Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17/07.4GBORQ.E2-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR
ACUSAÇÃO
FALTA
DOLO
NEGLIGÊNCIA
ILICITUDE
CULPA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO E DECLARAÇÃO DE VOTO
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 18, 27 DE JANEIRO DE 2015, P. 582 - 597; COLETÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA - ACÓRDÃOS DO STJ - Nº 259 - ANNO XXII - T. III/2014 - PAG. 5-22
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PENAL - FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - INQUÉRITO -JULGAMENTO - AUDIÊNCIA / ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS.
Doutrina:
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Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 1.º, ALÍNEAS A) E F), 283.º, N.º 3, ALÍNEA B), 311.º, N.ºS 2, ALÍNEA A) E 3, ALÍNEA B), 358.º, 359.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 13.º, 14.º, 16.º, 17.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 29.º, N.º5, 32.º, N.º5.
Legislação Estrangeira:
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 07/10/92, PROC. N.º 042918.

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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 279/95, DE 31/05, PUBLICADO NO DR 2.ª S DE 28/07/95, QUE DECLAROU INCONSTITUCIONAL A INTERPRETAÇÃO DO “ASSENTO” DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, N.º 2/93, DE 27/01 (DR – 1.ª S/A, DE 10/3/93).

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 30/09/2009, PROC. N.º 910/08.7TAVIS.C1; DE 06/07/2011, PROC. N.º 2184/06.5JFLSB.C1; DE 01/06/2011, PROC. N.º 150/10.5T3OVR.C1; DE 21/03/2012, PROC. N.º 597/11.0T3AVR.C1; DE 09/05/2012, PROC. N.º 571/10.3TACVL-A.C1.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
-DE 15/07/2008, PROC. N.º 759/08-1; DE 20/01/2011, PROC. N.º 89/09.7TAABT.E1.
-DE 01/03/2005, PROC. N.º 2/05-1.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
-DE 16/10/2004, PROC. N.º 1245/04-1.
-DE 07/04/2003, PROC. N.º 84/03; DE 17/05/2004, PROC. N.º 777/04-1; DE 06/12/2010.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 02/11/2000, PROC. N.º 0075859; DE 26/09/2001, PROC. N.º 0075443; DE 14/02/2012, PROC. N.º 373/09.0SZLSB-L.1-5.
-DE 30/01/2007, PROC. N.º 10221/2006-5; DE 12/11/2008, PROC. N.º 5736/2008-3.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
- DE 15/11/98, PROC. N.º 9840867; DE 19/10/2005, PROC. N.º 0541390; DE 28/10/2009, PROC. N.º 584/07.2GCETR.P1; DE 16/06/2012, PROC. N.º 414/09.PAMAI-B.P1; DE 10/07/2013, PROC. N.º 327/10.3PGVNG.P1.
Sumário :

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP».



Decisão Texto Integral:

            I. RELATÓRIO

            1. AA, identificado nos autos, veio, ao abrigo do disposto no art. 437.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de ... (... Subsecção da Secção Criminal), de 07/12/2012, proferido no processo n.º 17/07.4GBORQ, com fundamento em estar ele em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação de ..., de 04/05/2011, proferido no processo n.º 102/09.8GAAVZ, tendo ambos os acórdãos transitado em julgado e sido prolatados no domínio da mesma legislação.

Para tanto, alegou que, no acórdão recorrido «decidiu-se que o juiz, perante uma deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo, é susceptível de ser integrada na acusação, em julgamento, por recurso à racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, porquanto tal consubstanciar-se-á numa alteração não substancial dos factos, na medida em que a mesma não redunda em imputação de crime diverso», e no acórdão indicado como fundamento «decidiu-se que está vedado ao julgador, porquanto tal configuraria uma alteração substancial do art. 359.º do CPP, o aditamento à acusação de factos susceptíveis de integrar os elementos do tipo subjectivo necessários à existência de um crime».

2.Foram juntas certidões dos acórdãos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.

 

3. Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, na vista a que se refere o art. 440.º n.º 1 do CPP, emitido parecer no sentido de não ocorrerem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nomeadamente por não haver identidade das situações de facto, já que, no caso do acórdão recorrido, se considerou não haver omissão integral na descrição do elemento subjectivo do crime, ao contrário do que sucedeu no acórdão-fundamento, pelo que propôs a rejeição do recurso.

           

4. Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o art. 441.º do CPP, na qual foi decidido, por acórdão, ocorrer oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento.

5. Notificados nos termos do art. 442.º n.º 1 do CPP, vieram os sujeitos processuais apresentar as suas alegações, tendo o recorrente enunciado uma única conclusão do seguinte teor:

Deve ser fixada jurisprudência no sentido – salvo obtido o consentimento do Ministério Público, do assistente e do arguido -, de estar vedado ao julgador, sob pena de violação dos artigos 2.º e 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o aditamento à acusação de factos susceptíveis de integrar, total ou parcialmente, os elementos do tipo subjectivo necessários à existência de um crime, porquanto tal configuraria uma alteração substancial dos factos prevista no art. 359.º do CPP.   

            A Sra. Procuradora-Geral Adjunta, por seu turno, formulou também, em síntese conclusiva, o seu parecer:

            Dando cumprimento ao que dispõe a norma do art. 442.º, n.º 2 do CPP, entendemos dever fixar-se jurisprudência no sentido da impossibilidade de integração pela prova produzida em audiência de julgamento, com recurso ao disposto no art. 358.º, do elemento subjectivo, em falta ou insuficientemente descrito na acusação, atinente ao tipo de ilícito incriminador imputado.

6. A oposição de acórdãos foi já decidida na fase preliminar, tendo-se concluído na conferência pela oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

Porém, não tendo a referida decisão força de caso julgado formal, podendo a mesma questão ser reapreciada pelo pleno das secções criminais, como vem sendo decidido uniformemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, impõe-se proceder a tal reapreciação.

6.1. No acórdão recorrido estava em causa um crime de injúrias em que a acusação particular deduzida pelo assistente e acompanhada pelo Ministério Público, quanto ao elemento subjectivo, continha apenas a seguinte factualidade:

13 – Os arguidos agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente.

14 – O assistente sente-se ofendido na sua honra e consideração bem como na sua reputação profissional.

 Na sessão de julgamento, que teve lugar em 22.06.2010, procedendo à leitura pública da sentença, o Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho:

Em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

- O arguido AA sabia que as expressões referidas em 2. eram aptas a atingir a honra e consideração do assistente José Guerreiro e, ainda assim quis dirigi-las ao mesmo, como o fez.

- O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

            - Tais factos configuram uma alteração não substancial dado o disposto nos art.°s 358.° n.° 1 e al. f) do artigo 1º CPP, pelo que se comunica a referida alteração ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.°, n.° 1 do CPP."

Diz o acórdão recorrido que: Ciente do teor do despacho supra, o Ex.mo Mandatário do arguido disse "nada ter a requerer e prescindir do prazo de preparação de defesa" — cfr. acta de fls. 550 e 551.

Colocado ante a questão, levantada pelo arguido recorrente, de a acusação ser omissa quanto ao elemento subjectivo do crime e de o tribunal não poder integrar essa omissão, sob pena de violar a estrutura acusatória do processo penal, o direito de defesa do arguido e as regras dos artigos 18.º e 32.º da Constituição da República, o tribunal “a quo” (Tribunal da Relação de Évora), na confirmação da posição adoptada pela 1.ª instância, veio a fundamentar assim o seu entendimento:

Assim, para que exista culpabilidade do agente no cometimento de um facto é necessário que o mesmo lhe possa ser imputado a título de dolo ou negligência, como claramente se alcança do estatuído no citado artigo 13°, do Código Penal.—

In casu apenas o dolo nos importa. "Costuma a doutrina apontar dois elementos essenciais para a sua existência: um intelectual, outro volitivo ou emocional. O primeiro traduz-se no conhecimento dos elementos e circunstâncias descritas nos tipos legais de crime, sendo costume distinguir entre o conhecimento material desses elementos e o conhecimento do seu sentido ou significação.

O segundo traduz-se numa especial direcção da vontade (...) consiste, justamente, numa certa conexão do facto com a personalidade do sujeito, numa certa posição do agente perante o facto." - cfr. Prof. Eduardo Correia, ob. supra citada, pág. 367 e 375. Isto é, o elemento intelectual do dolo resume-se, por um lado, à representação ou previsão pelo agente do facto ilícito com todos os seus elementos integrantes e, por outro, à consciência de que esse facto é censurável e o elemento volitivo ou emocional do dolo traduz-se na especial direcção da vontade, qual seja a de realização do facto ilícito previsto pelo agente.—

Vale o que se deixa exposto por se afirmar que, diferentemente do entendimento expresso pelo recorrente, não estamos no caso em apreço perante alteração substancial dos factos vertidos na acusação. E não estamos porque a comunicada alteração dos factos não teve por efeito nem a imputação de crime diverso do constante da acusação, no sentido em que se não alterou o juízo base de ilicitude, nem o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, o recorrente.—

Não se refuta que a estrutura acusatória do processo penal português impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n° 358/04, de 19.05, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Não se refuta também que a terminologia usada na acusação (e acima transcrita) não foi a mais completa, designadamente no tocante ao elemento intelectual do dolo. Dela não consta a fórmula, ainda que estereotipada, de que o autor dos factos objectivamente relatados "tinha conhecimento de que o seu comportamento era proibido e punido por lei", fórmula que proporciona "conforto" mesmo quando se alicerça, como é regra, apenas na experiência da vida e da normalidade do seu devir. Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02.02.2005, proferido no processo 0445385, disponível in www.dgsi.pt/itrp. "A afirmação de actuação com conhecimento da proibição [elemento intelectual do dolo], surge como «indispensável sempre que o ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Já assim não é relativamente aos tipos de ilícitos velhos de séculos, cuja ilicitude de todos é conhecida, como v.g., o homicídio, as ofensas corporais, o furto, as injúrias, em que é contrário à experiência e à realidade da vida pôr em dúvida se o agente sabe que é proibido matar, ofender corporalmente, desapropriar, injuriar, etc". Não se refuta ainda, no ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, ob. supra mencionada, pág. 381, que "O sentido da ilicitude, em razão da qual é formulada a acusação, tem de ser referida na acusação e têm de ser indicados os factos, sujeitos à prova na audiência, donde resulte a consciência pelo arguido da ilicitude do seu comportamento. (...) Os factos naturalísticos descritos na acusação só têm relevância enquanto têm uma significação de desvalor jurídico, constituem um comportamento criminoso pressuposto da sanção, mas o comportamento só é pressuposto da sanção quando nele se integra também a consciência do significado jurídico desse mesmo comportamento; não basta a ilicitude objectiva, importa também a culpabilidade e para esta é necessária a consciência da ilicitude dos factos objectivamente ilícitos.".—

Porém, a deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (e é de deficiente e insuficiente descrição do tipo subjectivo que se trata no caso sub judice e não de omissão integral de descrição do tipo subjectivo, como reclama o recorrente), è susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, à racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum.

E, porque assim, bem andou o Tribunal a quo quando, em face da prova produzida em audiência de julgamento, decidiu complementar aquela deficiente e insuficiente narração do elemento subjectivo do tipo de crime em que o recorrente se mostrava incurso, comunicando-a aos diferentes sujeitos processuais, designadamente à defesa (que ademais disse "nada ter a requerer e prescindir do prazo de preparação de defesa"), e em qualificar tal alteração dos factos descritos na acusação como não substancial, nos termos e para os efeitos prevenidos no artigo 358°, n° 1, do Código de Processo Penal, na medida em que a mesma não redundava em imputação de crime diverso - cfr. artigo Io, alínea f), dó Código de Processo Penal.—

Como se afirma (a propósito de situação similar à que ora se aprecia) no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 450/2007, de 18.09, disponível no mesmo site acima mencionado, perante tudo o que se deixa expendido, "(...) não se vê como pode a qualificação, feita pelo tribunal a quo, de alteração não substancial dos factos, ter de algum modo diminuído as possibilidades de defesa eficaz do arguido, ao ponto de se ter que concluir pela inconstitucionalidade (por violação dos n°s 1 e 5 do artigo 32° da Constituição) da leitura feita, por aquele tribunal, das normas constantes dos artigos 1.º, n° 1, alínea f), 358° e 359° do Código de Processo Penal."

Deste modo veio a decidir no sentido de confirmar o decidido.

6.2. No acórdão-fundamento estava em causa igualmente um crime de injúria, constando da acusação particular deduzida pelos assistentes e acompanhada pelo Ministério Público, os factos típicos objectivos constitutivos do crime de injúria e, para além disso, mais os seguintes:

8. O assistente BB é catequista há 43 anos, na paróquia de ....

9. Os assistentes sentiram-se emocionalmente abalados e vexados.

10. Os assistentes deslocaram-se por duas vezes à GNR de ..., três ao advogado e pelo menos uma vez  ao Tribunal.

No julgamento, tendo sido dados como provados todos os factos conexionados com o tipo objectivo do ilícito e que os assistentes se sentiram emocionalmente abalados e vexados, não foram, porém, dados como provados os seguintes factos:

Que os arguidos tivessem agido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de ofender os assistentes na sua honra e consideração, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.

Estes factos, correspondentes ao tipo subjectivo do ilícito, foram dados como não provados por não constarem da acusação particular deduzida, entendendo o tribunal de 1.ª instância que os mesmos não podiam ser acrescentados a tal acusação, que os deveria ter necessariamente incluído, por serem elementos constitutivos do crime de injúria e não poderem ser objecto de prova em audiência de julgamento com base no disposto no art. 358.º do CPP. Não tendo a acusação sido rejeitada, nos termos do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do CPP, como deveria ter sido, também na audiência de julgamento não se poderia colmatar essa falha, por força das razões acima expostas, pelo que o arguido, feita a prova dos factos constantes da acusação, teria necessariamente de ser absolvido.

Tendo os assistentes colocado no recurso a questão do elemento subjectivo do crime, afirmando que, quando no decurso da audiência de discussão e julgamento se tenham provado os elementos relativos ao dolo, não pode o tribunal incluí-los na matéria de facto não provada, pelo facto de os mesmos não terem sido alegados na acusação, o Tribunal “a quo” encarou a questão, afirmando nomeadamente:

É óbvio que a descrição dos factos constantes da acusação particular deduzida pelos recorrentes não integra sequer um crime, pois a omissão do elemento subjectivo do crime que pretendiam imputar manifestamente não permite a imputação de uma conduta ilícita típica aos arguidos.

Consequentemente afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.

É a lei processual penal vigente.

E não nos compete contornar os obstáculos legais sob pena de violação do princípio da acusação e da verdade material – subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela e que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo não uma verdade obtida a todo o preço – mas processualmente válida.

Esta a razão da nossa discordância do Ac. da Relação de ... de 15/07/2008 (CJ A.XXXIII, T.III/p. 264, onde se defende que “A insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição”, pois, “A rejeição apenas deve ser usada pelo julgador quando se verifique que a omissão  detectada é integral e irremediavelmente insusceptivel  de vir a ser suprida, sendo, por isso, de todo inviável a condenação do arguido”.

Até porque se argumenta naquele acórdão, a propósito, precisamente da falta de indicação dos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime que aquele elemento subjectivo, “…poderá sempre ser integrado no decurso da audiência através do requerimento do MP ou oficiosamente por via do disposto no art. 358.º do CPP, dado que então se estará perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na medida em que não redundará em imputação de crime diverso – art. 1.º, n.º1, alínea f) do CPP – como, entre outros, foi abordado no AC do TC n.º 450/2007, de 18/09”.

Também discordamos, pelas razões acima expostas do Ac. RL de 26/09/2001 (relator Adelino Salvado, dgsi.pt), onde se decidiu: “A deficiente descrição dos elementos integradores do tipo (dolo genérico) é susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas por regras da experiência comum. Assim existindo tal deficiência na acusação, esta não pode ser considerada manifestamente infundada de modo a determinar a sua rejeição ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alíneas b) e d) do CPP”.

Renovando o fundamento central da tese que defendemos, por força das regras da hermenêutica jurídica, há-de partir necessariamente do conceito vertido do art. 1.º, alínea f) do CPP, que define como “alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a pronúncia ou condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal.

Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se inviável a transmutação para crime diverso.

Concluímos como na sentença recorrida: “ Não se pode admitir a figura do dolo implícito (Acórdão da Relação de ... de 7 de Abril de 2003, in CJ II, 291) nem a Constituição da República consente presunções de culpa (cf. art. 32.º/1, 2 e 5 da Constituição da República). O elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados aos arguidos na acusação dos assistentes.

É que, como se refere no referido Acórdão da Relação de ..., no nosso direito ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.

Entendemos, assim, que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais. 

Deste modo, face à posição por nós defendida, ainda que todos os factos constantes da acusação viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição dos arguidos.

6.3. Deste modo, comparando os dois arestos e respectivas situações de facto, não parece restar dúvida de que os mesmos decidem de maneira oposta a mesma questão de direito, no âmbito da mesma legislação.

Impõe-se, pois, confirmar, nesta sede, o julgamento prévio efectuado na conferência que decidiu a questão preliminar, nada obstando ao prosseguimento do recurso com vista à solução do conflito de jurisprudência.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            7. A questão

            A questão que nos vai ocupar traduz-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito a que nela se faz referência, nomeadamente do dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao art. 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta.

            Este problema tem, obviamente, a ver com os poderes de cognição e decisão do tribunal, ou seja, o que pode ou não conhecer-se na audiência de julgamento, qual o objecto sobre que versa este e quais os seus limites. Estamos, assim, caídos no âmbito de um dos problemas mais complexos, mais controversos e mais basilares do processo penal, mas o nosso objectivo, aqui, será restringir o mais possível a questão a limites consentâneos com o âmbito preciso do problema, sem excursionar por teorias de variada procedência, a não ser na exacta medida em que a referência a esta ou àquela se mostrar necessária.

            7.1. O objecto do processo e princípios dele derivados

7.1.1. O julgamento tem, com efeito, de versar sobre um objecto, um tema, um facto, um caso. Ora, o objecto do julgamento é o objecto do processo penal. Este é definido, consoante haja ou não instrução a seguir ao inquérito, pela acusação, pelo requerimento de abertura da instrução e pela pronúncia, tendo estas últimas a mesma estrutura da acusação (arts. 283.º, n.º 3, 287.º, n.º 2, in fine e 308.º, n.º 2, todos do CPP). Como não nos interessa a fase da instrução, que não está em causa nos acórdãos em confronto, uma vez que se trata de crime particular e a instrução não foi requerida pelos arguidos, tendo os respectivos processos sido remetidos para julgamento com o despacho a que alude o art. 313.º do CPP, podemos simplificar a questão dizendo que o objecto do processo se fixa com a acusação, integrando esta uma das vertentes do princípio do acusatório.

A acusação, em sentido genérico, como meio processual de fixação do objecto do processo, decorre da estrutura acusatória deste, não como expressão de um acusatório puro, à semelhança do modelo anglo-saxónico, mas de uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material, encontrando fundamento no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).  

Com efeito, aí se consagra o princípio do acusatório, implicando que só se possa ser julgado por um crime, a partir de uma acusação formulada pelo órgão competente contra determinada pessoa, órgão esse que deverá ser diferente do órgão julgador e ambos, do órgão que dirige a instrução, funcionando a acusação como condição e limite do julgamento, ou seja, determinando os poderes de cognição do tribunal e os limites da decisão final, com a formação de caso julgado. Nesse sentido, constitui uma das principais garantias do processo criminal e uma condição e garantia de imparcialidade e independência do julgamento (Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, p. 522 e FIGUEREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora Lda., 1984 – reimpressão -, pp. 136, 137 e 144).  

            O processo penal de tipo acusatório opõe-se ao processo penal de tipo inquisitório, em que o juiz investiga livremente e sem limitação alguma, independentemente de qualquer acusação e, mesmo que tal acusação exista, ela apenas determina o se da investigação judicial, não o seu como nem o seu quanto (FIGUEIREDO DIAS, ob. e loc. citados).

            Da estrutura acusatória do processo penal depende o princípio da vinculação temática, ou seja a subordinação do juiz do julgamento (descuramos, por não interessar para aqui a fase de instrução) ao objecto definido pela acusação (os factos dela constantes), a demarcação do thema probandum por esse objecto, e também a determinação dos limites da decisão (thema decidendum). 

A estrutura acusatória é, pois, como já se vê, uma condição indispensável de garantia de defesa do arguido, que tem de saber com precisão e clareza aquilo de que é acusado e por que vai responder.

Um outro princípio que deriva da estrutura acusatória do processo é o do contraditório, traduzido na possibilidade conferida ao arguido de contraditar os factos e as provas contra ele carreados, negando aqueles ou aduzindo outros factos que os contrariam ou justificam ou exculpam o seu comportamento, e indicando as provas que repute necessárias para a sua defesa (princípio da igualdade de armas nas fases jurisdicionais do processo). Desse modo, também ele [arguido]contribui para a definição do objecto do processo, na medida em que este há-de traduzir não só a versão da acusação, como também a versão de defesa e os factos que a sustentam.

Numa exigência mais ampla e mais consentânea com a matriz de um direito processual penal democrático e com os ditames de um verdadeiro Estado-de-direito-social, dir-se-á que o princípio do contraditório só alcança uma dimensão plena com o direito de audiência, o qual, radicando em todos os intervenientes processuais em relação aos quais se deva tomar uma decisão que pessoalmente os afecte, e não apenas em relação ao arguido, significa, no que toca a este último, o direito a ser ouvido relativamente a qualquer decisão que deva ser tomada contra ele, e não só relativamente à decisão final, e de tomar posição em relação a todos os factos que, na audiência, constituam objecto da cognição do tribunal, a todas as ocorrências que nela surjam (declarações, afirmações de testemunhas, declarantes, co-arguidos, etc.) e a todas as provas que sejam apresentadas, contribuindo dessa forma para a realização do direito do caso, mediante tomadas de posição autónomas, substanciais, que não sejam mera expressão de um direito formal ao contraditório (Cf. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 155 e ss.).

7.1.2. O objecto do processo, constituído pelo objecto da acusação, definindo o âmbito dos poderes de cognição do tribunal e os limites da decisão, com vista à materialização de uma defesa eficaz, no desenrolar de um procedimento justo e leal (due process of law) tem, pois, de manter-se idêntico da acusação à decisão e ao trânsito em julgado (princípio da identidade), obedecendo ainda a princípios de unidade e indivisibilidade, isto é, devendo conhecer-se do respectivo objecto por forma una e esgotante, não o fraccionando em partes, pois, de outro modo, ficaria comprometida a paz jurídica do arguido, que deve ser alcançada com um julgamento definitivo dos mesmos factos, assim como se poderia pôr em causa a produção das provas e a congruência das várias decisões, isto para além de, logicamente, o mesmo objecto dever ser tratado de forma unitária. Para além dos referidos princípios, um outro resulta do princípio do acusatório – o da consunção, significando que o caso julgado esgota (consome) o objecto do processo, que não pode mais voltar a ser investigado e submetido a julgamento, com repetição da causa penal pelos mesmos factos, ainda que nem todos tenham sido conhecidos, mas devendo tê-lo sido, por força da imposição daquele conhecimento esgotante, com o que se dá relevo ao princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5 da CRP (Assim, entre outros, EDUARDO CORREIA, Caso Julgado E Poderes De Cognição Do Juiz, Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª Reimpressão, 1996, pp. 318 e 319, FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 145 e CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, p. 214 e ss.)

7.1.3. Dissemos que o sistema do nosso processo penal não é de acusatório puro, mas obedece a uma estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material.

Relembrando o art. 32.º, n.º 5 da CRP, “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Comentando este artigo, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, depois de assinalarem “a significativa inovação” que tal representou para todo o nosso direito processual penal, afirmam que “o sistema acusatório não é incompatível com modelos ou fases inspiradas no inquisitório, desde que inspiradas pela procura da verdade e sempre submetidas ao dever de lealdade para com o arguido, o que limita os meios de prova admissíveis” (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora. 2005, T. 1.º, p. 359).

A audiência de julgamento é uma das fases do processo que está obrigatoriamente subordinada ao princípio do contraditório, mas tal não colide com o aludido princípio de investigação da verdade material. O juiz não está impedido de averiguar por si, autonomamente, a verdade material do caso, sem estar sujeito ao acervo factual aduzido pelo Ministério Público, pelo assistente ou pelo arguido, podendo investigar livremente e ex officio, desde que respeitados os ditames do due process of law e necessariamente com subordinação ao princípio do contraditório. Com efeito, os sujeitos processuais não estão incapacitados de exercerem a sua actividade probatória de forma plena, como o arguido conserva todos os direitos específicos que lhe dizem respeito, nomeadamente o direito de audiência, acima explicitado. Por isso, um tal ónus imposto ao juiz, que, no fundo, representa a contrapartida da ausência de um ónus de alegar ou contradizer que recaia sobre as partes, maxime, sobre o arguido, não contraria a estrutura basicamente acusatória do nosso processo penal. Além disso, como salienta FIGUEIREDO DIAS, a verdade material não pode ser conseguida a todo o custo, devendo ser enquadrada por um duplo sentido: “no sentido de verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela; mas também no sentido de uma verdade que, não sendo «absoluta» ou «ontológica», há-de ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida” (ob. cit., pp. 193 e 194).      

A acusação continua a ser condição e limite do julgamento, com plena validade dos princípios implicados por ela, um dos quais, como vimos, é o da identidade. Este confere uma certa rigidez ao objecto do processo, em nome, como já se afirmou, do direito de defesa do arguido. Porém esta rigidez não pode ser tal que impeça o juiz de averiguar, por sua iniciativa, todos os factos relevantes, devendo ele, como já visto, proceder a uma investigação esgotante dos factos que se integram no objecto do processo, ainda que nele não explicitados, porque o objecto do processo não se reduz aos contornos fixados na acusação ou na pronúncia.

“Se é, pois, razoável que se atribua à parte acusadora a função de determinar o objecto do processo, não se pode, todavia, admitir que ela limite a actividade do juiz relativamente a esse objecto, reservando-se, desse modo, sempre a possibilidade de exercer uma nova acção penal” (EDUARDO CORREIA, ob. cit. p. 318).

7.1.4. O problema que se levanta a propósito da estrutura do processo penal português – acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material – é saber até onde pode ir esta investigação. Por outras palavras: como conciliar a rigidez do processo penal com uma necessária flexibilização, imposta pela descoberta da verdade material, sem pôr em causa princípios e direitos fundamentais, nomeadamente o próprio princípio da acusação e o direito de defesa do arguido?

Sabido que a acusação ou a pronúncia é que fixam o objecto do processo e que um dos princípios fundamentais que decorrem dessa proposição inicial é o da identidade, o problema reside, pois, em saber que factos é que se podem conhecer sem descaracterizar o objecto do processo, isto é, sem transformar aquilo que é a acusação numa outra coisa, num aliud.

Uma pergunta se impõe, antes do mais: O que é um facto? O que é facto para efeitos processuais? Quando é que, tirando ou acrescentando outros factos aos que constam da acusação, os factos se mantêm os mesmos na sua essência, ou, para empregarmos outra expressão, no seu núcleo fundamental?   

Esta vem a ser outra questão sobre a qual, dependendo do prisma filosófico que se adopte, muito se tem escrito e muito se tem divergido. Aqui reside, com efeito, o hamletiano to be or not to be that is the quaestion  transposto para o domínio do objecto do processo penal.

Não vamos aqui retomar o problema em todos os seus pormenores e implicações, até porque não interessa abordá-lo em toda a extensão e profundidade para a resolução da questão que nos ocupa.

Lembremos apenas, de forma aligeirada, as principais concepções que estão na base da questão:

Para CAVALEIRO DE FERRREIRA era o facto naturalístico que interessava para a definição do objecto do processo: a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real (Curso de Processo Penal, Lisboa, 1958,Vol.III, p. 53.

Para EDUARDO CORREIA, movendo-se dentro de uma esfera neo-kantiana de separação entre o mundo dos factos “naturalísticos” e o mundo dos valores, o facto processual não podia ser concebido de forma diferente da concepção de facto em direito criminal e, portanto, o que para ele valia era a referência do acontecimento naturalístico a um padrão de valores específico, no caso, valores, fins ou interesses jurídico-criminais. O facto processual era, pois, definido como violação dos valores jurídico-criminais expressos num determinado tipo legal de crime, pois é neste que se contém o sentido desvalioso de uma determinada conduta que o realize. A unidade e identidade do objecto do processo seriam sempre obtidos por referência a um tipo legal de crime. Daí uma relação teleológica que intercederia entre eles. Deste modo, “«Facto» para o direito adjectivo, é, pois, equivalente à conduta típica e, por consequência, a identidade dele corresponde à identidade (coincidência) deste.” (ob. cit. p. 333). E desenvolvendo o seu conceito, explicita mais adiante: «(…) fulcro da unidade do objecto processual há-de ser sempre a concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada. Só ela – em princípio – limita, por força do princípio do acusatório, a actividade cognitiva do tribunal, que deve, como se disse, exercer-se esgotantemente e, portanto, alargar-se não só ao facto que no despacho de pronúncia ou equivalente se descreve, mas a tudo que com ele constitua uma unidade jurídica, a mesma infracção.» (idem, p. 336).

Concreta e hipotética violação jurídico-criminal, «Hipotética, porque pode chegar-se à conclusão, no decorrer do processo, de que a violação que se pensava ter ocorrido, afinal é outra. Essa violação mentalmente representada de início funcionará como indicação doutras violações eventualmente ocorridas, e que o juiz tem que investigar. Acresce que a hipotética violação jurídica é concreta, porque se tem em conta que a violação ocorreu a partir de um certo acontecimento histórico, e não se está aqui a considerar em abstracto um tipo legal de crime, ou um qualquer exemplo académico.» (JOSÉ SOUTO DE MOURA, “Notas sobre o objecto do processo”, Revista Do Ministério Público, Ano 12.º, n.º 48, pp. 52/53);

Para CASTANHEIRA NEVES a base de toda a construção do objecto do processo é o caso jurídico concreto, “o caso concreto que suscita o problema jurídico” a resolver pelo julgamento e decisão em termos impositivos e definitivos e que a acusação apresenta como solução antecipada e provisória, «um projecto sumário de sentença (condenatória, certamente), quer para justificar juridicamente a acusação deduzida, quer para referir ao arguido as imputações jurídico-criminais que em princípio lhe são feitas” (Sumários, pp. 249/250). Portanto, dados da vida real, não em estado puro, mas já valorados, pois não há actos ou factos desligados de um sentido (“O que temos em vista são dados reais, embora de uma realidade de que não pode abstrair-se um sentido, pois só com esse sentido eles são reais”, idem, p. 251). Nesta perspectiva, há, portanto, dois vectores ou duas faces a considerar, não independentes uma da outra, mas complementares, co-participativas ou mutuamente implicantes no todo que é o objecto a considerar.

Por um lado, as diversas facetas da realidade natural, orgânica, psíquica, etc., em que se desenrola o agir humano constituem “momentos integrativos relevantes numa concreta realização de sentido”; por outro, estas diversas facetas ou “elementos condicionantes”, como as designa o Autor, são modeladas concretamente por uma “intenção de sentido”, que dá expressão a uma determinada conduta. Esta é sempre referível a pessoas concretas, actuando no âmbito de situações concretas, histórica, social e culturalmente determinadas, e pelas quais e em ligação com as quais se realiza um determinado sentido, que é o sentido que orienta uma dada acção. O caso jurídico, que se constitui como realidade problemática a resolver é essa situação histórica, o acontecimento dado, já de si portador de uma valoração (ética, social, cultural, etc.), enquanto ligado à acção de um sujeito, mas agora impregnado de um sentido de juridicidade – o sentido de uma axiologia normativa específica, que é o da valoração jurídico-criminal.

Trata-se, segundo o Autor, de um caso jurídico concreto. “É um “caso”, porque nele se põe um problema; é “concreto”, porque esse problema se põe numa certa situação e para ela; é “jurídico”, porque desta emerge um sentido jurídico, o problemático sentido jurídico que o problema lhe refere e que nela ou através dela se assume e para o qual ela se individualiza como situação (como o “dado” correlativo que oferece o âmbito e o conteúdo relevante).»

Para uma outra concepção, que, segundo MÁRIO TENREIRO, é atribuível a FIGUEIREDO DIAS, facto é «um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural (e não naturalística, por tal conexão não ser estabelecia com base em meros juízos procedentes de uma racionalidade própria das ciências da natureza) analisados em toda a sua possível relevância jurídica, ou seja, à luz de todos os juízos jurídicos pertinentes. O objecto do processo será assim uma questão de facto integrada por todas as possíveis questões de direito que possa suscitar.» (MÁRIO TENREIRO, “Considerações sobre o objecto do processo penal”, Revista da Ordem d os Advogados, Ano 47.º - III – Dez. 1987, p. 997).

    Para FREDERICO ISASCA, haverá que garantir uma estrita vinculação ao princípio do acusatório, do mesmo passo que assegurar todas as garantias de defesa, pelo que o centro polarizador do objecto do processo só pode ser a base factual trazida pela acusação. Escreve o Autor (Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Livraria Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 1995, pp. 240-242): «O pedaço de vida que se submete à apreciação judicial, referenciado, não única e exclusivamente do ponto de vista normativo, mas antes e fundamentalmente, da perspectiva da própria valoração e imagem social daquele comportamento, isto é, a forma como ele é percebido e entendido, do ponto de vista da sua valoração social. A forma como o homem médio – porque é este o destinatário tipo do comando – vê e sente o acontecimento submetido a juízo e consequentemente a forma como sente e representa a violação da norma, provocada pela conduta do agente.

»Objecto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível».

FREDERICO ISASCA, aproximando-se da construção de CASTANHEIRA NEVES, embora dela divergindo, continua a sua tarefa de definir o objecto do processo nestes termos: «A delimitá-lo teremos necessariamente uma dimensão subjectiva e uma dimensão real. A primeira exige que durante todo o iter processuale se mantenha(m) sempre o(s) mesmo(s) arguido(s) não podendo o tribunal, em consequência, emitir    qualquer decisão final que não seja sobre aquela(s) pessoa(s). A segunda impõe a identidade do facto no decurso de todo o processo»

(…)

«O facto é, assim, o ponto de partida do juízo de subsunção e o postulado primeiro da subsunção jurídica. Mas, porque o facto, ou acontecimento, é sempre o fruto de uma acção humana e esta sempre consequência de uma decisão de agir ou omitir, isto significa que o agente ao actuar, racionalmente, empresta ao facto, enquanto acontecimento meramente objectivo, uma dimensão subjectiva, na qual se espelha a própria personalidade do sujeito. (…) Por isso o facto, enquanto base essencial da decisão, tem de ser apreciado na sua relação com o sujeito actuante. Só esta dupla dimensão em que o facto deve ser encarado respeita e é compatível com a ideia de um Direito Penal que puna pela culpa do agente.»

 

8. A alteração dos factos descritos na acusação

8.1. O problema da articulação entre a rigidez do objecto do processo e a sua flexibilização, em ordem a não entravar a investigação da verdade material, isto é, o de saber até que ponto os factos novos que, acaso, venham a ser descobertos fazem ainda parte ou não da unidade e da identidade desse objecto, de acordo com o respeito pelo princípio do acusatório e pelo imperativo da defesa do arguido, e para o qual as teorias acima recenseadas buscam uma solução, encontra no art. 1.º, alínea f) do CPP um critério de distinção e nos artigos 358.º e 359.º do mesmo diploma legal formas de proceder, na audiência de julgamento, quando nela surjam factos novos que alterem ou não de forma substancial os factos descritos na acusação[1].

Nos termos do art. 1.º, alínea f), considera-se alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Verificando-se, no decurso da audiência, uma alteração não substancial dos factos (definida, naturalmente, por contraposição à de alteração substancial) e com relevo para a decisão da causa, o juiz que preside à audiência, oficiosamente ou a requerimento, “comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”, a menos que a alteração tenha provindo de factos alegados por aquela (art. 358.º do CPP).

O mesmo regime se verifica quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos (n.º 3 do mesmo normativo), pressupondo-se que, no entendimento que nos parece mais correcto, a alteração da qualificação não é acompanhada por uma alteração dos factos.

En passant, diga-se que este n.º 3 foi acrescentado à versão originária pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, e visou harmonizar a disciplina do Código com a jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC), nomeadamente o Acórdão n.º 279/95, de 31/05, publicado no DR 2.ª S de 28/07/95, que declarou inconstitucional a interpretação do “Assento” (como, então, se lhe chamava) do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 2/93, de 27/01 (DR – 1.ª S/A, de 10/3/93), na medida (e só nessa) em que nele se fixava jurisprudência no sentido de não constituir alteração substancial dos factos a simples alteração da qualificação jurídica, ainda que se traduzisse em figura criminal mais grave, não se preve[ndo] que o arguido [fosse] prevenido da nova qualificação e se lhe de[sse] oportunidade de defesa (sobre esta matéria e respectiva crítica, cf. o artigo do ex-Conselheiro do TC MÁRIO DE BRITO, «Poderes de cognição do tribunal e garantias de defesa (Comentário a três acórdãos do Tribunal Constitucional», Revista do Ministério Público, n.º 65, JAN/MAR de 1996, p. 35 e ss.).  

No caso de haver alteração substancial dos factos, a mesma não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1 do art. 359.º).

Nesse caso, comunica-se a alteração ao Ministério Público, valendo o acto como denúncia para procedimento pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo (n.º 2 do mesmo artigo).[2]

O julgamento pelos novos factos pode, contudo, ter lugar no mesmo processo, mediante acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido, contanto que não se verifique incompetência do tribunal, sendo, neste caso, concedido ao arguido, se este o requerer, prazo para a preparação da defesa, não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência (n.ºs 3 e 4 do mesmo artigo).

Trata-se, aqui, de uma situação em que a alteração do objecto do processo por factos que formam unidade com os constantes da acusação ou da pronúncia e que, embora saindo fora das margens permitidas pelo princípio do acusatório, pode ser ultrapassada por acordo dos sujeitos processuais, e isto, quer os novos factos sejam autonomizáveis, quer o não sejam.

Se os factos não forem autonomizáveis e não havendo o acordo referido para prosseguimento do julgamento, é que se levantam vários problemas. Desde logo, o de saber exactamente quando estamos perante factos autonomizáveis e não autonomizáveis, para além da definição básica que nos dão os Autores [“Ou os novos factos (…) são completamente autónomos ou autonomizáveis e podem, por si só, e portanto independentemente dos factos que formam o objecto do processo, ser susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo; ou (…) os novos factos apurados formam, juntamente com os da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização” (FREDERICO ISASCA, ob. cit., p. 203);  “O conceito de factos autonomizáveis define-se pela possibilidade de os separarmos daqueles que já constituem o objecto do processo, de tal sorte que, sem se prejudicar o processo penal em curso, sejam criadas as condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do princípio ne bis in idem (i.e.,que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos)» – SOUSA MENDES, “O Regime Da Alteração Substancial de Factos No Processo Penal”, in MÁRIO FERRREIRA DO MONTE (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra Editora 2009, pp. 758-759].   

Depois, o de saber o que fazer com os novos factos (se pura e simplesmente se os desconsidera, se são de qualquer forma aproveitáveis no mesmo ou noutro processo, se dão ou não origem a novo inquérito) e qual a solução processual em relação a eles (se absolvição da instância, se arquivamento do processo, se aproveitamento no processo em curso, ao menos para dosear a pena, se absolvição do arguido, se nenhuma solução, tudo se passando como se não existissem), havendo uma multiplicidade e disparidade de opiniões, como nos dá conta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, Universidade Católica Editora, 4.ª edição actualizada, pp. 934 a 939 e CRUZ BUCHO, Alteração Substancial Dos Factos Em Processo Penal, www.trg.ptsecção documentação/estudos, que, no seguimento de vários Autores, compõe uma resenha muito completa das várias situações que podem configurar ambas as hipóteses (autonomização/não autonomização) e das variadas soluções propostas.

PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, no referido Comentário, apresenta uma síntese final, que condensa a posição que parece mais seguida ou mais sustentada a partir das alterações introduzidas no art. 359.º do CPP pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, nomeadamente os referidos n.ºs 1 e 2. Eis o que expõe nessa síntese: «Assim, se resultar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, o juiz toma uma de duas posições: a) O juiz decide que os factos novos são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e comunica a alteração ao MP para os efeitos tidos por convenientes, devendo este abrir inquérito quanto ao mesmo; b) O juiz decide que os factos novos não são autonomizáveis em relação ao objecto do processo e determina que os factos não podem ser tomados em conta pelo tribunal para efeito de prolação da sentença (sobre a constitucionalidade desta solução, acórdão do TC n.º226/2008, com base na responsabilidade funcional” do MP)». Ou seja, e nos termos deste aresto, dada a opção do legislador ordinário em conferir mais intensa realização ao princípio do acusatório, em detrimento dos princípios da verdade material e da paz jurídica do arguido, a consequência será «o inexorável sacrifício parcial do conhecimento da verdade material que daí decorre». Verdade parcial, entenda-se, porque o que normalmente estará em causa nessas hipóteses «são circunstâncias modificativas especiais que nunca teriam relevância suficiente para sustentar um processo à parte» (do mesmo aresto, parte da fundamentação, n.º 10.)

8.1.2. Problema crucial é, efectivamente, o da definição legal de alteração substancial dos factos, dela dependendo, afinal, a mutação do objecto que não pode ser aproveitada no mesmo processo, a não ser na hipótese de consenso acima considerada, muito embora os novos factos possam estar em correlação com os constantes da acusação ou da pronúncia [e daí que TERESA PIZARRO BELEZA prefira falar em variações dos factos constantes da acusação ou da pronúncia e não em “novos factos”, que, por totalmente distintos, dariam necessariamente origem a um novo processo (“As Variações Do Objecto Do Processo No Código De Processo Penal De Macau”, Revista Jurídica de Macau, Vol. IV, n.º 1 – JAN/ABR de 1997)].   

8.1.3. Saber quando se está perante crime diverso tem sido um outro escolho a vencer, nesta navegação acidentada entre Sila e Caríbdis, sempre na tensão de escapar às dificuldades que se nos colocam de um e outro lado da estreita passagem. Mas, também aqui, não vamos alongar-nos, enunciando tão-só as principais vertentes do problema, dado que a solução do caso em conflito de jurisprudência se bastará com elas, para tanto nos tendo socorrido dos ensinamentos dos seguintes Autores, pesem embora as diferenças que os separam (JoSÉ DE SOUTO MOURA, ob. cit., p. 70 e ss. e Aulas sobre “O Objecto do Processo”, integradas nos Apontamentos de Direito Processual Penal, TERESA PIZARRO BELEZA, edição da AAFDL, 1992, pp. 43 e ss.; TERESA PIZARRO BELEZA, Revista Jurídica de Macau, pp. 47 a 56; MARQUES FERREIRA, ob. cit.,pp. 227 a 234; FREDERICO ISASCA, ob. cit., p. 117 e ss.)

Limitar-nos-emos a dizer que a noção de crime diverso contende com as teorias sobre factos objecto do processo que já expusemos (supra,7.1.4.).

Tal noção há-de partir de uma ideia de acontecimento histórico, tendo por base uma percepção social unitária, com uma determinada valoração que, não sendo exclusivamente jurídica, não prescinde de uma referência normativa, de carácter jurídico-criminal e mesmo, em último termo, de uma referência ao bem jurídico e a outros elementos da acção. É que “crime” não pode deixar de ter, na sua base conceptiva, um acontecimento da vida real concreta, o tal pedaço de vida histórico-social onde se recorta o facto, mas com relevância jurídico-criminal, já que, da multiplicidade de factos da vida real, só interessam os que podem concretizar ou dar expressão a uma conduta desvaliosa, em termos criminais, embora formulada, durante o inquérito e na acusação, como hipótese. Daí que a lei fale em factos que dão origem a “crime diverso”, não podendo referir-se a crime com outra acepção, que não a que lhe advém da qualificação de determinadas condutas como crime pelo direito substantivo. Isto, muito embora não ocorra coincidência entre unidade do objecto do processo e unidade de crime no direito substantivo.

Crime também não é sinónimo de tipo legal de crime, pois, se o fosse, a lei não formularia, como alternativa para a alteração substancial dos factos, a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (caso, por exemplo, das agravantes típicas modificativas). Isto não significa, todavia, que não possa haver alteração substancial dos factos, quando a modificação acarretar imputação de um crime menos grave (cf. FREDERICO ISASCA, Ob. cit.,p. 145). 

Por outro lado, a noção de bem jurídico também haverá de entrar, em muitos casos, para estabelecer a diferença entre identidade e alteridade dos factos. Uma mudança de bem jurídico, que substitua o inicial, em princípio, acarretará alteração substancial, mas pode não ser assim, quando se trate, por exemplo, de concurso aparente de infracções, como o que decorre entre homicídio e ofensas corporais, ambos voluntários ou ambos negligentes, entre homicídio qualificado e homicídio simples, (mas, no caso de se tratar de alteração de factos de homicídio simples para qualificado, a agravação da sanção máxima aplicável implicaria a consideração de alteração substancial), entre roubo e ofensas à integridade física ou furto.

Quanto a outros elementos, mencione-se a identidade do sujeito da acção, implicando fatalmente a alteração substancial dos factos, desde logo por força da subjectivação do acontecimento histórico, e o juízo base da ilicitude, como o que intercede entre crime tentado e consumado, cumplicidade e autoria, negligência e dolo, dando origem a alteração substancial dos factos, se não por força da alteridade do crime, pela consequência de a mudança acarretar agravação das sanções máximas aplicáveis.

9. Retomando o conflito jurisprudencial deste recurso.

9.1. Vimos já que o conflito se cifra em saber se o tribunal de julgamento, ante uma acusação que não contenha, total ou parcialmente, os elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, pode integrar os elementos em falta por recurso ao mecanismo do art. 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos).

Na situação em análise, pelo que diz respeito ao acórdão recorrido, tratava-se de um crime de injúria, do art. 181.º, n.º 1 do CP, em que a acusação particular era omissa relativamente a elementos integrativos do dolo.

Concretamente, a acusação imputava ao arguido o ter-se dirigido ao escritório do assistente e, após troca de palavras, tê-lo apelidado de “lier” e “cheater”, expressões estas que significam, traduzidas para português, “mentiroso” e “aldrabão”.

No que toca ao elemento subjectivo e relembrando o já constante do relatório, a acusação continha o seguinte:

“Os arguidos [tratava-se também da mulher do recorrente, que foi absolvida] agem da forma descrita com o intuito de prejudicar o assistente.

“O assistente sente-se ofendido na sua honra e consideração bem como na sua reputação profissional”.

Na sessão de julgamento em 1.ª instância, no dia 22/06/2010, precedendo a leitura pública da sentença, foi proferido o seguinte despacho:

«Em face da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

»- O arguido AA sabia que as expressões referidas eram aptas a atingir a honra e consideração do assistente e ainda assim quis dirigi-las ao mesmo, como fez.

»- O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

»Tais factos configuram uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, atento o disposto nos arts. 358.º, n.º 1 e alínea f) do art. 1.º do CPP, pelo que se comunica a referida alteração ao arguido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, n.º 1 do CPP.

»Ciente do despacho supra, o Ex.mo Mandatário dos arguidos disse “nada ter a requerer e prescindir do prazo de preparação da defesa”».

Em face disso, o arguido foi condenado e o Tribunal da Relação de Évora confirmou a condenação e o juízo feito sobre a circunstância de os elementos aditados constituírem alteração não substancial dos factos, da forma que já ficou descrita no relatório.

Para já, duas considerações a fazer:

a) Não obstante se ter considerado, no acórdão recorrido, que era parcial a omissão dos elementos em falta, verifica-se, pelos factos aditados, que o que foi omitido foi, praticamente, o conjunto dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito.

É que o facto de, na acusação particular, constar que o arguido agiu com intuito de prejudicar o assistente e que este se sentiu ofendido na sua honra e consideração, bem como na sua reputação profissional, não satisfaz, de maneira alguma, as exigências do tipo legal de crime de injúrias, pelo que diz respeito ao tipo subjectivo.

Por um lado, o “intuito de prejudicar” o ofendido não corresponde ao elemento subjectivo típico do crime, não se sabendo exactamente o que se quer dizer com “prejudicar”, parecendo que tal expressão envolve mais um dano na esfera patrimonial. O que o tipo legal do crime de injúria exige é a ofensa à honra ou consideração. O prejuízo material pode ser uma consequência da lesão da honra e consideração de alguém, mas não é elemento do crime, dando origem à obrigação de indemnizar, se o prejuízo efectivamente vem a ter lugar.

Por outro lado, o facto de o assistente se sentir ofendido na sua honra e consideração e na sua reputação profissional também não satisfaz as exigências do tipo subjectivo do ilícito (o dolo do tipo, visto tratar-se de um crime essencialmente doloso), pois o que releva para tal efeito é o conhecimento, por parte do agente, actuando voluntariamente, de que as expressões por si utilizadas, são aptas para ofender a honra e consideração de alguém, concretamente do ofendido. Não é, porém, o simples facto de este se sentir ofendido que releva para tal efeito, não sendo a sensibilidade particular do ofendido que norteia a característica lesão do bem jurídico em causa. No caso, até se tratava de expressões proferidas em língua estrangeira (a língua da nacionalidade de origem do arguido), implicando o conhecimento do seu significado e, sobretudo, da sua carga semântica dentro do idioma usado.

Escrevia pertinentemente BELEZA DOS SANTOS: «Nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...). Não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais». (…) «Neste juízo individual ou do público, acerca do que pode ser considerado ofensivo da honra e da consideração é comum a todos os meios e países a exigência do respeito de um mínimo de dignidade e de bom nome. Para além deste mínimo, porém, existe certa variedade de concepções, da qual resulta que palavras ou actos considerados ofensivos da honra, decoro ou bom nome em certo país, em certo ambiente e em certo momento, não são assim avaliados em lugares e condições diferentes. O que pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo» («Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria», Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92, n.º 3152, p. 167/168)   

Claro que o facto de o visado se sentir ofendido tem relevância, se a ofensa tiver a tal aptidão ofensiva, mas não é indispensável que tal aconteça. Com efeito, a lei tutela a honra mesmo em relação a pessoas que não têm capacidade para sentir a ofensa ou a pessoas que não têm sentido de auto-estima e, em sentido inverso, de pessoas que não gozam dos favores da admiração pública. Assim, NELSON HUNGRIA, Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro 1956, Vol. 6.º, 3ª edição, p. 36 e segs., BELEZA DOS SANTOS, ob. cit., p. 152 e segs.; ALBERTO BORCIANI, As Ofensas À Honra, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1950, p. 13 e segs., VINCENZO MANZINI, Trattato di Dirito Penale, Turim, 4ª edição, T. 8º, p. 475 e segs, AUGUSTO DA SILVA DIAS, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e injúrias, Lisboa, AAFDL, 1989, p. 19).

 Tal será assim como resultado de o bem jurídico “honra” dever ter na sua base uma concepção normativa, que radica na igual dignidade da pessoa humana, enquanto portadora de determinados valores morais e espirituais, mas temperada por uma concepção fáctica, que introduz o tal elemento objectivo da reputação de que goza determinada pessoa. Desse modo, tanto é protegida a honra interna, como a honra externa, consistente na reputação e bom nome de que goza determinada pessoa (FARIA e COSTA, Comentário Conimbricense Do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, p. 604).

Por conseguinte, o que foi aditado na audiência de julgamento aos factos descritos na acusação particular contém a totalidade do elemento subjectivo do tipo legal (dolo do tipo) e ainda os elementos do denominado dolo da culpa (tipo de culpa), traduzidos na consciência, por parte do arguido, de que atingia a honra e consideração do ofendido e mesmo assim querendo dirigir-lhe essas expressões, sabendo que actuava contra direito, ou seja, na formulação que ficou plasmada nesse aditamento, a vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas eram idóneas a ofender a honra e consideração do assistente, sabendo o arguido que tal acto era proibido por lei, mas, mesmo assim, querendo dirigir tais expressões ao assistente. Tanto assim é, que aquilo que foi descrito na acusação como elemento subjectivo do crime poderia nem sequer lá estar, pois o que releva verdadeiramente é o que foi acrescentado à acusação na audiência de julgamento.

b) A segunda nota diz respeito à forma como foi comunicada a alteração dos factos. No fim da sessão da audiência de julgamento, imediatamente antes da leitura da sentença, o juiz comunicou que, em face da prova produzida, se tinham provado outros factos (concretamente, os já referidos).

Ora, o que o art. 358.º do CPP determina é que, «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver (…), o presidente comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

Ou seja, o que se deve comunicar não são factos provados; são factos indiciados que envolvam uma alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, pois estes factos, ficando a constituir objecto do processo, vão também delimitar o tema da prova e, por isso, é que se concede ao arguido, se ele o requerer, o tempo necessário para ele preparar a defesa (Cf., a tal propósito, FREDERICO ISASCA, ob. cit., p. 200-201, nota 2).

Porém, não é altura para criticar a decisão recorrida, que, de resto, transitou em julgado.

9. 2. A alteração dos factos, como vimos, diz respeito à omissão do elemento subjectivo na acusação, mais propriamente, dos elementos que constituem o dolo, tratando-se, como se trata, de crime essencialmente doloso nos dois casos em confronto (crime de injúrias).

Poderá a falta deste elemento do tipo subjectivo do ilícito ser colmatada em audiência de julgamento, através do mecanismo previsto para a alteração não substancial dos factos?

As soluções divergem, como está à vista no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, o primeiro tendo-se pronunciado pela positiva e o segundo, pela negativa.

Será altura de passarmos em revista a jurisprudência sobre o caso.

9.2.1. No sentido do acórdão recorrido pronunciaram-se os seguintes acórdãos:

A) Do Tribunal da Relação de Lisboa

- Acórdão de 02/11/2000, Proc. n.º 0075859

Não é manifestamente infundada e não deve ser rejeitada a acusação de onde não conste expressamente a intenção com que o arguido agiu, embora esse elemento implicitamente nele se contenha. A deficiência é colmatável no julgamento, através do mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

- Acórdão de 26/09/2001, Proc. n.º 0075443

Na mesma linha do anterior.

- Acórdão de 14/02/2012, Proc. n.º 373/09.0SZLSB-L.1-5

 Considera que o acrescento do elemento subjectivo, totalmente falho na acusação, em crime de resistência à autoridade e o acrescento do elemento volitivo em crime de injúrias agravado (contra a autoridade) constitui alteração não substancial dos factos.

B) Do Tribunal da Relação de Évora

- Acórdão de 15/07/2008, Proc. n.º 759/08-1

Diz que falta do elemento subjectivo, em crime de injúria, não é fundamento de rejeição da acusação, ao abrigo do art. 311.º do CPP, uma vez que pode ser integrado, em julgamento, com recurso aos princípios da lógica racional, por ser inerente à prática dos factos imputados.

- Acórdão de 20/01/2011, Proc. n.º 89/09.7TAABT.E1

Trata-se de uma decisão “sui generis”, pois não abdica da inclusão, na acusação, dos elementos do dolo, mas já não assim no que toca à consciência da ilicitude, que diz pertencer à culpa, que é categoria autónoma, não pertencente ao tipo subjectivo. No caso, considera ter sido articulado o dolo, nos seus elementos cognitivo e volitivo.

 

C) Do Tribunal da Relação de ...

- Acórdão de 16/10/2004, Proc. n.º 1245/04-1

Neste caso faltava o elemento do conhecimento de a conduta ser proibida, embora na acusação constasse que a “arguida agiu com manifesta intenção de atingir a ofendida na sua honra e consideração”. O acórdão, misturando vários conceitos e factos com conclusões, acaba por afirmar que «dizer-se que o arguido quis lesar”, ou “o arguido agiu com dolo”, ou “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”, ou ainda “o arguido tinha plena consciência da ilicitude da sua conduta”, ou é repetir aquilo que se deduz dos factos alegados, ou são meras conclusões que deles se extraem.

D) Supremo Tribunal de Justiça

- Acórdão de 07/10/92, Proc. n.º 042918

Tendo sido alegada, em recurso, insuficiência da matéria de facto, o STJ considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”, dando, assim, por inexistente o vício alegado: não se ter dado como provado ou não provado que o arguido sabia que a sua actuação era proibida por lei.

 

9.2.2. No sentido do acórdão-fundamento, ou seja, no sentido de que não é possível, na audiência de julgamento, por recurso ao art. 358.º do CPP, integrar os elementos respeitantes ao tipo subjectivo do ilícito, pronunciaram-se os seguintes acórdãos:

A) Do Tribunal da Relação de ...

- Acórdão de 30/01/2007, Proc. n.º 10221/2006-5

O juiz de instrução havia declarado nula a acusação deduzida pelo MP, por falta do elemento subjectivo (dolo ou negligência) num crime de dano, ordenando a remessa dos autos ao MP. O TRL, dando provimento ao recurso do arguido, considerou este procedimento inadmissível, por entender que a acusação devia conter, de forma precisa, todos os elementos mencionados nas alíneas do n.º 3, do art. 283.º do CPP, e que ao JIC apenas competia, na altura de decidir, elaborar despacho de pronúncia ou de não pronúncia, tal como, se o processo tivesse sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, deveria o presidente rejeitar a acusação, por manifestamente infundada e, se acaso tivesse prosseguido para julgamento sem esse crivo, o juiz só teria uma solução: absolver o arguido.    

- Acórdão de 12/11/2008, Proc. n.º 5736/2008-3

Tratava-se de crime de injúrias, tendo o processo sido remetido para julgamento, sem ter havido instrução. O juiz rejeitou a acusação, por manifestamente infundada (art. 311.º, n.º 2,, alínea a) e 3, alínea d) do CPP, por não conter descrição do elemento subjectivo. O TRL confirmou, considerando que não pode retirar-se dos factos o elemento subjectivo, por força de rejeição da ideia de um “dolus in re ipsa” e que, face à estrutura acusatória do processo penal, o juiz não pode substituir-se ao acusador.

B) Tribunal da Relação do ...

- Acórdão de 15/11/98, Proc. n.º 9840867

Confirmação de rejeição de acusação, que não tinha sido recebida, com fundamento em falta do elemento subjectivo em crime de injúria.

- Acórdão de 19/10/2005, Proc. n.º 0541390

No mesmo sentido do anterior (crime de injúrias): o elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados ao arguido na acusação do assistente.

- Acórdão de 28/10/2009, Proc. n.º 584/07.2GCETR.P1

Rejeição de acusação em crime de injúrias, em que o MP havia colmatado a falta do elemento  subjectivo, o que foi considerado inadmissível. O TRP confirmou o decidido, fundando-se na principio do acusatório, vinculação temática e recusa do “dolus in re ipsa”.

- Acórdão de 16/06/2012, Proc. n.º 414/09.PAMAI-B.P1

Tratava-se de um crime de dano, em que o MP proferiu despacho de arquivamento por não estar suficientemente indiciada a prática do crime. Requerida a abertura de instrução, veio o JIC a rejeitar tal requerimento por total omissão de elementos referentes à consciência de ilicitude, os quais deveriam constar obrigatoriamente do requerimento, funcionando como acusação, sendo por isso manifestamente infundado. O TRP confirmou tal decisão, discorrendo sobre o princípio do acusatório, a vinculação temática e a necessidade de, no requerimento para abertura de instrução, constarem os factos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, nomeadamente os integrantes do dolo e a consciência da ilicitude, enquanto integrante do tipo de culpa, sendo esse elemento necessário para a punibilidade.

- Acórdão de 10/07/2013, Proc. n.º 327/10.3PGVNG.P1

Tratava-se de crime cometido por inimputável (violência doméstica), em que a acusação foi rejeitada por não conter a descrição dos factos em que se traduziria o dolo. Interposto recurso desse despacho, o TRP confirmou a decisão, entendendo que a descrição dos factos em que se materializa o tipo subjectivo do ilícito (dolo ou negligência) é imprescindível na acusação, mesmo tratando-se de crime cometido por inimputável. Isto, porque “pressuposto da aplicação de uma medida de segurança de internamento é a prática, por inimputável, não de um mero ilícito típico, mas de um facto criminoso, com ressalva de todos os elementos que pertençam à categoria da culpa ou dela decorram”.   

C) Tribunal da Relação de ...

- Acórdão de 30/09/2009, Proc. n.º 910/08.7TAVIS.C1

O MP havia arquivado o inquérito pelo crime de denúncia caluniosa. Requerida abertura de instrução pela assistente, veio este requerimento a ser indeferido pelo JIC, por não conter a descrição dos elementos subjectivos do tipo, decisão que a Relação confirmou, entendendo que da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para possibilidade de imputação do facto ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa – o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo – o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).

-  Acórdão de 06/07/2011, Proc. n.º 2184/06.5JFLSB.C1

  O JIC não pronunciou, por falta de descrição do elemento subjectivo da infracção na acusação pública, que o arguido impugnou – crime de administração danosa, entendendo que a reformulação da acusação seria manifestamente violadora do princípio do acusatório, não se podendo, na instrução, alterar os factos dela constantes, convertendo uma conduta atípica numa conduta típica. A Relação confirmou.

- Acórdão de 01/06/2011, Proc. n.º 150/10.5T3OVR.C1

Confirmação de despacho de não recebimento da acusação, por falta de elemento subjectivo da infracção (dolo), em crime de injúria, entendendo-se que não há “dolus in re ipsa”.

- Acórdão de 21/03/2012, Proc. n.º 597/11.0T3AVR.C1

 Tratava-se de crime de difamação em que a acusação particular omitiu  a descrição dos factos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mas em que o MP aditou esses elementos, tendo sido considerado que o MP carecia de legitimidade para tanto, em crime particular, sendo nula a acusação deduzida. A Relação confirmou, considerando que a lacuna não poderia ser colmatada em audiência de julgamento, por configurar uma alteração substancial dos factos, convertendo uma conduta atípica numa conduta típica.

- Acórdão de 09/05/2012, Proc. n.º 571/10.3TACVL-A.C1

Em crime de injúrias, por ocasião do cumprimento do art. 311.º do CPP, o juiz acrescentou os elementos do tipo subjectivo do ilícito, que faltavam na acusação particular, o que foi considerado, em recurso interposto pela arguida, inadmissível, por violação do princípio do acusatório.

 

D) Tribunal da Relação de ...

- Acórdão de 07/04/2003, Proc. n.º 84/03, de Viana do Castelo.

Em acusação particular, por crime de injúrias, não foram descritos factos tradutores do elemento subjectivo (dolo), não tendo a acusação sido recebida, por manifestamente infundada, o que foi confirmado pela Relação, com fundamento em que não existem presunções de dolo e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Teve voto de vencido do mesmo juiz que foi relator do acórdão referido em 9.2.1. C).

- Acórdão de 17/05/2004, Proc. n.º 777/04-1

O MP arquivou o inquérito por crime de ameaça do art. 153.º, n.º 1 do CP; o assistente requereu abertura de instrução, tendo o requerimento sido rejeitado, por falta total dos elementos que consubstanciavam o tipo subjectivo, o que veio a ser confirmado pela Relação, que, ente o mais, afirmou que um tal requerimento nunca poderia conduzir à pronúncia, por o acrescento daqueles elementos se traduzir em alteração substancial dos factos.

- Acórdão de 06/12/2010

Caso semelhante ao anterior, mas em que o crime era o de introdução em lugar vedado ao público (art. 191.º do CP).

E) Tribunal da Relação de ...

- Acórdão de 01/03/2005, Proc. n.º 2/05-1

O acórdão afirma a inexistência de “dolus in re ipsa” e a necessidade de os factos correspondentes constarem da acusação ou pronúncia.

10. É chegada a altura de tomarmos posição sobre o conflito jurisprudencial que está em causa neste recurso.

10.1. O nosso processo penal tem estrutura basicamente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material. É, pois, pela acusação ou pela pronúncia que se delimita o objecto do processo. O princípio da investigação da verdade material tem de ser exercido nos limites traçados pela acusação ou pela pronúncia, nisto vindo a residir a conciliação do princípio da máxima acusatoriedade com o da investigação oficial (Cf. MARQUES FERREIRA, ob. cit., p. 229).

“Segundo o princípio da acusação […] a actividade cognitiva e decisória do tribunal está estritamente limitada pelo objecto da acusação” (FIGUEIREDO DIAS,ob. cit., p. 144). A isto se chama o principio da vinculação temática, já anteriormente analisado (supra, 7.1.)

Ora, a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo do ilícito, como os do tipo subjectivo.[3]

Na verdade, os factos da vida real, os que se traduzem no recorte de um determinado pedaço de vida, ditos também “naturalísticos”, só têm interesse enquanto reportados a uma acção relevante do ponto de vista jurídico-penal, isto é, consubstanciando um crime. Este, na definição de FREDERICO ISASCA, vem a traduzir-se, precisamente, num «comportamento socialmente relevante tipificado pela ordem jurídica – portanto um comportamento formal e materialmente ilícito – susceptível de um juízo de culpa, isto é, de uma reprovação jurídico-penal, que se traduz na imposição de uma sanção, sempre e em última instância privativa de liberdade» (ob. cit., p. 117).

Entre os elementos relevantes que dão um sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos.

Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.

A outra coisa não conduz a muito concisa e muito técnica definição legal de crime contida no art. 1.º, alínea a) do CPP: «conjunto de pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança criminais» - pois nesse conjunto de pressupostos tanto se contam os de carácter objectivo, como os de natureza subjectiva descritos no respectivo tipo legal de crime e noutras disposições legais de carácter penal geral.

De forma mais concreta, o art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, impõe que a acusação contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.»

Todo o preceito está impregnado de referências aos elementos subjectivos, pois, ao falar dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, está a abarcar tanto os factos de carácter objectivo, como os de natureza subjectiva, e ao falar de motivação da prática dos factos, do grau de participação que o agente neles teve e de quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, é da particular relação do agente perante o facto que está a falar, incluindo a modalidade de culpa, as circunstâncias que conferem ao facto, através da personalidade do agente, maior ou menor carga de censura ético-social e ético-jurídica e de reprovação da sua conduta actuante ou omitente. Na verdade, todas estas circunstâncias têm influência decisiva na determinação da sanção.

10.2. De entre os elementos do tipo subjectivo de ilícito estão os que se relacionam com o dolo ou a negligência. “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art. 13.º do CP). Tratando-se, nos acórdãos em conflito, de crime essencialmente doloso, só a culpa na modalidade de dolo nos interessa.

O dolo vem legalmente definido nos vários elementos que o compõem no art. 14.º do CP.

Esses elementos costumam ser referidos, sinteticamente, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.

Analiticamente, o dolo desdobra-se, portanto, num elemento intelectual  e num elemento volitivo ou emocional (para a doutrina tradicional, representada entre nós, principalmente por EDUARDO CORREIA), constituindo este elemento “emocional” um terceiro elemento (autónomo)  para novas correntes da doutrina do crime, entre nós representadas por FIGUEIREDO DIAS.

10.2.1. O elemento intelectual implica, desde logo, o conhecimento (previsão ou representação), por parte do agente, das circunstâncias do facto, ou, por outras palavras, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito, incluindo as circunstâncias modificativas agravantes nos tipos qualificados ou agravados.

Relativamente aos elementos não descritivos, mas normativos do tipo, como, por exemplo, o carácter “alheio” da conduta e “coisa móvel”, nos crimes patrimoniais, a qualidade de “funcionário”, nos crimes cometidos no exercício de funções públicas, a noção de “documento”,  “documento autêntico”, “vale do correio”, “cheque”, “letra de câmbio”, nos crimes de falsificação, etc., exige-se que o agente tenha, não uma noção exacta, do ponto de vista da sua subsunção jurídica, mas um conhecimento da valoração desses elementos que, ao nível próprio das representações do agente, “corresponda no essencial à avaliação jurídica desses factos”, segundo a formulação de MEZGER, ou que tenha um conhecimento dos efeitos práticos usuais ligados aos elementos jurídicos empregados, na formulação de BELEZA DOS SANTOS (apud EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Livraria Almedina, Coimbra, 1968, T. 1.º, p. 374), ou ainda, no pensamento de FIGUEIREDO DIAS, aqui sintetizado, que a representação do agente, ao nível próprio das suas representações, corresponda, no essencial, ao conteúdo da valoração jurídica, «cumprindo assim a função de orientar o agente para a ilicitude do facto» (Direito Penal – Parte Geral, T. 1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2007, pp. 352/353).

Isto como regra geral, pois há outros casos de uso de expressões jurídicas mais elaboradas que imporão uma maior exigência de conhecimento, principalmente no direito penal secundário, e outros casos, um menor grau de exigência, em que o conhecimento exigível do agente se limita ao conhecimento dos pressupostos materiais, como nos casos em que a lei fala de “bons costumes”, “ilegitimidade”, “dever de garante”, etc. (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 354).    

Tudo isto pressupõe que o conhecimento exigível do agente envolva o conhecimento do sentido ou significado correspondente ao tipo de ilícito dos diversos elementos materiais e normativos que o compõem, pois os factos só relevam, como já visto, em função do seu significado jurídico-penal.

 

10.2.2. O outro elemento do dolo é o elemento volitivo.  

Consiste ele na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado (ou previsto) as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.

Segundo EDUARDO CORREIA, fiel à sua posição filosófica já explicitada (mundo dos factos naturalísticos, por um lado, e mundo dos valores, por outro) este elemento do dolo não se confunde com o aspecto psicológico, traduzido num simples acto de volição, ou seja, em o agente do facto, tendo representado todos os seus elementos, querer levá-lo avante. Essa relação psicológica entre o facto e o agente é facto “naturalístico”. O que caracteriza o dolo é a vontade do agente, assim manifestada, revelar a sua personalidade contrária ao direito, a sua determinação em sobrepor os seus próprios sentimentos e interesses aos valores tutelados pelo direito criminal. Daí que, para EDUARDO CORREIA, o dolo do tipo legal de crime contivesse já o chamado elemento emocional, traduzido na consciência, por parte do agente, de que realizava um tipo objectivo de ilícito e que tal supunha a sobreposição dos seus interesses egoístas aos valores tutelados pela lei.       

Já FIGUEIREDO DIAS distingue entre dolo do tipo (de ilícito) e o dolo enquanto pertencente ao tipo de culpa. Segundo a sua concepção, «o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (por consequência, não é igual ao dolo do tipo), mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona ao elemento intelectual e volitivo contidos no conhecimento e vontade de realização”; uma qualquer posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas», revelada pelo agente no facto e que justifica a punição a título de dolo. Esse elemento, porém, já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa.  (Ob. cit., p. 350).

10.2.3. O dolo nem sempre reveste a modalidade de dolo directo ou intencional (quando o agente quer o facto criminoso), mas também outras modalidades, como o dolo necessário (quando o agente não quer o facto como alvo a que se dirigisse, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e dolo eventual (quando o agente prevê o facto como possível, conformando-se com o resultado), todas estas modalidades sendo enunciadas no art. 13.º do CP.

Ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).

A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS.

Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).

10.2.3.1.- O problema, aflorado no acórdão recorrido, levanta-se a respeito desta última. Muito resumidamente, diremos que, modernamente, o problema se tem colocado de forma diferente do que era usual colocar-se.

O conhecimento da proibição legal, que não é exactamente equivalente a “consciência da ilicitude” será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo tipo de ilícito. «Por isso, o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato de valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para a afirmação do dolo do tipo […] » FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pp. 363/364).

A necessidade de tal exigência faz-se sentir sobretudo a nível do direito contra-ordenacional, do direito penal secundário, relativamente a certas incriminações de menor relevância axiológica, mas também a nível de algumas incriminações do direito penal de justiça, principalmente no que toca à protecção de bens jurídicos cuja consciência se não encontra ainda suficientemente solidificada na comunidade social. Então, faz sentido exigir o conhecimento da proibição como forma de realização do dolo do tipo.

Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significação da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúrias, pôr a questão de saber se o agente, que actuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, actuou ou não com conhecimento da proibição legal, isto é, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg.

A essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, referido supra, 9.2.1., que à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não teria da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”.

Quanto à consciência da ilicitude, é evidente que ela é uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do ilícito típico. Porém, a sua compreensão dogmática coloca-se a um outro nível e tem a ver com a questão da relevância do erro sobe a ilicitude, contemplada no art. 17.º do CP. O erro sobre a ilicitude não exclui o dolo, ao contrário do erro sobre a factualidade típica, na qual se pode incluir, em certas circunstâncias, como as já referidas, o conhecimento sobre proibições legais. Fica, porém, ressalvada, quanto a este tipo de erro, a punibilidade da negligência nos termos gerais (art. 16.º). O erro sobre a ilicitude exclui a culpa, se o erro não for censurável ao agente (sendo uma causa de exclusão da culpa), mas faz persistir o dolo, no caso de o erro ser censurável. Daí que o facto praticado sem consciência da ilicitude seja equiparável ao praticado com essa consciência, desde que não possa afastar-se a censurabilidade de tal erro.   

Escreve FIGUEIREDO DIAS, cujas ideias básicas, muito pela rama, intentamos transpor para aqui, que a razão de ser da diferença entre o regime do erro sobre proibições, cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para o agente tomar conhecimento da ilicitude (art. 16.º), conduzindo à exclusão do dolo do tipo, e o erro sobre o carácter ilícito do facto (art. 17.º), fundamentador do dolo da culpa, está em que «neste último caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica (ou consciência intencional […]), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência dos valores (…), revelando a falta de sintonia com a ordem dos valores ou dos bens jurídicos que ao direito penal cumpre proteger», ao passo que, no primeiro caso, trata-se da «falta de conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito (Direito Penal, cit., pp. 356 e ss. e 531 e ss.)

Diz ainda o mesmo Autor, noutra passagem da mesma obra, que o que se visa com a exigência do conhecimento, representação ou consciência (psicológica ou intencional) de todas as circunstâncias do facto realizador de um tipo de ilícito objectivo, é que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da sua consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento (sublinhados nossos) [ob. cit., p. 351).

10.2.4. Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.

O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correcta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.

De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria  factualidade objectiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus De Alegar E De Provar Em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142).      

11. Conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP).

Por conseguinte, tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos.

Claro que uma tal visão implica que os factos em falta na descrição constante da acusação (pressupondo que ela contém uma descrição relativa a outros factos) são essenciais, imprescindíveis, e que a sua falta corresponde à falta de narração a que se refere o normativo referido. Ou seja: a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos a propósito, nomeadamente, das teorias do objecto do processo, e a valoração específica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa.  

Por conseguinte, vistas as coisas por este prisma, a acusação seria de rejeitar logo nessa fase do processo.

Mas há uma outra consideração que deveria levar à rejeição. É o facto de os elementos em falta não poderem ser integrados no julgamento por simples recurso ao art. 358.º do CPP – alteração não substancial dos factos. E é o que vamos ver de seguida.

11.2. Tendo a acusação passado no crivo do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.

Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.

Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).

No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M.º P.º e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.

Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.º do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.º, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.

Por isso, ponderados estes factos, acabamos por concordar com o parecer contido nas alegações da Sra. Procuradora-Geral Adjunta: «A falta de indicação de factos integradores, seja do tipo objectivo de ilícito, seja do tipo subjectivo de ilícito, implicando assim o não preenchimento, a perfeição, do tipo de ilícito incriminador, deve, forçosamente, conduzir à absolvição do arguido, se verificada em audiência de julgamento.

»Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.

»Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador – no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito – conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.»   

Contudo, quer se adopte uma solução ou outra, o certo é que o mecanismo do art. 358.º do CPP é que nunca é aplicável ao caso.

III. DECISÃO

12. Nestes termos, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

a) - Fixar a seguinte jurisprudência:

A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.

b) – Julgar procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida para que o Tribunal da Relação de Évora profira outra em consonância com a jurisprudência agora fixada.

13. Dê-se cumprimento ao disposto no art. 444.º, n.º 1 do CPP.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Novembro de 2014

Rodrigues da Costa (relator)
Armindo Monteiro (vencido conforme declaração de voto subscrita pelo Exmo.º Sr. Juiz Cons.º Santos Cabral)
Souto Moura
Maia Costa
Pires da Graça
Raul Borges
Isabel São Marcos
Helena Moniz
Pereira Madeira
Santos Cabral (vencido porquanto (…) admitindo que existe oposição entre os acórdãos proferidos, pressuposto de que se discorda, entendemos que, contrariamente ao decidido, e nas circunstâncias referidas no presente acórdão, será aplicável o referido artigo 358 do CPP)
Manuel Braz (com declaração de voto porque (…) a questão de direito que cada um dos acórdãos decidiu não foi a mesma (…) Votei, por isso, no sentido da rejeição do recurso, ao abrigo do n.º 1 do artigo 441.º do Código de Processo Penal, aplicável ainda nesta fase. Decidida por maioria a existência de oposição de julgados, votei favoravelmente a jurisprudência fixada)
Henriques Gaspar (Presidente)

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[1] Descuramos a alteração dos factos na fase de instrução, por não interessar ao caso do presente conflito de jurisprudência.
[2] O destaque a negrito significa que essa parte da lei foi alterada inovatoriamente pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
[3] Quando referimos o tipo subjectivo do ilícito de forma genérica, queremos também abarcar  elementos atinentes ao tipo de culpa. Sendo embora este uma categoria autónoma nas modernas concepções dogmáticas da teoria do crime, tal como veiculadas entre nós por FIGUEIREDO DIAS, a verdade é que o problema vem equacionado como reportando-se à possibilidade de integração, no julgamento, com recurso ao disposto no art. 358.º do CPP, dos elementos do tipo subjectivo do ilícito em falta na acusação, sendo que, na concepção tradicionalmente mais divulgada, não se distinguia entre os elementos do tipo subjectivo e os elementos do tipo de culpa. E, por outro lado, o dolo e a negligência «constituem primariamente elementos do  tipo de ilícito subjectivo, que mediatamente relevam também como graus de culpa», como sustenta o referido Autor, ressalvando, todavia, o carácter complexo dessas entidades, em que, dos seus elementos, «uns relevam ao nível do tipo de ilícito sujectivo, outros ao nível do tipo de culpa» (Direito Penal, Parte Geral, t. 1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição., pp. 272/273.