Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
52/06.0TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
INVALIDADE
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIR
EQUIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 4º, 247º E SEGS., 289º, 342º, 913º E SEGS.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 515º, 661º, 722º, 729º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA, WWW.DGSI.PT, DE
- 7 DE JUNHO DE 2010, PROC. Nº 2273/03.8TBFLG.G1.S1.
- 3 DE FEVEREIRO DE 2011, PROC. Nº 1045/04.7TBALQ.L1.S1
Sumário :
1. No recurso de revista, a decisão sobre a matéria de facto só pode ser alterada nos limites definidos pelo nº 2 do artigo 722º e pelo nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil.
2. Mais do que meios de prova propriamente ditos, as presunções são deduções lógicas; tratando-se de presunções judiciais, o Supremo Tribunal da Justiça não pode controlar a correcção de tais deduções, porque se situam no domínio da matéria de facto.
3. O julgamento segundo a equidade pressupõe lei expressa que o permita, acordo das partes ou convenção prévia nesse sentido.
4. É distinta a obrigação de restituir com fundamento em invalidade do negócio ou em enriquecimento sem causa.
5. Anulada uma compra e venda de um automóvel, sendo impossível restitui-lo no estado em que se encontrava à data do contrato, há que equilibrar as restituições a efectuar, deduzindo o valor de utilização.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA instaurou uma acção contra BB – Comércio de Automóveis, CC e DD, Lda, pedindo:
– a anulação do contrato de compra e venda de uma viatura ligeira usada celebrado com as rés, porque ”conheciam ou não deviam ignorar a essencialidade para o autor da veracidade da quilometragem que o 00-00-00 havia percorrido até à data da compra” e a condenação solidária dos réus no pagamento “do montante total do plano financeiro, no valor de de € 21.942,72 por contrapartida da devolução pelo A. do 00-00-00 no estado em que se encontrar”,
– ou, em alternativa, a redução do preço de compra, que não deverá exceder € 5.700,00, sendo as rés condenadas solidariamente ao pagamento da diferença e à reparação da viatura.
– Em qualquer caso, a condenação solidária dos réus no pagamento dos encargos financeiros que teve de suportar enquanto esteve impossibilitado de usar a viatura, de outras despesas e de uma indemnização de € 3.000,00 por danos não patrimoniais.
Em síntese, alegou ter comprado a viatura a um dos réus, não podendo determinar a qual, em 20 de Novembro de 2004, pelo preço de € 15.000,00, com financiamento bancário; que, na sequência de avarias sofridas, que os réus se recusaram a reparar, veio a verificar que a quilometragem era muito superior à que constava do contador, que fora falsificado; que a viatura se encontra imobilizada desde Agosto de 2005; que teve de continuar a pagar o empréstimo, o seguro e a renda da garagem onde está guardada; que sofreu vários incómodos.
CC contestou. Impugnou diversos factos e alegou, por entre o mais, ter sido ele o vendedor, ser alheio ao contrato de mútuo invocado, nunca lhe ter sido denunciado qualquer defeito e ter caducado o direito de propor acção de anulação do contrato ou de indemnização; e que, de qualquer modo, a ser decretada a resolução do contrato, deveria ser abatido no montante do preço o correspondente à desvalorização do veículo, € 8.000,00.
Requereu a intervenção principal de EE (corrigido para M..... & P....., Lda.), por lhe ter cedido e posteriormente retomado a viatura. A intervenção foi admitida, mas veio a ficar sem efeito (despacho de fls. 209).
O autor replicou.
Entretanto, faleceu o réu CC, tendo sido habilitados para o substitui os seus sucessores, FF, GG e HH.
Pela sentença de fls. 437, a acção foi julgada improcedente.
Em síntese, o tribunal entendeu não ser aplicável o regime definido pela Lei nº 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), por não ter ficado provado que a viatura foi comprada exclusivamente para uso não profissional e, portanto, cair na alçada dos artigos 913º a 922º do Código Civil; não ocorrer a caducidade invocada pelo réu, mas não ter ficado provado, nem a existência de dolo do vendedor, nem que o vendedor “conhecia ou não devia ignorar a essencialidade do elementos sobre que incidiu o erro”, o que impedia a anulação e a redução do preço e, ainda, a procedência do pedido de pagamento do que pagara no âmbito do empréstimo; não haver prova nem fundamento que sustentasse os demais pedidos.
Todavia, sentença foi a revogada, “na parte impugnada”, pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 513, que decidiu declarar “anulado o contrato celebrado entre o A e o 2º R.” e condenar os sucessores de CC na restituição do que tivesse sido prestado no âmbito da compra e venda, bem como no pagamento ao autor da “quantia de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos) e o que vier a ser apurado correspondente ao reboque da viatura após a sua avaria, absolvendo-os do demais peticionado.”
Para o efeito, a Relação alterou alguns pontos da decisão de facto, impugnados pelo autor, e considerou preenchidos os requisitos, quer de relevância do erro sobre o objecto do negócio (artigos 247º e 251º do Código Civil), quer do defeito, no âmbito da venda de coisas defeituosas (artigos 913º e 905º do Código Civil). Concluiu, assim, que devia “ser restituído tudo o que tiver sido prestado”, nos termos do nº 1 do artigo 289º do Código Civil. Deu ainda como provados alguns dos danos patrimoniais invocados pelo autor, mantendo a absolvição quanto aos demais.

2. FF, GG e HH recorreram para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentaram, formularam as seguintes conclusões:
“1. O acórdão da Relação que se recorre ao dar como provado o facto respeitante à essencialidade da veracidade dos quilómetros e consequente preço, como condição do negócio, viola o disposto no art. 342º C. Civil, porquanto sendo um facto alegado pelo A. competia ao mesmo prová-lo, o que não o fez.
2. No que concerne à questão do erro sobre o objecto do negócio, artº 251º e 247º do C. Civil, entende o Acórdão recorrido que seria do conhecimento do R., a essencialidade do erro, não podendo sem mais o R. desconhecê-lo! Facto cuja prova competia ao A. não sendo da competência do R., como alega o douto Acórdão, provar tal facto, violando nesse sentido o disposto no art. 342º do C. Civil.
3. A valoração dada pelo Acórdão de que se recorre ao ter como provado que o número de quilómetros ostentados pela viatura na data da compra foi para o A. um elemento determinante da decisão de comprar tal viatura, e a de a comprar pelo referido preço (15.000,00€), viola pelo menos o nº 3 do art. 659º, do C.P.C.
4. A decisão dada pelo Acórdão nos exactos termos em que é proferida, anulabilidade do negócio e consequente retroactividade dos seus efeitos que se traduzem na devolução das respectivas prestações esbarram logo com um dos princípios fundamentais do direito, Princípio da Equidade, porquanto a prestação a devolver pelo R. não será equivalente à que o A. se vê obrigado a devolver, quer por razões de tempo e consequente desvalorização do veículo quer pela falta de cuidado do A. em guardar o mesmo. O referido princípio consiste na adaptação da regra existente à situação concreta, observando-se os critérios da justiça e igualdade. A equidade adapta a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa! É uma forma de se aplicar o direito mas sendo o mais próximo possível do justo para as duas partes!
5. Tal decisão esbarra também com o instituto do enriquecimento sem causa, previsto pelos art. 473º e ss. do C. Civil.”

Não houve contra-alegações.
Tendo cessado funções o relator, por jubilação, o recurso foi novamente distribuído.

3. Vem provado o seguinte (assinalam-se as alterações introduzidas pela Relação):

«1. No dia 20 de Novembro de 2004, o A. adquiriu, por compra, pelo preço de € 15.000,00 (quinze mil euros), a viatura ligeira de passageiros, marca FORD, Modelo Focus TDI, matrícula 00-00-00 (A);
2. Tal viatura tem uma cilindrada de 1800 cm3, consome combustível gasóleo e foi fabricada no ano de 2000 (B);
3. O instrumento contador de distâncias percorridas, vulgo “conta-quilómetros”, ostentava, na data da compra, (20-11-2004), 83.000 quilómetros percorridos (C);
4. Foi essa a quilometragem inscrita pelo R.CC no título de garantia da referida viatura que, na ocasião, preencheu, carimbou, assinou e entregou ao A. (cfr. doc. de fls. 11) (D);
5. E a ficha de Inspecção Técnica Periódica, realizada pela firma “Inspauto – Inspecção de Veículos, Lda”, com o nº 0000000, emitida no dia 2004-11-10, entregue pelo R. CC ao A., no acto da compra, ostentava 82.911 quilómetros (cfr. doc. de fls. 12) (E);
6. Não dispondo o autor de dinheiro suficiente para a aquisição do referido automóvel, o R. CC logo fez saber ao autor que arranjaria um financiamento bancário que possibilitasse a concretização da compra (F);
7. Concluído o acordo de financiamento com a firma “Finicrédito”, o réu CC recebeu dela, directamente, o montante de € 15.000,00, da venda que acordara com o A. (G);
8. Tal financiamento concedido pela “Finicrédito”, ficou associado ao contrato de mútuo com o n.º 000000, celebrado a 19.11.2004, tendo o autor como mutuário, o qual importaria para este, de entre outras, a obrigação de pagar àquela “Finicrédito” o valor mensal de € 304,76, pelo prazo de 72 meses, com início em 27.12.2004 e fim previsto em 27.11.2010 (cfr. doc. de fls. 13) (H);
9. O negócio em questão da aquisição da dita viatura foi celebrado entre o autor (como comprador) e o 2º réu (como vendedor) (1º);
10. Passado apenas uma semana da aquisição da viatura, o A. reportou ao réu CC a existência na viatura de um cinzeiro partido (6º);
11. Volvidos alguns meses, após a aquisição da viatura, o autor viu-se confrontado com um forte estrondo vindo da zona do motor do veículo PO, o que ocasionou derrame de óleo do motor no chão (8º, 9º e 10º);
12. Tal deveu-se a uma avaria no motor, não concretamente identificada (11º); [a 1ª Instância respondera “não provado” ao quesito 11º, cujo texto era: “Tal deveu-se ao rebentamento da cambota que, impulsionada pelo motor ainda em funcionamento, fracturou o cárter do motor e originou toda a perda de óleo’”]
13. O A. removeu o carro, por recurso a um reboque, para junto à sua residência, incorrendo para o efeito em despesa não concretamente apurada (12º);[a 1ª Instância respondera “não provado” ao quesito 12º, cujo texto era: “O A. removeu o carro por recurso a um reboque para uma garagem, junto à sua residência, incorrendo para o efeito na despesa de 120,00 €?]
14. O autor reportou então ao réu CC a existência de um problema com o funcionamento do motor da viatura, com vista ao accionamento da garantia, tendo o réu CC recusado a reparação, com base naquela garantia, em face dos quilómetros já percorridos pela viatura após o negócio (mais de 3.000 km) (13º);
15. Em 22 de Agosto de 2005, o autor deslocou-se à Direcção-Geral de Viação onde requereu uma 2ª via do documento da inspecção que a viatura fizera em Maio de 2004, antes ainda de ser vendida ao R. (cfr. doc. de fls. 16) (14º);
16. Essa certidão importou para o A. num custo de € 5,50 (15º);
17. Por ela ficou então o A. a saber que no dia 25.05.2004, pelas 15,26 horas, havia sido feita uma Inspecção Técnica à aludida viatura de matrícula 00-00-00, no Centro de Inspecção Citove de Guilhabreu, em Vila do Conde, a coberto da Ficha n.º 000000000, ostentando o contador de quilómetros percorridos acumulados, nessa data, 219.359 quilómetros (cfr. doc. de fls. 18) (16º);
18. Antes da celebração do negócio, pessoa não concretamente identificada procedeu à falsificação dos quilómetros percorridos pelo veículo 00-00-00, “abatendo-os” em cerca de 137.000 quilómetros (17º);
19. O veículo PO foi vendido pelo seu anterior proprietário, como “retoma” de uma viatura nova adquirida, num concessionário oficial da Ford, com essa quilometragem de, sensivelmente, 220.000 quilómetros (18º);
20. O número de quilómetros ostentados pela viatura na data da compra foi para o A um elemento determinante da decisão de comprar tal viatura, e de a comprar pelo referido preço (15 000,00 €)- (19º);[a 1ª Instância respondera “não provado” ao quesito 19º, como texto era: “O número de quilómetros ostentado pela viatura na data da compra foi para o A. um elemento determinante da decisão de comprar tal viatura, e de a comprar pelo referido preço (€ 15.000,00)?]
21. Desde Agosto de 2005 o veículo encontra-se imobilizado, na via pública, à porta da casa do A. (20º); a 1ª Instância respondera “não provado” ao quesito 20º, como texto era: “Desde Agosto de 2005 que o veículo se encontra imobilizado em garagem arrendada?” Corrigiu-se o lapso de escrita, consistente na referência a Agosto de 2004]
22. O A. procurou, sem sucesso, junto da “Finicrédito” que esta lhe aceitasse a suspensão temporária do pagamento da prestação mensal devida pelo empréstimo contraído com a aquisição da viatura (21º);
23. Na ocasião do negócio, o referido veículo não valeria venalmente, com os quilómetros reais percorridos (cerca de 220.000 quilómetros), mais de € 10.000,00 (24º);
24. Desde a data em que a referida viatura foi entregue ao autor e até à data da propositura da acção, a mesma sofreu uma desvalorização venal de cerca de € 2.500,00 (26º).»

4. Os recorrentes pretendem (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil) a apreciação das seguintes questões:

– Alteração da decisão de facto, no sentido de serem dados como não provados os factos constantes dos pontos 20 – “20. O número de quilómetros ostentados pela viatura na data da compra foi para o A um elemento determinante da decisão de comprar tal viatura, e de a comprar pelo referido preço (15 000,00 €)?” – e a cognoscibilidade da essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro;
– Violação do nº 3 do artigo 659º pelo acórdão recorrido;
– Infracção do princípio da equidade e das regras do (não) enriquecimento sem causa.

5. Como se sabe, no âmbito do recurso de revista, o Supremo Tribunal da Justiça só pode apreciar a decisão sobre a matéria de facto – “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa”, para utilizar as palavras do nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, – dentro dos limites fixados pelo nº 2 do artigo 729º e nº 2 do citado artigo 722º. Ou seja: se houver “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (apenas a título de exemplo, acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Fevereiro de 2011 (www.dgsi.pt, proc. nº 1045/04.7TBALQ.L1.S1).
Estas limitações não o impedem, naturalmente, de controlar a aplicação das regras de repartição do ónus da prova; mas vedam ao Supremo Tribunal da Justiça a correcção de presunções judiciais, ou de facto, a que as instâncias tenham recorrido para efeitos probatórios (cfr. por exemplo, acórdão deste Supremo Tribunal de 7 de Julho de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 2273/03.8TBFLG.G1.S1).
Os recorrentes sustentam que, ao dar como provado “o facto respeitante à essencialidade da veracidade dos quilómetros e consequente preço, como condição do negócio”, o acórdão recorrido infringiu o artigo 342º do Código Civil, “porquanto sendo um facto alegado pelo A. competia ao mesmo prová-lo, o que não fez”.
Está em causa matéria de facto que a Relação deu como provada em resultado da aplicação das “regras de experiência comum, a qual vai no sentido de que, em termos médios e normais, o número de quilómetros percorrido por uma viatura usada é um factor a ponderar para decidir adquiri-la ou não e, também, quanto ao valor a pagar” e, ainda, tendo em conta o depoimento de uma testemunha, ou seja, com recursos a meios de prova insusceptíveis de apreciação pelo Supremo Tribunal da Justiça.
Tendo o acórdão recorrido concluído no sentido de os factos em causa estarem provados, não faz sentido referir o artigo 342º do Código Civil. Nem tão pouco relevaria tratar-se de factos alegados pelo autor (cfr. artigo 515º do Código de Processo Civil).
No que toca ao conhecimento ou cognoscibilidade, pelo vendedor, da essencialidade, para o comprador, do elemento sobre o qual incidiu o erro (quilometragem), o acórdão recorrido entendeu que “o R., comerciante de automóveis, não podia desconhecer nem ignorar a essencialidade, para o A., do elemento sobre que incidiu o erro, ou seja, que a diferença para menos de 137 000 kms percorridos levaria o A a considerar estar a adquirir um veículo mais valioso, com menos desgaste, mais fiável e mais susceptível de uso e durabilidade, o que não era verdade e que, se soubesse que assim não era, não adquiriria o veículo, ou não o adquiriria por aquele preço.” Ou seja: socorreu-se de uma presunção judicial, incontrolável neste recurso.
Acresce, quanto a este último ponto, que o próprio acórdão afirmou expressamente que, mesmo que se não pudesse ter como provada esta cognoscibilidade, relevante nos termos doa artigos 251º e 247º do Código Civil, ainda assim procederia o pedido de anulação, à luz dos regime da venda de coisas defeituosas, em particular dos artigos 903º e 915º do Código Civil.

6. Os recorrentes sustentam ainda ter sido violado o nº 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil. Não se encontra nenhum fundamento para esta afirmação: o acórdão recorrido, para concluir que foi determinante para o comprador a quilometragem da viatura (quer para a decisão de comprar, quer para o preço), alterou o julgamento de facto feito em 1ª Instância, justificando tal alteração.

7. Finalmente, os recorrentes questionam os termos em que o acórdão recorrido determinou a restituição do que tinha sido prestado no âmbito do contrato, ou seja, a obrigação de restituição do preço (€ 15.000,00), tendo em conta a desvalorização do carro que lhes será entregue.
Já na contestação o réu opusera que, a ser anulado o contrato, deveria ser deduzido do preço a restituir a desvalorização da viatura, que avaliou em € 8.000,00.
Pretendem que esta decisão infringe os princípios da equidade e do não enriquecimento sem justa causa.
Antes de mais, cabe recordar que o julgamento segundo a equidade pressupõe lei expressa que o permita, acordo das partes ou convenção prévia nesse sentido (artigo 4º do Código Civil), o que, no caso, não se verifica. E também que a obrigação de restituir, no âmbito da eficácia retroactiva da invalidade, é deliberadamente distinta da que pode resultar de enriquecimento sem causa: basta comparar o regime definido pelo nº 1 do artigo 289º do Código Civil com o que resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 479º do Código Civil. Isto não significa, todavia, que não haja que procurar encontrar um equilíbrio entre as partes, tendo em conta que o objectivo da lei é colocá-las na situação em que estariam se não tivessem celebrado o contrato inválido.

8. A anulação do contrato de compra e venda tem efeitos retroactivos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado; se a restituição em espécie não for possível, deve ser restituído o valor correspondente (nº 1 do artigo 289º do Código Civil).
Vem provado que, entre a data da entrega ao autor e a da propositura da acção, 28 de Dezembro de 2005, a viatura sofreu uma desvalorização de cerca de € 2.500,00. Igualmente está provado que a mesma sofreu forte avaria meses depois de ter sido comprado, foi rebocada para perto da residência do autor e encontra-se imobilizada desde então.
Ora, tendo em conta a impossibilidade de o autor devolver o carro no estado em que se encontrava à data da compra e venda, a forma de equilibrar as restituições a realizar por virtude da anulação traduz-se na dedução, no preço a restituir, do valor correspondente à utilização de uma viatura da marca e modelo da 00-00-00, com o ano de matrícula e a quilometragem real que a mesma tinha, entre a data da respectiva entrega e da propositura da acção, a fixar em liquidação (artigo 661º, nº 2 do Código de Processo Civil).

8. Nada mais havendo a decidir, resta conceder provimento parcial à revista e, consequentemente:
a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou os réus a devolver o preço na sua totalidade;
b) Condenar os réus na devolução, ao autor, do preço pago, deduzido do montante correspondente à utilização de uma viatura da marca e modelo da 00-00-00, com o ano de matrícula e a quilometragem real que a mesma tinha, entre a data da respectiva entrega e da propositura da acção, a liquidar.
c) Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido.

Custas por recorrentes e recorrido, na proporção do decaimento que vier a apurar-se.
Lisboa, 24 de Março de 2011

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lopes do Rego
Orlando Afonso