Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12747/16.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
VICÍOS E DEFEITOS DA COISA LOCADA
RESPONSABILIDADE DO LOCADOR
Data do Acordão: 09/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITO EM JULGADO
Sumário :
I Se num contrato de arrendamento é convencionado entre as partes um período de quatro meses de carência das rendas e que a locatária assume “a obrigação de fazer as obras de adaptação necessárias ou convenientes, para que a Loja arrendada fique em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas”, resulta, prima facie, que ambas as partes sabiam e não podiam ignorar, que a loja objecto do contrato, necessitava de obras de adaptação para ser utilizada para o fim a que se destinava e, por isso, as partes acordaram que tais obras seriam a efectuar por aquela, pressupondo-se que as mesmas eram possíveis para cumprir o apontado desígnio já que resulta do normativo inserto no artigo 1031º do CCivil que o senhorio é obrigado a entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina.

II A loja foi arrendada no pressuposto de que servia para garantir o seu gozo pela Autora, cumprindo o fim a que esta a destinava (armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da própria), embora necessitasse de obras de adaptação para o efeito, a fim de ficar em boas condições de conservação e aptidão.

III Se o vício da coisa data do momento da celebração do contrato e é de cariz estrutural, sendo o mesmo do conhecimento do locador, conduz-nos à asserção que os defeitos de que a loja padecia, não podiam ser desconhecidos sem culpa do locador, o que conduz ao seu incumprimento nos termos do disposto no artigo 1032º , alínea a) do CCivil.

IV Se o locador sabia e não poderia desconhecer a situação estrutural do imóvel sua propriedade aquando da feitura do contrato de arrendamento com a Autora/locatária, tal situação conduz, inexoravelmente à bondade da resolução do mesmo, por esta, por via do seu incumprimento de harmonia com o disposto no artigo 1083º do CCivil, bem como à obrigação de restituição de tudo o que houver sido prestado, nos termos do disposto nos artigos 433º e 289º do mesmo diploma legal.

V O aviso ao locador, que exclui a responsabilidade deste, nos termos do disposto no artigo 1033º, alínea d) do CCivil refere-se unicamente à situação especificada no artigo 1038º, alínea h), do mesmo diploma, situação essa que implica que o facto seja ignorado pelo mesmo, o que na espécie não aconteceu.

(APB)

Decisão Texto Integral:

PROC 12747/16.5T8LSB.L1.S1

6ª SECÇÃO

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I AUTOGLASS - VIDROS PARA VIATURAS, LDA. intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra VILARINHO E RICARDO - IMOBILIÁRIA E GESTÃO, SA, pedindo que esta fosse condenada a devolver- lhe o valor das rendas que esta lhe liquidou na vigência do contrato de arrendamento e a quantia que despendeu com o locado, no montante total de € 68.459,45, quantia essas acrescida dos juros moratórios vencidos à taxa legal desde 12.02.2016 no valor de € 876,13, bem como dos juros vincendos até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

- A Autora e a Ré celebraram um contrato de arrendamento comercial relativo ao prédio sito na Ava ..., n° 000, em …;

- No âmbito de tal contrato, a Autora assumiu a obrigação de fazer as obras de adaptação necessárias ou convenientes para que a loja ficasse em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas;

- As obras em causa não puderam ser realizadas, nem legalizadas, porquanto, ao tentar proceder ao respectivo licenciamento junto da Câmara Municipal de …, a Autora verificou que a licença de utilização que consta mencionada no contrato de arrendamento não corresponde ao prédio físico actualmente existente: foram feitas obras na estrutura do prédio sem que tenham sido legalizadas e a autora não poderia demolir as mesmas, uma vez que tal implicaria, praticamente, a construção de um novo prédio;

- Ao proceder ao levantamento técnico da obra, a Autora verificou que a cobertura metálica do locado e a estrutura de betão armado exterior estavam mal edificados e deteriorados;

- A Autora tentou entrar em contacto com a Ré, a fim de lhe transmitir a situação verificada, mas não o conseguiu, pelo que procedeu à resolução do contrato;

- A Autora suportou a quantia de € 14.459,45 em despesas com o locado e a quantia de € 54.000,00 em rendas.

A Ré contestou, pugnado pela improcedência da acção e deduziu reconvenção.

Invocou para o efeito os seguintes fundamentos: 

- A licença de utilização n° 200, mencionada no contrato de arrendamento, corresponde ao locado e nunca foram feitas obras que tivessem alterado a sua estrutura;

- A resolução do contrato declarada pela Autora não tem fundamento legal, pelo que se manteve em vigor o referido contrato de arrendamento;

- Por este motivo, a Autora está obrigada a pagar a renda convencionada durante 3 anos e 3 meses, ou seja, durante o período correspondente a um terço do prazo de duração inicial do contrato;

- Mesmo beneficiando do perdão da renda durante 6 meses, a Autora só pagou as rendas até ao mês de Fevereiro de 2016, estando obrigada a pagar à Ré o montante das rendas compreendidas entre os meses de Março de 2016 e Fevereiro de 2018, no montante total de € 138.000,00;

- A Autora estava igualmente obrigada a realizar as obras estabelecidas contratualmente, obras essas cujo valor estimado pelas partes era entre 300.000,00 e 400.000,00;

- Nos termos convencionados no contrato, as benfeitorias feitas reverteriam para o prédio, sem direito a indemnização, pelo que a Autora está obrigada a pagar à Ré o valor das obras que estava obrigada a realizar e que vier a ser apurado em incidente de liquidação.

- Em sede reconvencional, a Ré pediu a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de € 138.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos desde a notificação da contestação e vincendos até integral pagamento e ainda a quantia respeitante às obras no locado que a Autora se obrigou a efectuar e no montante que se vier a apurar em incidente de liquidação.

A Autora replicou, sustentando que não tem que pagar qualquer quantia à Ré e que a mesma voltou a arrendar o locado no mês de Maio de 2016, pelo que nunca lhe poderia exigir o pagamento de rendas para além deste mês, sob pena de enriquecimento sem causa e de actuação em abuso de direito.

A final foi proferida sentença, onde se concluiu:

«Pelo exposto, este tribunal decide:

1- julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) condeno a R. a pagar à A. a quantia de € 54.000,00, quantia essa acrescida de juros moratórios vencidos desde 12 de Fevereiro de 2016, à taxa supletiva de juros moratórios aplicável relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais e vincendos até integral pagamento;

b) condeno a R. a pagar à A. a quantia de € 14.459,45, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e vincendos, à taxa supra referida e até integral pagamento;

c) absolvo a R. do mais que era peticionado e

2- julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolvo a A. do pedido reconvencional.».

Inconformada com o assim decidido, a Ré/Reconvinte interpôs recurso de Apelação o qual

concedeu provimento à Apelação, revogando a sentença recorrida e julgando a acção totalmente improcedente absolveu a Ré de todos os pedidos contra ela formulados pela Autora/Apelada e julgando a reconvenção parcialmente procedente, condenou a Autora/Reconvinda a pagar à Ré/Reconvinte a quantia de € 138.000,00 (cento e trinta e oito mil euros), acrescida de juros de mora, vencidos desde a notificação da contestação e vincendos até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.

Irresignada com este desfecho vem a Autora interpor recurso de Revista, o qual finaliza com o seguinte acervo conclusivo:

- Perfilhou o Douto Acórdão ora recorrido o entendimento de que, muito embora o locado em causa possua vícios que, pela sua gravidade, impedem a realização do fim a que se destina, o facto da Recorrente não ter, alegadamente, cumprido com o disposto no artigo 1033º alínea d) do Código Civil é motivo para se considerar o contrato como corretamente cumprido.

- Conforme a Recorrente invocou na reclamação por si apresentada para submissão da decisão singular inicialmente proferida à conferência, os vícios do locado sempre foram do inteiro conhecimento da ora Recorrida, o que é comprovado pelo facto da sua defesa nunca residido no desconhecimento dos vícios existentes no prédio mas sim na alegada obrigatoriedade contratual por parte da Recorrente em proceder à sua reparação.

- Ao contrato de arrendamento em causa nesta lide não tem aplicabilidade o referido artigo 1033º al. d) do Código Civil, conforme bem entendeu, aliás, a Meritíssima Juiz de primeira instância.

- A Recorrida não estava legalmente legitimada a colocar o locado em causa no mercado do arrendamento urbano.

- O artigo 1070º nº 1 do Código Civil dispõe que “O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidade competentes, designadamente através de licença de ocupação, quando exigível.”

- O nº 2 respectivo remete para o preceituado no artigo 5º do D.L. nº 160/2006, o qual dispõe no seu número 1 que “Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização”.

- Por sua vez, o nº 5 do mesmo artigo refere que: “A inobservância do disposto nos n.ºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável.” e o seu nº 7 que “Na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.” e no nº 8 que “O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização.”.

- Tem interesse para a integração dos supra referidos preceitos legais que:

- O contrato de arrendamento comercial celebrado entre Autora e Ré melhor identificado nos pontos 1 e 2 da matéria provada refere, na sua cláusula primeira, de que o locado possui a licença de utilização nº 200 emitida pela Câmara Municipal de ... em 26 de Maio de 1966 e que se destina ao “exercício das actividades de armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da locatária.”

Resulta ainda do mesmo contrato de arrendamento que a Autora “assume a obrigação de fazer as obras de adaptação necessárias ou convenientes para que a Loja arrendada fique em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas”.

- No ponto 6 é referido que “Em data posterior à celebração do contrato referido em 1, a Câmara Municipal de ... declarou à A. que não consta dos arquivos da autarquia qualquer licença correspondente ao documento cuja cópia consta de fls. 67 v intitulada “Licença de Utilização nº 200”.

- No ponto 7 é referido que “Ao iniciar o projecto para efeitos de realização das obras aludidas em 1, a A. verificou que o locado possuía um pé direito livre de 2,34 m no piso 0 de 2,40m no primeiro piso.”

- No ponto 8 é referido que “As obras das quais resultou que os pisos referidos em 6 ficassem com o pé-direito livre ali referido foram realizadas sem licença camarária e em data não concretamente apurada mas posterior a 1951”

- No ponto 9 é referido que “A Divisão de Licenciamento Urbanístico da Câmara Municipal de ... declarou à A. que o pé-direito livre de todas as zonas de permanência que faziam parte do programa a realizar (recepção, centro técnico, cantina e salas de reunião) teria de ter no mínimo 3 metros”.

- No Ponto 10 é referido que: “Em virtude do que consta em 9, de modo a legalizar as obras a realizar no locado, teria que ser demolida a estrutura interior existente do imóvel.”

- Pode a Recorrente facilmente concluir que o prédio em causa, para além de não estar licenciado, o seu interior era/é totalmente ilegal decorrente da realização de obras clandestinas, não tendo assim qualquer aptidão para o fim do contrato, inaptidão esta que é expressamente admitida pelo Acórdão ora recorrido e, foi com base neste mesmo argumento que a Recorrente rescindiu o contrato, conforme resulta do ponto 17 da matéria provada.

- A Recorrente bem referiu que a licença de ocupação nº 200 não correspondia ao prédio físico actualmente existente, pelo que estava impossibilitada de proceder a qualquer tipo de legalização da sua actividade junto da Câmara Municipal de ..., pelo que o locado não estava apto para o fim do contrato, atestado pelas entidades competentes nem tão pouco possuía licença de ocupação!

- A permanente falta de licença de utilização do locado e a falta de aptidão do locado para o fim do contrato acarretam necessariamente a sua nulidade quer por força do artigo 294º do Código Civil quer por força do já mencionado artigo 5º nº 8 do D.L. nº 160/2006, nulidade esta que é típica, permitindo assim que a Recorrente a tivesse já arguido na reclamação oportunamente deduzida por ser parte interessada, sem limite de tempo e que deveria ter sido determinada oficiosamente pelo Tribunal ora recorrido, o qual tão pouco sobre tal matéria se pronunciou.

- Conforme resulta do Douto Acórdão do STJ, de 22/09/2016, Processo n.º 681/14.8TVLSB.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, “a nulidade do contrato está especificamente prevista para os casos em que exista uma divergência entre a finalidade do contrato e aquela que se encontre definida pelo licenciamento, ainda assim, sem prejudicar o direito de indemnização reconhecido ao arrendatário”.

- Como bem refere Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, pág. 631, “o negócio jurídico inválido não alcança criar direito, não gera direito interprivado, não põe em vigor uma regulação negocial. Pelo contrário, é tido como simples facto jurídico, de cujas consequências jurídicas constitui mero suporte inerte. As consequências jurídicas do negócio inválido não são já aquelas que os seus autores lhe quiseram atribuir, mas antes as que a lei determina”.

- Como resultado do exposto, sempre teria a Recorrida, ao abrigo do disposto nos artigos 289º e 290º do Código Civil, de repor a situação fáctica de acordo com a situação jurídica (ineficácia originária do negócio) e assim, restituir todos os valores prestados, conforme resulta da Douta Sentença de primeira instância ora recorrida.

- Acresce que, existem ilegalidades no prédio bem identificadas nos pontos 8 a 10 da matéria provada que impunham a demolição de parte do locado, o que desde logo acarreta a sua irreparabilidade e assim, a nulidade contratual por impossibilidade originária da prestação, conforme resulta aliás do artigo 401º nº 3 do Código Civil e a total inaplicabilidade, também nesta situação, dos artigos 1032º e 1033º do mesmo Código.

- As patologias de que o prédio padecia implicariam a sua reconstrução e não simples obras de adaptação à actividade da Recorrida.

- Da conjugação dos artigos 1032º e 1033º do Código Civil resulta o pressuposto da sua aplicabilidade exclusivamente nas situações em que os vícios do locado ainda são passíveis de reparação por parte do senhorio ou seja, quando a ilegalidade existente ainda pode ser sanada e daí a necessidade do inquilino ter de avisar o senhorio da existência dos defeitos.

- Estes preceitos já não têm aplicação em situações em que o prédio não possui licença de ocupação nem tão pouco naquelas em que o locado se encontra ilegal por força de obras clandestinas e que a única forma de contornar tal ilegalidade reside na demolição do próprio locado.

- A postura processual da Recorrida nunca foi a de reconhecer os defeitos e ilegalidades existentes no prédio, que sempre foram do seu inteiro conhecimento, mas sim a de carrear a responsabilidade da sua reparação para a Recorrente e assim, em momento algum referiu que, para evitar a ruptura contratual procederia a alguma sanação de vícios caso tivesse sido previamente informada da sua existência.

- Estar a Recorrida a invocar qualquer preterição do artigo 1033º al. d) do Código Civil prefiguraria sempre um manifesto abuso de direito.

- Mesmo que o entendimento supra vertido não seja acolhido, o que unicamente por mera cautela e dever de patrocínio se admite, a verdade é que a Acórdão ora recorrido condena a Recorrente ao pagamento das rendas até ao final do contrato de arrendamento, omitindo qualquer pronúncia quanto ao facto, inelutável pois resulta do ponto 21 da matéria provada, da Recorrida ter arrendado novamente o locado dois meses após a Recorrente o ter resolvido.

- A existir qualquer alegada e eventual resolução ilícita do contrato por parte da Recorrente, nunca poderia a Recorrida receber qualquer valor de rendas para além da data do início do novo contrato ou seja, Maio de 2016, sob pena de estarmos perante uma evidentíssima situação de enriquecimento sem causa e manifesto abuso de direito.

- O entendimento ínsito no Acórdão ora recorrido viola o disposto nos artigos 294º, 401º nº 3, 334º, 473º, 1033º al. d) e 1070º todos do Código Civil, bem como o artigo 5º do D.L. nº 160/2006.

Nas contra alegações a Ré pugna pela manutenção do julgado.

II Põe-se como questão solvenda, no âmbito desta Revista, a de saber se a Autora tinha ou não fundamento para resolver o contrato com a Ré, aqui Recorrida, por vícios na coisa locada impeditivos da prossecução do objecto contratual.

As instâncias declararam como assentes os seguintes factos:

1 A A. e a R. celebraram o contrato de arrendamento comercial relativo ao prédio sito na Avenida ... nº 306 (antigo lote E) em Lisboa, contrato esse cuja cópia consta de fls 7v a 8v, dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.

2 Consta de tal contrato:

“(...)

A Primeira Outorgante é dona e legitima possuidora do prédio urbano sito na Avenida ..., nº 000, …), em …, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de ... sob o artº nº 13003, com a licença de utilização nº 200, emitida pela Câmara Municipal de ..., em 26 de Maio de 1966 que se encontra identificada na planta anexa e que faz integrante deste contrato.

Pelo presente contrato, dá de arrendamento à 2ª Outorgante, reciprocamente aceita, a Loja identificada no artigo anterior, no estado de conservação em que se encontra.

O contrato de arrendamento, de prazo certo, tem o seu início no dia 1 de Novembro de 2014 e é celebrado pelo prazo de dez anos, renovável por períodos de um ano, salvo denúncia por qualquer urna das partes nos termos legalmente previstos.

A renda acordada é de € 6.000,00 (seis mil euros) mensais, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que respeitar na sede da locadora ou no local e à pessoa ou entidade que ela indicar.

§ 1º - A 1ª Outorgante concede à 2ª quatro meses de carência de renda, pelo que apenas será devida a partir de Março de 2015.

§ 2º - Neste acto, a 2ª Outorgante paga à Ia Outorgante a quantia de € 12.000,00 (doze mil euros), correspondente à rendas dos meses de Março e Abril de 2015, vencendo-se apenas a seguinte, ex vi do disposto no parágrafo anterior, no mês de Abril de 2015, com respeito ao mês de Maio.

§ 3º - A 1ª Outorgante não procederá à actualização da renda, segundo os coeficientes legais, durante os primeiros três anos de vigência deste contrato.

A Loja arrendada destina-se ao exercício das actividades de armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da locatária.

A 2ª Outorgante fica autorizada a fazer sublocação, parcial, sem limite de renda, sendo que cinquenta por cento do seu montante reverterá para a Ia Outorgante, por incorporação no valor da renda entre ambas ao tempo vigente.

Durante o período de carência de renda, a 2ª Outorgante assume a obrigação de fazer as obras de adaptação necessárias ou convenientes, para que a Loja arrendada fique em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas.

Quaisquer benfeitorias feitas pela locatária ficam desde logo a fazer integrante do prédio, sem direito a indemnização e/ou de retenção

Durante a vigência deste contrato, ficam exclusivamente a cargo da Outorgante, todas as obras de conservação

10°

Findo o arrendamento, a 2ª Outorgante obriga-se a entregar a Loja à Ia Outorgante, em bom estado de conservação, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização.

2 Previamente à celebração do contrato de arrendamento aludido em 1-, a A. visitou, por diversas vezes, o interior e exterior do prédio, bem como o armazém que se situa por baixo.

3 Aquando da celebração do contrato de arrendamento, a Autora tinha conhecimento de que o imóvel locado se encontrava em mau estado de conservação.

4 A R. aceitou arrendar o imóvel pela renda e com o período de carência referidos em 2 em virtude da A. ter assumido a obrigação de realizar a expensas próprias as obras aludidas na cláusula 7ª do contrato referido em 1.

5 A A. declarou à R. que as obras que a mesma iria realizar no locado ascenderiam a um valor entre € 300.000,00 e 400.000,00.

6 Em data posterior à celebração do contrato referido em 1, a Câmara Municipal de ... declarou à A. que não consta dos arquivos da autarquia qualquer licença correspondente ao documento cuja cópia consta de fls 67v intitulada. “Licença de Utilização nº 200”.

7 Ao iniciar o projecto para efeitos de realização das obras aludidas em 1, a A. verificou que o locado possuía um pé-direito livre de 2,34 m no piso 0 e de 2,40 m no primeiro piso.

8 As obras das quais resultou que os pisos referidos em 6- ficassem com o pé- direito livre ali referido foram realizadas sem licença camarária e em data não concretamente apurada mas posterior a 1951.

9 A Divisão de Licenciamento Urbanístico da Câmara Municipal de ... declarou à A. que o pé-direito livre de todas as zonas de permanência que faziam parte do programa a realizar (recepção, centro técnico, cantina e salas de reunião) teria que ter no mínimo 3 metros.

10 Em virtude do que consta em 9., de modo a legalizar as obras a realizar no locado, teria que ser demolida a estrutura interior existente do imóvel. 

11 A A., ao proceder ao levantamento técnico da obra, constatou que:

a) a cobertura metálica do locado e estrutura de betão armado exterior do mesmo estavam deterioradas;

b) a cobertura metálica não tinha contraventamento, quer ao nível do banzo inferior da asna, quer ao nível do plano da cobertura;

c) as asnas não eram capazes de resistir aos esforços instalados para as diferentes combinações regulamentares, pelo que as mesmas não permitiam a segurança estrutural e apresentavam risco para a utilização do edifício;

d) as vigas e pilares de betão armado existentes no exterior do edifício encontravam-se deteriorados e a necessitar de trabalhos de reabilitação e tratamento.

12 Desde, pelo menos, fevereiro de 2015, que a Autora tinha conhecimento de que as edificações interiores do imóvel, e que não cumpriam as medidas exigidas para o pé-direito, iam ser demolidas, tendo aceite tais demolições conforme resulta do projecto de licenciamento de obra entregue na Câmara Municipal de ....

13 Desde, pelo menos, fevereiro de 2015, que a Autora conhecia, no geral, que a loja locada padecia de alguns vícios de estrutura.

(14 Desde, pelo menos, fevereiro de 2015, que a Autora tinha conhecimento de que as edificações interiores do imóvel, e que não cumpriam as medidas exigidas para o pé-direito, iam ser demolidas, tendo aceite tais demolições conforme resulta do projecto de licenciamento de obra entregue na Câmara Muncipal de ....) Trata-se da repetição do facto 12.)

15 Os vícios de que o imóvel padecia, nomeadamente, os identificados no ponto 11. dos factos provados eram totalmente reparáveis.

16 Com vista à realização das obras no locado, a A. despendeu a quantia total de € 14.459,45, com o levantamento topográfico, estudos prévios ao projecto de arquitectura, levantamento estrutural, entrega de projectos de especialidade e execução, análise preliminar e acompanhamento do processo de licenciamento, projecto AVAC, projecto de estabilidade e hidráulica, projecto de electricidade e segurança contra incêndios e taxa de obras de edificação e demolição.

17 A A. enviou à R. a carta cuja cópia consta de fls 13, datada de 5 de Fevereiro de 2016, da qual consta:

(...)

Vimos pela presente resolver, com efeitos imediatos, o contrato de arrendamento comercial com prazo certo relativo ao locado sito na Avenida ... nº 000, antigo … cm …, celebrado no passado dia 31.10.2015. nos termos e para os efeitos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 1083º do Código Civil.

Com efeito, contrariamente ao que V. Exas. nos informaram e que fizeram constar do teor do contrato de arrendamento, a licença de utilização nº200 emitida pela Câmara Municipal de ... em 26.05.1966 não corresponde ao prédio físico actualmente existente, pelo que estamos impossibilitados de proceder a qualquer tipo de legalização da nossa actividade junto da autarquia.

Acresce que o prédio arrendado possui graves problemas estruturais que impedem o seu normal gozo e fruição, conforme decorre de relatório técnico que aproveitamos para enviar a v. Exas.

Assim, em consequência, por vícios da coisa locada, estamos impedidos de ver assegurado o gozo do locado para os fins a que este se destina pelo que o contrato se encontra incumprido por V/ exclusiva responsabilidade.

Finalmente, com a presente resolução, deverão V. exas devolver-nos todos os valores de rendas por esta Sociedade oportunamente e que, actualmente ascendem ao montante de € 54.000 (cinquenta e quatro mil euros).

18 A R. enviou à A. a carta cuja cópia consta de fls 67, datada de 21 de Março de 2016, da qual consta:

Assunto: Contrato de Arrendamento do locado sito na Av- ..., 000,

(...)

Recebemos e não podemos deixar de lamentar a carta de V. Exas datada de 05 de Fevereiro último.

Não aceitamos aquilo que nos é comunicado (...)

Mantém-se, assim, em vigor o contrato de arrendamento celebrado com V. Exas, com a obrigação de realizarem as obras de € 400.000,00 e, naturalmente, de pagarem todas as rendas vencidas durante o prazo contratual de 10 anos.

19 A A. nunca contactou a R. a fim de lhe transmitir o que consta dos pontos 7º a 11º dos Factos provados.

20 A A. pagou à R., a título de rendas, a quantia de € 54.000,00.

21 A R. voltou a arrendar o imóvel em causa em 01 de Maio de 2016, contrato esse cuja cópia consta de fls. 131 e 132 dando-se o seu teor por integralmente reproduzido, constando do mesmo que o arrendamento é feito pelo prazo de 15 anos, pela renda mensal de € 6.000,00 e com um período de carência de 12 meses no pagamento das rendas, atendendo ao estado de degradação do locado e às volumosas obras de reabilitação de que carece e que ficam a cargo da arrendatária.

Insurge-se a Autora contra o Acórdão recorrido, na medida em que, na sua tese, ao contrato de arrendamento em causa nesta lide não tem aplicabilidade o referido artigo 1033º al. d) do Código Civil, acrescendo ainda que a Recorrida não estava legalmente legitimada a colocar o locado em causa no mercado do arrendamento urbano, porquanto, dispondo o artigo 1070º nº 1 do CCivil que “O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidade competentes, designadamente através de licença de ocupação, quando exigível.”, remetendo o nº2 para o preceituado no artigo 5º do D.L. nº 160/2006, o qual dispõe no seu número 1 que “Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização”, acrescentando ainda que no nº 5 do mesmo artigo se refere que: “A inobservância do disposto nos n.ºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável.” e o seu nº 7 que “Na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.” e no nº 8 que “O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização.”, não restam duvidas que assistia à Recorrente o direito de ver resolvido o contrato, como peticionado e decidido em primeira instância.

O Acórdão da Relação, alinhou as seguintes considerações para dar parcial procedência ao recurso interposto pela Ré e julgar improcedente o pedido da Autora, aqui Recorrente, depois de fazer um sobrevoo sobre as questões doutrinárias atinentes vícios impeditivos da realização cabal do fim para que foi dado de arrendamento:

«[R]egressando agora ao caso dos autos, é patente que, mesmo dando de barato que o facto de o prédio arrendado apresentar as características descritas nos pontos 7 a 11 da matéria factual considerada provada evidencia a existência de vícios que, pela sua gravidade, impedem que o prédio arrendado realize o fim a que era destinado - exercício das actividades de armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da A. -, nos termos e para os efeitos do cit. art. 1032° do Código Civil, o certo é que o simples facto de a arrendatária aqui Autora não ter curado de avisar a locadora ora Ré /Apelante desses vícios é suficiente para que o contrato de arrendamento se deva considerar correctamente cumprido pela locadora, ex vi da cit. alínea d) do art. 1033° do Código Civil.

Consequentemente, funcionando, in casu, a excepção prevista nesta al. d) do art. 1033° do CC, a arrendatária aqui Autora/Apelada não pode exigir do senhorio a eliminação dos defeito ou a redução da renda (a menos que outra coisa tivesse sido convencionada entre as partes) e - sobretudo - não pode anular ou resolver o contrato nem exigir da senhoria responsabilidade contratual.

Se assim é, a resolução do contrato operada pela Autora/Apelada através da declaração contida na carta por ela enviada à Ré/Apelante datada de 5 de Fevereiro de 2016 carece de fundamento legal. Desde o momento que a arrendatária jamais deu a conhecer à sua senhoria a existência dos vicios do prédio arrendado alegadamente impeditivos da realização cabal das finalidades para que ela o tomou de arrendamento, não lhe assistia o direito de resolver o contrato com tal fundamento. E, como tal, a Autora/Apelada permanece obrigada ao pagamento á Ré/Apelante, não apenas das rendas que pagou à sua senhoria e cuia devolução/restituição veio reclamar nesta acção, como também das rendas que se venceram até ao termo do prazo para o qual a Autora podia ter denunciado o contrato (Fevereiro de 2018), visto que, tratando-se dum contrato de arrendamento com prazo certo, a Autora podia legalmente denunciá-lo, decorrido um terço do prazo de duração inicial (cfr. o n.° 3 do artigo 1098.°, aplicável ex vi do art.° 1110.°, ambos do Código Civil).

Está, assim, a Autora/Reconvinda obrigada a pagar à Ré/Reconvinte a renda contratualmente estipulada (€ 6.000,00), durante (pelo menos) 3 (três) anos e 3 (três) meses, os quais se completaram no mês de Fevereiro de 2018.

Ora, como a Autora, mesmo beneficiando do perdão da renda durante 6 (seis) meses, que a Ré lhe concedeu, só pagou a esta as rendas vencidas até ao mês de Fevereiro de 2016, está obrigada a pagar-lhe o montante das rendas compreendidas e vencidas entre os meses de Marco de 2016 e Fevereiro de 2018 (23 x 6.000,00), no montante total de € 138.000,00 (cento e trinta e oito mil euros).

Além de não ter direito à devolução das rendas que pagou à Ré/Reconvinte, no montante de € 54.000,00, a Autora também não tem ius a exigir da Ré o pagamento das despesas feitas pela Autora com vista à realização das obras de adaptação para que a loja arrendada ficasse em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas.

Efectivamente, como a Autora não curou de denunciar à sua senhoria ora Ré os vícios (alegadamente impeditivos de o prédio arrendado realizar o fim para que lhe fora dado de arrendamento) consubstanciados no facto de o prédio arrendado apresentar as características descritas nos pontos 7 a 11 da matéria factual considerada provada, o contrato considera-se correctamente cumprido pela Ré (nos termos do art. 1033°, al. d), do Cód. Civil) e, portanto, a locatária não pode exigir da sua senhoria o pagamento das despesas em que incorreu com a planificação de obras que só não levou a cabo por livre opção sua, estando - como está - provado que todos os vícios de que o prédio arrendado padecia eram afinal totalmente passíveis de ser reparados.

Daí que a presente acção improceda, in totum.

Como vimos, procede, in totum, o 1º pedido reconvencional deduzido pela Ré/Reconvinte ora Apelante: condenação da Autora/Reconvinda a pagar à Ré/Reconvinte o montante das rendas compreendidas e vencidas entre os meses de Marco de 2016 e Fevereiro de 2018 (23 x 6.000,00), no montante total de € 138.000.00.

Já não assim, porém, no que concerne ao 2o pedido reconvencional formulado pela Ré/Reconvinte:: condenação da Autora/Reconvinda no pagamento da quantia que se vier a apurar em sede de incidente de liquidação relativa ao custo das obras no locado que a A. se obrigou a efectuar mas não realizou.

A Ré/Reconvinte ora Apelante funda tal pedido no facto de a Autora se ter vinculado contratualmente a fazer as obras necessárias a pôr o locado em boas condições de conservação e a torná-lo apto para as finalidades contratualmente acordadas e não ter cumprido essa obrigação contratual, visto que afinal nenhumas obras executou, sendo que, nos termos convencionados entre as partes, todas as benfeitorias feitas reverteriam para o prédio, sem direito a indemnização.

É, de facto, inegável que a Autora/Reconvinda incumpriu essa sua obrigação contratual de realizar as obras necessárias a pôr o locado em boas condições de conservação e a torná-lo apto para as finalidades contratualmente acordadas.

Ainda assim - como vimos supra -, nos casos em que o contrato deve ser havido como cumprido (mercê do funcionamento de qualquer das excepções previstas no art. 1033° do Cód. Civil), não está o locatário obrigado a proceder à reparação dos vícios detectados, com excepção das responsabilidades que lhe couberem por haver dado causa ao defeito ou haver negligenciado a comunicação, na medida em que a omissão o agravou ou avolumou (o que, in casu, não está provado que tenha sucedido)  .

Acresce que, no caso dos autos, se provou que a Ré voltou a arrendar o imóvel em causa em 01 de Maio de 2016, contrato esse cuja cópia consta de fls. 131 e 132 dando- se o seu teor por integralmente reproduzido, constando do mesmo que o arrendamento é feito pelo prazo de 15 anos, pela renda mensal de € 6.000,00 e com um período de carência de 12 meses no pagamento das rendas, atendendo ao estado de degradação do locado e às volumosas obras de reabilitação de que carece e que ficam a cargo da arrendatária.

Ora, se o prédio se encontra actualmente dado de arrendamento a um terceiro que, também ele, se obrigou contratualmente a realizar as volumosas obras de reabilitação de que o prédio arrendado carece, atendendo ao seu estado de degradação (cfr. a cláusula 4a do aludido contrato de arrendamento celebrado pela Ré com um terceiro, com início de vigência em 1 de Maio de 2016), carece totalmente de fundamento a pretensão da Ré / Reconvinte de obter a condenação da Autora/Reconvinda a suportar o custo de obras de realização do prédio arrendado que o novo arrendatário do prédio se obrigou a realizar, a expensas suas. Qualquer importância que, a esse título, fosse atribuída à Ré/Reconvinte, a expensas da anterior arrendatária (a Autora/Reconvinda), cifrar-se-ia num inadmissível enriquecimento sem causa, pelo que a primeira sempre ficaria obrigada a restituí-la à segunda (nos termos do art. 473°, n° 1, do Código Civil).

Improcede, assim, necessariamente, este 2° pedido reconvencional.».

Vejamos então.

Estamos face a um contrato de arrendamento para comércio, tal como o mesmo nos é definido pelo artigo 1022º do CCivil, pelo qual a Ré se obrigou a proporcionar à Autora o gozo temporário (por dez anos) e retribuído (mediante a satisfação da contrapartida mensal de 6.000 €), da Loja do prédio urbano sito na Avenida ..., nº 000, …), em …, conforme teor do contrato havido entre as partes e que consta do ponto 1. da materialidade assente.

A referida loja destinava-se ao exercício das actividades de armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da locatária, ponto 2. da materialidade assente.

Foi convencionado entre as partes um período de quatro meses de carência das rendas e que a Autora, aqui Recorrente, assumia “a obrigação de fazer as obras de adaptação necessárias ou convenientes, para que a Loja arrendada fique em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas”.

Daqui resulta, prima facie, que ambas as partes sabiam e não podiam ignorar, que a loja objecto do contrato, necessitava de obras de adaptação para ser utilizada para o fim a que se destinava e, por isso, as partes acordaram que tais obras seriam a efectuar pela Autora/Recorrente, pressupondo-se que as mesmas eram possíveis para cumprir o apontado desígnio já que resulta do normativo inserto no artigo 1031º do CCivil que o senhorio é obrigado a entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina.

Quer dizer, a loja foi arrendada no pressuposto de que servia para garantir o seu gozo pela Autora, cumprindo o fim a que esta a destinava (armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da própria), embora necessitasse de obras de adaptação para o efeito, a fim de ficar em boas condições de conservação e aptidão.

Contudo, como deflui da factualidade dada como provada, nos pontos 7. a 11., com interesse para a decisão, a Autora confrontou-se com alguns obstáculos na concretização das apontadas obras.

Assim:

«7 - Ao iniciar o projecto para efeitos de realização das obras aludidas em 1- a A. verificou que o locado possuía um pé-direito livre de 2,34 m no piso 0 e de 2,40 m no primeiro piso.

8- As obras das quais resultou que os pisos referidos em 6 ficassem com o pé-direito livre ali referido foram realizadas sem licença camarária e em data não concretamente apurada mas posterior a 1951.

9 - A Divisão de Licenciamento Urbanístico da Câmara Municipal de ... declarou à A. que o pé-direito livre de todas as zonas de permanência que faziam parte do programa a realizar (recepção, centro técnico, cantina e salas de reunião) teria que ter no mínimo 3 metros.

10 - Em virtude do que consta em 9., de modo a legalizar as obras a realizar no locado, teria que ser demolida a estrutura interior existente do imóvel. 

a) a cobertura metálica do locado e estrutura de betão armado exterior do mesmo estavam deterioradas;

b) a cobertura metálica não tinha contraventamento, quer ao nível do banzo inferior da asna, quer ao nível do plano da cobertura;

c) as asnas não eram capazes de resistir aos esforços instalados para as diferentes combinações regulamentares, pelo que as mesmas não permitiam a segurança estrutural e apresentavam risco para a utilização do edifício;

d) as vigas e pilares de betão armado existentes no exterior do edifício encontravam-se deteriorados e a necessitar de trabalhos de reabilitação e tratamento.».

A existências de todas estas irregularidades impediam a Autora de utilizar o arrendado para o fim a que o mesmo se destinava, como se concluiu quer no primeiro grau, quer no segundo grau, só que, enquanto a primeira instância entendeu que havia lugar à resolução do contrato, O Aresto impugnado entendeu inexistir fundamento bastante, uma vez que a Autora, aqui Recorrente, não deu cumprimento ao disposto no artigo 1033º, alínea d) do CCivil, isto é não avisou a Ré da existência das apontadas deficiências.

A questão que aqui se suscita é a de saber se impenderia sobre a Autora tal obrigação, já que, como começamos por dizer, a Ré sabia que o imóvel tinha necessidade de obras de conservação e de adaptação para poder estar apta a satisfazer o fim acordado, o que resulta vítreo do clausulado havido entre as partes, cfr cláusula 7ª, ponto 2. da factualidade assente, sendo óbvia a negatividade da resposta a dar, por confusão dos termos.

De outra banda, datando o vício do momento da celebração do contrato e de cariz estrutural, sendo o mesmo do conhecimento do locador, acrescendo a circunstância de não constar dos arquivos da autarquia qualquer licença intitulada. “Licença de Utilização nº 200” (ponto 6.), conduz-nos à asserção que os defeitos de que a loja padecia, não podiam ser desconhecidos sem culpa do locador, a aqui Recorrida, de onde mostrar-se incumprido, nos termos do disposto no artigo 1032º , alínea a) do CCivil, aliás como se decidiu no primeiro grau.

Alonguemo-nos um pouco mais sobre esta questão, já que nela reside a ratio essendi dos autos.

Lê-se a este propósito na sentença de 1ª instância:

«[O] regime previsto para os vícios da coisa constitui a consequência lógica da obrigação imposta ao locador pelo art. 1031º de assegurar o gozo da coisa - se a coisa apresentar vícios (quer de facto quer de direito) que lhe não permitam realizar o fim a que se destina, o locador é responsável pelo prejuízo causado ao locatário, nos termos do art. 798º do CC Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. II, 45 ed., pag. 360.

Segundo Pedro Romano Martinez, o regime previsto nos arts. 1032º a 1034º enquadra-se na figura geral do cumprimento defeituoso das obrigações, valendo em tais casos a presunção de culpa do art. 799º do CC, presumindo-se a culpa do locador sempre que a coisa apresente vícios de direito ou defeitos Cfr., “Direita das Obrigações (Parte Especial) Contratos - Compra e Venda, Locação e Empreitada”, Almedina, 2a ed., pag. 188.

Bastará, assim, ao arrendatário provar a existência do vício, incumbindo ao locador a prova de que o vício não provém de culpa sua.

Na situação vertente, apurou-se que, ao iniciar o projecto para efeitos de realização das obras a cuja execução se tinha obrigado nos termos estabelecidos no contrato - obras de adaptação necessárias ou convenientes, para que a Loja arrendada fique em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas -, verificou que o locado possuía um pé-direito livre de 2,34 m no piso 0 e de 2,40 m no primeiro piso.

As obras das quais resultou que os pisos referidos tivessem o referido pé-direito livre foram realizadas sem licença camarária e em data não concretamente apurada mas posterior a 1951.

Em virtude de tal circunstância e de modo a legalizar as obras, teria que ser demolida a estrutura interior existente do imóvel.

Ficou igualmente demonstrado que a A., ao proceder ao levantamento técnico da obra, constatou que:

a) a cobertura metálica do locado e estrutura de betão armado exterior do mesmo estavam deterioradas;

b) a cobertura metálica não tinha contraventamento, quer ao nível do banzo inferior da asna, quer ao nível do plano da cobertura;

c) as asnas não eram capazes de resistir aos esforços instalados para as diferentes combinações regulamentares, pelo que as mesmas não permitiam a segurança estrutural e apresentavam risco para a utilização do edifício;

d) as vigas e pilares de betão armado existentes no exterior do edifício encontravam-se deteriorados e a necessitar de trabalhos de reabilitação e tratamento.

De acordo com o disposto no nº 3 do artigo 65º do Regime Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.s 38 382 de 7 de Agosto de 1951, o pé -direito livre mínimo dos pisos destinados a estabelecimentos comerciais é de 3m.

Nos tectos com vigas, inclinados, abobadados ou, em geral, contendo superfícies salientes altura piso a piso e ou o pé-direito mínimo; definidos nos n.°s 1 e 3 devem ser mantidos, pelo menos, em 80 % da superfície do tecto, admitindo-se na superfície restante que o pé-direito livre possa descer até ao mínimo de 2,20m ou de 2,70m, respectivamente, nos casos de habitação e de comércio - cfr nº 4 do mesmo normativo.

No caso sub judice, ficou demonstrado que a Divisão de Licenciamento Urbanístico da Câmara Municipal de ... declarou à A. que o pé-direito livre de todas as zonas de permanência que faziam parte do programa a realizar (recepção, centro técnico, cantina e salas de reunião) teria que ter no mínimo 3 metros. 

De modo a permitir a legalização das obras, teria que ser demolida a estrutura interior existente do imóvel.

Acresce que a cobertura metálica não tinha contraventamento, quer ao nível do banzo inferior da asna, quer ao nível do plano da cobertura e as asnas não eram capazes de resistir aos esforços instalados para as diferentes combinações regulamentares, pelo que as mesmas não permitiam a segurança estrutural e apresentavam risco para a utilização do edifício.

Atento o que fica referido, não pode deixar de se concluir que o imóvel locado apresentava vícios que não lhe permitiam realizar o fim a que era destinado e que os defeitos já se verificavam aquando da entrega da coisa.

E certo que, nos termos contratuais, incumbia à A. a realização das obras de adaptação necessárias ou convenientes, para que a loja arrendada ficasse em boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas. Todavia, o locado apresentava vícios - defeitos — estruturais, os quais implicavam, inclusivamente, para as obras a realizar pudessem ser legalizadas, que tivesse que ser demolida a estrutura interior existente no imóvel.

Por outro lado, não obstante a A., previamente à celebração do contrato de arrendamento, ter visitado, por diversas vezes, o interior e exterior do prédio, bem como o armazém que se situa por baixo, não estão em causa vícios ou defeitos que se possam considerar facilmente reconhecíveis. Deste modo, não se encontra afastada a responsabilidade do locador nos termos do disposto no artigo 1033º do C. Civil.

Os documentos juntos de fls 57 a 66 permitem concluir que a A. apresentou junto da Câmara Municipal de ... o projecto de licenciamento para efeitos de realização das obras estabelecidas contratualmente.

Todavia, também não se pode deixar de entender que, face ao facto de, ao proceder ao levantamento técnico da obra, a A. ter apurado que a cobertura metálica não tinha contraventamento, quer ao nível do banzo inferior da asna, quer ao nível do plano da cobertura, que as asnas não eram capazes de resistir aos esforços instalados para as diferentes combinações regulamentares, pelo que as mesmas não permitiam a segurança estrutural e apresentavam risco para a utilização do edifício, a A. ter concluído que o locado não reunia ab initio as condições para a manutenção do arrendamento.

Como se referiu, estão em causa vícios que, pela sua gravidade, impedem que a coisa realize o fim a que era destinado - exercício das actividades de armazenagem, venda, colocação, substituição de vidros e acessórios em automóveis, montagem de auto rádios e alarmes, parqueamento de automóveis e escritório da A.

Atendendo as obras que a A. se obrigou contratualmente a realizar e a todas as diligências cuja realização se impunha para efeitos da respectiva execução, também não se pode concluir que, o facto de a A. só ter resolvido o contrato em Fevereiro de 2015, se traduza num acto injustificado ou numa actuação em abuso de direito, porquanto violadora da boa fé contratual - cfr artº 334º do C. Civil. 

Atento o declarado pela testemunha AA, só a reparação e o reforço dos elementos estruturais da cobertura importaria em, pelo menos, 200 mil euros, obras que eram necessárias e que não se podem considerar como fazendo parte das obras de adaptação cuja realizada incumbia contratualmente à A.

O imóvel não reunia as condições para os fins a que era destinado e a R. não demonstrou que os vícios verificados desde o início não resultassem de culpa sua, pelo que o contrato foi resolvido com justa causa, por incumprimento definitivo da R. - arts 1083º, nºs 1 e 2, do C.Civil. Considerando os vícios em causa e o facto dos mesmos já se verificarem aquando da celebração do contrato, a situação integra-se no disposto no artigo 1032º do C.Civil, pelo que não se pode considerar que fosse exigível à A. a notificação da R. para efeitos de reparação.».

Afigura-se-nos relevante a questão das dimensões do pé direito da loja, inferiores às legalmente impostas, porquanto a sua rectificação sempre importaria a realização de obras estruturais de grande dimensão, com a demolição da estrutura interior do imóvel, situação esta que a Ré não poderia desconhecer e que traduz, efectivamente, uma imperfeição grave, impeditiva do gozo da coisa para o fim a que a Autora a destinava, cfr Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 8ª edição, pag; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 4ª edição, 358/360.

Aliás, veja-se que as partes acordaram num período de carência de quatro meses no pagamento das rendas, para que nesse espaço de tempo as tais obras de adaptação do locado pudessem ser efectuadas – cláusulas 4ª §1º e 7ª do contrato de arendamento –,  sendo que, no final das contas, tais obras excediam a mera adaptação, impedindo, assim, o gozo do locado na sua plenitude, por forma a servir o fim proposto, de harmonia com o disposto no artigo 1031º, alínea b) do CCivil, bem como a sua efectivação orçaria em pelo menos 200 mil euros, quantia esta muito superior àqueloutra decorrente dos quatro meses de carência (24 mil euros).

De outra banda, como já se referiu supra o aviso ao locador, que exclui a responsabilidade deste, nos termos do disposto no artigo 1033º, alínea d) do CCivil refere-se à situação especificada no artigo 1038º, alínea h), do mesmo diploma, o que implica que o facto seja ignorado pelo mesmo, o que na espécie não aconteceu, pois a Ré sabia e não poderia desconhecer a situação estrutural do imóvel sua propriedade aquando da feitura do contrato de arrendamento com a Autora, o que conduz, inexoravelmente à bondade da resolução do mesmo por via do seu incumprimento de harmonia com o disposto no artigo 1083º do CCivil,bem como à obrigação de restituição de tudo o que houver sido prestado, nos termos do disposto nos artigos 433º e 289º do mesmo diploma legal, tal como havia sido decidido pelo primeiro grau e vem reivindicado pela Recorrente em sede de Revista.

Como aí se decidiu:

«[A]tento o disposto no artigo 433° do C. Civil, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, pelo que a mesma tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado - art° 289°. n°l, do mesmo diploma.

Deste modo, tem a A. direito à restituição por parte da R. da quantia paga a título de rendas, no montante total de € 54.000.00. quantia essa acrescida de juros moratórios desde 12 de Fevereiro de 2016. conforme peticionado pela A., atenta a data em que lhe foi enviada a carta referida em 3-. interpelando-a para proceder ao pagamento.

Peticionou ainda a A. a condenação da R. no pagamento da quantia de € 14.459,45, correspondente à quantia que suportou com despesas atinentes ao locado.

Ficou provado que. com vista à realização das obras a que se tinha obrigado contratualmente para que a loja ficasse em "boas condições de conservação e apta para as finalidades acordadas ". a A. despendeu a quantia total de € 14.459,45, com o levantamento topográfico, estudos prévios ao projecto de arquitectura, levantamento estrutural, entrega de projectos de especialidade e execução, análise preliminar e acompanhamento do processo de licenciamento, projecto AVAC. Projecto de estabilidade e hidráulica, projecto de electricidade e segurança contra incêndios e taxa de obras de edificação e demolição.

As despesas cujo pagamento é peticionado foram efectuadas pela A. em consequência da celebração do contrato por cujo incumprimento é responsável a R.

Assim, mesmo face à posição clássica, segundo a qual, em caso de resolução contratual, a tutela se resume ao interesse contratual negativo, ou seja. ao prejuízo que o credor não teria se o contrato não tivesse sido celebrado - cfr Pires e Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado. Vol. II. 3a ed.. pág.58: Antunes Varela, das Obrigações em Geral, Vol. II, 7" ed.. pág. 109; Almeida Costa, Direito das Obrigações. 12a ed, pág. 1045 e segs -, não restam dúvidas que estamos despesas que a A. efectuou por força da celebração do contrato -interesse contratual negativo.

Tem, pois, que se concluir que está em causa uma indemnização fundada no não cumprimento definitivo, que se cumula com a resolução e que visa colocar o credor prejudicado na situação em que estaria se não tivesse sido celebrado o contrato Deste modo, tem igualmente a A. direito ao pagamento pela R. da referida quantia de € 14.459.45.».

Procedem, pois, as conclusões de recurso.

III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se a decisão plasmada no Acórdão sob censura, repristinando-se a decisão de primeiro grau.

Custas pela Ré.

Lisboa, 7 de Setembro de 2010

Ana Paula Boularot (Relatora)

Fernando Pinto de Almeida

(Com voto de conformidade do 2º Adjunto, Conselheiro José Rainho, nos termos do artigo 15º-A do DL 10-A/2020 de 13 de Março introduzido pelo DL 20/2020 de 1 de Maio)

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).