Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4805
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
NAVIO
BARATARIA
FORTUNA DO MAR
Nº do Documento: SJ20080129048057
Data do Acordão: 01/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. A barataria do capitão significa as faltas ligeiras ou graves, intencionais ou meramente culposas, do capitão ou de algum membro da tripulação, enquanto as faltas náuticas se consubstanciam em simples erros ou falhas técnicas de navegação.
2. A fortuna do mar consubstancia-se nos acontecimentos ocorridos no mar que a maior prudência e diligência do capitão e ou dos outros membros da tripulação é insusceptível de prevenir ou evitar.
3. É caso de barataria do capitão a situação envolvida de culpa em que o mestre e o chefe de máquinas, no início do alagamento da casa das máquinas, não fecharam a porta desta e a de acesso daquela ao túnel do veio propulsor, do que derivou o alagamento do navio e o seu consequentemente afundamento.
4. Excluída do contrato de seguro do ramo marítimo/casco a perda do navio derivada de barataria do capitão, afastada fica a obrigação da seguradora.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA intentou, no dia 25 de Outubro de 2004, contra a Mútua dos Pescadores-Sociedade Mútua de Seguros, SA acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a indemnização de € 798 076,64, acrescida de juros de mora vincendos, com fundamento na perda da sua embarcação JR por afundamento em resultado de fortuna do mar e em contrato de seguro com ela celebrado.
Na contestação, a ré impugnou parcialmente a versão dos factos alegada pela autora e as consequências jurídicas pretendidas, afirmando a exclusão da cobertura do seguro por virtude de a tripulação embarcada não respeitar a lotação de segurança fixada para a embarcação, e a barataria do mestre e do chefe de máquinas da embarcação e a exclusão da cobertura do seguro por virtude de o afundamento se ter ficado a dever ao facto dos segundos não terem adoptado uma única providência para o evitar eficazmente, e o autor, na réplica negou a falta de segurança e a barataria.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 7 de Abril de 2006, por via da qual a ré foi absolvida do pedido, sob o fundamento da falta de prova da ocorrência do sinistro por causa fortuita e por a negligência do mestre da embarcação excluir a responsabilidade contratual da primeira pelos danos em causa.
Apelou o autor, impugnando também a decisão da matéria de facto, e o relator da Relação, por despacho proferido no dia 27 de Fevereiro de 2007, rejeitou, por falta de especificação, o recurso da decisão da matéria de facto com fundamento na prova testemunhal e, quanto ao artigo terceiro da base instrutória, com fundamento na prova documental não especificada, e ordenou a remessa do processo ao tribunal da primeira instância para se pronunciar sobre a arguição da nulidade da sentença, pronúncia que ocorreu.
O apelante reclamou para a conferência do despacho do relator que rejeitou o recurso da decisão da matéria de facto, e a Relação, por acórdão proferido no dia 14 de Junho de 2007, manteve aquele despacho, alterou a decisão da matéria de facto e negou provimento ao recurso.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação na medida em que se limitou a reproduzir a sentença, não considerando os fundamentos alegados pelo recorrente sustentados na prova documental e testemunhal quanto à não estanquicidade das portas do navio, violando o artigo 158º do Código de Processo Civil;
- o acórdão recorrido está afectado de erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa por falta de fundamentação da decisão, violando os artigos 721º e 722º do Código de Processo Civil;
- a conclusão do relatório da Navalárea no sentido da imputação do afundamento da embarcação a actuação humana voluntária não foi alegada nem provada;
- a entidade que subscreveu o referido relatório, funcionário da recorrida diz desconhecer a causa do afundamento, pelo que o acórdão recorrido, ao concluir pela barataria do mestre, violou o artigo 664º do Código de Processo Civil;
- deverá ser revogado o acórdão por virtude da sua nulidade e condenar-se a recorrida no pedido, por estar provado não se saber a causa do sinistro marítimo, remetendo nos termos das cláusulas gerais da apólice para a mera fortuna do mar prevista no artigo 605º do Código Comercial.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- o fundamento específico do recurso interposto pelo autor não é a violação da lei substantiva, mas as nulidades processuais, pelo que deve ser rejeitado;
- o acórdão recorrido, na perspectiva da matéria de facto e das questões jurídicas tratadas está cabalmente fundamentado, pelo que não ocorre a nulidade invocada pelo recorrente;
- o alegado erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso, porque o recorrente não invoca a violação de alguma norma que exija certa espécie de prova para a existência de algum facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova;
- a fundamentação de facto e de direito revela tratar-se de um caso de barataria do capitão, nos termos do § 1º do artigo 604º do Código Comercial, o que exclui a responsabilidade da recorrida por constituir causa contratual de exclusão da cobertura do seguro.


II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A propriedade sobre a embarcaçãoJR, com a matrícula nº VC-000-C esteve registada na Capitania do Porto de Vila do Conde, a favor do autor, entre 30 de Novembro de 2000 e 19 de Abril de 2004.
2. O navioJR tinha 14 anos de idade, situando-se a vida útil de navio como ele, em Portugal, entre os vinte e os vinte e cinco anos, e, à data, tinha certificado de navegabilidade válido até 26 de Abril de 2004.
3. As fiadas de chapa de maior espessura - 10 milímetros - localizam-se na zona do fundo do navio, e a zona da casa da máquina é dotada de maior reforço estrutural e travamento pela presença das estruturas do fixe do motor principal, as caixas de fundo são construídas em chapa ainda mais espessa do que a do fundo -12,5 milímetros - e o porão do pescado era o maior volume alagável do navio abaixo do convés.
4. Abaixo do convés principal, entre as balizas nºs 6 - antepara de ré do porão nº 2 e do túnel do veio - e 34 - antepara de vante da casa da máquina -, os compartimentos susceptíveis de serem isolados em benefício da subdivisão estanque, a saber, a casa da máquina e o conjunto túnel do veio/porão nº 1 e o porão nº 2 encontravam-se em comunicação, passando, por via disso, a constituir um compartimento único.
5. O autor, por um lado, e representantes da ré, por outro, declararam celebrar entre si o contrato de seguro do ramo marítimo/casco, tendo por objecto a embarcação JR, com capital seguro total de € 798 076,64, entre 1 de Dezembro de 2003 e 30 de Novembro de 2004, titulado pela apólice n.º 88/000000000, que consta a folhas 110, constituído pela proposta de seguro, condições gerais, especiais e particulares da apólice e respectivas actas adicionais que constam a folhas 105 a 122.
6. As cláusulas particulares do contrato mencionado sob 2 reportam-se a … casco, máquinas e pertences; perda total absoluta ou construtiva por sinistro marítimo, incêndio ou explosão.
7. As condições gerais do mencionado contrato envolvem-no, artigo 5º - coberturas – o presente contrato cobre os riscos expressamente referidos nas condições especiais e particulares; artigo 6º - exclusões, artigo 6.1, ficam expressamente excluídas das garantias prestadas por esta apólice as perdas ou danos directa ou indirectamente resultantes de: d) quaisquer factos resultantes da infracção ou inobservância dos regulamentos gerais de navegação e especiais dos portos, capitanias ou outras autoridades marítimas ou de quaisquer outras disposições legais nacionais e internacionais; e) dolo, fraude ou barataria do capitão.
8. A porta de comunicação interna entre esses dois porões - estanque à intempérie - estava aberta, e a porta que dava acesso do corredor dos alojamentos para o parque de pesca - estanque à intempérie - estava aberta.
9. Acima do convés principal, existia outro compartimento único, desde o limite de ré do volume entre conveses e a baliza nº 39 (antepara de vante dos alojamentos) porque a porta de acesso ao parque de pesca - estanque à intempérie - encontrava-se aberta.
10. Os espaços acima e abaixo do convés principal encontravam-se também em comunicação, uma vez que as escotilhas dos porões e a porta estanque de acesso à casa da máquina encontravam-se abertas.
11. As escotilhas dos porões - estanques à intempérie - encontravam-se abertas, e os porões - de congelado e empanado - tinham sido lavados e esgotados e as respectivas escotilhas, no parque de pesca, encontravam-se abertas.
12. Existia uma porta de comunicação entre o denominado porão de “empanados” - pequeno porão a ré do porão principal - e o porão principal, e também estava aberta e nem o mestre nem o chefe de máquinas deram quaisquer ordens para mandar fechar as portas entre porões, as escotilhas dos porões, a porta do parque de pesca para os alojamentos e porta da casa da máquina no convés.
13. Com excepção dos tanques estruturais, do paiol de ré centrado na baliza nº 3 e da casa da máquina do leme, todo o navio até ao convés superior era um compartimento único, porque todas as portas de comunicação estavam e ficaram abertas.
14. A tripulação doJR era então composta por 8 pessoas: ZC, JS, CL, MF, Américo Silva, José Rajão, Zacarias Coentrão e Elaouad Abdellah.
15. Na ocasião, seguiam a bordo da embarcação apenas os seguintes marítimos: 1 Mestre Costeiro Pescador, 1 Maquinista Prático de 2ª Classe, 1 Arrais de Pesca e 4 Pescadores.
16. O rol de tripulação da embarcação apresentava então a seguinte composição: Clemente Braga, mestre do largo; José Murraças, mestre do largo; Mário Vicente Fangueiro, mestre Costeiro pescador; ZC, mestre costeiro; Bernardino Maio, arrais; José Rajão, arrais; CL, motorista de 1.ª classe; Carlos Caçoilo, motorista de 3.ª classe; Zacarias Coentrão, pescador; João Silva, pescador; Américo Silva, pescador; José Monte, pescador; JS, pescador; MF, pescador e MLF, pescador.
17. Consta do certificado de lotação de segurança da embarcação, emitido no dia 17 de Maio de 2001 pelo Instituto Marítimo-Portuário, a seguinte lotação de segurança: mestre costeiro pescador, 1; contramestre pescador 1; motorista prático de 3ª classe, 1; marinheiro pescador 3; ajudante de Motorista, 1.
18. O bater do navio no mar era o normal para as condições existentes, e nada de anormal – ruído ou qualquer outro facto – foi ouvido ou notado por qualquer tripulante, designadamente, por aqueles que estavam de serviço.
19. Pelas 04.00 horas do dia 29 de Março de 2004, encontrando-se o navio JR na posição 27º 48’ N e 15º 19’ W, o chefe de máquinas, que se encontrava na casa da máquina, subiu à ponte, para informar o mestre de que a casa da máquina estava inundada com água, ocasião em que o nível da água já atingia mais de meio diâmetro do volante do M.P.P, e em que o vento era de Norte a Noroeste de força 4 a 5 e as ondas de 2 a 3 metros.
20. O mestre e o chefe de máquinas, enquanto houve luz, não verificaram se havia alagamento no porão.
21. O alagamento do JR foi detectado pelo chefe de máquinas quando ainda estava confinado a um pequeno volume no fundo da casa da máquina, e nem ele nem o mestre conseguiram localizar a entrada de água.
22. Antes de subir à ponte, o chefe de máquinas procedeu ao fecho das válvulas de fundo e accionou as duas bombas de esgoto, que tinham uma capacidade total de 60 000 litros/hora, e, sem prejuízo do referido disso, nenhuma medida foi tomada para limitar o princípio de alagamento a esse compartimento.
23. O caudal era elevado, tornando ineficaz o trabalho das bombas de esgoto, de tal modo que estas, ao fim de cerca de 20 minutos, entre as 04.00 horas e às 04.20 horas, pararam, por terem ficado submersas.
24. O chefe de máquinas conhecia o navio e a existência das referidas portas estanques.
25. Tendo sido fechadas as válvulas de fundo, o alagamento só poderia ter tido origem num rombo de dimensões consideráveis no fundo da casa da máquina, e se o alagamento se confinasse à casa da máquina, o navio não se afundaria.
26. Teria bastado fechar a porta de acesso à casa da máquina e a porta que, da casa da máquina, dá acesso ao túnel do veio propulsor, para que a casa da máquina ficasse estanque e não deixasse sair a água para outros compartimentos do navio, com os quais estava em comunicação, e tal não foi feito.
27. O mestre subiu à ponte e emitiu, cerca das 04.20 horas, um pedido de socorro, ao qual respondeu o C.R.C.S. Las Palmas, a quem o mestre informou do estado satisfatório da tripulação e da execução, com toda a normalidade, da manobra de arriar as jangadas pneumáticas.
28. Eram 04.25 horas do dia 29 de Março de 2004 quando o autor foi informado pelo mestre das condições em que o navioJR se encontrava em processo de alagamento.
29. Não obstante a actuação referida sob 22, o navio acabou por se afundar, naquele mesmo dia, pelas 17.10 horas, na costa próxima de Las Palmas, Gran Canária.
30. O embarque da tripulação nas jangadas efectuou-se com normalidade, e o abandono do navio ocorreu 1 hora e 10 minutos após ter sido constatado o alagamento.
31. Os náufragos permaneceram nas jangadas pelo período de 1 hora e 25 minutos – desde as 05.10 até às 06.35 horas, altura em que todos os tripulantes já estavam a bordo do Esperanza del Mar.
32. Toda a tripulação que se encontrava a bordo do referido navio foi recolhida e transportada pelo navio de salvamento espanhol Esperanza del Mar até ao porto de Las Palmas.
33. O autor sofreu o prejuízo correspondente à perda total do navio e respectivos equipamentos, e, na altura do naufrágio, tinha os prémios de seguro completamente em dia.


III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem ou não a obrigação de indemnizar o recorrente pela perda do navioJR.
A resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- âmbito objectivo do recurso;
- pode ou não este Tribunal sindicar a decisão da matéria de facto da Relação?
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade?
- infringiu ou não a Relação princípio livre qualificação jurídica dos factos ou da vinculação fáctica?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre o recorrente e a recorrida;
- está ou não o sinistro marítimo em causa excluído do âmbito do referido contrato?

Vejamos, de per se cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelo recorrente por via das respectivas conclusões de alegação (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A Relação declarou, por um lado, não ter o recorrente especificado os concretos meios probatórios em que se limitara a referenciar os documentos comprovativos de reparações e de compra de equipamento para a embarcação por € 200 000 em que parte não estava liquidada.
E, por outro, que omitira os seus números e as folhas em que estavam juntos ou o articulado ou fase em que tal junção deve ter lugar, acrescentando haver dezenas de documentos e o tribunal não dever substituir-se-lhe e presumir os documentos a que se quis referir.
O recorrente nada refere nas conclusões das alegações do recurso de revista sobre a decisão da Relação no sentido de não conhecer dessa parte da impugnação da matéria de facto por virtude da falta de especificação a que se reporta ao artigo 690º-A, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Em consequência, impõe-se que a referida problemática fique fora do âmbito do objecto deste recurso.

2.
Prossigamos com a análise da subquestão de saber se este Tribunal pode ou não conhecer da decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
O recorrente alegou estar o acórdão recorrido afectado de erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa por falta de fundamentação da decisão e que por isso violava os artigos 721º e 722º do Código de Processo Civil.
Não obstante a motivação referida pelo recorrente, a realidade é que ele afirma o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, pode sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Em consequência, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
Alegou o recorrente não ter sido afirmada nem provada a conclusão do relatório referenciado no sentido de que o afundamento da embarcação se deveu a actuação humana voluntária.
Esta problemática não se prende com a questão da articulação de factos integrantes da causa de pedir objecto de prova, mas com a prova testemunhal ou documental, ou seja, de livre apreciação.
A Relação apreciou e decidiu a impugnação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância com base em prova pericial e documentos insusceptíveis de produzirem prova plena.
Trata-se, assim, de prova de livre apreciação, pelo que este Tribunal não pode sindicar no recurso de revista o juízo que a Relação formulou a propósito no recurso de apelação.
Os artigos 721º e 722º do Código de Processo Civil reportam-se, respectivamente, às decisões que comportam recurso de revista e aos fundamentos deste. Não tem fundamento legal a alegação do recorrente de que a Relação infringiu as normas daqueles artigos.

3.
Atentemos agora na subquestão de saber se o acórdão recorrido está afectado de nulidade.
Referenciando a violação do artigo 158º do Código de Processo Civil, imputa o recorrente a nulidade do acórdão à falta de fundamentação que atribui à mera reprodução da sentença e à não consideração dos fundamentos que invocara quanto à não estanquicidade das portas do navio, baseados na prova testemunhal e documental.
Expressa a lei que o acórdão da Relação é nulo quando careça de fundamentação de facto e ou de direito (artigos 668º, nº 1, alínea b) e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A Constituição estabelece que as decisões judiciais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas nos termos da lei ordinária (artigos 205º, nº 1).
Por seu turno, a lei ordinária prescreve que as decisões relativas a qualquer pedido controvertido ou a alguma dúvida suscitada no processo devem ser fundamentadas e que para tal não basta a simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (artigo 158º do Código de Processo Civil).
Assim, deve o acórdão representar a vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à Relação, pelo que, sem fundamentação de facto e ou de direito não se consegue esse escopo nem se permite às partes por ele afectadas o conhecimento do seu acerto ou desacerto, designadamente para efeito de interposição de recurso.
Mas uma coisa é a falta absoluta de fundamentação e outra a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, e só a primeira constitui o fundamento de nulidade a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Acresce que a não consideração dos fundamentos que invocara quanto à não estanquicidade das portas do navio, baseados na prova testemunhal e documental, referidos pelo recorrente, não se prendem com a nulidade do acórdão por falta de fundamentação de facto e de direito, mas com a decisão da matéria de facto proferida pela Relação que este Tribunal, conforme acima se referiu, não tem competência funcional para sindicar.
Ao invés do que o recorrente alegou, a Relação não se limitou a reproduzir a sentença proferida no tribunal da primeira instância, certo que apreciou os factos provados e referiu-se ao direito aplicável.
Motivou suficientemente o decidido, pelo que não infringiu o disposto no artigo 158º do Código de Processo Civil.
Em consequência, não está o acórdão afectado da nulidade por falta de fundamentação a que se reportam os artigos 668º, nº 1, alínea b), 716º e 726º do Código de Processo Civil.

4.
Prossigamos com a subquestão de saber se a Relação infringiu ou não o princípio livre qualificação jurídica dos factos ou da vinculação fáctica.
Alegou o recorrente que a entidade que subscreveu o referido relatório, funcionário da recorrida, afirmou desconhecer a causa do afundamento, e que, por isso, ao concluir pela barataria do mestre, ter o acórdão recorrido violado o artigo 664º do Código de Processo Civil.
O artigo 664º do Código de Processo Civil, epigrafado de relação entre a actividade das partes e a do juiz, estabelece que o juiz não está, por um lado, sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, e por outro, que, sem prejuízo do disposto no artigo 264º, só pode servir-se dos factos articulados pelas partes.
O artigo 264º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe princípio do dispositivo, estabelece, por um lado, deverem as partes alegar os factos integrantes da causa de pedir e das excepções, e por outro só poder o juiz basear a sua decisão nos factos por elas alegados, salvo os notórios, os relativos à simulação processual e os instrumentais resultantes da instrução e ou da discussão da causa.
Prescreve, ademais, dever o juiz considerar também na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões ou das excepções, complementares ou concretizadores de outros alegados pelas partes, que resultem da instrução e discussão da causa, se a parte interessada declarar deles se pretender aproveitar, caso em que se deve facultar à outra o exercício do contraditório.
A estrutura normativa deste preceito consagra, pois, o princípio dispositivo, mas significativamente atenuado por via do princípio do inquisitório ou da oficiosidade, que também inspira o normativo da primeira parte do artigo 664º do Código de Processo Civil.
Ao ressalvar o disposto no artigo 264º do Código de Processo Civil, o referido artigo 664º assume o escopo de excepcionar ao princípio da vinculação fáctica a consideração oficiosa, dos factos notórios, relativos à simulação processual, instrumentais e essenciais complementares, neste último caso sob a referida condição.
A questão que o recorrente suscita de a pessoa subscritora do relatório ser funcionário da recorrida e ter afirmado desconhecer a causa do afundamento da embarcação, tem a ver com a apreciação da prova pericial ou testemunhal, de livre apreciação, matéria que, conforme acima se referiu, extravasa a competência funcional deste Tribunal.
Acresce que o erro na apreciação desse segmento da prova dos factos é insusceptível de colidir com o que se prescreve no artigo 664º do Código de Processo Civil, certo que este normativo se reporta apenas à oficiosidade judicial de conhecimento do direito e à regra e excepção da disponibilidade dos factos articulados pelas partes.
A dinâmica processual envolvente, designadamente os factos que a Relação considerou na subsunção às normas jurídicas, não revela que a Relação tenha infringido o disposto no artigo 664º do Código de Processo Civil.


5.
Atentemos agora na natureza e nos efeitos do contrato celebrado entre o recorrente e a recorrida.
O contrato de seguro é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante o pagamento, por outra, de determinado prémio, a indemnizá-la ou a terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo evento de risco.
Trata-se, pois, de um contrato pelo qual uma seguradora assume perante o tomador, mediante determinada contrapartida monetária, o risco de identificado sinistro futuro e incerto e de indemnizar, em conformidade, o segurado.
É um contrato consensual, porque se realiza por via do simples acordo das partes e formal, porque a sua validade depende de redução a escrito consubstanciado na apólice a que se reporta o artigo 426º, proémio, do Código Comercial.
É essencialmente regulado pelas disposições particulares e gerais constantes da respectiva apólice e, nas partes omissas, pelo disposto no Código Comercial (artigo 427º do Código Comercial).
A regra é a de que o seguro contra riscos pode ser feito sobre a totalidade conjunta de objectos ou totalidade individual de cada objecto, sobre parte da cada objecto, conjunta ou separadamente, sobre o lucro esperado ou os frutos pendentes (artigo 432º do Código Comercial).
O contrato de seguro contra riscos do mar está especialmente regulado nos artigos 595º a 615º do Código Comercial, relevando no caso vertente apenas o disposto nos artigos 597º, 604º e 605º.
Pode ter por objecto todas as coisas e valores estimáveis a dinheiro expostos àquele risco (artigo 597º).
O segurador responde, salvo estipulação em contrário, por todas as perdas e danos que acontecerem durante o tempo dos riscos segurados por borrasca, naufrágio, varação, abalroação, mudança forçada de rota, de viagem ou de navio, por alijamento, incêndio, violência injusta, explosão, inundação, pilhagem, quarentena superveniente, e, em geral, por todas as demais fortunas de mar, salvos os casos em que, pela natureza da cousa, pela lei ou por cláusula expressa na apólice, o segurador deixa de ser responsável (artigo 604º, proémio).
Não responde, porém, pela barataria do capitão, salvo convenção em contrário, a qual, contudo, será sem efeito, se, sendo o capitão nominalmente designado, foi depois mudado sem audiência e consentimento do segurador (artigo 604º, proémio, § 1º).
No caso de dúvida sobre a causa da perda dos objectos segurados, presume-se haverem perecido por fortuna do mar, com a consequência de o segurador ser responsável (artigo 605º).
Considerando as declarações negociais constantes de II 5 a 7, estamos perante um contrato de seguro do ramo marítimo/casco celebrado pelo recorrente, como tomador, e pela recorrida como seguradora, cujo objecto foi, além do mais que aqui não releva, o risco por sinistro marítimo de perda total da embarcação JR, designadamente o casco, as máquinas e demais pertences.
As obrigações decorrentes do mencionado contrato de seguro foram para o recorrente a de pagar o prémio convencionado, e para a recorrida a de indemnizar o primeiro pelo referido dano, verificados os respectivos pressupostos positivos e não verificados os negativos por eles convencionados.
Importa, pois, densificar os conceitos legais de fortunas de mar e de barataria do capitão, com vista à determinação do âmbito de cobertura do referido contrato de seguro
O § 1º do artigo 604º do Código Comercial, que se refere à barataria do capitão, não distingue entre a simples ou negligente e a dolosa e, atendendo, aos interesses em causa, incluindo a natureza dos riscos marítimos, não se vislumbram razões de sistema que o imponham.
Assim, a barataria do capitão a que se reporta o mencionado normativo - como tem sido entendido pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, conforme consta no acórdão a seguir mencionado - significa as faltas ligeiras ou graves, intencionais ou meramente culposas do capitão ou de algum membro da tripulação, enquanto as faltas náuticas se consubstanciam em simples erros ou falhas técnicas de navegação (Ac. do STJ, de 27.1.2004, CJ, Ano XII, Tomo 1, páginas 39 a 43).
A fortuna de mar, por seu turno, consubstancia-se nos acontecimentos ocorridos no mar que a maior prudência e diligência do capitão e ou dos outros membros da tripulação é insusceptível de prevenir ou evitar.

6.
Prossigamos com a subquestão de saber se o sinistro marítimo em causa está ou não excluído do âmbito do referido contrato de seguro.
Por virtude do afundamento, a embarcação JR e os respectivos equipamentos perderam-se totalmente, pelo que importa determinar, face ao objecto do contrato de seguro e ao disposto nas normas acima referidas, qual foi a causa de tal sinistro.
As partes convencionaram, por via das condições gerais predispostas na apólice pela recorrida e aceites pelo recorrente, que da cobertura do contrato ficavam excluídas, além do mais que aqui não releva, as perdas ou danos directa ou indirectamente resultante de dolo, fraude ou barataria do capitão.
A Relação, mantendo a sentença recorrida, considerou no âmbito do recurso de apelação que a causa do sinistro não foi a fortuna de mar, mas a designada barataria do capitão.
Ao invés, entende o recorrente não revelarem os factos a causa do sinistro e, por isso, dever-se presumir a fortuna de mar e a consequente responsabilização da recorrida pelo dano da perda do navio que o afectou.
O mestre de qualquer embarcação em geral é o primeiro responsável pela segurança da embarcação que comanda (artigo 163.º do Regulamento Geral das Capitanias).
O tripulante, investido em funções de comando de navio toma a designação genérica de capitão, quando pertencer ao escalão dos oficiais, e de mestre ou arrais, quando pertencer ao escalão da mestrança (artigo 3.º, nº 2, alíneas a) e b), do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro).
É o encarregado do governo e da expedição do navio, devendo actuar com o cuidado de um capitão diligente (artigo 5º, nºs 1 e 3 do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro).
É obrigado a levar o navio ao seu destino, a permanecer a bordo durante a viagem quando ocorra perigo para a expedição e a providenciar à conservação e às reparações necessárias à navegabilidade do navio (artigo 6.º, alíneas c), d) e n), do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro).
Recaía sobre ele o particular dever de conhecimento das características da embarcação, tal como sobre o chefe de máquinas, relativamente ao sector em que superintendia directamente, de modo a permitir-lhe ultrapassar qualquer eventual vicissitude (artigo 6º, alínea c), do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro).
Tal como foi considerado nas instâncias, não revelam os factos provados alguma situação de aflição por parte de algum dos membros da tripulação da embarcação em causa.
Acresce que qualquer mestre diligente deve conhecer as características da embarcação, para assim poder assegurar que a leva efectivamente ao seu destino.
Ora, resulta dos factos provados, por um lado, ter a embarcação naufragado em virtude de uma entrada de água por um rombo – de origem desconhecida - de dimensões consideráveis existente no fundo da casa da máquina, que não foi travada e que conduziu posteriormente ao alagamento dos restantes compartimentos do navio.
E, por outro, ter o chefe de máquinas lançado as bombas de esgoto, fechado as válvulas de fundo quando detectou o alagamento do fundo da casa da máquina e antes de chamar o mestre da embarcação, ter este ido imediatamente à casa da máquina, nem um nem outro conseguiram localizar a entrada de água e terem as bombas de esgoto parado por terem ficado submersas em virtude do alagamento da casa da máquina.
E finalmente, não ter sido adoptada mais nenhuma medida para limitar o princípio de alagamento ao compartimento da casa da máquina, ter bastado fechar a porta de acesso à casa da máquina e a que da casa da máquina dava acesso ao túnel do veio propulsor, para que a casa da máquina ficasse estanque e não deixasse sair a água para outros compartimentos do navio, com os quais estava em comunicação, mas tal não foi feito, e se o alagamento se confinasse à casa da máquina, o navio não se afundaria.
Temos, assim, que o mestre da embarcação e o chefe de máquinas tiveram a possibilidade de fechar a porta estanque que da casa da máquina dava acesso ao túnel do veio e assim preservar uma reserva eficaz de flutuabilidade do navio propiciada pela possibilidade de subdivisão do navio em compartimentos estanques, mas assim não procederam.
O alagamento da casa da máquina não podia ser evitada pelo chefe de máquinas ou pelo mestre da embarcação, mas podiam e devia ter evitado o afundamento da embarcação de que resultou a sua perda total.
Em consequência, a sua conduta foi negligente, isto é, censurável do ponto de vista ético-jurídico, o mesmo é dizer envolvida de culpa (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
Temos, por isso, que a causa do naufrágio não é ignorada e que a situação não se enquadra no conceito de fortuna de mar, mas na de barataria do capitão.
A conclusão é, por isso, no sentido de que, por força da lei e da cláusula contratual de exclusão mencionada na parte final de II 7, o risco da perda da embarcaçãoJR em causa não está abrangido pelo contrato de seguro celebrado entre o recorrente e a recorrida.

7.
Finalmente a síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.
Está excluída do objecto do recurso, por falta de conclusão de alegação, a questão processual da limitação da impugnação da decisão da matéria de facto por carência de especificação.
Não pode este Tribunal sindicar a decisão da Relação sobre a matéria de facto por exceder os seus poderes funcionais para o efeito.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade, nem a Relação infringiu os princípios da livre qualificação jurídica ou da vinculação fáctica.
O recorrente e a recorrida celebraram um contrato de seguro contra riscos do mar, ou seja, do ramo marítimo/casco.
O sinistro em causa está excluído da cobertura do referido contrato de seguro porque a perda do navio por afundamento derivou de negligência de membros da tripulação, ou seja, de barataria do capitão, à margem de fortuna de mar.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se no recorrente no pagamento das custas respectivas.


Lisboa, 29 de Janeiro de 2008.


Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis