Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3596
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DE COSTA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
ANULAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200311130035967
Data do Acordão: 11/13/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2539/02
Data: 03/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. Em conformidade com a regra de que o tribunal é livre na aplicação do direito aos factos provados, as questões a que se reportam os artigos 660º, nº. 2, 1ª parte, e 668º, nº. 1, alínea d), ambos do Código de Processo Civil não se consubstanciam em argumentos ou razões jurídicas formuladas pelas partes na defesa dos seus pontos de vista, sendo que se reportam aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes das suas posições na causa, designadamente os que se prendem com o pedido, a causa de pedir e as excepções.
2. Entre as causas de inexecução contratual lato sensu conta-se a execução defeituosa, ou seja, o caso de o devedor executar materialmente a prestação, mas de modo deficiente, em desconformidade com o convencionado.
3. Do simples facto provado de que a compradora da máquina de biselagem a não a teria adquirido se conhecesse os defeitos que nela posteriormente se revelaram, ignorados os termos das negociações entre os seus representantes e os da vendedora, não podem derivar-se os pressupostos legais de anulação do contrato por erro a que se reportam os artigos 251º e 905º do Código Civil.
4. Reparados ao longo do tempo pela vendedora e pelo fabricante, a pedido da compradora, os defeitos da máquina de biselagem no sistema eléctrico, recondicionamento dos motores linearidade do bisel, não pode a última, com base neles, resolver o contrato de compra e venda.
5. A fim de poder impor à vendedora a resolução do contrato de compra e venda da máquina por seu defeito originário, incumbia à compradora, nos termos do artigo 342º, nº. 1, do Código Civil, a prova de que a deficiência do tapete consubstanciada em paragens e batimentos geradores de mossas no bisel e produção de vidro martelado, surgida depois da reparação mencionada sob 4, derivava desse defeito e não da sua utilização frequente e regular durante mais de três anos e meio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"A, S.A." e "Vidreira B, Lda." intentaram, no dia 12 de Janeiro de 1998, contra "C, Lda.", acção declarativa constitutivo-condenatória, com processo ordinário, pedindo a declaração da resolução do contrato de compra e venda de uma máquina biseladora celebrado entre a primeira autora e a ré, a condenação na restituição das prestações ou, subsidiariamente, a anulação daquele contrato por erro sobre as qualidades da máquina e a condenação na restituição desta, ou a condenação da ré a substituir a máquina por outra de modelo equivalente e sem defeitos, ou a eliminar os defeitos e, em qualquer caso, a pagar 2.000.000$ à autora "Vidreira B, Lda." e o que se liquidasse em execução de sentença por danos futuros, acrescidos de juros vincendos.
Fundamentaram essencialmente a sua pretensão na celebração de um contrato de locação financeira entre as autoras, a primeira como locadora e a segunda como locatária, de um contrato de compra e venda entre "A, S.A." e a ré, relativamente à mencionada máquina e nos defeitos graves e inultrapassáveis que a afectavam e desconhecidos pelas autoras.
A ré invocou, na contestação, a ilegitimidade ad causam das autoras, e a caducidade do direito de acção com base no decurso dos prazos previstos nos artigos 916º e 917º do Código Civil e, por impugnação, que logo no início da laboração da máquina reparou prontamente a pequena anomalia no computador e que as suas reparações que realizou em 1996 e 1997 se inseriram no plano das revisões a que as máquinas daquele tipo estão sujeitas.
Na réplica, "A, S.A." afirmou que os pedidos visam o interesse da "Vidreira B, Lda." e que só por cautela interveio na posição de autora, e que os defeitos da máquina surgiram imediatamente e foram denunciados no prazo de garantia.
Realizado o julgamento, foi a acção julgada parcialmente procedente, declarada reconhecida a resolução do contrato de compra e venda, condenada a ré a devolver à segunda autora o preço de € 59.596,37 contra a entrega por aquela da máquina e do montante correspondente ao seu uso concreto durante o período e nas circunstâncias em que funcionou, a liquidar em execução de sentença, e a pagar-lhe o que se liquidasse em execução de sentença pelos danos decorrentes do mau estado da mesma, até ao montante de € 9.975,96.
Apelou a ré, e a Relação julgou o recurso parcialmente procedente e revogou a sentença recorrida na parte em que declarou resolvido o contrato de compra e venda da máquina e que condenou a apelante a devolver à autora "Vidreira B, Lda." o preço pago contra a entrega da máquina e da quantia correspondente ao valor do seu uso concreto.

Interpôs "Vidreira B, Lda." recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão da Relação é nulo por se não haver pronunciado sobre a anulação do contrato por erro;
- os factos provados revelam a existência e persistência de graves defeitos que impedem o perfeito funcionamento da máquina biseladora, e que, durante quatro anos, a recorrida e o fabricante os reconheceram e tentaram a sua eliminação por todos os meios, até Julho de 1997;
- esses defeitos implicavam a paralização da máquina e levaram à perda de clientes da recorrente, e o prazo concedido à recorrida para os eliminar, era mais do que razoável;
- não se pode considerar que um dos defeitos da máquina foi eliminado, porque o técnico do fabricante gastou três semanas de trabalho, conseguiu que o bisel saísse rectilíneo, mas com mossas resultantes de o tapete dar fortes pancadas no vidro;
- o bisel curvo ou com mossas é originado por um defeito da máquina que não foi eliminado;
- se os defeitos não fossem originários e graves, nem a recorrida nem o fabricante italiano aceitariam ter tentado a sua eliminação durante quatro anos;
- a máquina em causa causou à recorrente prejuízos de centenas de contos por mês, pelo que não é aceitável que o contrato não seja resolvido e que a recorrente tenha que ficar com a máquina que lhe custou 20.000.000$;
- a recorrida não eliminou, no prazo concedido, os graves defeitos da máquina sucessivamente denunciados e reconhecidos e que impossibilitam o seu funcionamento pelo que não há razão para que o contrato não seja resolvido;
- se assim não se entendesse, havia razão para a anulação do contrato por erro viciante da vontade, pelo que o acórdão recorrido violou os artigos 798º, 808º, 905º 913º, 917º e 921º do Código Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- a Relação decidiu em conferência inexistir a nulidade do acórdão invocada pela recorrente;
- a feitura das reparações ou a simples admissão da possibilidade da existência de defeitos não permitem concluir pelo seu reconhecimento;
- os defeitos da máquina inicialmente apontados pela recorrente prendiam-se com a parte eléctrica e com a afinação do bisel, tendo os primeiros sido resolvidos em 1995 e os segundos na primeira semana de Agosto de 1997;
- o direito de resolver o contrato é subsidiário, para o caso de o devedor se não oferecer para eliminar o defeito, e os defeitos da máquina foram resolvidos;
- as paragens e batimentos do tapete geradores de mossas no bisel não são originárias nem constituem vício da máquina, mas o resultado do desgaste normal da utilização da máquina, sem relação com os defeitos anteriormente alegados;
- a denúncia do problema do tapete da máquina foi feita para além do prazo de garantia;
- mesmo que assim não fosse, o prazo de caducidade contar-se-ia a partir do reconhecimento, pelo que a acção deveria ter sido proposta no prazo de seis meses a contar dessa data.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. "A, S.A." é uma sociedade de locação financeira, a "Vidreira B, Lda." dedica-se à actividade transformadora de vidro plano, e a ré tem por objecto a venda de equipamentos industriais.
2. "Vidreira B, Lda." necessitava de uma máquina biseladora, rectilínea, Lead 1207, para a sua actividade, e a ré comercializava-a, importando-a de Itália, do fabricante "D".
3. "Vidreira B, Lda." necessitava de obter financiamento para comprar a referida máquina, pelo que contactou com "A, S.A." para esta a adquirir em regime de locação financeira, e propôs-lhe a sua aquisição por 10.300.000$, acrescidos de imposto sobre o valor acrescentado de 1.648.000$.
4. No dia 23 de Dezembro de 1993, representantes de "A, S.A." e de "Vidreira B, Lda." declararam, por escrito, que a última pagaria à primeira 16 rendas de 3.000.000$ mais imposto sobre o valor acrescentado e 15 rendas de 682.178$, acrescidos daquele imposto e que, para a adquirir, a máquina teria de pagar o valor residual de 206.000$, acrescidos do mencionado imposto.
5. Representantes de "A, S.A." e de "Vidreira B, Lda." declararam acordar, em escrito de clausulado geral, que a primeira transferia para a segunda todas as garantias relativas à qualidade e funcionamento do equipamento e que a última exerceria directamente contra o fornecedor os direitos dela derivados.
6. As máquinas do mesmo tipo carecem de manutenção regular e de uma revisão rigorosa após dois anos de utilização intensa.
7. A ré, em Dezembro de 1993, entregou o equipamento nas instalações de "Vidreira B, Lda.", em Setúbal, e, desde então, permanece na total disponibilidade da última.
8. A ré conhecia que "Vidreira B, Lda." destinava o equipamento em causa para ser utilizado para biselar em rectilíneo, e declarou dar garantia de bom funcionamento da máquina por seis meses.
9. A máquina esteve em exposição em Itália e, na descarga, apanhou chuva, e os seus primeiros problemas foram de origem eléctrica e de afinação do bisel.
10. A pedido da ré, o exportador italiano da máquina fez deslocar um técnico a Portugal, que detectou um problema e comunicou de imediato a "D" que a máquina apanhara água e o problema era eléctrico e que, por essa razão, devia mandar um técnico da parte eléctrica, que veio mais tarde, debruçando-se apenas sobre essa parte, e substituiu um disjuntor.
11. Mas existiam ainda problemas de afinação do bisel, que ficaram por resolver e, desde 1993, vários técnicos estiveram nas instalações de "Vidreira B, Lda.", sem que conseguissem resolver os problemas da máquina, mas efectuaram várias reparações.
12. Detectou-se, entretanto, que os motores já não eram novos, mas recondicionados, e um técnico italiano da "D" procedeu, no dia 1 de Setembro de 1995, à substituição de motores por outros, mas sem sucesso.
13. O bisel produzido era torto, isto é, as arestas faziam curvas em vez de serem rectas, o que motivava reclamações dos clientes da "Vidreira B, Lda." e, ao longo do tempo, a perda de clientes.
14. Desde a entrega da máquina a "Vidreira B, Lda.", em 1993, até 1998, esteve parada e avariada várias vezes e produziu frequentemente de forma defeituosa.
15. Após mais uma reclamação, a ré enviou, em 18 de Março de 1997, um técnico português, que desmontou o bloco, o corpo principal da biseladora, levando-o num camião para as oficinas da ré, alegando que dentro de uma semana seria colocado, reparado, nas instalações da "Vidreira B, Lda.", e o bloco regressou cerca de três semanas depois, foi montado, mas a produção do bisel continuou na mesma.
16. A máquina parou completamente no dia 2 de Maio de 1997, em consequência do que a ré enviou um técnico que levou a peça, regressou e montou-a.
17. No dia 4 de Julho de 1997, "Vidreira B, Lda." comunicou novamente à ré os defeitos, dizendo que a produção do bisel parou, que os defeitos permaneciam e se agravavam e que esse facto a privava de receitas mensais de 1.500.000$, originando-lhe uma perda de rendimento liquido de 700.000$ a 800.000$, pelo que lhe concedia o prazo até 10 de Setembro de 1997 para ela eliminar os defeitos ou substituir a máquina, sob cominação de pedir a resolução do contrato.
18. No dia 30 de Julho de 1977, "D", a pedido da ré, enviou o técnico E, que antes já tinha estado a trabalhar nas instalações da "Vidreira B, Lda." sem resultados, o qual lá esteve durante uma semana, trabalhando várias horas por dia, desarmou o equipamento e rectificou peças e réguas, e a máquina ficou a trabalhar, com o bisel a sair rectilíneo, mas com mossas resultantes de o tapete dar fortes pancadas no bisel.
19. Por isso, no dia 19 de Agosto de 1997, "Vidreira B, Lda." comunicou à ré que o problema do bisel torto ficou em princípio resolvido, surgindo, todavia, o problema do tapete, com paragens frequentes e batimentos, que provocavam mossas no bisel.
20. O vidro de quatro milímetros produzido pela "Vidreira B, Lda." sai martelado e o de cinco ou seis milímetros sai frequentemente martelado.
21. Surgiram defeitos no período da garantia e que foram denunciados, a ré enviou um técnico que tentou reparar a máquina, mas sem sucesso, e a autora "Vidreira B, Lda." deu à máquina biseladora uma utilização frequente e regular.
22. A autora não teria comprado à ré a máquina por preço algum se soubesse que tinha os defeitos graves revelados, facto esse conhecido da ré, e esta procedeu a reparações a pedido da autora, efectuando, em 1996 e 1997, várias reparações.
III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não o direito de impor à recorrida a resolução ou a anulação do contrato de compra e venda da máquina biseladora em causa, com a consequência da sua devolução à última simultaneamente com o valor equivalente à sua utilização e a condenação da recorrida a devolver-lhe o valor correspondente ao preço.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- síntese do objecto do litígio;
- pressupostos da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;
- síntese fáctica essencialmente relevante no recurso;
- específico regime legal da venda de coisas móveis defeituosas no confronto com as pretensões formuladas pela recorrente;
- pressupostos de resolução do contrato de compra e venda com base no incumprimento defeituoso no confronto com a pretensão da recorrente.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1. A recorrente optou por fazer valer em juízo, a título principal, a resolução do contrato de compra e venda e, a título subsidiário, os pedidos de anulação do contrato por erro, ou a condenação da recorrida a substituir a máquina por outra, ou a eliminar os defeitos dela e, em qualquer caso, em indemnização equivalente € 9.975,96 e no que se liquidasse em execução de sentença quanto a danos futuros.
A primeira instância julgou procedente o pedido principal e o de indemnização por danos emergentes de pretérito, e declarou prejudicado o conhecimento de qualquer dos referidos pedidos subsidiários de primeiro, segundo e terceiro grau.
Embora a aqui recorrida tenha interposto recurso de apelação da referida sentença, a ora recorrente não procedeu à ampliação do objecto do recurso a que se reporta o artigo 684º-A, nº. 1, do Código de Processo Civil.
Daí que o objecto do recurso de apelação Relação só tenha incidido essencialmente sobre se ocorria ou não a caducidade do direito de acção, se a anomalia no tapete constituía vício ou falta de qualidade da máquina em causa e se havia ou não fundamento para a condenação da apelante em indemnização por danos decorrentes de perda de clientela.
Considerou a Relação não ter a apelada cumprido o ónus de prova de que a anomalia do tapete resultou do incumprimento defeituoso do contrato e não do desgaste normal decorrente do funcionamento da máquina, não poder valer a comunicação, dirigida à apelante pela apelada, como interpelação admonitória relativamente à mencionada anomalia, não se colocar a questão da caducidade do direito de acção, ficar prejudicada a questão de saber se tinha ou não havido reconhecimento dos defeitos e não constituir fundamento de resolução do contrato o facto de a apelante não haver procedido à reparação da anomalia do tapete da máquina.
Tendo em conta o conteúdo das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, invocando a violação pelo acórdão recorrido do disposto nos artigos 798º, 808º, 905º, 913º, 917º e 921º do Código Civil, ela sustenta essencialmente o recurso no fundamento de verificação dos pressupostos de resolução do contrato de compra e venda ou da sua anulação por erro.
Baseia essa sua asserção no facto de a recorrida, na sequência da interpelação que lhe dirigiu, não haver eliminado os defeitos originários, por si sucessivamente denunciados, reconhecidos pela recorrida, nos quais inclui a anomalia do tapete, afirmando não ter sido eliminado o defeito do bisel, por as mossas dele terem derivado, e na circunstância de não ter adquirido a máquina por qualquer preço se conhecesse os defeitos que a afectavam, referindo-se ao direito do consumidor.
Assim, não está em causa no recurso, por um lado, a celebração entre a recorrida e a locadora financeira "A, S.A." de um contrato de compra e venda que teve por objecto mediato a máquina biseladora em rectilíneo em causa, destinada ao uso recorrente, na posição de locatária.
É consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios (artigo 2º, nº. 1, da Lei nº. 24/96, de 31 de Julho).
Assim, estão excluídos do direito consumo as relações jurídicas entre consumidores consubstanciadas em contratos de natureza civil stricto sensu, quer as relações jurídicas entre empresas ou profissionais do ramo consubstanciadas em contratos de natureza comercial.
Em consequência, como é natural, não pode "A, S.A." ser considerada consumidor para disso extrair alguma vantagem contratual, nem estamos, no caso vertente, perante causa de pedir ou pedido subsumíveis ao regime de responsabilidade civil objectiva do produtor a que ser reporta o Decreto-Lei nº. 383/89, de 6 de Novembro.

2. Invocou a recorrente a nulidade do acórdão recorrido sob o argumento de não ter conhecido da questão de anulação do contrato de compra e venda da máquina por erro sobre as suas qualidades e de estar provado que a não teria comprado por preço algum se soubesse que ela tinha os defeitos graves que revelou e que esses factos eram conhecidos da recorrida.
A recorrida respondeu no sentido de que a Relação decidiu em conferência inexistir a nulidade invocada pela recorrente e, efectivamente, assim aconteceu logo após a apresentação das alegações no recurso de revista.
Expressa a lei que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigos 660º, nº. 2, 1ª parte e 713º, nº. 2, do Código de Processo Civil).
As questões a que se refere o referido normativo não se consubstanciam em argumentos ou razões de facto e ou de direito, dado o tribunal ser livre na interpretação e aplicação aos factos das normas jurídicas (artigo 664º do Código de Processo Civil).
Com efeito, elas centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições da partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções.
Omitindo a Relação o conhecimento das referidas questões postas pelas partes, a consequência jurídica respectiva é a de nulidade do acórdão (artigos 668º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, e 716º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
No caso de o acórdão da Relação estar afectado do mencionado vício processual, impõe-se ao Supremo Tribunal de Justiça anulá-lo e ordenar a remessa do processo à Relação a fim de proceder à concernente reforma (artigo 731º, nº. 2, do Código de Processo Civil).
A aqui recorrente obteve vencimento na 1ª instância no que concerne aos pedidos de condenação da aqui recorrida no pagamento do liquidando em execução de sentença pelos danos decorrentes do mau estado da máquina biseladora até € 9.975,96, e de declaração de que o contrato de compra e venda daquela máquina, que celebrara com "A, S.A.", fora resolvido e de condenação da segunda a devolver-lhe o montante pecuniário correspondente contra a entrega pela recorrente daquela máquina e do valor correspondente ao uso.
Mas o conhecimento dos restantes pedidos, incluindo o de anulação do contrato por erro, foi declarado prejudicado.
A ora recorrente, porque vencedora na primeira instância, não interpôs recurso da sentença para a Relação, nem o podia interpor (artigo 680º, nº. 1, do Código de Processo Civil).
Ademais, também a aqui recorrente não requereu a ampliação do objecto do recurso de apelação a que se reporta o artigo 684º-A do Código de Processo Civil.
Em consequência, porque a questão da nulidade por erro do contrato de compra e venda da máquina biseladora não foi colocada à Relação no recurso de apelação, a conclusão não podia deixar de ser no sentido de que não ocorreu, na espécie, a invocada omissão de pronúncia.
De qualquer forma, afirmou a Relação no acórdão recorrido que, quanto aos pedidos subsidiários formulados pelas apeladas, designadamente o de anulação do contrato e de substituição da máquina, não podiam proceder, por não estarem demonstrados os pressupostos do cumprimento defeituoso relativos ao problema do tapete.
Não ocorre, por isso, a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia a que se reportam os artigos 668º, nº. 1, alínea d), 2ª parte, e 716º, nº. 1, do Código de Processo Civil.

3. A recorrente exigiu extrajudicialmente à recorrida a reparação das anomalias detectadas na máquina biseladora e ela, através dos seus agentes e dos da entidade estrangeira que lha havia vendido, reparou os relativos à parte eléctrica e aos motores, tendo substituído estes no princípio do primeiro trimestre de 1995.
Mas o bisel produzido pela máquina passou a não ser rectilíneo, a recorrente exigiu à recorrida a sua reparação, a máquina parou no dia 2 de Maio de 1997, e um técnico da recorrida levou-a para reparação e recolocou-a.
Dois dias depois disso, a recorrente comunicou à recorrida a paragem da produção do bisel e a permanência dos defeitos e conceder-lhe o prazo de sessenta e oito dias para os eliminar ou substituir a máquina sob a cominação de resolver o contrato.
Um mês e dez dias depois da mencionada comunicação operada pela recorrente, um técnico italiano começou a trabalhar na reparação do bisel da máquina e eliminou o problema do bisel não rectilíneo.
Treze dias depois da referida reparação, a recorrente comunicou à recorrida ter ficado resolvido o problema do bisel sair torto, e que havia surgido o problema do tapete com paragens frequentes e batimentos geradores de mossas no bisel.
A este propósito está assente, por um lado, que o vidro de quatro milímetros saia martelado e o de cinco e seis milímetros saia assim frequentemente.
E, por outro, que a recorrente deu à máquina em causa utilização frequente e regular.
Seguiu-se, no dia 12 de Janeiro a propositura da acção contra a recorrida com o pedido principal de resolução do contrato de compra e venda.

4. Trata-se, na espécie, de um contrato de compra e venda de natureza comercial celebrado entre a recorrida, como vendedora, e "A, S.A.", como compradora, cujo objecto mediato foi máquina biseladora em causa (artigos 2º, 3º e 463º, nº. 1, do Código Comercial e 874º do Código Civil).
O direito de propriedade sobre a máquina em causa transferiu-se da titularidade da recorrida para "A, S.A.", esta pagou aquela o preço convencionado e aquela entregou a máquina à recorrente por ordem da compradora, no quadro de um contrato de locação financeira (artigos 2º e 3º do Código Comercial, 408º, nº. 1, e 879º do Código Civil).
É defeituosa a coisa vendida se estiver afectada de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou as necessárias para a realização daquele fim (artigo 913º, nº. 1, do Código Civil).
No caso vertente, a máquina vendida pela recorrida a "A, S.A." revelou-se afectada na instalação eléctrica, nos motores, por não serem novos mas recondicionados, e na desafinação do bisel implicante de biselagem não rectilínea.
Tal como foi considerado nas instâncias, trata-se de vícios que impediam a máquina de realizar o fim da biselagem a que se destinava, não conhecidos pela compradora "A, S.A." aquando da contratação ou da entrega, isto é, de defeitos ditos em sentido objectivo e subjectivo.
Estamos, assim, perante um contrato de compra e venda de coisa móvel defeituosa.
Ao remeter para o disposto na secção precedente adaptado e a título subsidiário, confere a lei ao comprador de coisas defeituosas, no confronto com o vendedor, o direito de:
- anulação do contrato por erro ou por dolo se verificados os requisitos a que acima se fez referência;
- redução do preço se as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, ele teria adquirido a coisa por preço inferior;
- indemnização relativa ao prejuízo decorrente da celebração do contrato, cumulável com a referida anulação e com a redução do preço;
- reparação da coisa ou, se for necessário e ela tiver natureza fungível, a sua substituição se o vendedor não desconhecia, sem culpa, o vício ou a sua falta de qualidade;
- reparação da coisa ou da sua substituição se necessária e a coisa for de natureza fungível se o vendedor estiver obrigado, designadamente por convenção das partes, a garantir o seu bom funcionamento, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador (artigos 247º, 251º, 254º, 905º, 908º, 909º, 911º, 913º, nº. 1, 914º, nº. 1 e 921º, nº. 1, do Código Civil).
Não está em causa neste recurso, salvo a questão da anulação do contrato de compra e venda por erro, qualquer pretensão da recorrente formulada à luz dos mencionados normativos, certo que o seu objecto se circunscreve à problemática da resolução do contrato de compra e venda com base no seu incumprimento defeituoso.

Vejamos agora a problemática da nulidade do contrato de compra e venda invocada pela recorrente.
O erro que atinja os motivos determinantes da vontade referido à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio torna este anulável, desde que o último conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro (artigos 247º, 251º do Código Civil).
Ademais, o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo, isto é, por qualquer sugestão ou artifício empregue por alguém com a intenção ou consciência de o induzir ou manter em erro ou na envolvência de dissimulação pelo declaratário ou terceiro do seu erro, pode anular a declaração (artigos 253º, nº. 1, e 254º, nº. 1, do Código Civil).
O comprador de coisa defeituosa pode anular o contrato de compra e venda desde que ocorram, na espécie, os referidos requisitos de anulabilidade relativos ao objecto do negócio ou ao dolo (artigos 905º e 913º, nº. 1, do Código Civil).
A situação de erro relevante quanto ao objecto do contrato de compra e venda em causa pressupunha a essencialidade para "A, S.A." do elemento sobre que incidiu o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade por parte da recorrida "C, Lda.".
Incumbia à recorrente o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito de anulação com base no erro (artigo 342º, nº. 1, do Código Civil).
Ignoram-se, em absoluto, os termos das negociações entre os representantes de "A, S.A." e da recorrida que culminaram com a celebração do contrato de compra e venda da máquina em causa.
Não obstante, a recorrente funda o que diz ser seu direito de anulação do contrato de compra e venda por erro no que provado está, ou seja, por um lado, que era do conhecimento da recorrida "C, Lda." de que a recorrente destinava o equipamento em causa para biselar em rectilíneo e, por outro, que "A, S.A." não teria comprado a máquina por preço nenhum se soubesse que ela tinha os graves defeitos revelados, e que esse facto era conhecido da recorrida.
Esta última factualidade não integra, por um lado, como é óbvio, os pressupostos da anulabilidade por dolo a que acima se fez referência, e, por outro também não revela que determinadas ou específicas qualidades da referida máquina motivaram e determinaram "A, S.A." a adquiri-la à recorrida.
Por conseguinte, pela última das referidas razões, não ocorrem, na espécie, os pressupostos da anulabilidade do contrato de compra e venda em causa com base existência do erro por parte dos representantes de "A, S.A." sobre os motivos determinantes da vontade concernentes a determinadas qualidades da máquina conhecidos ou cognoscíveis pela recorrida.
Assim, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a recorrente não tem o direito potestativo de impor à recorrida a anulação do contrato de compra e venda em causa com base no erro.

5. O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigo 762º, nº. 1, do Código Civil).
No âmbito das modalidades da inexecução da obrigação conta-se a execução defeituosa, na lei designada por cumprimento defeituoso (artigo 799º, nº. 1, do Código Civil).
É o caso de o devedor executar materialmente a prestação, mas que incumpre o contrato, por a executar deficientemente, em desconformidade com o convencionado.
Na 1ª instância considerou-se resolvido o contrato de compra e venda em causa por via da comunicação dirigida pela recorrente à recorrida no dia 4 de Julho de 1997, nos termos dos artigos 224º, nº. 1, e 432º, nº. 1, do Código Civil.
Por no caso vertente ocorrer uma situação incumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, entendeu a Relação que a ora recorrente podia resolvê-lo no caso de verificarem os respectivos pressupostos, solução jurídica que nenhuma das partes contestou.
Independentemente da perda do interesse do credor na prestação, permite a lei que aquele, em caso de mora, fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir sob pena de se considerar a prestação definitivamente não cumprida (artigo 808º, nº. 1, do Código Civil).
Tendo em vista o referido normativo, a recorrente comunicou à recorrida conceder-lhe o prazo de sessenta e oito dias a fim de eliminar os defeitos da máquina ou a substituir, sob pena de pedir a resolução do contrato.
Tendo em conta o conteúdo da mencionada declaração dirigida pela recorrente à recorrida, a primeira não lhe comunicou a resolução do contrato de compra e venda, limitando-se a afirmar que a ia pedir, porventura em juízo, como na realidade aconteceu, à margem da exigência legal.
De qualquer modo suscita-se a questão de saber da legalidade da fundamentação da referida comunicação da intenção de resolução do contrato de compra e venda, na medida em que as anomalias surgidas na máquina até à vinda, no dia 30 de Julho de 1997, do técnico italiano, foram eliminadas.
Decorrentemente, não podiam os vícios da máquina, depois de reparados a pedido da recorrente, como é natural, servir de fundamento à resolução do contrato de compra e venda por incumprimento defeituoso não superado.
Todavia, o que motivou a mencionada comunicação da recorrente à recorrida da intenção de resolução foi a circunstância, dita pela primeira ocorrida depois da operação de reparação do bisel pelo aludido técnico italiano, de o tapete envolver paragens frequentes e batimentos geradores de mossas no bisel, e sabe-se que o vidro saia martelado.
Sabe-se, por outro lado, que recorrente deu à máquina utilização frequente e regular que então já durava há mais de três anos e oito meses.
A recorrente entende que a mencionada deficiência do tapete se traduz em defeito da máquina não eliminado pelo mencionado técnico italiano. Todavia ela só surgiu depois da sua intervenção e os factos provados não revelam que tal intervenção esteve na sua origem.
Incumbia à recorrente a prova de que a mencionada anomalia do tapete se traduziu em defeito de estrutura da referida máquina e não o resultado da sua utilização ao longo do tempo (artigo 342º, nº. 1, do Código Civil).
Todavia, a recorrente não logrou produzir essa prova e, consequentemente, importa concluir, como no acórdão recorrido, no sentido da falta de fundamento para a resolução do contrato de compra e venda em causa.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de manutenção do acórdão recorrido.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 13 de Novembro de 2003
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís