Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | ARAÚJO BARROS | ||
| Nº do Documento: | SJ200210170025877 | ||
| Data do Acordão: | 10/17/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 2119/01 | ||
| Data: | 01/31/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Sumário : | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "A", em representação e como mãe de B instaurou, no Tribunal da comarca de Vila Verde, contra a "C" acção declarativa com processo sumário, na qual alegando, em síntese, que em 8 de Outubro de 1996 ocorreu um acidente de viação, em que o B, que seguia a pé pela estrada atrás de um carro de bois, foi atropelado pelo veículo automóvel IJ, cujo proprietário havia transferido a sua responsabilidade para a ré, e por virtude do qual resultaram danos para a autora e para o B, peticionou a condenação da ré a pagar-lhe o montante global de 34.241.205$00, bem como outra quantia ainda por liquidar, a apurar em execução de sentença, acrescida de juros de mora desde a citação. Contestando, sustentou a ré, em resumo, que a culpa do acidente devia ser imputada ao B, impugnando os danos invocados. Foi, por duas vezes, ampliado o pedido, para mais 384.440$00 e 4.378.129$00, respectivamente. Realizada a audiência de discussão e julgamento, com decisão acerca da matéria de facto, veio a ser proferida sentença, que, além do mais, a) absolveu a ré do pedido deduzido pela autora AB; e b) condenou a ré a pagar ao B as seguintes indemnizações: 7.500.000$00, correspondente ao dano não patrimonial sofrido, actualizada à data da decisão, acrescida de juros de mora, a contar desta mesma data, 30.000.000$00, a título de dano patrimonial pela perda do rendimento proveniente do trabalho, acrescida de juros de mora desde a citação e uma quantia a liquidar em execução de sentença relativa à compra e colocação de próteses. Apelaram a ré e a autora A, esta subordinadamente, tendo, na sequência, o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 31 de Janeiro de 2002, julgando totalmente improcedente o recurso da ré seguradora e procedente a apelação da autora A, alterado a sentença recorrida no sentido de que a ré "C" vai condenada também a pagar à autora A, a quantia de 709.660$00 e ainda a quantia que se apurar em liquidação de sentença correspondente à perda de rendimentos do trabalho de tecedeira artesanal que ocorreu durante o período de internamento e alguns períodos no decurso do tratamento do lesado B, acrescidas todas as quantias de juros de mora desde a citação, e mantendo tudo o restante decidido. Inconformada, interpôs agora a ré seguradora recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado e o julgamento do recurso em conformidade com as conclusões que formulou. Contra-alegando defendeu o recorrido B a manutenção do acórdão em crise. Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir. Concluiu a recorrente as suas alegações pela forma seguinte: 1. O peão B, recorrido, caminhando pela faixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de trânsito, quando devia fazê-lo pela respectiva berma de 80 centímetros de largura, violou o disposto no art. 102º, nº 2, do Cód. da Estrada. 2. Existindo, assim, nexo de causalidade entre aquela infracção e as consequências do acidente. 3. Contribuiu, deste modo, o B para a ocorrência do mesmo, sendo-lhe imputável na medida em que foi devido a facto por ele praticado. 4. A indemnização pelo dano patrimonial resultante da IPP não deve ser fixada em importância superior a 17.000.000$00 (84.795,64 euros). Com efeito, na data do acidente o B era menor e estudante, só entraria no mercado de trabalho aos 18 anos, completados em 2001 e não auferiria logo no início o salário mensal de 132.000$00. O salário diário médio de 6.000$00 é salário de profissional da construção civil, já feito. 5. Por isso, para se fixar o quantitativo da indemnização do dano patrimonial resultante da IPP deveria partir-se do salário mínimo nacional. Ou, quando muito, ficcionando-se um rendimento mensal de 80.000$00. 6. A indemnização referente à compensação pelo dano moral não deve ultrapassar os 4.000/5.000 contos, ou seja, 19.951,92/24.939,89 Euros. 7. Os juros de mora sobre a indemnização pelo dano patrimonial devem ser contados desde a data da sentença da 1ª instância, uma vez que o autor, completando 18 anos de idade em 2001, só a partir daqui iria entrar no mercado de trabalho, devendo, por isso, considerar-se o respectivo montante indemnizatório actualizado e, assim, feita a interpretação restritiva do nº 3 do art. 805º do Cód. Civil, sob pena de violação do princípio indemnizatório consagrado no art. 562º do mesmo código. 8. Os montantes indemnizatórios acima referidos nas conclusões 4ª e 6ª, bem como a importância de 709.660$00 atribuída à autora A e ainda a quantia que se vier a apurar em liquidação de sentença correspondente à perda de rendimentos de tecedeira artesanal ficarão sujeitos à incidência das percentagens correspondentes à graduação das responsabilidades do condutor do veículo IJ e do próprio B, recorrido, como consequência do reconhecimento da existência de uma situação de conculpabilidade na ocorrência do acidente e da graduação que vier a estabelecer-se no acórdão a proferir. 9. O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 102º, 1, 103º, 2, 97º, c), e 56º do Cód. da Estrada e 483º, nº 1, 496º, 526º, 564º, 566º, 570º e 803º, nº 3, do Cód. Civil. Com relevância para o conhecimento do recurso, encontra-se demonstrada a seguinte factualidade: a) - cerca das 8,30 horas do dia 8 de Outubro de 1996, ocorreu um acidente de viação na E.M. Rio Mau-Duas Igrejas, no Lugar de Paçô, freguesia de Rio Mau; b) - o autor B caminhava por essa estrada, no sentido Rio Mau-Duas Igrejas, pela metade direita da faixa de rodagem atento esse sentido de marcha, a menos de 1 metro da berma do seu lado direito, atento o aludido sentido, pegado à traseira de um carro de bois com uma mão a segurar um cesto que nele era transportado, carro de bois esse que seguia pela metade direita da faixa de rodagem atento o mesmo sentido de marcha; c) - por sua vez, D conduzia o veículo IJ, também por essa estrada, no mesmo sentido de marcha e pela metade direita da faixa de rodagem, a uma velocidade que não se determinou; d) - ao atravessar o Lugar da Veiga do Paçô, em sítio onde a estrada configura uma recta com cerca de 150 metros, o referido condutor D, depois de ter percorrido cerca de 100 metros dessa recta, embateu com a frente do IJ no autor B, atirando-o, primeiro contra a traseira do aludido carro de bois e projectando-o, de seguida, para o eixo da via, onde o autor se imobilizou; e) - na altura do acidente, já o sol tinha nascido, o dia estava claro e as condições climatéricas permitiam perfeita visibilidade, em toda a extensão da recta, para quem circulava na aludida estrada em qualquer dos sentidos; f) - a estrada no local tem a largura de cerca de 5 metros, com bermas de ambos os lados com a largura de cerca de 80 cm, e o piso encontrava-se seco; g) - no momento do acidente, não circulava na referida estrada qualquer outro veículo em qualquer dos sentidos; h) - o acidente deu-se depois do nascer do sol e com este de frente para o condutor do IJ; i) - em consequência do embate, o carro de bois foi empurrado para a frente e o IJ ficou com o capot amolgado, a frente danificada e a óptica esquerda partida; j) - o condutor do IJ podia avistar o carro de bois e o autor B a uma distância de cerca de 100 metros, distância correspondente ao início da recta e o local onde o embate se deu; k) - antes de embater no autor B, o condutor do veiculo IJ não efectuou qualquer travagem nem realizou qualquer outra manobra a fim de evitar o embate; l) - o veículo IJ era, no momento do acidente, propriedade de E, e era conduzido pelo D com o conhecimento e autorização daquele; m) - a ré "C" assumiu por contrato de seguro, titulado pela apólice nº 505376390, a responsabilidade civil do proprietário do veículo IJ emergente da circulação deste; n) - à data da celebração do seguro referido o E, era o proprietário do IJ; o) - o autor B nasceu no dia 17-02-1983; p) - em consequência do embate, o autor B, sofreu fractura da tíbia e perónio de ambas as pernas e trombose de uma das artérias da perna esquerda, ferimentos em resultado dos quais lhe foi amputada a perna esquerda 11 cm abaixo do joelho, sequelas que lhe determinam uma IPP para o trabalho de 70%, tendo ainda que fazer a aplicação futura de uma ou mais próteses, a fim de adaptar as mesmas ao seu desenvolvimento físico, na compra da/das quais irá gastar quantia que não se determinou; q) - logo após o acidente, o autor B foi transportado para o Hospital de S. Marcos, em Braga, onde ficou internado e daí foi transferido para o Hospital de S. João do Porto, em 10/10/96, onde se manteve internado até ao dia 29/01/97; r) - o autor B frequentava em 12/03/97 o 8º ano de escolaridade, na Escola Básica de Vila Verde; s) - a autora A, para prestar apoio e assistência ao autor B, no decurso dos tratamentos a que aquele foi sujeito, gastou em transportes públicos, em transporte em viatura própria, e em viatura de aluguer (táxi), a quantia total de 702.530$00; t) - a mesma autora, para além de ser doméstica, é tecedeira artesanal, actividade que lhe garante rendimento mensal que não se determinou, e que não pôde exercer no período de tempo de internamento do autor B e, posteriormente, em alguns períodos de tempo, no decurso do tratamento daquele, o que lhe acarretou uma perda de rendimento que não se determinou; u) - a autora A, despendeu a quantia de 2.880$00 na aquisição de um produto Orto; v) - o autor B sofreu, em consequência dos ferimentos que teve, dores físicas intensas e prolongadas (de grau 5 numa escala de 7), sentiu e sente profundo e intenso desgosto por se ver amputado de parte da sua perna esquerda, por se ver permanentemente incapacitado para o trabalho, e por se ver impossibilitado de levar uma vida normal; w) - o autor B realizou várias sessões de fisioterapia continuando idêntico tratamento diário de Março a Novembro de 1997; x) - o autor B deslocou-se a 17 consultas no Serviço de Medicina e Reabilitação do Hospital de S. João do Porto, deslocou-se 11 vezes ao Centro Técnico de Ortopedia Félix Nogueira no Porto, para preparação e adaptação da prótese que lhe foi colocada, 2 vezes a "........., L.da" e 1 vez à Ortopedia Universal, ambas no Porto, para afinações e correcções da prótese; y) - ainda em consequência do acidente, o autor B, esteve internado no dia 11/06/96 no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de S. João, no Porto; z) - a autora A, na consulta no Hospital de S. João do Porto em 25/06/97, gastou 600$00 (taxa moderadora) e gastou em medicamentos em 16/02/98 a quantia de 3.650$00; aa) - o autor B antes do acidente era fisicamente bem constituído e saudável; ab) - atendendo ao seu ambiente familiar, onde a maior parte dos seus elementos do sexo masculino trabalharam ou trabalham na construção civil, à sua formação escolar, e ao mercado de trabalho existente na sua área de residência, o autor B, finda a escolaridade obrigatória, caso não tivesse ocorrido o acidente, enveredaria por uma actividade profissional no âmbito da construção civil (trolha, carpinteiro, estucador ou outra); ac) - o salário diário médio actual de um trabalhador da construção civil no concelho de Vila Verde é de 6.000$00 por dia; ad) - o pai do autor B faleceu em 19/05/1987; ae) - por transacção de 23/07/97, devidamente homologada, a ré "C" comprometeu-se a adiantar a título provisório ao autor B a quantia de 25.000$00 mensais, a partir do mês de Setembro de 1997. Considerando que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C.Proc.Civil), e que nos recursos se apreciam questões e não razões ou meros argumentos, cumpre conhecer das seguintes questões suscitadas pela recorrente: I. Averiguação da culpa na produção do acidente (e eventuais implicações na medida da indemnização atribuída, quer ao B, quer à A). II. Cálculo do montante indemnizatório relativo aos danos patrimoniais futuros do lesado B. III. Fixação da quantia a arbitrar ao mesmo B pelos danos não patrimoniais por este sofridos. IV. Determinação da data a partir da qual serão devidos juros moratórios relativamente à indemnização pelos danos patrimoniais futuros a pagar àquele B. I. No acórdão recorrido considerou-se que o condutor do veículo IJ, foi o exclusivo culpado pela produção do acidente que vitimou o autor. Em contrário, sustenta a recorrente que essa culpa se radica no próprio lesado, no mínimo em concorrência com aquele condutor. Na dinâmica do acidente cumpre destacar, no que respeita ao comportamento do condutor do IJ que este conduzia o veículo numa recta de cerca de 150 metros, embateu com a frente do veículo no menor B, atirando-o, primeiro, contra a traseira do carro de bois e projectando-o, de seguida, para o eixo da via, onde se imobilizou; que a estrada tinha uma largura de cerca de 5 metros, e, no momento do acidente não circulava qualquer outro veículo em qualquer dos sentidos; que o referido condutor podia avistar o carro de bois e o B a uma distância de cerca de 100 metros; que, antes do embate, o mesmo condutor não efectuou qualquer travagem nem realizou qualquer manobra a fim de evitar o embate; não se provou que o dito condutor tivesse ficado encandeado pelo sol e impossibilitado, por isso, de avistar o que quer que fosse à sua frente. Perante tais factos, não é difícil concluir que o condutor do IJ o conduzia sem qualquer atenção ao trânsito, sem se preocupar com qualquer obstáculo que pudesse determinar a necessidade de modificar a sua marcha, violando manifestamente o dever de diligência e prudência que recai sobre qualquer condutor, dever especificamente previsto no art. 3º do Código da Estrada. (1) Além de que, como claramente se constata - tendo avistado (ou podendo visualizar) o obstáculo que se deparava à sua frente com cerca de 100 metros de antecedência, se outra conduta não pudesse adoptar, pelo menos deveria ter sustado a marcha do seu automóvel, por forma a parar no espaço livre que existia antes do local em que circulava o carro de bois (art. 18º do mesmo código). Assim, com um mínimo de consideração - exigível mesmo ao condutor menos apto a manobrar um automóvel - e uma vez que o traçado da via, e as condições atmosféricas, lhe permitiam avistar a 100 metros o carro de bois a circular e o autor B a caminhar na traseira do mesmo (note-se que se trata de um único obstáculo, se bem que composto pelo B, o carro de bois e o respectivo condutor) poderia e deveria o condutor do IJ evitar o embate, travando a tempo ou desviando-se deles, pois nenhum outro veículo circulava no mesmo sentido de marcha ou em sentido contrário. Por isso, ao embater no autor B, nas descritas circunstâncias o condutor do IJ agiu de forma imprudente e inconsiderada, sendo a sua conduta censurável e grosseiramente desviante dos padrões normais exigíveis a qualquer condutor normal (bonus pater famílias). É certo que o B seguia a pé, atrás do carro de bois, segurando um cesto que nele era transportado (não importa, para o efeito, saber se seguia pegado, colado, encostado, ou próximo do carro de bois), nesta medida em infracção ao preceituado no art. 102º do citado Código da Estrada. Só que, não obstante isso, a sua actuação não pode considerar-se, em termos de culpa, como concorrencial do acidente causado. Na verdade, "a conculpabilidade do lesado pressupõe sempre a concausalidade; e esta deverá ser apreciada pelo método da causalidade adequada". (2) Isto é, a eventual infracção cometida (culpa) só será concorrente se a mesma for adequada à produção do evento (causa). O que significa que, partindo do facto condicionante, há que procurar então "saber se, tomado em abstracto, ele era em geral idóneo ou adequado à produção daquela espécie de resultado concreto, se tinha tendência para este, se favorecia a sua produção (TRAEGER) ou o tornava provável. Esta idoneidade ou adequação é aferida por um critério ou juízo de probabilidade objectiva que assentará nas regras gerais da vida ou da experiência, isto é, no curso normal das coisas, ao mesmo tempo que, reportado ao momento da acção (prognose póstuma) funcionará, do ponto de vista das circunstâncias que eram objecto do especial conhecimento do próprio agente ou eram cognoscíveis do homem médio". (3) Sendo que, deste ponto de vista, a actuação do lesado se revela em abstracto indiferente para a produção do acidente (teve, apenas, o azar de estar ali naquela hora), devendo, por isso, ter-se como afastada a sua concorrência para o resultado. Em consequência, tal como se entendeu no acórdão recorrido, há que concluir que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo IJ. Daí que, uma vez que a condenação no pagamento de indemnização à autora A, não foi impugnada quanto aos seus montantes, apenas se defendendo a sua redução na medida do grau de culpa atribuído ao seu filho B, se manterá intocável, nessa parte, a decisão recorrida. II. No acórdão em crise foi a ré condenada a pagar ao B a quantia de 30.000.000$00 a título de indemnização pelo dano patrimonial resultante da perda (no futuro) do rendimento proveniente do trabalho. Diverge a recorrente, sustentando que essa indemnização não deve ser superior a 17.000.000$00. Está assente que o B, nascido em 17 de Fevereiro de 1983 (portanto, com 13 anos na data do acidente, com 14 na data da propositura da acção e com 18 na altura em que foi proferida a sentença da 1ª instância), foi submetido, em consequência das lesões sofridas no acidente, a amputação da perna esquerda 11 cm abaixo do joelho, facto de que lhe adveio uma incapacidade permanente para o trabalho de 70%; sendo certo que, atendendo ao seu ambiente familiar, onde a maior parte dos elementos do sexo masculino trabalharam ou trabalham na construção civil, à sua formação escolar, e ao mercado de trabalho existente na sua área de residência, o autor B, finda a escolaridade obrigatória, caso não tivesse ocorrido o acidente, enveredaria por uma actividade profissional no âmbito da construção civil (trolha, carpinteiro, estucador ou outra); ademais, o salário diário médio actual de um trabalhador da construção civil no concelho de Vila Verde é de 6.000$00 por dia. Perante a situação descrita entendeu a Relação que o B, começando a trabalhar, como era previsível, na construção civil, a uma média de 22 dias por mês, e com aquele ordenado, auferiria, não fora a sua incapacidade, um rendimento anual de 1.848.000$00. Seguidamente, atenta a idade daquele à data em que foi proferida a sentença, calculando em 47 anos a sua vida activa, referindo apenas a percentagem de incapacidade que lhe foi atribuída, veio a fixar o cômputo da indemnização, através do recurso à equidade, em 30.000.000$00. Vejamos. O dever de indemnizar - que corresponde genericamente à obrigação de reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o dano que obriga à reparação (art. 562º do C.Civil) - compreende não só o prejuízo causado - danos emergentes - como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão - lucros cessantes (art. 564º, nº 1 do mesmo diploma). Ora, o cálculo dos danos patrimoniais correspondentes à perda de capacidade aquisitiva do lesado (e não nos vamos preocupar com a sua verdadeira qualificação de lucros cessantes ou danos emergentes) é sempre muito difícil, dado assentar em dados altamente problemáticos, manifestamente influentes, tais como a idade do lesado, a data da sua reforma, a evolução do seu salário, a taxa de juro, o coeficiente de desvalorização da moeda, etc. (4) Por isso determina o art. 566º do C.Civil que, sendo impossível a reconstituição natural, a indemnização, fixada em dinheiro, terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (nº s 1 e 2); devendo, caso não seja possível o apuramento exacto dos danos, o tribunal recorrer à equidade dentro dos limites que tiver por provados (nº 3). Assim, admite-se que, nesta matéria, "dificilmente captável através da rigidez dos instrumentos de prova, possa ser também a indemnização definida equitativamente, com recurso às regras de experiência e segundo o curso normal das coisas, sem esquecer, todavia, que se trata de matéria relativa ao nexo causal, a determinar segundo o método da causalidade adequada". (5) E justamente se tem recorrido, na fixação concreta dos danos que constituem reflexo da perda de capacidade aquisitiva, à ajuda de tabelas financeiras que, atendendo ao tempo provável da vida activa do lesado, de forma a representar um capital reprodutor do rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual ao fim desse período, fixam um coeficiente determinante do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente. (6) Sendo certo que na situação em apreço deparamos com um acidentado que viria a auferir, durante o resto da sua vida activa (47 anos) o rendimento anual previsível de 1.848.00$00 (correspondente ao vencimento mensal de 132.000$00 durante 14 meses). Todavia, correspondendo esse rendimento a uma incapacidade total, a perda efectiva de rendimento patrimonial não pode computar-se com referência à totalidade do vencimento que auferiria, mas apenas ao montante que resulta da sua concreta incapacidade, ou seja, 1.293.600$00 anuais. Daí que, considerando correcta a previsibilidade de vida activa até aos 65 anos - o que se acha adequado no presente caso já que não seria previsível que o lesado com o aumentar da idade pudesse manter uma profissão altamente desgastante como a de trabalhador da construção civil - se recorrermos a uma das usuais tabelas financeiras, (7) atendendo a uma taxa de juro anual de 9%, haveria que multiplicar o rendimento anual perdido pelo lesado pelo coeficiente 10,917626, assim se atingindo o montante indemnizatório de 14.123.085$00. Parece-nos, contudo, mais adequado ao cálculo da indemnização um critério dotado de outra flexibilidade, segundo o qual se atribua aos lesados uma quantia que elimine a perda dos rendimentos futuros, não em função da aplicação taxativa de qualquer tabela financeira, mas através da entrega "de uma quantia em dinheiro que produza o rendimento (fixo) mensal perdido, mas que ao mesmo tempo, lhe não propicie enriquecimento injustificado à custa do lesante, isto é, que na data final do período considerado se ache esgotada a quantia atribuída". (8) Segundo se explicita no Ac. STJ de 05/05/94, (9) poderá, neste sentido, "usar-se como elemento de trabalho a seguinte fórmula: onde C será o capital a depositar no primeiro ano; P a prestação a pagar anualmente (1.293.600$00), i a taxa de juro (naquele caso, 7%) e n o número de anos em que a prestação se manterá (47 anos)". E, continuando a citar o mesmo aresto, "face à actual tendência de descida das taxas de juro, é mais prudente a utilização de uma taxa de referência de 7%, em vez da que se vem utilizando (9%)". Acrescentando nós que, atenta a evolução da baixa da taxa de juros dos depósitos bancários, que tenderá sem dúvida a estabilizar nos anos futuros, se justifica, hoje em dia, o recurso à taxa de 4%, mais adequada à determinação do quantitativo correspondente ao capital a depositar. Analisando, agora, a situação descrita nos autos, e aplicando a fórmula acima mencionada (considerando a taxa de juro de 4%), encontramos o capital indemnizatório (dispensámo-nos de indicar as operações aritméticas conducentes a esta conclusão) global de 27.160.425$00. É evidente que a fórmula utilizada, tal como os demais critérios que têm sido propostos para o cálculo da indemnização pelos danos decorrentes da perda da capacidade de ganho, não é infalível, apenas podendo ser considerada um instrumento de trabalho para orientação do julgador, com vista à obtenção da justa indemnização. (10) Por isso é que se justifica, atentas as circunstâncias concretas em presença, e sempre com vista a uma solução equitativa, fazer variar, para mais ou para menos, o resultado da aplicação das fórmulas ou tabelas financeiras utilizadas como referência. Donde se nos afigura adequado, considerando todos os elementos em presença, e ainda em especial o facto de a incapacidade permanente do lesado, atenta a sua natureza (amputação da perna, com a necessidade de suprimento protésico), se vir, com o decurso do tempo, necessariamente a agravar, com tendência a aproximar-se da incapacidade total), o arredondamento da quantia global obtida, para mais, por forma a mostrar-se equitativamente justificada a fixação da indemnização nos 30.000.000$00 a que chegou o acórdão impugnado. E não nos parece que tal conclusão seja posta em crise com o argumento de que o autor só entraria no mercado de trabalho aos 18 anos (o que, em verdade se diga, corresponde à idade que ele tinha quando da prolação da sentença) e não auferiria, à partida, o vencimento mensal pagável a um profissional já feito. É que, também em contrapartida, haverá que considerar que o salário médio, tomado em conta para cálculo da indemnização, irá variar, sem dúvida para mais, durante o período de vida activa do lesado, razão por que se deve atentar nesse factor para, encontrando uma situação de equilíbrio, aceitar uma imediata valorização da prestação anual, na certeza de que, mais tarde, ocorrerá uma compensação com a subida dos vencimentos a que, agora, se não pode atender. Em consequência, nesta parte, não merece censura o acórdão recorrido. III. No que concerne aos danos não patrimoniais sofridos pelo B, considerou o acórdão impugnado que deveriam ser compensados pela atribuição de uma indemnização de 7.500.000$00. Em contrapartida, pretende a recorrente que tal indemnização não deve exceder o montante de 4.000.000$00/5.000.000$00. Ora, relativamente a tal questão determina o art. 496º, nº 1, do C.Civil que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito". Estabelecendo o nº 3 do mesmo preceito que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, isto é, tomando em consideração o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso. Pode, por isso, dizer-se que "a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente". (11) Mas, além desse carácter sancionatório - que de modo especial releva in casu atenta a culpa grave e exclusiva do lesante - o objectivo da reparação dos danos morais é o de proporcionar ao lesado, através do recurso à equidade, "uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível), que lhe permite obter prazeres ou distracções - porventura de ordem puramente espiritual - que, de algum modo, atenuem a sua dor: não consiste num pretium doloris, mas antes numa compensatio doloris". (12) E, sobretudo, que na fixação do montante dos danos patrimoniais - entendida esta indemnização como compensação destinada a facultar aos lesados uma importância em dinheiro apta a proporcionar-lhes alegrias e satisfações que lhes façam esquecer ou mitigar o sofrimento físico e moral provocado pelo acidente (sofrimento passado, presente e futuro) deve o julgador recorrer à equidade, tendo em atenção os critérios normativos constantes do art. 494º do C.Civil. (13) Em suma, o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (arts. 496º, nº 3 e 494º do C.Civil). Sendo certo que "quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. ... A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. ... A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto". (14) Como ponderar, então, os danos não patrimoniais do recorrido, indemnizáveis nos termos do art. 496º, nº 2, do C.Civil ? Qual deverá ser, ainda através do recurso à equidade, a medida da compensação ou benefício de ordem material (a única possível) a atribuir ao autor ? O quadro de sofrimento que subjaz à situação em apreço é claro, se o analisarmos pelo ponto de vista do lesado. Na verdade, sofreu este, em consequência dos ferimentos que teve, dores físicas intensas e prolongadas (de grau 5 numa escala de 7), foi submetido a diversos internamentos e intervenções cirúrgicas e protésicas, sentiu e sente profundo desgosto por se ver amputado da sua perna esquerda e permanentemente impossibilitado de levar uma vida normal. Esta situação não pode deixar de se ter como altamente dramática, sobretudo quando atinge um indivíduo na pujança da vida, fisicamente bem constituído e saudável, com toda uma esperança de felicidade à sua frente. Ora, já há muito que o Supremo Tribunal de Justiça vem reconhecendo que "se torna necessário elevar o nível dos montantes dos danos morais, perante o condicionalismo económico do momento, e o maior valor sentimental que hoje se atribui, felizmente, à vida humana". (15) Aliás, hoje em dia, assiste-se a uma corrente jurisprudencial que visa afastar critérios miserabilistas de fixação desta espécie de danos, pautando-se por uma justa, naturalmente mais elevada, fixação dos montantes indemnizatórios, a que não está alheia também a constatação do facto de os prémios de seguro serem frequentemente actualizados em função do maior risco assumido pelas seguradoras. (16) Desta forma, perante a situação fáctica descrita, e tendo em consideração todos os elementos presentes nos autos, de que, como é evidente, se destaca a culpa concreta e exclusiva do causador do acidente, cremos que a justiça equitativa só se atingirá com a fixação da indemnização de 7.500.000$00, como aliás se decidiu no acórdão em crise. IV. Finalmente, o acórdão recorrido condenou a ré a pagar ao autor, sobre o montante indemnizatório fixado para os danos patrimoniais sofridos por este pela perda de capacidade de ganho, juros moratórios desde a data da citação. Pretende a recorrente que tais juros, porque respeitantes a uma indemnização actualizada à data da sentença, apenas são devidos a partir dessa data. Não há dúvida - o próprio acórdão o reconhece - que a indemnização foi fixada atendendo à data da sentença da 1ª instância, aliás em cumprimento estrito do preceituado no art. 566º, nº 2, do C.Civil. Ora, a questão da data a partir da qual, neste caso, se vencem juros de mora, depois de profundamente controvertida na jurisprudência, veio a ser objecto de análise pelo Ac. STJ nº 4/2002, de 09/05/2002 (17) (uniformizador de jurisprudência), tendo-se aí entendido e fixado jurisprudência no sentido de que "sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação". Assim, há que dar razão à recorrente, já que, na verdade, ao contrário do que a Relação decidiu, os juros sobre os danos correspondentes à perda da capacidade de ganho do autor, apenas serão devidos a partir da data em que a sentença da 1ª instância foi proferida. Pelo exposto, decide-se: a) - julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela ré "C"; b) - alterar o acórdão recorrido na parte respeitante à condenação da ré no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de 30.000.000$00, que serão devidos tão só a partir da data em que foi proferida a sentença da 1ª instância; c) - manter, no demais, o acórdão impugnado; d) - condenar autores e ré nas custas da revista, na proporção do vencido, sem prejuízo, quanto àqueles, do apoio judiciário que lhes foi concedido. Lisboa, 17 de Outubro de 2002 Araújo Barros Oliveira Barros Diogo Fernandes ----------------------------------------- (1) À data do acidente estava em vigor o Código da Estrada aprovado pelo Dec.lei nº 114/94, de 3 de Maio. (2) Dario Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 2ª edição, Coimbra, 1980, pag. 140. (3) Dario Martins de Almeida, ob. cit., pag. 84. (4) Ac. STJ de 26/05/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 130, maxime pag. 132 (relator Fernando Fabião). (5) Dario Martins de Almeida, ob. cit., pags. 115 e 116. (6) Cfr. Acs. STJ de 18/01/79, in BMJ nº 283, pag. 275; e de 17/10/2000, no Proc. 2152/00 da 6ª secção (relator Azevedo Ramos). (7) Extraída de elementos de estudo da Faculdade de Economia do Porto, publicada por Oliveira Matos, no "Código da Estrada Anotado", 3ª edição, Coimbra, 1979, pag. 462. (8) Ac. STJ de 04/02/93, in CJSTJ Ano I, 1, pág. 128 (relator Costa Raposo). (9) CJSTJ Ano II, 2, pág. 86 (relator Costa Raposo) (10) Acs. STJ de 15/12/98, no Proc. 827/98 da 2ª Secção (relator Ferreira de Almeida), e de 13/12/2000, no Proc. 2891/00 da 2ª secção (relator Abílio Vasconcelos). (11) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6.ª edição, Coimbra, 1989, pág. 578. (12) Fernando Pessoa Jorge, "Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil", in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1972, pag. 375. (13) Ac. STJ de 11/01/00, no Proc. 888/99 da 1ª secção (relator Silva Graça). (14) Dario Martins de Almeida, ob. cit. págs. 103 e 104 (e autores aí citados). (15) Ac. STJ de 10/01/68, in BMJ nº 173, pag. 167. (16) Vejam-se, como exemplos significativos desta tendência evolutiva, os Acs. STJ de 28/03/00, no Proc. 222/00 da 1ª secção (relator Lemos Triunfante), de 16/05/00, no Proc. 328/00 da 2ª secção (relator Simões Freire), de 27/06/00, no Proc. 408/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques), de 21/09/00, no Proc. 2033/00 da 6ª secção (relator Tomé de Carvalho), e de 14/11/00, no Proc. 2639/00 da 1ª secção (relator Lemos Triunfante). (17) Publicado no DR IS-A, de 27 de Junho de 2002. |