Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1148/16.5T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
ASSEMBLEIA GERAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
NULIDADE
ANULABILIDADE
DIREITO DE ACÇÃO
DIREITO DE AÇÃO
Data do Acordão: 01/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES – SOCIEDADES ANÓNIMAS / ADMINISTRAÇÃO, FISCALIZAÇÃO E SECRETÁRIO DA SOCIEDADE / CONSELHO DA ADMINISTRAÇÃO / DESIGNAÇÃO / ARGUIÇÃO DA INVALIDADE DE DELIBERAÇÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / PROCEDIMENTOS CAUTELARES / PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM.
Doutrina:
-Carlos Osório de Castro, Valores Mobiliários, 2.ª edição, p. 76;
-Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, anotado, Volume II, p. 85;
-Menezes Cordeiro, Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, edição de 2004, p. 691;
-Pedro Caetano Nunes, Jornadas do CEJ de Julho de 2017.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 391.º E 412.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 373.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º E 20.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-04-1992;
- DE 21-02-2006, PROCESSO N.º 3444/05;
- DE 09-05-2006, PROCESSO N.º 3842/05, IN WWW.DGSI.PT;


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 29-09-2016, PROCESSO N.º 1544/13.OTYLSB.L1.
Sumário : A deliberação do conselho de administração de uma sociedade anónima é judicialmente sindicável, no que diz respeito à sua invalidade, sem necessidade de previamente a submeter ao controlo interno por reclamação para o próprio órgão ou para a assembleia geral.
Decisão Texto Integral:

          Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda (Instância Central - Secção Cível e Criminal), a presente ação comum contra AA - …, S. A., pedindo que seja decretada a invalidade, por nulidade ou anulabilidade, das deliberações do Conselho de Administração (CA) da ré de 22.6.2016, e bem assim, seja ordenada a suspensão de todos os efeitos dos atos praticados por tal órgão em execução de tais deliberações, incluindo eventuais registos.

         Alegou, nomeadamente e em síntese: a provisoriedade das funções de tal CA, cujos administradores foram provisoriamente nomeados em decisão judicial cautelar, e com poderes de mera administração, pelo que não podiam revogar, como o fizeram em 22.6.2016, deliberações anteriores de CA legitimamente eleito (no dizer do autor, aquele CA visava apenas assegurar o regular funcionamento do negócio social enquanto não for definitivamente decidida a ação no âmbito da qual foi tomada a medida cautelar de nomeação provisória ou até que o pleno dos acionistas da sociedade, na respetiva assembleia geral, seja chamado a deliberar acerca da eleição de novo órgão de administração)[1]; as deliberações em causa[2] não se confinam à prática de atos de gestão corrente e imediata dos negócios sociais; foram violados, designadamente, os estatutos da sociedade, os bons costumes e o dever de lealdade, com o desrespeito, entre outros, dos art.ºs 58º, n.º 1, b) e 64º, n.º 1, b), do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

A ré contestou, invocando, além do mais, que o autor não pode impugnar diretamente para os tribunais as deliberações do CA (por tais deliberações não o afetarem diretamente, nem incidirem diretamente sobre os seus interesses); impugnou a matéria alegada pelo autor.

O autor respondeu, sustentando a impugnabilidade direta de tais deliberações para o tribunal.

Foi proferido despacho saneador-sentença julgando improcedente a ação e absolvendo a ré do pedido, por a lei não facultar a impugnação judicial direta das deliberações tomadas, pelo Conselho de Administração, no dia 22.6.2016.

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, tendo a Relação de Coimbra julgado improcedente o recurso, em acórdão em que um dos Desembargadores votou vencido.

Mais uma vez inconformado, veio o autor interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritas.

Daquelas conclusões, resulta que o recorrente, para conhecer neste recurso, levanta apenas a seguinte questão:

Deve ser admitida a impugnação judicial direta das deliberações do conselho de administração de uma sociedade anónima para os tribunais judiciais ?

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões formuladas nas alegações dos recorrentes.

Já acima vimos a concreta questão levantada pelo aqui recorrente.

A factualidade e a dinâmica processual relevante para a decisão da questão objeto do recurso são as acima descritas.

Vejamos agora a referida questão objeto desta revista.

Esta constitui um tema jurídico que tem sido objeto de intensa discussão na doutrina e em que os autores têm estado divididos em três soluções divergentes, tal como consta de forma douta e desenvolvida da sentença de 1ª instância, do acórdão recorrido e do voto de vencido apresentado naquele acórdão.

A primeira opinião defende que a ação judicial anulatória de um ato – ou omissão - de conselho de administração de uma sociedade anónima não é legalmente permitida, apenas poderá ser a pretensão anulatória colocada à assembleia geral da sociedade e em face do deliberado sobre tal pretensão, poderá recorrer-se à via judicial – cfr. opinião, entre outras citadas nos autos, do Prof. Lebre de Freitas in Código de Processo Civil, anotado, vol. II, pág. 85.

A segunda opinião diametralmente oposta da primeira, é no sentido de ser admissível a impugnação judicial direta das decisões do conselho de administração de uma sociedade anónima – cfr. opinião, entre outras citadas nos autos, do Prof.  Menezes Cordeiro, in Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, ed. de 2004, pág. 691.

Finalmente, existe uma terceira opinião que pugna por uma solução intermédia que não admite, em geral, a impugnabilidade judicial direta das decisões do conselho de administração de uma sociedade anónima, apenas admitindo essa impugnação judicial direta, em casos de acentuada gravidade e a título excecional, quando os atos ou omissões impeçam ou embaracem o exercício dos direitos inerentes às suas ações, eventualmente, comportamentos de órgão de administração que consubstanciem “usurpação” de competências próprias da assembleia geral – cfr. opinião de Carlos Osório de Castro in Valores Mobiliários, 2ª ed. pág. 76 e nota 17.

A jurisprudência dos Tribunais da Relação tem acompanhado esta divergência doutrinal, havendo arestos que seguem cada uma das correntes referidas, como consta também das peças processuais mencionadas.

Procurando na jurisprudência deste Supremo Tribunal, apenas encontramos dois acórdãos que tratam da questão aqui em apreço, ambas no sentido de que é livre a impugnabilidade judicial direta das deliberações do conselho de administração de uma sociedade anónima, sem necessidade de prévia impugnação para a assembleia geral da mesma, sendo aqueles acórdãos provenientes do mesmo coletivo em que foi Relator o Conselheiro Pinto Monteiro.

O primeiro tem a data de 21-02-2006 e foi proferido no processo nº  3444/05 e foi citado no acórdão recorrido,  e o segundo foi prolatado em 9-05-2006,  no proc. nº 3842/05 – 1ª secção, este constante da base de dados do ITIJ.

Os argumentos a favor da tese que defende a inadmissibilidade da impugnabilidade judicial direta dos atos ou omissões do conselho de administração das sociedades anónimas, foram sintetizados no acórdão da Relação de Lisboa de 29-09-2016, no processo nº 1544/13.OTYLSB.L1.-8,  da seguinte forma:

a) A letra do art. 412º do CSC aponta para a necessidade de previamente à impugnação judicial, dever ser colocada à assembleia geral da sociedade a pretensão de invalidade do ato do conselho de administração;

b) A necessidade de garantir um mínimo de intervenção externa na vida interna da sociedade,  apenas se recorrendo à intervenção externa dos tribunais se o meio de impugnação interno não se mostrar suficiente;

c) A necessidade de garantir a segurança jurídica, essencial à atividade societária e estabilidade dos negócios, não perturbando a atividade de uma sociedade com a paralisia que essa intervenção poderia provocar;

d) A falta de interesse em agir, por, em principio, as deliberações do conselho de administração não terem eficácia externa, carecendo os sócios e terceiros de legitimidade para impugnar judicialmente essas deliberações;

e) O tempo que a impugnação perante a assembleia geral consome não se compara com a demora inerente à intervenção dos tribunais, pela demora decorrente da necessidade de recurso à assembleia geral pelo que não deve ser rejeitada a solução de haver necessidade de prévio recurso ao meio interno de impugnação.

Em relação ao primeiro dos argumentos, podemos dizer que o texto do referido art. 412º do CSC não permite concluir pelo impedimento à via judicial para impugnar as deliberações do conselho de administração, sem prévio recurso à assembleia geral da sociedade – ou ao próprio conselho.

Aquele texto não prevê expressamente o recurso direto às vias judiciais, mas também não o exclui, sendo o “recurso hierárquico” ali previsto consistente num mecanismo de sindicância no seio dos órgãos sociais, compatível com uma paralela e geral via judicial direta.

O argumento da alínea b) tem alguma consistência, mas não nos parece que seja de tal forma relevante que permita restringir o princípio geral da livre impugnabilidade judicial dos atos jurídicos.

O argumento da alínea c) de proteção da segurança jurídica da atividade societária também não nos parece ser válido.

Tendo em conta que a assembleia geral designa, em geral, o conselho de administração – art. 391º do CSC -, aquela deve naturalmente estar em sintonia com este conselho e, por isso, o recurso à assembleia geral pelo interessado na via anulatória tem, em geral, interesse nulo por dificilmente a assembleia geral ir contra a decisão do conselho administrativo que designou.

Desta forma, a provável, posterior e diferida via judicial, sempre acaba por perturbar a vida societária.

De qualquer modo, tal como refere o acórdão deste Supremo Tribunal de 21-02-2006 acima identificado, os inconvenientes que a impugnação judicial direta pelos sócios dos atos do conselho de administração provoca na vida societária devem ser ponderados para limitar os atos suscetíveis de impugnação pelos sócios e não para impedir essa impugnação judicial direta.      

O argumento da alínea d) liga-se a outra questão que não tem aqui relevância, questão essa que consiste na eventual falta de interesse em agir para o recurso à via judicial do sócio ou de terceiro.

Se se não verificar esse requisito processual, a respetiva ação soçobrará por razões processuais sem necessidade de entrar na apreciação da questão aqui em causa.

Finalmente resta o argumento de que o recurso à assembleia geral ser célere comparativamente ao recurso à via judicial também não me parece de proceder.

É certo que o recurso à assembleia geral para impugnar a decisão do conselho administrativo será normalmente muito mais célere do que a decisão judicial de uma ação anulatória.

Porém, tal como já dissemos, o êxito no recurso à assembleia geral é, em regra, muito reduzido, pelo que o uso dessa via não dispensará, geralmente, o interessado de recorrer à via judicial, acabando por a celeridade ficar prejudicada com o acréscimo ao tempo de duração da ação judicial do tempo que a assembleia geral demorará a pronunciar-se sobre a impugnação.

Há ainda quem aponte outro argumento a favor da impugnabilidade judicial direta das decisões do conselho de administração que consiste na regulamentação processual do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, constante dos arts. 380º e segs. do Cód. de Proc. Civil.

Vem sendo admissível que este procedimento cautelar é aplicável às deliberações dos conselhos de administração das sociedades anónimas – cfr. ac. STJ de 29-04-1992, JSTJOOO15369/ITIJ/Net.

Também tem sido admitido que o recurso ao referido procedimento cautelar pode ser feito de forma direta – opinião de Pedro Caetano Nunes nas jornadas do CEJ de Julho de 2017 em homenagem ao Conselheiro Lopes do Rego, que fundamenta tal como decorrente do direito constitucional de acesso aos tribunais em tempo útil, decorrente dos arts. 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa. 

Assim, interposto com êxito um procedimento cautelar de suspensão provisória daquelas deliberações, a necessidade de recorrer à assembleia geral – previamente -, pode inviabilizar a propositura tempestiva da ação definitiva de que depende o procedimento cautelar em causa, em face do prazo previsto no art. 373º do Cód. de Proc. Civil.   

Em  conclusão, diremos que o princípio geral da admissibilidade do recurso a juízo para defender os seus direitos, integrado no direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos – estabelecido no art. 20º da Constituição da República Portuguesa -, exige a admissão do recurso direto à via judicial no caso aqui em apreço.

As limitações a esse exercício, como a decorrente da interpretação feita nos autos pelas instâncias, não violando o princípio constitucional referido - pelo menos, no caso de ação judicial definitiva anulatória -, só podem, porém, ser admitidas quando houver disposição legal que claramente as preveja.

No caso em apreço, não encontramos disposição legal clara e decisiva que preveja a apontada limitação ao uso da via judicial.

Procede, desta forma, o fundamento do recurso.

Com esta procedência, tem de ser revogada a decisão de absolvição da ré do pedido, por falta do apontado pressuposto legal.

Como a decisão revogada foi proferida no despacho saneador, havendo matéria de facto a apurar para conhecer diretamente do objeto do pedido, devem prosseguir os autos para esse apuramento, salvo se haja  outro motivo, não apreciado ainda, que obste a esse prosseguimento.

Pelo exposto, concede-se a revista pedida, revogando-se a decisão recorrida determinando-se o prosseguimento dos autos, para conhecimento direto do pedido, salvo se houver outro motivo ainda não apreciado, que obste a tal prosseguimento.

Custas pela recorrida.

*

Nos termos do art. 663º, nº 7 do Código de Proc. Civil, sumaria-se o acórdão da seguinte forma:

9-01-2018.

João Camilo ( Relator )

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot 

________________
[1] Cf. o art.º 74º da petição inicial (fls. 19).
[2] Além do mais que não constitui objecto desta acção, foi deliberado: «(…) 3. Proceder à substituição dos mandatários judiciais da sociedade, nas acções judiciais em curso, que sejam do seu conhecimento e em que estejam em causa interesses que possam ser conflituantes com a sociedade e seus accionistas, podendo optar por que entenderem no que concerne à constituição de novos mandatários – deliberação unânime; 4. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos as deliberações tomadas pelas administradoras suspensas nas atas do conselho de administração números 12 e 14, bem como quaisquer actos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação unânime; 5. Revogar com efeitos imediatos e retroactivos a deliberação tomada pelas administradoras suspensas na acta do conselho de administração número 15, bem como quaisquer actos ou efeitos com as mesmas conexos – deliberação por maioria; 6. Proceder à publicação e registo e comunicação às entidades legais das deliberações anteriores – deliberação unânime; (…) 8. Que os membros do Conselho de Administração nomeados judicialmente aufiram, no mínimo, remunerações mensais, de valor bruto, não inferiores aos auferidos pelas administradoras suspensas de funções, sem prejuízo de valor superior a ser fixado pelo Tribunal».