Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
168/06.2TBVGS.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: REVISTA
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
NULIDADE DE SENTENÇA
INQUÉRITO JUDICIAL
CASO JULGADO
LIMITES DO CASO JULGADO
CRÉDITO
JUROS DE MORA
INTERPELAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / VÍCIOS E REFORMA DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DE RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / MORA DO DEVEDOR / MOMENTO DA CONSTITUIÇÃO EM MORA.
Doutrina:
- Ana Maria Rodrigues e Rui Dias, Falta de apresentação das contas e de deliberação sobre elas, Código das Sociedades em Comentário, Volume I, p. 801 e ss.;
- Maria José Capelo, A sentença entre a autoridade e a prova, Em busca de traços distintivos do caso julgado civil, Almedina, 2016, p. 45 e 51;
- Miguel Teixeira de Sousa, Caso Julgado e Preclusão, Processo Civil Comparado, Editora Forense (São Paulo), 2017, p.212 e ss.;
- Remédio Marques, Inquérito Judicial, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume III, p. 313 e 323.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, 636.º, N.º 2, 666.º, 671.º, N.º 1 E 674.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 805.º.
Sumário :

I. Não é admissível a ampliação do âmbito da revista, pedida pelo recorrido, com base no art.636º, n.2 do CPC, quando este pretende, por essa via, invocar nulidades da decisão da primeira instância. O tipo de decisão impugnada não cabe no âmbito desse recurso, pois como estatui o art.671º, n.1 do CPC a revista tem como objeto um acórdão da Relação e como fundamentos os previstos no art.674º. As nulidades invocáveis nos termos do art. 674º, n.1 alínea c) são as do acórdão da Relação, como estabelece o art.666º, com as causas previstas no art.615º do CPC. Não cabe neste âmbito a invocação de nulidades da decisão da primeira instância.

II. A decisão proferida em processo anterior, que estabeleceu, com valor de caso julgado, os montantes pelos quais foram vendidos determinados lotes, assume uma função probatória indiscutível nos presentes autos (de inquérito judicial por falta de apresentação de contas), no sentido de aqui não se admitir a apresentação de meios de prova destinados a contrariar os valores apurados naquele processo. Mas esse caso julgado, enquanto instituto processual, implica, simultaneamente, uma função de imutabilidade da apreciação do mérito, tornando, por isso, inviável a apreciação do alegado pelos recorrentes ao afirmarem que não se fez prova, naquela ação, de ter havido simulação de preço ou de que os terceiros adquirentes dos imóveis tivessem, efetivamente, pago as diferenças de valores.

III. Não resultando da factualidade provada a que título os sócios movimentavam os valores não inscritos na contabilidade da sociedade, mas concluindo-se que são responsáveis pelo ingresso desses valores na respetiva contabilidade, deve entender-se que a regra adequada em matéria de juros é o art.805º do CC, nos termos do qual o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Em 2006, AA intentou inquérito judicial contra “BB, Ldª” e os titulares das quotas sociais desta, CC, DD e EE (esta na qualidade de gerente nomeada em abril de 2005; e ambas na qualidade de herdeiras do sócio FF, falecido em setembro de 2002) e ainda contra GG, na qualidade de gerente da “BB, Ldª” (nomeado por deliberação de abril de 2005), com os seguintes objetivos: realização de inquérito judicial à sociedade “BB, Ldª”, para averiguar questões que enumerou em sede de articulado:

 - Prestação de contas dos exercícios dos anos de 1997 a 2005 (com prévia nomeação de gerente para elaboração das mesmas) para submissão das mesmas a aprovação da assembleia geral de sócios;

- Distribuição de lucros; pagamento de lucros ao autor; suspensão imediata dos requeridos CC, EE e GG das funções de gerente, proibindo-os de interferirem nas tarefas conferidas ao gerente nomeado.

  2. Por despacho de 18.2.2010 (fls. 531 a 538), foi admitida a cumulação do pedido de inquérito judicial, previsto nos artigos 1479º e seguintes do C.P.C. [correspondente ao atual art.1048º do CPC], com o pedido de inquérito por falta de apresentação de contas e de deliberação sobre as mesmas, previsto no artigo 67º do C.S.C.

 Os autos prosseguiram para averiguação das questões objeto do pedido de inquérito (stricto sensu) em simultâneo com a prestação de contas referentes aos exercícios de 1996 a 2010, desiderato que a senhora administradora judicial concretizou, elaborando as contas referentes aos anos de 1996 a 2005 por recurso a documentos contabilísticos, documentos de suporte contabilístico (incluindo a apreendida nas instalações da Polícia Judiciária), informações prestadas pelas partes, pelo TOC da requerida e por entidades bancárias (estas limitadas às autorizações para o efeito concedidas e declaradas nos autos), com vinculação ao resultado e valor de caso julgado material da sentença judicial transitada em julgado proferida no âmbito da ação instaurada pelo autor contra a aqui sociedade requerida e que correu termos sob o nº 528/03.0TBVGS do extinto Tribunal de Vagos, na parte em que pela mesma foi declarado que os negócios referentes a 77 lotes da sociedade foram celebrados por valores que totalizam o montante global de € 5.188.495,73; e elaborando as contas referentes aos anos de 2006 a 2010 por recurso à informação contida nas IES.

3. A prestação de contas para determinação e posterior afetação/distribuição do lucro obtido pela atividade da sociedade requerida ao longo dos anos de 1996 a 2010 consubstancia o objetivo último do pedido do inquérito deduzido pelo autor, para os quais as questões objeto do pedido de averiguação/inquérito que pelo requerente foi ab initio deduzido configuram factos instrumentais e/ou dependentes, precisamente da realização das contas dos exercícios da sociedade.

4. Foram elaborados os relatórios de gestão e as contas da sociedade referentes aos exercícios de 1996 a 2006 e 2006 a 2010, juntas a fls. 864 e seguintes e 1281 e seguintes, cujo resultado a senhora administradora justificou referindo:

             4.1. Limitações na elaboração das contas referentes aos anos de 1996 a 2006, decorrentes da dificuldade em obter informação por existirem algumas falhas nos diários contabilísticos, traduzidas na ausência de documentação no diário de operações diversas, nos meses de agosto a dezembro de 1996 e na maioria dos meses nos anos posteriores, impossibilitando a verificação da veracidade das informações; 

           4.2. A consideração da venda de 33 lotes descrito no documento n.8, de maio de 2001 (que em sede de assembleia geral retificou para 36 lotes) pelos valores pelas mesmas declarados, por ausência de sentença para correção dos mesmos (não obstante a discrepância com os valores de venda de 77 lotes fisicamente idênticos e cujos valores de venda foram corrigidos por sentença no âmbito do processo 528/03OTBVGS);

            4.3. O apuramento e correção dos valores em falta relativamente à venda de 77 lotes e os registos das mesmas na contabilidade correspondente à diferença entre os montantes dos preços que para as ditas vendas resultaram demonstrados no âmbito ação judicial e os preços constantes das escrituras públicas;

            4.4. Creditou a conta de juros e debitou a conta de sócios no valor de Esc. 3.670.000$00, correspondentes aos juros calculados no documento n.15 de 15.09.1998 sobre quantias emprestadas por CC à sociedade, por entender não serem devidos;

            4.5. No documento n. 1 do mês 3 de 1998, retificou a conta dos sócios por contrapartida das contas 31138 e 62298, por estas terem mantido saldos que já se encontravam atrasados em 1997, no valor de Esc. 55.7778,660,90, retificação que operou (conforme esclarecimento prestado em diligência para o efeito designada) debitando créditos inscritos em benefício dos sócios nas contas 31 (conta de compras) e 62 (conta de fornecimentos) e creditando-os na conta 25;

   4.6. Creditou as contas nº … e … (de outros devedores e credores) pelos valores de €42.407,62, e debitou-os na conta de sócios (n.25, como dívida dos sócios à sociedade) por entender que, na falta de documentos justificativos daqueles valores da conta 268, estes são da responsabilidade dos sócios; 

   4.7. De 2005 a 2010 a conta de accionistas/sócios manteve o mesmo valor no lado do passivo, e sofreu alterações no lado do ativo face aos saldos apresentados pela sociedade;

   4.8. Depois das alterações efetuadas na conta de sócios procedeu a cálculo de juros sobre os valores que cada sócio devia à sociedade no final de cada ano desde 1996 até 2010, às taxas sucessivas de 10%, 7% e 4%, conforme portarias nº 1171/95 de 25.09, 263/99 de 12.04 e 291/03 de 08.04.

5. Submetidas a apreciação e deliberação no âmbito de assembleia geral de sócios realizada em 20.11.2015, a proposta de aprovação das contas apresentada pela senhora perita/administradora judicial foi rejeitada com os votos contra dos sócios CC (titular de quota de €2.693,51) e EE (esta como representante comum dos herdeiros de FF, titular de quota de € 1.316,83), e o voto favorável de HH (titular de quota de 1.975,24).

 6. Notificados para se pronunciarem sobre as contas e sobre os fundamentos da não aprovação das mesmas, os sócios CC, DD e EE, alegaram que as contas submetidas à aprovação dos sócios são decalque das elaboradas pelos dois dos três peritos/ROC’s nomeados no âmbito da (tentativa de) transação que formalizaram nos autos (o ROC indicado pelo autor e o ROC indicado pelos ROCs indicadas pelas partes), das quais diverge apenas quanto à exclusão do saldo de Esc: 172.813.147$20 em conta do II– Portugal, e à consideração da venda dos 33 lotes descritos no documento n. 08.05.2001 pelos valores declarados, portanto, sem correção por analogia  à correção dos valores das vendas dos 77 lotes que foram objeto de apreciação judicial no âmbito da ação nº 528/03.0TBVGS (fls. 912 e seguintes e 1302 e seguintes).

   Mais alegaram que, expurgadas dos efeitos artificialmente introduzidos pela sentença proferida no processo n. 528/03.0TBVGS, as ditas contas correspondem às apresentadas e aprovadas em assembleia geral de 16.11.2013 (fls. 1303a).

   Excluindo a questão sobre a qual recaiu já despacho transitado em julgado (invocada ausência de idoneidade dos presentes autos e requerida extinção da instância em consequência e na sequência da elaboração das contas pela gerência desde 2006) justificaram a não aprovação das contas alegando:

   a) Inexistir fundamento, de facto e de direito, para a correção do valor das vendas de 77 lotes, alegando que na ação n. 528/03 não houve apreciação de mérito do pedido de condenação dos réus no pagamento dos montantes líquidos e ilíquidos resultante da atividade da ré sociedade, aqui requerida porque o autor foi considerado para ilegítima para o mesmo por preterição de litisconsórcio necessário ativo, com todas as consequências daí decorrentes, mormente aquelas que aqui se visam alcançar quanto ao valor atribuído aos 77 lotes e terreno alienados.

   b) Inexiste fundamento para imputar como dívida dos ex-sócios gerentes os pretensos ‘desvios de dinheiros’ decorrentes das ‘supostas’ vendas à margem da contabilidade.

   c) Inexiste fundamento legal ou qualquer base técnico-contabilística para a liquidação de juros a cargo dos sócios CC e JJ e a favor da sociedade, que assenta no único pressuposto de que os apuros das vendas obtidos à margem da contabilidade teriam sido apropriados por aqueles, interpretação que contraria o teor da sentença proferida no processo nº 528/03.0TBVGS que deu como não provado que se tivessem apropriado de quaisquer quantias.

   d) Inexiste fundamento para o cálculo dos ditos juros à taxa de juro comercial atendendo à qualidade de não comerciante do gerente, pelo que os juros considerados apenas poderiam ser os civis e, nesse caso, após a citação.

   e) As contas do ano de 2007 revelam a venda de um ativo (lote de terreno para construção) sem que em contraponto seja considerado o respetivo ‘custo de existência’ acumulado na conta ‘produtos e trabalhos em curso’, em tudo equivalente ao tratamento contabilístico dado pelo TOC responsável pelas contas da sociedade, que apenas demonstra o ‘seguidismo’ da senhora administradora em relação ao trabalho daquele.»

            7. Foi proferida sentença, na qual se determinou a correção das contas elaboradas, impondo a alteração das mesmas com a supressão dos juros liquidados a cargo dos sócios CC e JJ. No mais, considerou-se que as contas se mostravam corretamente elaboradas.

8. Inconformados, os requeridos BB, Lda., CC, DD e EE e GG recorreram para a Relação do Porto.

9. O recorrido interpôs recurso subordinado, na parte em que a sentença rejeitou a liquidação de juros como havia sido proposta pela perita/administradora judicial nomeada (a qual tinha iniciado em 1998 o débito de juros, calculados sobre os saldos devedores dos sócios gerentes, resultantes das diferenças dos preços reais com os das escrituras públicas dos 77 lotes vendidos).

 10. O TRP entendeu «julgar improcedente o recurso dos requeridos e procedente o recurso subordinado do requerente e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, na parte em que impôs a alteração das contas com a supressão dos juros liquidados a cargo dos sócios CC e FF».

11. Inconformado com aquela decisão os Requeridos interpuseram recurso de revista, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:

«1. Os presentes autos de inquérito judicial foram instaurados em data anterior a 01/01/2008, sendo-lhes por isso aplicável o regime de recursos de 2007, com as alterações introduzidas em 2013, com excepção de limitação em caso de dupla conforme (excepção ao n.3 do artigo 671º do CPC), pelo que o prese  nte recurso de revista é sempre admissível, ao abrigo do disposto no artigo 7º da Lei n. 41/2013 e está em tempo (vd. Acórdão do STJ, de 03/12/2015, Processo n. 11512/93.DLSBC.L1.S1).

2. A presente revista versa estritamente sobre matéria de direito.

3. Na acção n.528/03.1TBVGS são demandados: BB, Lda., CC, DD e EE.

4. Por seu turno, nos presentes autos de inquérito judicial, são demandados: BB, Lda., CC, DD, EE e GG.

5.Motivo pelo qual a gerência da sociedade Ré, BB, Lda, não é a mesma à data de instauração de ambas as ações, sendo demandadas em ambas as referidas ações pessoas juridicamente distintas.

6. Veiculam os recorrentes, ao contrario do que se encontra vertido no Acórdão em crise, que não pode haver caso julgado material com os efeitos decorrentes do artigo 619º do CPC, por não haver, desde logo, identidade de partes.

7. Já foi esse, aliás, o argumento que determinou o entendimento vertido no despacho de fls.127 e seguintes dos autos, datada do 27/10/2006, quanto ao não aproveitamento das provas: "numa e noutra acção as partes não são rigorosamente as mesmas, pelo que não tem aplicação o disposto no invocado normativo. Pelo exposto, indefere-se o pedido de aproveitamento das provas já produzidas no âmbito do processo que corre termos sob o número 528/03.1TBVGS".

8. Por outro lado, também não se verifica a identidade de pedidos, como decorre da leitura do teor do Acórdão do STJ, de 13/04/2010, proferido no âmbito do Apenso A destes autos.

9. A ação n.528/03.0TBVGS e o presente inquérito não têm os mesmos pedidos, não se verificando também por esta via, a tríplice identidade (objeto, sujeitos e pedido) exigida pelo artigo 581º do CPC.

10. Reconhecer que existe caso julgado material na ação 528/03 a ter autoridade fora daquele processo para os presentes autos implicaria que pessoa juridicamente distinta das demandadas na primeira ação fosse afetada por aquela decisão o que constituiria uma grave violação do princípio do contraditório.  

11. Apoiando-se a este propósito em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 12/06/2011, entendem os recorrentes que para existir caso julgado material deverá existir identidade de sujeitos; não é possível autonomizar o caso julgado - excepção e autoridade de caso julgado - como duas figuras essencialmente distintas, pelo que o caso julgado não pode impor a sua força e autoridade independentemente das três identidades mencionadas no artigo 581º do CPC.

12. Por conseguinte, o segmento da decisão, transitada em julgado, proferida na acção 528/03.0TBVGS, pela qual se declara que os negócios referentes aos 77 lotes da sociedade Ré foram celebrados não pelos valores declarados nas escrituras, mas pelos mencionados em tt) a pppp) dos factos provados, na globalidade de €5.188.495,73, não adquiriu autoridade de caso julgado material nos presentes autos de inquérito judicial.

 

13.Tal determina que as contas apresentadas pela Senhora Administradora Judicial com correcção de valores de venda baseados em tal decisão não se mostram correctas e devidamente fundamentadas.

14. Mas mesmo que assim não se entendesse, existe nos autos um errado lançamento contabilístico a débito na conta de sócios (denominada conta 25).

15. Note-se que, segundo consta da própria sentença proferida em sede de primeira instância, além de se ter decidido declarar (que os negócios referentes aos aludidos 77 lotes foram celebrados não pelos valores declarados, mas pelos que são mencionados em tt) a ppp) dos factos provados na globalidade de € 5.188.495,73, também se decidiu pela improcedência da ação quanto ao pedido de declaração de que o Réu CC e o falecido FF se apoderaram daquela e de outra quantia.

16. Daqui resulta que a ação proferida na ação 528/03 declarou não ter havido apropriação de valores por parte dos sócios de BB, Lda., decisão essa transitada em julgado e sem qualquer oposição até à presente data.

17. Acresce que, não pode afirmar-se com o rigor jurídico merecido ao caso concreto que houve simulação, seja absoluta, seja relativa, na venda dos já referidos 77 lotes.

18. Nesse ponto, a afirmação inscrita no Acórdão em crise de que a sentença proferida na ação 528/03 deu como provada a simulação do negócio dos 77 lotes é totalmente infundada e juridicamente descabida (Vd. página 13).

19. A simulação, enquanto figura jurídica decorrente da divergência entre a vontade e a declaração, pressupõe a existência de um acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório previsto no artigo 240º do CC).

20. Ora, na ação em que o Acórdão recorrido afirma ter existido decisão quanto à simulação de venda, os adquirentes de tais lotes não foram constituídos Réus nem chamados por qualquer meio processual; por isso, não pode jamais e em tempo algum afirmar-se que da interpretação dada à alínea a) do dispositivo da decisão proferida no 528/03 decorre a existência de simulação.

21. Assim, não tendo sido os adquirentes dos lotes demandados naquela ação ou sequer posteriormente noutra ação, não houve qualquer acordo simulatório dado como provado,

22. Nem, a ser verdade tal asserção, foi apurado pela Senhora Administradora Judicial encarregue de elaborar as contas, qual o destino dado à alegada diferença entre o valor das vendas constantes das escrituras públicas e inscrito na contabilidade (proveito) e aqueloutro declarado judicialmente.

23. Aliás, da decisão dessa mesma ação resultou clarividente a não apropriação de dinheiros por parte dos sócios de BB, Lda., CC e FF, nem tal prova foi feita posteriormente em qualquer processo, nem mesmo nos presentes autos de inquérito.

24. O que a Senhora Administradora Judicial fez foi limitar-se a presumir que a diferença entre o valor constante das escrituras e o valor declarado judicialmente foi apropriado pelos sócios e gerentes que outorgaram tais escrituras de venda, sem que para tal tivesse qualquer suporte legal que o permitisse fazer.

25. Nessa medida, nunca o lançamento contabilístico de tal diferença poderia ter sido efetuado como uma saída (debito) na conta dos sócios/gerentes, CC e FF, na proporção das quotas que detinham na sociedade.

26. Mais, desconhecendo-se, por não ter sido apurado, se tais valores chegaram a ser pagos pelos adquirentes dos lotes, pelo que se impunha que tal facto fosse averiguado, sendo que por cautela e até que houvesse certeza desses factos, os valores alegadamente em falta relativamente ao preço dos lotes, teriam de ser lançados na conta-clientes (conta 21) como um débito destes à sociedade, devendo a sociedade tomar as diligências necessárias para cobrar tais dívidas (pois em lado algum resulta provado que os sócios se tenham apropriado de tais quantias, o que inviabiliza o lançamento efetuado).

27. Ademais, note-se que os adquirentes dos lotes nunca foram demandados para comprovar o pagamento da diferença de preço que veio a ser declarado como sendo o real.

Tal presunção vai contra o decidido na ação n. 528/03.0TBVGS

28. É mister saber quem é devedor para com a sociedade desse alegado valor, se os sócios, se os compradores dos lotes, trabalho esse que nunca foi preconizado pela Senhora Administradora Judicial e completamente ignorado pelos Tribunais a quo.

29. Curioso é que, segundo os Tribunais a quo, a decisão do 528/03 aproveita para fazer alterar valores do lado do ativo, mesmo não tendo sido declarada qualquer simulação do preço de venda (relativa), mas já não aproveita quanto à questão da não apropriação de valores por parte dos sócios, da qual já foram absolvidos do pedido naquela ação.

30. Note-se que a apropriação ilegal de fundos da sociedade pelos sócios, sempre configuraria um crime de abuso de confiança, regulado em sede própria.

31. Sendo certo que tal processo-crime existe e encontra-se pendente no Juízo Central Criminal de Aveiro (Juiz 6 - Processo nº 12/09.9TAVGS), no qual foi já proferido despacho de acusação, embora já contestado e sem realização de audiência de discussão e julgamento, encontrando-se aí em causa a alegada apropriação de valores por parte do sócio CC, pois o outro sócio faleceu entretanto, que rondam 1 milhão e (quatrocentos mil euros, valor este muito inferior ao que se discute nestes autos de inquérito judicial. Documento 1.

32. Trata-se, acima de tudo, de uma questão básica e proeminente de justiça material.

33. Acresce que não existe fundamento para a contabilização de juros, contra o determinado no Acórdão recorrido.

34. Em primeiro lugar, porque os juros só podem ser contabilizados, quando e se se vier a apurar quem é devedor à sociedade da alegada diferença de valores na venda dos lotes.

35. Em segundo lugar, porque importa ter em consideração nesta matéria que as dívidas dos sócios à sociedade (ainda que o fossem) não vencem obrigatoriamente juros.

36. No contexto de empréstimos de sócios à sociedade e da sociedade a sócios, sempre se deve ter como referência que os suprimentos são em regra gratuitos.

37. Acresce que, a existir um empréstimo entre sócios e sociedade, sempre estaríamos em última análise, na presença de um contrato de mútuo nulo por vicio de forma (artigos 1143º, 220º e 289º todos do CC), determinado, quando muito, a restituição de valores em singelo.

38. Em face do ora exposto, deve o presente recurso de revista ser admitido em face do disposto no artigo 7º da Lei n. 41/2013 (exceção de limitação em caso de dupla conforme), devendo ser julgado procedente e em consequência revogar-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, por violação do disposto nos artigos 619º e 581º, ambos do CPC, dado não poder entender-se in casu existir autoridade de caso julgado material, por falta de tríplice identidade prevista no 581º do CPC.

39. De todo o modo, caso assim não se entenda, deve ainda o presente recurso ser julgado procedente, pois a inexistência de declaração de simulação relativa leva ao incorreto lançamento contabilístico a debito na conta-sócios dos valores alegadamente resultantes da diferença entre os valores de venda inscritos na contabilidade e os judicialmente declarados na ação 528/03, de que decorre uma impossibilidade de contabilização de juros, ao contrário do preconizado no acórdão em crise, devendo em consequência revogar-se o Acórdão recorrido, assim se fazendo a tão acostumada Justiça! »

12. O recorrido apresentou contra-alegações, nas quais requereu a ampliação do âmbito do recurso, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:

«1. O recorrido, ao abrigo do art. 636° n. 2 do CPC, amplia o âmbito do recurso interposto pelos recorrentes, para suscitar a questão da nulidade da sentença proferida em 1ª instância, por omissão de pronúncia sobre a aplicação dos resultados, do relatório de gestão e contas de exercício dos anos de 1996 a 2010.

2a O requerimento de ampliação do âmbito do recurso é feito para prevenir a hipótese do tribunal de 1ª instancia não conceder deferimento ao incidente de reforma da sentença, entretanto deduzido. 

3ª Os fundamentos invocados na petição do presente inquérito, instaurado nos termos do art. 67° do CSC, são a "falta de apresentação de contas" e "a não distribuição de lucros".

4ª O acto de distribuição de lucros implica, previamente, o acto de aprovação das contas e o acto da aprovação da aplicação dos resultados.

5a A sentença de 1ª instância aprovou as contas, com correções revogadas pelo acórdão recorrido, mas não se pronunciou quanto à aplicação dos resultados, não obstante o processo conter todos os elementos para decidir a questão da aplicação dos resultados por distribuição pelos sócios, pelo que viola o disposto nos artigos 67° n° 3 do CSC e 608° n° 2 do CPC.

6ª As contas aprovadas, revelam que o balanço da requerida sociedade, em 31.12.2010, apresenta o lucro de balanço de €5.166.041,00, distribuível aos sócios, o qual, se fosse aplicado para distribuição pelos sócios, na proporção das respectivas quotas, determinaria a medida dos dividendos discriminados no ponto 7 das alegações deste pedido de ampliação do âmbito do recuso

7ª A requerida sociedade não distribui lucros desde o exercício de 1996.

8a A requerida sociedade é detentora de um activo corrente com o valor de €451.042,00, como revela a conta "inventários",

9a As contas foram submetidas à assembleia-geral de sócios da requerida sociedade, mas este órgão não as aprovou, pelo que a senhora administradora submeteu, nos próprios autos em curso, a divergência à Ma. juiz, para decisão, nos termos do art. 67° nº 3 in fine do CSC

10ª Os autos espelham a grande conflitualidade dos requeridos e a sua estratégia de protelar ad aeternum a distribuição dos dividendos, em violação clara do princípio da cooperação, com vista à justa composição do litígio, previsto no art. 7° do CPC.

11ª Face ao que antecede, os resultados - lucro do balanço - de 5.166.041 $00 é para distribuir, pelos sócios.

12a O art. 67° n. 3 do CSC deve ser aplicado no sentido de que o Tribunal deverá decidir determinando a medida do dividendo a distribuir pelos sócios da requerida sociedade.

13a Os arts. 608° n. 2 e 615° n.1 al d) do CPC, devem ser aplicados no sentido de ferir de nulidade a sentença da 1ª instância que omitiu a pronúncia sobre a aplicação de resultados das contas elaboradas pela senhora administradora judicial.

14ª Mostram-se violadas, por erro de interpretação e aplicação das normas dos arts. 67° n.3 do CSC, 608º e 615° n.1 al d) e 7º, ambos do CPC, que devem ser interpretadas e aplicadas no sentido expendido nas conclusões 12a e 13ª.

Termos em que devem proceder as conclusões e ser dado provimento ao presente requerimento de ampliação do âmbito do recurso, declarando-se nula a sentença proferida pelo Tribunal de 1 a instância, por violação das normas indicadas na conclusão 14a, proferindo decisão que:

a) supra a nulidade, nos termos alegados nas conclusões 12ª e 13a, mantendo a aprovação das contas, conheça da questão da aplicação dos resultados, aprovando a aplicação dos resultados por distribuição dos lucros, aos sócios, na proporção das suas quotas, e determine a medida do dividendo a distribuir pelos sócios da requerida sociedade.

A não se entender assim

b) determine que os autos baixem à 1ª instância, ordenando os actos devidos, para que seja proferida nova sentença que mantendo a aprovação das contas, conheça, também, da questão da aplicação dos resultados, aprovando-a por distribuição dos lucros, aos sócios, na proporção das suas quotas, e determine a medida dos dividendos a distribuir pelos sócios da requerida, como é de Justiça»

13. Os recorrentes responderam ao pedido de ampliação do âmbito do recurso, sustentando, em síntese, a respetiva inadmissibilidade, dado que a questão da nulidade da sentença não foi suscitada na apelação, pelo que teria transitado em julgado, e ainda que os presentes autos não se destinam à distribuição de lucros.

14. Já na pendência do recurso de revista, os recorrentes vieram juntar aos autos [fls. 1662-1692] o acórdão proferido no Proc. n.12/09.9TAVGS, pendente no Juiz 6 do Juízo Central Criminal de Aveiro (transitado em 01.10.2018), a que tinham feito referência nas suas alegações de recurso. Nesse processo foi arguido o sócio CC, acusado de crime de abuso de confiança, mas em 19.07.2018 o procedimento criminal instaurado contra o arguido foi declarado prescrito.

15. O recorrido pronunciou-se [a fls.1694] contra a junção daquele acórdão, dizendo: que não se trata de uma superveniência; que não se tinha constituído assistente naquele processo; e que a extinção do procedimento criminal não afeta a responsabilidade prevista no art.72º do CSC.


***

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

A segunda instância confirmou, parcialmente, a decisão da primeira (sem voto de vencido). Todavia, dado que a presente ação foi proposta em 2006, não tem aplicação, na parte confirmatória, a limitação imposta pelo art.671º, n.3 do CPC, porquanto o regime de recursos aplicável, nessa matéria, é o do DL n.303/2007, ex vi do art.7º da Lei n.41/2013. A ação admite, assim, recurso de revista sem a restrição da dupla conforme.  

Por outro lado, não tem aplicação ao presente caso a limitação imposta pelo art.988º, n.2 do CPC, dado não estar em análise uma decisão proferida segundo critérios de conveniência ou oportunidade.

2. Objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, considerando que, em regra, o recurso de revista não conhece do julgamento da matéria de facto, e tendo presentes as especificidades da ação em causa, são os seguintes os problemas a considerar:

2.1. A revista pedida pelos recorrentes:

Estando em causa nos presentes autos a aprovação de contas da sociedade, apresentadas pela perita/administradora judicial, referentes aos exercícios anuais de 1996 a 2010, são as seguintes as questões para as quais os recorrentes pedem revista:

1ª questão: - Saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao confirmar a aprovação (pela 1ª instância) da correção do valor de venda dos 77 lotes de terreno da Sociedade “BB, Ldª”, proposta pela senhora perita/administradora judicial na apresentação das contas, com a subsequente obrigação de os sócios/recorrentes restituírem esse valor à sociedade [o que os recorrentes impugnam, sobretudo, nos pontos 6 a 32 das conclusões das suas alegações de revista];

2ª questão: - Saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito ao entender que os sócios/recorrente são devedores à sociedade de juros tal como proposto pela senhora perita/administradora judicial sobre a diferença de valores supra referida [o que os recorrentes impugnam, sobretudo, nos pontos 33 a 37 das conclusões das suas alegações de revista].

2.2. A ampliação do âmbito da revista pedida pelo recorrido (art. 636° n. 2 do CPC):

            O recorrido pretende que se produza revista destinada a declarar a nulidade da decisão da primeira instância, porquanto tal decisão violaria o art.615º, n.1 alínea d) do CPC, por omissão de pronúncia sobre a aplicação dos resultados do relatório de gestão e contas de exercício dos anos de 1996 a 2010.

3. A factualidade relevante é a que já se deixou exposta no relatório

4. O direito aplicável:

O caso em análise é catalogável, em termos gerais, como um conflito societário, que existe, pelo menos, desde 2006 (data da propositura da presente ação).

O recorrido, na qualidade de sócio da sociedade “BB, Ldª”, socorreu-se do inquérito judicial, enquanto instrumento processual destinado à materialização do direito à informação sobre a vida da sociedade, regulado, em termos gerais, no art.216º do CSC[1], tendo, depois, sido admitida a cumulação com o inquérito previsto no art.67º do CSC[2] para prestação de contas, com nomeação judicial de uma perita/administradora (passando a seguir-se os trâmites processuais previstos nesta última norma).

As contas elaboradas pela senhora administradora foram submetidas a aprovação da assembleia convocada para o efeito, mas foi rejeitada a sua aprovação (com votos contrários de dois sócios (agora recorrentes) e um voto favorável do sócio requerente (agora recorrido). Consequentemente, foram as contas submetidas ao tribunal de primeira instância que as aprovou, com exceção do proposto pela administradora quanto aos juros a cargo dos sócios requeridos (agora recorrentes).

Esta decisão de aprovação das contas respeitantes aos juros veio, porém, a ser revertida na decisão da segunda instância, a qual entendeu que essas contas deviam ser aprovadas como proposto pela senhora administradora. 

Cabe, agora, analisar a revista pedida pelos recorrentes, no quadro da especificidade própria da presente ação e nos limites da factualidade provada, e considerar a ampliação do seu âmbito pedida pelo recorrido.

4.1. Quanto à ampliação do âmbito da revista pedida pelo recorrido, com base no art.636º, n.2 do CPC:

Tal pretensão não é atendível em sede de recurso de revista, porquanto o tipo de decisão impugnada não cabe no âmbito deste recurso, pois como estatui o art.671º, n.1 do CPC a revista tem como objeto um acórdão da Relação e como fundamentos os previstos no art.674º. As nulidades invocáveis nos termos do art. 674º, n.1 alínea c) são as do acórdão da Relação, como estabelece o art.666º, com as causas previstas no art.615º do CPC. Não cabe neste âmbito, portanto, a invocação de nulidades da decisão da primeira instância.

Acresce que o recorrido apresentou recurso subordinado na apelação, onde obviamente podia ter invocado a agora alegada omissão de pronúncia da decisão da primeira instância. Por força do art. 139º, n.3 do CPC ficou, assim, precludido o direito de invocar a eventual nulidade da sentença[3]. A decisão judicial tornou-se, nessa matéria, definitiva.

Não se conhece, assim, da ampliação do âmbito da revista suscitada pelo recorrido.

4.2. Quanto ao pedido de revista dos recorrentes:

4.2.1. Quanto à junção de documentos em fase de recurso:

Como supra referido, vieram os Recorrentes juntar acórdão proferido no Proc. n.12/09.9TAVGS, do Juiz 6 do Juízo Central Criminal de Aveiro (transitado em 01.10.2018), no qual foi arguido o sócio CC, acusado de crime de abuso de confiança, para provar que, em 19.07.2018, o procedimento criminal instaurado contra o arguido foi declarado prescrito.

Apesar de os recorrentes terem invocado a superveniência dessa decisão judicial (nos termos do art.425º do CPC), tal superveniência, por si só, não justifica a junção desse documento.

Não cabe no objeto do presente recurso discutir a existência de crime de abuso de confiança de qualquer sócio (não estando, sequer, em questão a aplicação do art.624º do CPC).

Em termos genéricos, o facto de não existir responsabilidade criminal de um sócio não significa que não exista qualquer outro fundamento que justifique que um sócio tenha de restituir determinados valores a uma sociedade.

Os documentos juntos em fase de recurso de revista [a fls. 1662-1692 dos autos] são, assim, impertinentes e desnecessários para a decisão da causa, pelo que, nos termos do art.443º do CPC, devem ser retirados do processo e restituídos aos apresentantes/recorrentes, condenando-os no pagamento de uma UC.

4.2.2. Quanto à 1ª questão da revista (a correção do valor de venda dos 77 lotes, proposta na apresentação das contas):

A senhora perita/administradora judicial inscreveu nas contas de 1996 a 2005 os valores de venda dos referidos 77 lotes (alienados pela sociedade “BB, Ldª”), não pelos preços declarados nas escrituras de compra e venda, mas sim pelos valores, mais elevados, dados como provados no processo n. 528/03.0TBVGS do extinto Tribunal de Vagos, que havia transitado em julgado. Socorreu-se, assim, do caso julgado material para daí extrair os reais valores de venda a inscrever nas contas.

Os recorridos, nas suas alegações de revista, opõem-se a esse modo de contabilização dos valores de venda daqueles lotes, dizendo, em síntese, que não existe caso julgado (nos termos do art.619º do CPC), decorrente do referido processo n. 528/03.0TBVGS, que possa relevar nos presentes autos, por não se verificarem os respetivos requisitos (previstos nos art.580º e 581º do CPC), ou seja, por não existir identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.

A falta de identidade de sujeitos resultaria do facto de os sócios e gerentes da sociedade demandada não serem, na presente ação, os mesmos que eram naquela primeira ação.  

Todavia, neste ponto, não lhes assiste razão, porquanto os imóveis alienados eram propriedade da sociedade “BB, Ldª”, e esta foi demandada em ambas as ações. Para efeitos do apuramento do real preço pelo qual a sociedade vendeu os imóveis, não releva a identidade dos seus sócios ou gerentes.

Para que se verifique o efeito do caso julgado material, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir de ambas as ações não têm de coincidir em toda a sua extensão.

A decisão proferida no proc. n. 528/03.0TBVGS que estabeleceu, com valor de caso julgado, os montantes pelos quais foram vendidos os 77 lotes, assume, desde logo, uma função probatória indiscutível nos presentes autos, no sentido de aqui não se admitir a apresentação de meios de prova destinados a contrariar os valores apurados naquele processo. Mas esse caso julgado, enquanto instituto processual, implica, simultaneamente, uma função de imutabilidade da apreciação do mérito, tornando, por isso, inviável a apreciação do alegado pelos recorrentes ao afirmarem que não se fez prova, naquela ação, de ter havido simulação de preço ou de que os terceiros adquirentes dos imóveis tivessem, efetivamente, pago as diferenças de valores[4].  Acresce que os presentes autos, pela sua própria natureza, não seriam idóneos à produção de prova da existência ou não de simulação no preço de venda daqueles lotes.

Entre os propósitos da presente ação encontra-se a prestação de contas, a qual, no que respeita à venda dos referidos 77 lotes, implica a inscrição contabilística e a consequente aprovação judicial dos valores pelos quais os imóveis foram efetivamente vendidos.

Nesta medida, o pedido na presente ação constitui uma decorrência ou extensão lógica do pedido daquela outra ação onde se apurou o preço de venda dos imóveis. Noutra perspetiva, pode afirmar-se que a primeira ação constituiu uma condição necessária para o apuramento dos valores de venda, que agora devem ser inscritos nas contas a aprovar[5]. Ambas as ações têm subjacente (em maior ou menor medida) o interesse do autor em obter informação sobre o verdadeiro preço de venda dos referidos lotes, para daí extrair as pertinentes consequências patrimoniais.      

Do exposto conclui-se que, relativamente ao valor de venda dos 77 lotes, as instâncias fizeram a correta aplicação do direito ao aprovarem as contas propostas pela senhora perita/administradora, na medida em que esta se limitou a seguir o decidido no processo n. 528/03.0TBVGS quanto a esses valores.

Fizeram também as instâncias a correta aplicação do direito ao aprovarem a inscrição a débito das diferenças dos valores de venda na conta de sócios, dentro do limite subjetivo do referido caso julgado, ou seja, a cargo daqueles que, ao tempo da venda dos lotes, eram sócios gerentes da sociedade “BB, Ldª” – CC e FF – e que, como se deu como provado, não registaram esses valores na contabilidade da sociedade. 

Para este efeito não seria necessário concluir que aqueles sócios se teriam apropriado daquelas quantias. No proc. n. 528/03.0TBVGS não se provou que tivesse existido apropriação daqueles valores pelos referidos sócios, como se transcreve na sentença dos presentes autos. Todavia, provou-se que aqueles montantes foram depositados, pelo menos em parte, em contas bancárias que não constavam da contabilidade da BB, Ldª, as quais eram movimentadas pelo réu CC e pelo falecido FF. Deste modo, como entenderam as instâncias, eram estes sócios gerentes os responsáveis pelo cumprimento das regras de organização contabilística a cuja observância a sociedade estava vinculada. Para se concluir que aqueles sócios eram responsáveis pela restituição daqueles valores à sociedade não tem de se concluir que existiu apropriação. Em termos teóricos essa deslocação patrimonial pode corresponder a um adiantamento injustificado de dividendos, a um mútuo nulo por falta de forma e não documentado, etc. O certo é que segundo as regras de organização contabilísticas aplicáveis às sociedades por quotas os referidos valores de venda de imóveis da sociedade deviam ter sido registados na sua contabilidade. A ausência do cumprimento destas regras é, necessariamente, imputável a quem tinha o poder de gerir as contas, ou seja, os referidos sócios. Assim, se determinada vantagem patrimonial devia constar das contas da sociedade, mas delas não consta, tal significa que existe uma deslocação patrimonial injustificada no património de outrem, a qual tem de ser corrigida.

Em resumo, confirma-se o decidido pelas instâncias quanto à primeira questão supra enunciada.

4.2.3. Quanto à 2ª questão, ou seja, a de saber se devem ser contabilizados, e desde quando, juros a cargo dos sócios/recorrentes:

A senhora perita/administradora inscreveu o cálculo de juros a cargo dos sócios, desde as datas das alienações e aplicou as taxas de juros comerciais (como supra referido neste relatório). A primeira instância não aprovou este ponto das contas, por entender que tal contabilização “gera para a sociedade uma dívida (fiscal) certa por referência a proveitos (juros) incertos e que, no descrito contexto se impõe considerar como artificialmente criado, sem prejuízo, porém, da eventual exigibilidade dos mesmos (caso venham a entender-se ou a declarar-se como devidos) e com inscrição/registo contabilístico dos mesmos como proveito se e quando forem recebidos pela sociedade”.

O acórdão recorrido revogou a sentença nesta parte, e entendeu que os juros a cargo dos sócios deviam ser contabilizados tal como proposto pela senhora perita/administradora, por ter entendido que os sócios se haviam apropriado das diferenças dos preços das vendas.

Nesta parte, o acórdão recorrido não fez a correta aplicação do direito, porquanto, como supra referido, não resulta da factualidade provada nos presentes autos que os sócios se tivessem apropriado daquelas diferenças dos valores.

Não resulta da factualidade dos presentes autos a que título os sócios movimentavam os valores não inscritos na contabilidade da sociedade. Todavia, tendo-se concluído que são responsáveis pelo ingresso desses valores na sociedade, deve entender-se que a regra adequada em matéria de juros é o art.805º, n.1 do CC, nos termos do qual o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. É também esta a regra quando exista responsabilidade do devedor por facto ilícito, como estabelece o n.3 do art.805º do CC. Com a citação para a presente ação, os sócios ficaram, sem dúvida, a saber que lhes era reclamado o pagamento de juros inerentes às diferenças dos preços de venda dos 77 lotes que a senhora perita/administradora inscrevera na contabilidade como dívida dos sócios à sociedade. Assim, só a partir da citação serão devidos juros a cargo dos sócios visados na correção das contas, pelo que só a partir daí devem ser contabilizados. Acresce que, não estando em causa uma operação comercial, esses juros não devem ser os próprios deste tipo de transações, mas sim os denominados juros civis, calculados nos termos da Portaria n.291/2003 (de 8 de abril), ou seja, 4%.

III. DECISÃO:

Com os fundamentos decisórios supra expostos, decide-se revogar parcialmente o acórdão recorrido, na parte respeitante à contabilização dos juros devidos pelos sócios/recorridos, devendo os juros de mora ser contabilizados apenas a partir da citação para a presente ação e à taxa prevista para as obrigações civis. No mais confirma-se o acórdão recorrido. 

Custas: fixam-se em 2/3 pelos recorrentes e 1/3 pelo recorrido.

Condenam-se os recorrentes no pagamento de uma UC (pela junção injustificada de documentos como supra referido).

Lisboa, 29 de janeiro 2019

Maria Olinda Garcia (Relator)

Catarina Serra

 Fonseca Ramos

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[1] Qualificando o poder de requerer inquérito judicial como “uma faculdade jurídica instrumental, enquanto faculdade processual, do direito à informação em sentido geral”, vd. Remédio Marques, “Inquérito Judicial”, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III, pág. 313.
[2] Sobre a relação de especialidade existente entre o inquérito judicial baseado no art. 216º e no art.67º do CSC, vd. Remédio Marques, op. cit., pág.323. Sobre o alcance do art.67º do CSC, vd: Ana Maria Rodrigues e Rui Dias, “Falta de apresentação das contas e de deliberação sobre elas”, in Código das Sociedades em Comentário, Vol. I, pág. 801 e seguintes. 
[3] Como afirma Miguel Teixeira de Sousa: “A preclusão realiza duas funções primordiais. Uma delas é a função ordenatória, dado que a preclusão garante que os actos só podem ser praticados no prazo fixado pela lei ou pelo juiz. Uma outra função da preclusão é a função de estabilização: uma vez inobservado o ónus de praticar o acto, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do acto, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico”; “Caso Julgado e Preclusão”, in Processo Civil Comparado, Editora Forense (São Paulo), 2017, pág.212 e seguintes.  
[4] Como afirma Maria José Capelo: “As finalidades de segurança jurídica e de pacificação social desvirtuar-se-iam se se admitisse, que entre as mesmas partes sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, fosse possível discutir o já apreciado num caso anterior”; A sentença entre a autoridade e a prova – Em busca de traços distintivos do caso julgado civil; Almedina, 2016, pág. 45.
[5] Nas palavras de Maria José Capelo: “O valor «extraprocessual» da decisão de mérito seria beliscado se não fosse tomado em consideração, pelas partes e pelo tribunal, em novos processos onde reveste natureza prejudicial”; A sentença entre a autoridade e a prova – Em busca de traços distintivos do caso julgado civil; Almedina, 2016, pág. 51.