilidade para efectuar esse serviço.
21) O médico de serviço informou a autora de que não havia ambulância àquela hora e que ela teria que ir de táxi para o HGSA.
22) Perante tais dificuldades de contacto quer para o Prof. BB quer para as ambulâncias, num clima de muita exaltação provocado pelo marido da autora, foi então chamado um táxi para o transporte da autora para o hospital.
23) Tendo-se a autora deslocado até ao táxi, primeiro numa cadeira de rodas e posteriormente pelo seu próprio pé, perfeitamente lúcida e falando sem dificuldades.
24) A autora, a sangrar do pescoço, foi transportada de táxi para o HGSA acompanhada do marido e queixando-se de aperto cervical.
25) A autora deu entrada no HGSA do Porto pelas 7 horas da manhã do dia 25 de Julho, tendo-lhe sido diagnosticado hematoma cervical pós tiroidectomia, compressivo.
26) A autora foi operada no HGSA, consistindo o acto cirúrgico em cervicotomia exploradora para evacuação do hematoma, hemostase selectiva e drenagem cruzada das locas.
27) A autora permaneceu internada no HGSA até ao dia 30, seguinte.
28) O marido da autora ouviu o médico de serviço declarar: "Não percebo como as pessoas se arriscam a este tipo de operações nas ordens, quando é certo que não existem em situações críticas meios de controlo como nos hospitais públicos".
29) O médico de serviço, ao redigir o boletim necessário à transferência da autora, notou que no respectivo dossier clínico não constava a referência a qualquer intervenção cirúrgica.
30) Foi o marido da autora quem informou o mesmo médico que a autora tinha sido submetida a uma operação à tiróide.
31) Entre as 3,30 horas do dia 24/07 e pelo menos as 7 horas do dia seguinte a 2ª ré não conseguiu contactar o 1° réu.
32) A 2ª ré conhece os números de telefone do 1° réu, sendo essa a via pela qual este é contactado.
33) A autora sentiu dificuldades de respiração entre as 0 e as 7 horas.
34) A autora sofreu angústia por causa dos factos descritos.
35) A angústia da autora foi ainda maior pelo facto de se sentir desacompanhada e não assistida pelo médico que a operara.
36) A autora foi submetida a operação de urgência no HGSA.
37) A autora foi informada pelo 1° réu que no pós-operatório normalmente ocorre dor no local intervencionado e algum incómodo respiratório, situação diferente de dificuldade respiratória.
38) As expressões que constam do relatório clínico da autora efectuado no HGSA, reportadas às 7 horas do dia 25.7, "Neste momento encontra-se ansiosa mas sem estridor, dispneia, tiragem ou adejo nasal. Auscultação pulmonar sem alterações sat 02 96% TA1309/73mmhj pulsol3lp/m" significam que o quadro clínico desta era de ansiedade (estado meramente emocional); não apresentava qualquer dificuldade ou alteração respiratória, sendo mesmo boa a saturação do oxigénio no sangue, pois era de 96%, as tensões encontravam-se dentro dos parâmetros absolutamente normais e a frequência cardíaca estava algo acelerada, situação esta, todavia, absolutamente explicável pelo estado de ansiedade de que a autora apresentava sintomas.
39) O 1º réu não foi efectivamente contactado por ninguém, nomeadamente pela própria autora, nem pelo marido ou outro familiar desta.
40) Quando teve alta no HGSA foi claramente explicado à autora que o ocorrido não pode considerar-se um facto anómalo no pós operatório de cirurgia como aquela a que a autora foi submetida.
41) A hemorragia pós-tiroidectomia é a mais frequente complicação pós operatória daquela espécie de intervenção, ocorrendo estatisticamente em 2% dos casos, com necessidade de nova intervenção destinada à evacuação do correspondente hematoma
e drenagem das locas.

B) Matéria de Direito
As partes mostram-se de acordo a respeito de vários pontos que são importantes para o enquadramento jurídico da situação ajuizada e para a sua correcta solução.
Damos como adquirido, por isso, que entre a autora e os réus foi estabelecido um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as disposições relativas ao mandato, com as necessárias adaptações, por isso que se trata duma modalidade de prestação de serviços que a lei não regula especialmente (art.ºs 1154º e 1156º do CC). O relevo desta premissa decorre de que, por aplicação da norma do art.º 799º, nº 1, do CC, há uma presunção de culpa do devedor, que lhe cabe ilidir se quiser subtrair-se á responsabilidade por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso.

Damos também por adquirido, por outro lado, que a obrigação a que o primeiro réu, médico cirurgião, se vinculou perante a autora foi uma obrigação de meios, não de resultado; uma obrigação, consequentemente, de lhe proporcionar os melhores cuidados médicos ao seu alcance - realização duma cirurgia (tiroidectomia) em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados à data da intervenção. A importância desta opção resulta de que, assente tratar-se duma obrigação de meios, é o credor que tem de provar em juízo que houve desconformidade entre a conduta do devedor e aquela que, em abstracto, proporcionaria o resultado pretendido. Finalmente, também vamos partir do pressuposto, tacitamente aceite por autora e réus, de que a obrigação - complexa - a que o 1º réu e, reflexamente, a 2ª ré ficou vinculado não se esgotou no exacto
momento em que a cirurgia se concluiu; e isto porque se reconhece existir um dever de vigilância no período pós operatório que radica na necessidade de reduzir ou eliminar o perigo de riscos os mais diversos para a saúde do doente que entretanto podem surgir; a maior dificuldade reside então na definição exacta e correcta dos contornos de tal dever, por forma a determinar-se em cada situação concreta quais são e até que momento devem ser observados os procedimentos que o informam.
Onde não existe consenso é na apreciação das duas seguintes questões:

- A de saber se há nexo causal entre a conduta dos réus e os danos morais cujo ressarcimento a autora reclama;
- A de saber se a conduta dos réus foi ilícita (no sentido de, objectivamente considerada, se mostrar contrária ao Direito) e, além disso, culposa (no sentido de, atentas as circunstâncias concretas que rodearam o caso, poder - e dever - ter sido diferente).
Olhando a sequência lógica e cronológica de todos os factos coligidos, e recuperando parcialmente a abordagem empreendida no acórdão recorrido, será esta a pergunta fundamental a que temos que responder - e dizemos fundamental porque de certo modo a resposta engloba a consideração simultânea dos vários pressupostos da responsabilidade civil contratual a que aludimos (cumprimento defeituoso, culpa, dano e nexo causal) : era ou não era exigível que o estado de angústia e ansiedade que tomou conta da autora a partir de certa altura fosse afastado pelo 1º réu?

Ora, responde-se negativamente à interrogação posta na medida em que, no nosso entendimento das coisas, na concreta situação dos autos isso não era exigível ao médico cirurgião enquanto tal, enquanto profissional especializado cujos serviços foram contratados para executar uma certa e determinada cirurgia. Em primeiro lugar porque esta foi realizada e completada sem percalços: o 1º réu não cometeu na prática do acto médico qualquer erro devido a descuido, inadvertência, desatenção, ignorância culposa ou mau uso das regras técnicas observáveis. Em segundo lugar porque ele, 1º réu, só deu por finda a sua tarefa, abandonando as instalações da 2ª ré, depois de, despertada a autora da anestesia, se ter assegurado que a sua doente recuperara a fala, respondendo com lógica, clareza e normalidade fonética a perguntas que lhe foram dirigidas precisamente com o fito de verificar quer isso, quer a correcção do acto cirúrgico (factos 10 e 12). Em terceiro lugar porque a complicação pós operatória surgida - hemorragia pós tiroidectomia - a mais frequente no tipo de intervenção a que a autora se sujeitou, não foi causada nem agravada por qualquer acto negligente do 1º réu, por qualquer erro por ele praticado no decurso da operação. E em quarto lugar porque, sem embargo do que adiante se dirá, as coisas ficaram dispostas em termos organizacionais de maneira tal que, apesar da ausência do 1º réu, pôde ser facultada à autora no pós operatório a assistência adequada: na verdade, consoante se provou, o médico de serviço da 2ª ré, depois de observar a doente, medicou-a e, verificando que não reagiu positivamente à medicação ministrada e que seria necessário submetê-la a outra intervenção, decidiu ser melhor transferi-la de imediato para o HGSA, dado o seu estado de ansiedade, o que foi feito (factos 16 e 19 e documento de fls 248 - "notas do pessoal de enfermagem"). E neste contexto importa sublinhar, confirmando o que acaba de dizer-se, que à entrada no HGSA, pelas 7 horas da manhã do dia 25.7.02, o estado clínico da autora era de ansiedade - estado meramente emocional: como se vê do facto 38, ela não apresentava então sintomas de qualquer padecimento atribuível a erro ou a deficiente acompanhamento médico e hospitalar cometido no período pós operatório.

Há, sem dúvida, dois factos que merecem ponderação, não devendo escamotear-se a pelo menos aparente importância de que podem revestir-se na justa apreciação do caso. Um deles reside na circunstância de a segunda ré não ter conseguido contactar o 1º réu ao longo de várias horas (facto 31); o outro na inexistência de informação escrita no dossier clínico sobre o tipo de operação cirúrgica realizada (facto 29). Só que tudo deve ser contextualizado. Do primeiro facto referido não é lícito inferir sem mais que o contacto com o primeiro réu foi por ele impedido dolosa ou negligentemente, em ordem a furtar-se ao cumprimento do dever de vigilância no período do pós operatório, ou por puro e simples desinteresse e alheamento em relação ao estado de saúde da doente que operara. É que pode a ausência de efectiva comunicação ter sido motivada por um sem número de razões totalmente alheias à sua pessoa; e é certo que nenhuma norma ou princípio jurídico legitima a presunção de que, salvo prova em contrário, a frustração do contacto em tempo útil é devida, em situações desta natureza, a culpa do médico cirurgião. No que diz respeito ao segundo facto apontado é inquestionável que noutras circunstâncias a sua verificação poderia constituir um poderoso argumento para inculpar o primeiro réu, dado que qualquer profissional desta área - médico especialista, médico cirurgião, enfermeiro, etc - sabe (deve saber) que as informações que lhe compete fazer constar do boletim ou ficha clínica são de crucial importância no desenrolar do processo de tratamento e cura do doente, evitando percalços e erros que por vezes se revelam fatais. Simplesmente, no caso sub judice a omissão detectada não impediu que o médico de serviço identificasse correctamente, quer o tipo de cirurgia efectuado pelo 1º réu, quer a complicação pós operatória surgida, e facultasse à autora o acompanhamento devido, nos termos já salientados.

De tudo quanto ficou dito resulta em última análise que, conforme se observa no acórdão impugnado, a recorrente, "no fundo "queria a presença do operador, porque ela lhe transmitia mais segurança e conforto moral, o que é compreensível" (fls 392). E como as pessoas não são máquinas nem autómatos, reagindo de modo muito diferenciado a situações de adversidade e de risco para a sua saúde, nós não podemos senão dizer que semelhante pretensão da autora é inteiramente respeitável do ponto de vista humano, ninguém, e muito menos o tribunal, lha podendo censurar.
A análise, contudo, que nos cumpre fazer é de índole estritamente jurídica; e, nessa base, parece-nos claro que a distância existente entre aquele querer e o alegado dever de acompanhamento supostamente negado pelo 1º réu se apresenta como intransponível, desde logo porque, em termos rigorosos, não é possível estabelecer um nexo de causalidade adequada entre os factos atrás analisados e os danos a indemnizar (que são, ao cabo e ao resto, a angústia, o medo, a ansiedade que se apoderaram da recorrente a seguir à intervenção cirúrgica a que foi submetida).
Enfim, não se dispõe de nenhum elemento que possa levar o Tribunal a concluir que nem a complicação pós operatória nem a ansiedade que entretanto fragilizou a autora se teriam provavelmente verificado caso o primeiro réu tivesse novamente comparecido à cabeceira da doente depois de se ausentar, ou a segunda ré o tivesse contactado para esse efeito.
Improcedem ou mostram-se deslocadas, assim, todas as conclusões da minuta.

III. Decisão
Acorda-se em negar a revista.

Custas pela autora.

Lisboa, 11 de Julho de 2006
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira