Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
703/08.1JDLSB.L1.S1.
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE
CRIME CONTINUADO
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
VIOLAÇÃO
ACTOS SEXUAIS COM ADOLESCENTES
ABUSO SEXUAL DE ADOLESCENTES
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
FINS DAS PENAS
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Como regra, o número de crimes afere-se pelo recurso a um critério teleológico, pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal (concurso real), ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente (concurso ideal ) – art. 30.º, n.º 1, do CP, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa, ou seja, tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica é posta em crise, ou seja pelo número de vezes que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente.
II - A pluralidade de infracções não abdica, pois, de uma actividade material do agente, de modificação do mundo exterior, a que corresponde uma afirmação plúrima da volição ou vontade criminosa.
III - O crime, na definição de Amelung, citado por Karl Prelhaz Natcheradetez, in o Direito Penal Sexual, Ed Almedina, 1985, pág. 116, constitui, apenas, um caso especial de fenómenos disfuncionais, geralmente o mais perigoso. O crime é disfuncional enquanto contradiz uma norma institucionalizada (deviance), necessária para a sobrevivência da sociedade.
IV - Os desvios à regra da determinação legal da pluralidade de infracções estão representados pelo concurso aparente de normas e crime continuado, este estando previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, e, pela sua descrição, se vê que o legislador como que, por ficção, ditada por razões de economia, de política criminal e de justiça material, reconduz a pluralidade de infracções à unidade criminosa, a um único delito.
V -São assim, nos termos legais, pressupostos cumulativos da continuação criminosa, a realização plúrima do mesmo tipo legal ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, executado de forma essencialmente a homogénea, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa – n.º 2 do art. 30.º do CP.
VI - Ao art. 30.º, foi, pela recente reforma ao CP, introduzida pela Lei 59/07, de 04-09, acrescentado o n.º 3, segundo o qual o disposto no n.º 2 não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma pessoa. Esta alteração, correspondente ao n.º 2 do art. 33.º do Projecto de Revisão do CP, de 1963, da autoria do Prof. Eduardo Correia, primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções, foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão, em 08-02-64, no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais inerentes à mesma pessoa se poderia falar de continuação criminosa, excluída em caso de diversidade de pessoas, atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir, impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada.
VII - Essa discussão não mereceu então conversão na lei por se entender que o legislador não reputou tal necessário, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado. Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos, que se radicam em cada uma das vítimas, da natureza das coisas, assim comenta Maia Gonçalves, in CP anotado, ao preceito citado.
VIII - Diferente não é o pensamento de Jescheck, para quem são condições de primeiro plano, para aplicação do conceito, a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa, afectando o mesmo bem jurídico. Sendo bens eminentemente pessoais, o conceito está arredado por, tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos, no caso de não identidade de pessoas, seu pessoal suporte – cf. Tratado de Derecho Penal, I, Parte Generale, I, ed. Bosh, pág. 652 e ss., e Acs. do STJ, de 10-09-2007, in CJ, STJ, Ano XV, Tomo III, pág. 193 e de 19-04-2006, in CJ, STJ, Ano XIV, Tomo II, pág.169.
IX - Em direito penal não está excluída a interpretação extensiva, pois sendo o texto legal construído por palavras e sendo estas de sentido quase sempre polissémico, tal texto pode carecer de interpretação oferecendo as palavras que o compõem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro e, portanto, uma pluralidade de significações dentro do qual o aplicador da lei pode optar sem ultrapassar os legítimos limites de interpretação.
X - No crime de violação, previsto no art. 164.º do CP, está em causa a liberdade sexual, a auto conformação da vida e prática sexuais da pessoa, afrontada pelo constrangimento daquela a suportar ou praticar os actos descritos no seu n.º 1, sendo que nos dois restantes tipos, de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo art. 173.º do CP, e no de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo art. 172.º do CP, igualmente se protege a liberdade de autodeterminação sexual, mas por abuso da inexperiência do menor e da relação de confiança, respectivamente, relação traída pelo agente, quer tenha génese na lei, decisão judicial, contrato ou mesmo relação de facto, incluindo-se os pais, tutores, familiares, professores, educadores, médicos, enfermeiros, sacerdotes, assistentes sociais e todas as pessoas a quem o menor entre 14 e 18 anos de idade possa ser entregue para educação médica ou social – cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 478.
XI - A liberdade sexual decorre do direito do indivíduo a dispor do seu corpo, parte integrante da sua autonomia pessoal; a liberdade sexual é ainda um elemento fundamental do direito à intimidade e vida privada.
XII - As crianças e adolescentes têm o seu exercício limitado pelo seu grau de desenvolvimento bio-psicossocial, e para assegurar o exercício da sua sexualidade, a regular de modo emancipatório e não meramente repressivo, o Estado deve proteger esses cidadãos dos “vícios de consentimento” isto é das “formas violentas, fraudulentas, enganosas e exploratórias desse consentimento por outrem, responsabilizando-o tanto pela adopção de políticas sectoriais como através do amplo sancionamento dos abusadores e exploradores sexuais, quebrando o acto perverso de impunidade”, segundo palavras de Nogueira Neto, extraídas da sua comunicação ao III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado no Rio de Janeiro, em 2008.
XIII - O tipo legal do crime de acto sexual com adolescentes, p. e p. pelo art. 173.º, n.º 1, do CP, é um crime específico próprio uma vez que a acção penal só pode ser praticado por maior de idade; por seu turno o abuso da inexperiência consiste na exploração pelo agente da falta de experiência de vida do adolescente e nomeadamente conhecimento sobre a vida sexual.
XIV - Para apurar a inexperiência, escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, pág. 481, deve ter-se em conta o nível de maturidade, a condição psíquica e o grau educacional da vítima; de todo está arredada essa inexperiência do adolescente quando já tenha conhecimento prático dessas experiências. Admitindo o contrário, mesmo com conhecimento, o Prof. Figueiredo Dias, ali citado.
XV - O preceito verte por via de lei, a normalidade e realidade da vida, pois que por via de regra uma adolescente de 14 anos não se mostra conhecedora dos meandros da sua sexualidade, das consequências da prática de relações sexuais, particularmente da metodologia contraceptiva, imaturidade que não é comprometida pela circunstância de já ter tido antes relações sexuais e uma vez com violência, sob pena de ser penalizada por esse acto não consentido.
XVI - O tipo legal de crime não exige o uso de um processo fraudulento e enganoso do agente, penalizante do erro sobre os motivos, provocado ou explorado pelo agente. Basta-se com a prática de acto sexual sem que a vítima tenha conhecimento, mercê da sua pouca idade e experiência de vida sexual, das consequências daquele acto, em termos de se poder auto determinar e responder adequada e esclarecidamente à solicitação para a sua prática.
XVII - O processo de formação da medida da pena é um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico penal em matéria de limites e finalidades da aplicação das penas, com definição no art. 40.º do CP, primordialmente à tutela dos bens jurídicos e reinserção social do agente.
XVIII - A medida da tutela dos bens jurídicos é definida pela necessidade em concreto, tanto maior quanto a sua importância, expressa na maior ou menor amplitude da moldura penal abstracta, intervindo na sua modulação em concreto factores provindos da mais díspar origem, uns relacionados com o facto, sua ambiência e ao agente em concreto, doutrina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 228.
XIX - A pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa, pelo que num modelo de índole pragmática vertido naquele art. 40.º, de protecção dos bens jurídicos, à culpa não se pede um papel de retribuição, de fundamentação da pena como no direito alemão, mas apenas a de a limitar; funcionando a culpa como “antagonista da prevenção”.
XX - De acordo com aquela filosofia programática, e em consonância com ela, o legislador desce aos critérios de formação concreta da pena, de acordo, desde logo com o dolo, as necessidades de prevenção, e ainda com certas circunstâncias que não fazendo parte do tipo, agravam ou atenuam a responsabilidade penal do agente, como resulta do art. 71.º do CP.
XXI - Pelo apelo ao conceito de prevenção, o legislador dá realização ao fim público que lhe é atinente e ao fim particular que lhe incumbe, ou seja à prevenção geral, de protecção de bens jurídicos para tutela da expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma jurídica, postas em crise pelo crime – cf. Prof. Figueiredo Dias, op.cit., pág. 227 e ss., e especial, de emenda cívica do agente do crime, de modo a retornar em condições de, pela interiorização dos maus efeitos do crime, não voltar a hostilizar o tecido social.
XXII - Estes elementos enunciados no art. 71.º do CP, fornecem caminhos a percorrer pelo julgador, na sua missão de fixação concreta da pena, para ele vinculativos, embora goze de alguma autonomia no processo complexo de formação concreta da pena, já que se trata do delicado processo de converter factos em “magnitudes“ penais.
XXIII - Há por assim dizer um ponto óptimo, desejável comunitariamente, da protecção dos bens jurídicos, mas abaixo desse, pela intervenção dos factores indicados no art. 71.º do CP, outros ainda se poderão estabelecer pela convergência de razões de prevenção especial, que ditam, em último lugar, a medida concreta da pena, na forma de um patamar abaixo do qual o julgador não pode descer, por já não corresponder às expectativas comunitárias, insuportável à luz dos fins das penas.
XXIV - Onde a pena se divorcie alongadamente da necessidade de protecção de bens jurídicos, sofre o princípio da humanidade na formação das penas, do respeito pela dignidade da pessoa humana, uma profunda derrogação e, com isso, compressão desnecessária o princípio da proporcionalidade, com consagração no art. 18.º da CRP.
XXV - Tendo ficado apurado pelo tribunal que a menor, à data dos factos, tinha 14 anos de idade e mais que não possuía a maturidade e os indispensáveis conhecimentos para consentir com inteira liberdade, responsabilidade, sentido e alcance da cópula e que a violação e as três relações sexuais mantidas pelo arguido com a menor se situam temporalmente numa altura em que a avó daquela se achava no hospital, traindo o arguido a relação de confiança que nele depositara ao confiar-lhe a sua neta, que o considerava como de família (tio), funcionam quanto à violação as agravantes da menoridade de 16 anos, prevista no art. 177.º, n.º 5, do CP, pelo que a pena sofrerá a agravação de 1/3 nos seus limites máximo e mínimo, ou seja entre 4 e 13 anos e 4 meses de prisão.
XXVI - Mostra-se ajustada, numa moldura entre os 4 a 13 anos e 4 meses de prisão, a pena concreta de 6 anos de prisão para o crime de violação agravada; a pena de 18 meses de prisão para o crime de acto sexual com adolescente; a de 5 anos de prisão quanto ao crime agravado de abuso sexual de menores dependentes, p. e. p pelo art. 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP (em abstracto de 18 meses a 12 anos de prisão) e de 2 anos e seis meses num arco penal de 1 a 8 anos de prisão, para cada um dos dois tipos de crime simples. No conjunto global das penas, atingindo o limite máximo de 17 anos e 6 meses de prisão, a pena de concurso de 10 anos adoptada em 1.ª instância peca por um relativo excesso, que se repara, reduzindo-a a 9 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, sob o n.º 703/08.1JDLSB, do 2º Juízo Criminal de Vila Franca de Xira , foi submetido a julgamento e , a final , condenado AA:

-pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. pelos artigos 164.º, n.º 1, alínea a), e 171.º, n.º 5, do CP, na pena de seis anos de prisão;

-pela prática de um crime de actos sexuais com adolescentes, p. e p. pelo artigo 173.º, n.º 1 e 2, do CP, na pena de dezoito meses de prisão;

-pela prática de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 4, do CP, na pena de cinco anos de prisão;

-pela prática de dois crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão, por cada um dos crimes.

Operando o cúmulo jurídico das penas, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, foi o arguido AA, condenado na pena única de DEZ ANOS DE PRISÃO.

O arguido , que fez dirigir , indevidamente , o recurso ao Tribunal da Relação , posteriormente remetido a este STJ , inconformado com o teor da decisão , apresenta na motivação as seguintes conclusões:

1. O tribunal devia ter qualificado os factos como crime continuado , por se tratar da mesma vítima , das mesmas circunstancias , atenta a proximidade temporal em que os factos ocorreram , a natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos violados , a execução dos crimes de forma essencialmente homogénea , a coberto de uma mesma solicitação exterior , diminuindo consideravelmente a culpa do agente .

O arguido reconhece que a vítima estava fragilizada por não ter ninguém a quem recorrer e receava que , para satisfazer os seus instintos sexuais lhe batesse ou agarrasse pela força , como na primeira vez sucedeu e que , por isso , a menor passou a consentir nas relações ulteriores , quando solicitada .

A aparente favorável solicitação exterior não foi criada por uma vontade livre e consciente do arguido , não houve um dolo dirigido a obter a não resistência posterior da vítima ; a não resistência da vítima criou , sem dolo seu , uma situação favorecente de reiteração criminosa , não se verificando qualquer violência física ou psíquica do agente , nem dolo de supressão da vontade incompatível com a constatação de uma diminuição considerável da culpa .

A interpretação do preceito do art.º 30.º n.ºs 2 e 3 , do CP , não possibilita uma interpretação extensiva , que vai contra o princípio da legalidade, impondo uma decisão diversa da tomada no acórdão recorrido .

As circunstâncias exteriores que apontam para a redução da culpa , como é próprio do crime continuado , são : o facto de se ter criado através da violação uma certa relação de acordo , o facto de se ter voltado a criar uma oportunidade de favorável ao cometimento do crime , aproveitada pelo agente , arrastando a ele , a perduração do meio apto para a execução do delito , que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa , e o facto de o agente , depois da primeira acção criminosa verificar a possibilidade de alargar a acção criminosa .

O arguido era primário .

Aos 59 anos sucumbiu à promiscuidade a que foi arrastado pela avó da menor não se registando base factual para se concluir que “ a aparente favorável situação exterior não foi criada por outrém em seu favor, mas sim pelo seu próprio comportamento e personalidade desconforme ao direito , que aproveitando-se do facto de a menor não ter contado a ninguém com medo e com vergonha , foi prosseguido na renovação da acção criminosa , convicto de que podia aproveitar a confiança que merecia por ser uma “ espécie de avô da menor “ , como se se tratasse de uma violência psíquica sobre a ofendida , causa directa e necessária da não resistência daquela .

Devem ser corrigidas as operações de determinação da pena abstracta e concreta , nunca superior a 6 anos de prisão ., por ser delinquente primário , com uma idade próxima dos 60 anos , com a saúde debilitada , arrependido do crime , a que foi arrastado pelas circunstâncias do caso , sendo que a pena se mostra próxima do limite máximo , excessiva e desproporcionada e inadequada –art.ºs 13.º , 20.º n.º 4 e 32.º , da CRP .

A pena excede a medida da culpa , em violação do art.º 40.º , do CP

Deve ser determinada , por força do art.º 79.º , do CP , entre os 4 anos e 13 anos e 4 meses de prisão , nos termos dos art.ºs 30.º n.º 2 , 79.º n.º 1 , 164.º n..º 1 , a) e 177.º , todos do CP .

O parecer do Exm.º Procurador Geral_Adjunto neste STJ é desfavorável ao arguido .

2.1. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir , considerando que o Colectivo teve como provado o seguinte elenco factual :

2.1.1. CC, nasceu no dia 13 de Janeiro de 1993, fruto de um relacionamento entre o seu pai, BB e a mãe, DD, tendo ficado confiada ao seu pai e não mantendo qualquer contacto com a mãe desde quando tinha cerca de 7 meses de idade.

2.1.2. Em face da instabilidade familiar do pai da menor, a sua avó paterna, EE residente na Rua d..........., Vala do Carregado – Castanheira do Ribatejo, desde muito cedo, partilhou com este a educação da menor, ficando esta em casa da avó.

2.1.3. Em 2004, BB passou a residir no Cacém, sendo então acordado que a menor, com 11 anos de idade, continuaria a residir com EE, sua avó paterna, a qual passou desde então a cuidar, em exclusivo, da sua neta.

2.1.4. O arguido AA, apesar de ser casado, mantém um relacionamento amoroso com EE desde, pelo menos, o ano de 1994, pernoitando metade dos dias da semana na habitação de EE e os restantes na sua residência familiar, situação que é do conhecimento de todos.

2.1.5. Em consequência do relacionamento que mantém com EE, o arguido conhece CC desde tenra idade desta última, sendo visto pela menor como um familiar e sendo tratado pela menor por "Tio ...".

2.1.6. Durante o Verão de 2007, em altura em que CC contava 14 anos de idade e o arguido 57 anos de idade, este último, em mais do que uma ocasião, espreitou-a na casa de banho quando esta se encontrava a tomar banho, e, por mais do que uma vez, tentou apalpar-lhe os seios.

2.1.7. Ainda durante o Verão de 2007, EE, avó de CC, esteve internada no hospital de Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira entre 08-09-2007 e 20-09-2007.

2.1.8. Durante esse período de tempo, CC ficou confiada ao arguido, tendo este recebido instruções de EE para levar a menor para a habitação familiar do arguido.

2.1.9. Porém, durante esse lapso de tempo permaneceram ambos, pelo menos em alguns dos dias, em casa de EE.

2.1.10. Na primeira noite de ausência de EE, o arguido entrou no quarto de CC e deitou-se a seu lado na cama, abraçando-a, e aí permanecendo até de manhã.

2.1.11. No dia seguinte, o arguido tomou diversas precauções para evitar que os vizinhos percebessem que ele e CC se encontravam sozinhos em casa, colocando um cobertor a tapar a janela do quarto, impedindo que CC recebesse amigos e colegas em casa e não deixando a menor sair de casa.

2.1.12. Na noite desse dia, o arguido entrou no quarto de CC, quando esta se encontrava deitada na cama, e colocou as suas mãos nas pernas e na vagina da menor.

2.1.13. CC afastou o arguido e telefonou ao seu pai, para contar que o arguido não a levava para a casa de família dele, em Vila Franca de Xira.

2.1.14. O arguido retirou-lhe o telefone, falou com o pai da menor garantindo-lhe que iam para casa dele, desligou o aparelho, e desferiu uma bofetada no rosto da menor.

2.1.15. Após CC regressar à sua cama, o arguido foi para junto da mesma e, usando a força física, agarrou os braços da menor e tirou-lhe os calções.

2.1.16. Em seguida, o arguido introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da menor, onde permaneceu até ejacular, sem ter previamente colocado preservativo.

2.1.17. CC nunca havia mantido relações sexuais, permanecendo virgem até esse dia.

2.1.18. Ainda no Verão de 2007 e após o regresso de EE a casa, esta determinou que CC dormisse com o arguido na cama, enquanto estivesse em convalescença.

2.1.19. Durante esse período de tempo e numa noite, o arguido despiu CC e introduziu o seu pénis em erecção na vagina da menor, aí o mantendo até ejacular.

2.1.20. CC não revelou a ninguém os comportamentos do arguido, por vergonha e por receio da reacção deste último.

2.1.21. No dia 9 de Abril de 2008, em altura em que CC contava com 15 anos e o arguido 58 anos de idade, EE voltou a ser internada no Hospital de Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira, onde se manteve até ao dia 16 de Abril de 2008.

2.1.22. Por indicação de EE, a sua neta voltou a ficar confiada ao arguido.

2.1.23. Durante este período de tempo, o arguido permaneceu alguns dias em casa de EE com a menor, pernoitando juntamente com a menor na casa que mantém com a sua mulher por uma ou duas noites.

2.1.24. Aproveitando-se da ausência de EE, o arguido abordou CC por três ocasiões, despindo-a e introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela, onde ejaculou.

2.1.25. Estas relações foram mantidas no interior da habitação de EE.

2.1.26. Somente numa dessas três ocasiões, o arguido colocou preservativo antes de iniciar o acto sexual.

2.1.27. Temendo que pudesse ficar grávida, CC solicitou ao arguido que este comprasse um medicamento vulgarmente conhecido por “pílula do dia seguinte" e destinado a evitar a gravidez, o que este fez, entregando-a à menor, que o tomou.

2.1.28. No dia 29 de Abril de 2008, CC começou a suspeitar que estaria grávida, face ao atraso do seu período menstrual, tendo nessa data confidenciado a uma sua professora o que se tinha passado entre si e o arguido.

2.1.29. Nessa mesma data e por intervenção da professora, a menor realizou um teste de gravidez, cujo resultado foi inconclusivo.

2.1.30. No dia seguinte, CC repetiu o teste de gravidez, o qual, desta feita, revelou que a menor estava grávida.

2.1.31. Então, CC contou o que se tinha passado, a uma sua vizinha, com a qual mantinha uma relação próxima, a qual providenciou então que a menor não voltasse a casa da avó paterna e do arguido e cuidou ainda de informar o pai da menor do sucedido.

2.1.32. Desde então, CC passou a residir com BB, seu pai.

2.1.33. No dia 29 de Maio de 2008, CC foi submetida a uma interrupção voluntária da gravidez medicamente assistida no Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora.

2.1.34. Foram realizados exames comparativos de DNA entre os restos embrionários resultantes da interrupção voluntária da gravidez e as zaragatoas bucais recolhidas ao arguido, concluindo-se com uma probabilidade de 99,999996% pela paternidade por parte do arguido de tais restos embrionários.

2.1.35. O arguido manteve relações sexuais de cópula completa com CC, sabendo que a mesma contava com 14 e 15 anos de idade.

2.1.36. O arguido praticou tais factos, em momentos em que sabia que a menor se encontrava confiada a si, por impossibilidade da respectiva avó paterna e por determinação desta, decidindo aproveitar-se da situação de especial vulnerabilidade em que a menor se encontrava, por estar entregue apenas aos cuidados do arguido e sem possibilidades de recorrer ao auxílio de terceiros.

2.1.37. Na primeira das ocasiões descritas, o arguido quis manter relações sexuais com CC, apesar de saber que esta não o queria, forçando-a a suportar essa actividade, não se coibindo, para o efeito, de usar a sua força física para levar adiante os seus intentos.

2.1.38. Nas restantes quatro ocasiões, o arguido decidiu manter relações sexuais com CC, sabendo que a mesma ainda não possuía a maturidade e os conhecimentos suficientes para iniciar a sua vida sexual e se auto-determinar nessa matéria.

2.1.39. Em algumas dessas ocasiões, o arguido ejaculou no interior da vagina da menor, após ter decidido não colocar preservativo, bem sabendo que por via dessa actividade a menor poderia ficar grávida, como veio a acontecer.

2.1.40. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem os seus comportamentos proibidos e punidos por lei, com o que se conformou.

2.1.41. O arguido apenas confessou ter mantido relações com a CC duas ou três vezes, em Abril de 2008, não tendo confessado os factos que lhe vinham imputados anteriormente;

2.1.42. O arguido não frequentou a escola tendo começado a trabalhar com 7 anos de idade, a tratar/guardar gado, adquirindo capacidades de leitura e escrita ao nível da 4.ª classe, apenas durante o cumprimento do serviço militar obrigatório;

2.1.43. A partir dos 16 anos de idade começou a trabalhar na construção civil, como servente de pedreiro; situação que manteve até aos 45 anos de idade, altura em que começou a trabalhar para um empresa na área da limpeza de águas e tratamento de resíduos; à data em que foi preso auferia cerca de 570 € e tinha contrato de trabalho até Abril de 2009;

2.1.44. Metade da semana vivia com a sua mulher, doméstica, em casa arrendada por cerca de 40€; nos demais dias vivia com a D. EE, que vive da reforma, contribuindo com 100/150€ para as despesas desta;

2.1.45. Conhece a CC desde que a mesma tinha cerca de 2 anos de idade, e dava-lhe dinheiro (5, 6 €) para a menor carregar o telemóvel;

2.1.46. O arguido apresenta uma diminuída auto-crítica relativamente à presente situação processual, mostrando também fraca consciencialização do dano, e colocando em circunstâncias exteriores a si, nomeadamente no consumo excessivo de álcool, a causa dos seus actos; a sua preocupação centra-se essencialmente na sua pessoa e nas consequências que o processo lhe trará;

2.1.47. Durante a sua reclusão o arguido tem-se mantido numa ala de segurança, evidenciando um comportamento institucional adequado. Tem recebido as visitas da mulher, do filho e de EE.

2.1.48. O alcoolismo contribui para o desequilíbrio vivencial do arguido, constituindo-se como um factor propiciador à assumpção de comportamentos desadaptados.

2.1.49. Ao nível da reinserção social o arguido pretende manter o anterior estilo de vida, nos aspectos afectivos, continuando a relação com EE, que também manifesta disponibilidade para reatar a relação com ele.

2.1.50. Ao nível profissional, não tem integração laboral garantida, embora pretenda retomar a actividade anterior;

2.1.51. Actualmente, a situação sócio-económica do seu agregado familiar apresenta-se carenciada, com necessidade de recurso ao suporte da Segurança Social;

2.1.52. O arguido tem o diagnóstico de cardiopatia isquémica, com história pessoal de 2 internamentos hospitalares por enfarte agudo do miocárdio e angina instável e doença coronária de 1 vaso, respectivamente; sofre de diabetes Mellitus tipo II, bronquite crónica do fumador e hipercolesterolémia;

2.1.53. O arguido não tem antecedentes criminais.

2.1.54. No ano de 2007/2008, CC frequentava o 7.º ano de escolaridade, na Escola Básica 2,3 D. António de Ataíde, em Castanheira do Ribatejo, tendo registado um elevado número de faltas, que determinaram a sua retenção;

2.1.55. No que concerne ao comportamento a referida aluna foi alvo de inúmeras participações disciplinares quer por parte dos docentes quer por parte dos auxiliares, devido a comportamentos inadequados dentro e fora da sala de aula, os quais foram atempadamente comunicados à sua encarregada de educação, a avó, EE, e, por vezes, ao pai, BB;

2.1.56. Já em 18 de Dezembro de 2007, e por razões semelhantes, a escola havia elaborado um relatório de falta de assiduidade, dando conhecimento da situação da menor CC, à Comissão de Protecção de Menores.

2.1.57. Após os factos supra descritos, a menor tem sido acompanhada pela psicóloga que dá apoio à escola Gama Barros que actualmente frequenta, no Cacém, revelando grande dificuldade em verbalizar os acontecimentos e em concretizar as respectivas datas; sofre pesadelos nocturnos e inclusivamente chega a não conter a micção nocturna .

3 O arguido contesta o enquadramento jurídico penal dos factos que o Colectivo reconduziu a um crime de violação agravada , a um de actos sexuais com adolescentes, um de abuso sexual de menores dependentes agravado e dois crimes de abuso sexual de menores dependentes, entendendo configurar tal prática um crime continuado , pela consideração dos pressupostos de que a lei faz depender a sua verificação , nos termos dos n.ºs 2 e 3 , do art.º 30.º , do CP .

Como regra o número de crimes afere-se , pelo recurso a um critério teleológico , pelo número de vezes que a conduta do agente realiza o tipo legal( concurso real ) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente ( concurso ideal ) –art.º 30.º n.º 1 , do CP-, havendo para tanto que recorrer às noções de dolo e de culpa , ou seja ,tantas vezes quantas as que a eficácia da norma típica é posta em crise , ou seja pelo número de vezes que a norma não for eficaz para dissuadir a conduta antijurídica do agente .

No ensinamento , pleno de actualidade , do Prof. Eduardo Correia , in Unidade e Pluralidade de Infracções –Caso julgado e Poderes de Cognição do Juiz , a págs. 118 , “ o direito penal não valora negativamente certas condutas apenas por valorar , valora-as para , emprestando-lhes a força desta sua valoração , alcançar no processo de motivação dos indivíduos um papel decisivo ; valora-as para determinar .

A pluralidade de infracções não abdica , pois , de uma actividade material do agente , de modificação do mundo exterior , a que corresponde uma afirmação plúrima da volição ou vontade criminosa .

O crime , na definição de Amelung , citado por Karl Prelhaz Natcheradetez , in o Direito Penal Sexual ,Ed Almedina ,1985 , 116 , constitui , apenas , um caso especial de fenómenos disfuncionais , geralmente o mais perigoso .O crime é disfuncional enquanto contradiz uma norma institucionalizada ( deviance ) , necessária para a sobrevivência da sociedade.

Os desvios à regra da determinação legal da pluralidade de infracções estão representados pelo concurso aparente de normas e crime continuado, este estando previsto no art.º 30.º n.º 2 , do CP , e , pela sua descrição , se vê que o legislador como que , por ficção , ditada por razões de economia , de política criminal e de justiça material , reconduz a pluralidade de infracções à unidade criminosa , a um único delito.

São assim nos termos legais pressupostos cumulativos da continuação criminosa a realização plúrima do mesmo tipo legal ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico , executado de forma essencialmente a homogénea, no quadro de uma situação exterior ao agente do crime que diminua de forma considerável a sua culpa –n.º 2 , do art.º 30.º , do CP .

Ao art.º 30 .º , foi , pela recente reforma ao CP , introduzida pela Lei n.º 59/07 , de 4/9 , introduzido o n.º 3 , segundo o qual o disposto no n.º 2 , não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais , salvo tratando-se da mesma pessoa .

Esta alteração , correspondente ao n.º 2 , do art.º 33.º no Projecto de Revisão do CP , de 1963 , da autoria do Prof. Eduardo Correia , primeiramente exposta in Unidade e Pluralidade de Infracções , foi discutida na 13.ª Sessão da Comissão de Revisão ,em 8.2.64 ,no sentido de que só com referência a bens jurídicos eminentemente pessoais inerentes à mesma pessoa , se poderia falar de continuação criminosa , excluída em caso de diversidade de pessoas , atenta a forma individualizada e diferenciada que a violação pode revestir , impeditiva de um tratamento penal na base daquela unidade ficcionada .

Essa discussão não mereceu então conversão na lei por se entender que o legislador não reputou tal necessário , por resultar da doutrina , e até inconveniente , por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado . Essa não unificação resulta da natureza eminentemente pessoal dos bens atingidos , que se radicam em cada uma das vítimas , da natureza das coisas , assim comenta Maia Gonçalves , in CP anotado ao preceito citado .

Diferente não é o pensamento de Iescheck para quem são condições de primeiro plano, para aplicação do conceito , a existência de uma actividade homogénea e que os actos sejam referidos à mesma pessoa , afectando o mesmo bem jurídico .Sendo bens eminentemente pessoais , o conceito está arredado por, tanto a ilicitude da acção e do resultado como o conteúdo da culpa serem distintos , no caso de não identidade de pessoas , seu pessoal suporte –cfr. Tratado de Derecho Penal , I , Parte Generale , I , ed. Bosh , pág. 652 e segs e Acs. deste STJ , de 10.9.2007 , in CJ , STJ , Ano XV, TIII, 193 e de 19.4.2006 , in CJ , STJ ,Ano XIV, TII , 169.

4 A alteração introduzida, à parte a evitável polémica interpretativa que trouxe , bastando atentar na Circular Interna da PGR n.º 2 /2008-DE , de 9.8.2008 , sublinhando a errada divulgação da notícia pelos mais díspares meios de comunicação social de que a norma do n.º 3 viria permitir uma punição leve dos abusadores sexuais ,fez questão de significar que “ as críticas conhecidas não abalaram o entendimento firmado de décadas “ , que já se deixou expresso “ , é , pois , pura tautologia , de alcance limitado ou mesmo nulo , desnecessária , na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia a nível neste STJ , ou seja de que quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometido num quadro , em que ,por circunstâncias exteriores ao agente , a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída , sem prescindir-se , como , aliás aquela Circular fez questão de frisar , da indagação casuística dos requisitos do crime continuado , afastando-o quando se não registarem.

Esse aditamento não permite , pois , uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzisse inexoravelmente ao crime continuado , afastando-se um concurso real ( Cfr. Ac. do STJ , de 8.11.2007 , P.º n.º 3296 /07 -5 .ª Sec. , acessível in www. dgsi.pt .) , só significando que este deve firmar-se se, esgotantemente , se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º2 , de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito .

Interpretação em contrário seria , até, manifestamente , atentatória da CRP , restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana , violando o preceituado no art.º 1.º , comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais em ofensa ao disposto no art.º 18.º , da CRP , como se escreveu nos Acs . deste STJ , de 25.11.2009 , in Rec.º n.º 490/07 .OTAVVD, in www.dgsi.pt e de 5.11.2008 , Rec.º n.º 08P2812, inwww.dgsi.pt, , ambos desta 3.ª Sec. .

Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 , aditado recentemente , não sedimenta uma qualquer interpretação extensiva que é o alargamento do teor literal da lei de modo a incluir nele um alcance ainda conforme ao pensamento legislativo , quando a forma verbal adoptada ainda se compreende naquele texto .

5 . Em direito penal não está excluída a interpretação extensiva , pois sendo o texto legal construído por palavras e sendo estas de sentido quase sempre polissémico , tal texto pode carecer de interpretação oferecendo as palavras que o compõem , segundo o seu sentido comum e literal , um quadro e , portanto , uma pluralidade de significações dentro do qual o aplicador da lei pode optar sem ultrapassar os legítimos limites de interpretação .

Fora já deste quadro , sob não importa que argumento , o aplicador encontra-se já fora da interpretação extensiva , caindo no âmbito da analogia incriminatória , vedada no art.º 2.º n.º 3 , do CP . –cfr. Prof. Figueiredo Dias , Direito Penal , Parte Geral , , Coimbra Ed. , TI , 175 e segs .

6. São circunstâncias exteriores, teorizadas na doutrina , e particularmente in Unidade e Pluralidade de Infracções , do Prof. Eduardo Correia , págs. 246 ª 250 , que apontam para aquela redução de culpa, inscrita no conceito de crime continuado . :

Desde logo a circunstância de se ter criado através da primeira acção criminosa uma certa relação de acordo entre os sujeitos , veja-se o caso de violação a que se segue o cometimento de relações de sexo consentido ;

A circunstância de voltar a registar-se outra oportunidade favorável ao cometimento do crime , que foi aproveitada pelo agente ou o arrastou a ele;

A perduração do meio apto para execução do delito , que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira acção criminosa;

O facto de o agente , depois da mesma resolução criminosa , verificar a possibilidade de alargar o âmbito da acção delituosa .

O arguido , sublinhe-se , ao invocar este condicionalismo não escapa à postura do delinquente sexual que , com frequência , procura desculpabilizar-se , lançando sobre a sua vítima um processo de sedução , que o Colectivo afastou ao dar como não provado tal facto , vertido da sua contestação –ponto de facto sob o n.º 2.2.2.2.

No crime de violação , previsto no art.º 164.º , do CP , está em causa a liberdade sexual , a autoconformação da vida e prática sexuais da pessoa , afrontada pelo constrangimento daquela a suportar ou praticar os actos descritos nos seus n.ºs 1 , sendo que nos dois restantes tipos , de actos sexuais com adolescentes , p. e p. pelo art.º 173.º ,do CP e no de abuso sexual de menores dependentes , p . e p . pelo art.º 172 .º , do CP , igualmente se protege a liberdade de autodeterminação sexual , mas por abuso da inexperiência do menor e da relação de confiança , respectivamente , relação traída pelo agente , quer tenha génese na lei , decisão judicial , contrato ou mesmo relação de facto , incluindo-se os pais , tutores , familiares , professores , educadores , médicos , enfermeiros , sacerdotes , assistentes sociais e todas as pessoas a quem o menor entre 14 e 18 anos de idade possa ser entregue para educação médica ou social –cfr. Comentário do Código Penal , pág. 478 , do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque

A liberdade sexual decorre do direito do indivíduo a dispor do seu corpo , parte integrante da sua autonomia pessoal ; a liberdade sexual é ainda um elemento fundamental do direito à intimidade e vida privada.

A sexualidade é , para Daniel Borrilo , in Droit des Séxualités , Paris , Puf , 1998 , in Colection de Notre Droit , pág.123 , apresentada como o “ locus “ privilegiado da autonomia da vontade do ser humano , donde a compreensão da imposição na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças aos seus Estados –Membros da adopção de medidas apropriadas para protegê-las de todas as formas de abuso e de exploração –art.º 34.º n.º 1 .

Isto porque as crianças e adolescentes tem o seu exercício limitado pelo seu grau de desenvolvimento bio-psicossocial , e para assegurar o exercício da sua sexualidade , a regular de modo emancipatório e não meramente repressivo , o Estado deve proteger esses cidadãos dos “ vícios de consentimento “ isto é das formas violentas , fraudulentas , enganosas e exploratórias desse consentimento por outrem , responsabilizando –o tanto pela adopção de políticas sectoriais como através do amplo sancionamento dos abusadores e exploradores sexuais , quebrando o acto perverso de impunidade , segundo palavras de Nogueira Neto , extraídas da sua comunicação ao III Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes , realizado no Rio de Janeiro , em 2008 .

8. Resta , agora , em recurso , sindicar a bondade da conclusão da não diminuição da culpa do arguido , havendo que apelar ao pertinente factualismo provado , levando em conta que a vítima CC , nascida a 13.1.1993 , viveu uma situação de grave disfuncionalidade familiar , já que não priva com a mãe desde os 7 meses e o pai , a quem fora confiada , a confiou , depois , a sua mãe , avó da menor , EE , para dela cuidar , em princípio, conjuntamente com ele , mas a partir dos 11 anos ficando a cargo exclusivo desta última , o que o arguido não desconhecia , porque conhece a menor desde cerca dos seus dois anos , por manter uma relação amorosa com a avó ; EE , desde pelo menos 1994 , continuando a viver com a sua mulher , pois é casado , distribuindo os dias da semana entre ambas .

A avó da menor esteve internada no Hospital de Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira entre 08-09-2007 e 20-09-2007, pelo que lha confiou para dela cuidar recebendo instruções de EE para levar a menor para a habitação do arguido e mulher .

Logo na primeira noite de ausência de EE, o arguido entrou no quarto de CC e deitou-se a seu lado na cama, abraçando-a, e aí permanecendo até de manhã ; no dia seguinte, firmando o propósito irreversível de com ela manter relações sexuais , o arguido tomou diversas precauções para evitar que os vizinhos percebessem que ele e CC se encontravam sozinhos em casa, colocando um cobertor a tapar a janela do quarto, impedindo que CC recebesse amigos e colegas em casa , não deixando a menor sair de casa.

Na noite desse mesmo dia, o arguido entrou no quarto de CC, quando esta se encontrava deitada na cama, e colocou as suas mãos nas pernas e na vagina da menor, que , afastando-o , telefonou ao seu pai, para contar que o arguido não a levava para a casa de família dele, em Vila Franca de Xira.

O arguido retirou-lhe o telefone, falou com o pai da menor garantindo-lhe que iam para casa dele, desligou o aparelho, e desferiu uma bofetada no rosto da menor.

Após CC regressar à sua cama, o arguido foi para junto da mesma e, usando a força física, agarrou os braços da menor e tirou-lhe os calções.

Em seguida, o arguido , pela violência , introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da menor, onde permaneceu até ejacular, desflorando a CC, pois era virgem .

Após o regresso de EE a casa, vinda do Hospital , esta determinou que CC dormisse com o arguido na cama, enquanto estivesse em convalescença.

Durante esse período de tempo e numa noite, o arguido despiu CC e introduziu o seu pénis em erecção na vagina da menor, aí o mantendo até ejacular , não revelando a menor a ninguém os comportamentos do arguido, por vergonha e por receio da reacção deste último, que , antes , já lhe havia desferido uma bofetada .

No dia 9 de Abril de 2008, em altura em que CC contava com 15 anos e o arguido 58 anos de idade, EE voltou a ser internada no Hospital de Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira, onde se manteve até ao dia 16 de Abril de 2008.

Por indicação de EE, a sua neta voltou a ficar confiada ao arguido.

Durante este período de tempo, o arguido permaneceu alguns dias em casa de EE com a menor, pernoitando juntamente com ela na casa que mantém com a sua mulher por uma ou duas noites.

Mais uma vez , aproveitando-se da ausência de EE, com o propósito de satisfazer a sua lascívia , o arguido abordou CC por três ocasiões, na casa de EE , despindo-a e introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela, onde ejaculou.

Somente numa dessas três ocasiões, o arguido colocou preservativo antes de iniciar o acto sexual.

No dia 29 de Maio de 2008, a ofendida , por ter engravidado de uma dessas relações , medicamente assistida no Hospital Fernando da Fonseca, na Amadora , fez interrupção voluntária da gravidez e pela perícia levada a cabo concluiu-se por uma probabilidade de 99,999996% pela paternidade por parte do arguido do feto em gestação .

9 . As circunstâncias que diminuem a culpa , resulta do art.º 30.º n.º 2 , do CP , hão de ser exteriores , exógenas , ao agente , ou seja não serem criadas por ele ou delas se aproveitando , de modo que o homem médio possa rever-se e aceitar , ainda , a situação, que , aferida à luz de um critério objectivo de compreensão, nem alicerçado numa sensiblidade requintada nem embotada, legitime um juízo de censura de forma consideravelmente reduzida ; não se podendo abdicar de um critério apurado e rigoroso quanto à caracterização do juízo culpa , a situar num patamar de considerável diminuição

Do acervo factual, e no que ao caso importa , exposto por súmula , resulta que o arguido formou o inabalável desígnio criminoso de manter relações de sexo com a vítima , não funcionando como contramotivação ética o estado de desinteresse parental a que fora votada ( atente-se que ao próprio pai , declarou em julgamento não repugnar o envio da filha para o estrangeiros e confiá-la a familiares que dela podem cuidar ) , nem a circunstância de , por acordo com a avó, e enquanto estivesse no hospital , dela cuidar , protegendo-a , e nem a imaturidade , atenta a idade e o seu percurso sexual , respeitando-a , criando mecanismos de autocontenção sexual .

Sobre o arguido impendia o dever , a especial obrigação , se não com fonte em contrato , pelo menos à luz da moral e da ética , de guarda e de prestação de cuidados indispensáveis .à menor , que o reputava como seu familiar , a quem tratava por “ tio ....” .

Ao invés , aproveitou-se da circunstância de a avó da menor , sua companheira , estar ausente , internada no Hospital durante o período de 8 a 20.9.2007 e 9 a 16 4. 2008 , da sua imaturidade sexual , atenta a sua idade de 14/15 anos e o arguido 57/58 , da circunstância de estar confiada , por determinação da avó paterna , ao seu exclusivo cuidado , com exclusão de outrém , a quem pudesse recorrer para procurar auxílio e protecção , entregue a si própria ,com receio de que lhe pudesse bater, prevalecendo-se o arguido da sua ascendência, na reiteração criminosa .

As circunstância exteriores hão-de à luz do art.º 30.º n.º 2 , do CP , facilitar-lhe a recaída , a sucumbência ao crime , diminuindo considerável , acentuadamente , o juízo de censura , como é orientação deste STJ , sendo certo que no caso vertente é o arguido que devido à particular condição da vítima ante si , colocada numa relação proximal de si , dela abusa; aquele condicionalismo não é gerado por outrém facilitando-lhe a sua reiteração , mas pelo arguido que activamente procura o contacto sexual com a menor ,sabendo-a indefesa , dirigindo-se ao seu quarto , despindo –a , exibindo uma personalidade malformada , avessa ao respeito pela liberdade sexual da sua vítima .

Contra o que o arguido alega , a desculpabilizar-se , não foi a vítima que o seduziu , não foi ela que , consumada a violação acordou , depois , em entregar-se-lhe sexualmente , deixando de oferecer resistência à sua volúpia, mas o arguido que , tirando proveito da sua condição pessoal , se dirigia ao seu quarto , despindo-a , para depois , manter relações sexuais , consentidas , por medo e imprevisão, por inexperiência , das suas consequências, levando a uma entrega sexual sem alternativas .

E no contexto prédefinido a culpa do arguido surge agravada e não diluída .

Esse mesmo o pensamento elucidativo do Prof. Eduardo Correia , in op . cit ., págs. 250 e 251 , quando escreve “ …Sempre que se prove que a reiteração , menos que a tal disposição das coisas , é devida a uma certa tendência da personalidade do criminoso não poderá falar-se da atenuação da culpa e fica , portanto , excluída a possibilidade de existir um crime continuado “, como bem se decidiu pelo afastamento do crime continuado .

E o Colectivo face aos factos provados e sua valoração , considerando , em seu entender que o seu cometimento , à luz das circunstâncias do caso concreto , não integra uma diminuição da culpa por parte do arguido , ao firmar uma pluralidade de infracções , limita-se a declarar uma consequência que deriva expressamente do quadro , das palavras da lei , da sua significação , numa visão integrada , de conjunto , do preceito , com respeito pela conformação histórica atribuída ao conceito, que o legislador actual deixou intocado, praticando uma interpretação que nada tem de extensivo

10 Sobre o crime de acto sexual com adolescentes :

Dispõe o art.º 173.º n.º 1 , do CP , subordinado à epígrafe “ Actos sexuais com adolescentes “ que “ Quem, sendo maior, praticar acto sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos ou levar a que ele seja por este praticado com outrém , abusando da sua inexperiência , é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias “ .

O n.º 2 estipula que “ Se o acto sexual de relevo consistir em cópula , coito oral , coito anal ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos , o agente é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias “

O tipo legal de crime em causa é um crime específico próprio uma vez que a acção penal só pode ser praticado por maior ; por seu turno o abuso da inexperiência consiste na exploração pelo agente da falta de experiência de vida do adolescente e nomeadamente conhecimento sobre a vida sexual . Para apurar a inexperiência , escreve Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código Penal , pág. 481 , deve ter-se em conta o nível de maturidade , a condição psíquica e o grau educacional da vítima ; de todo está arredada essa inexperiência do adolescente quando já tenha conhecimento dessas experiências , conhecimento prático , admitindo o contrário , mesmo com conhecimento o Prof. Figueiredo Dias , ali citado .

O preceito incarna ,verte por via de lei , a normalidade e realidade da vida , pois que por via de regra uma adolescente de 14 anos não se mostra conhecedora dos meandros da sua sexualidade , das consequências da prática de relações sexuais , particularmente da metodologia contraceptiva , imaturidade que não é comprometida pela circunstância de já ter tido antes relações sexuais antes e uma vez com violência , sob pena de ser penalizada por esse acto não consentido .

Poder-se –à afirmar que , neste tipo legal , o legislador presume, mercê da idade , aquela inexperiência , que pode ser arredada( presunção juris tantum ) ; no tipo legal de crime de abuso sexual de crianças , p . e . pelo art.º 171º , do CP , a presunção é inilidível , juris et de jure ; o consentimento na prática de actos sexuais de relevo é irrelevante em todas as circunstâncias para protecção em termos absolutos da vítima

Se essa presunção ganha ou não razão de ser total nas condições actuais das sociedade ,por virtude de uma pública , infrene e não de todo inocente , sexualização , junto das camadas mais jovens da população , é questão com que não tem o aplicador da lei de se preocupar, antes obedecer ao quadro normativo .

O tipo legal de crime não exige o uso de um processo fraudulento e enganoso do agente , penalizante do erro sobre os motivos , provocado ou explorado pelo agente . Basta-se com a prática de acto sexual sem que a vítima tenha conhecimento , mercê da sua pouca idade e experiência de vida sexual , das consequências daquele acto , em termos de se poder autodeterminar e responder adequada e esclarecidamente à solicitação para a sua prática

O tribunal colectivo fixou , de forma inalterável por este STJ , que a menor à data dos factos , ou seja da manutenção da relação sexual após a avó ter retornado do hospital , após o primeiro internamento , tinha 14 anos e mais que não possuía a maturidade e os indispensáveis conhecimentos para consentir com inteira liberdade , responsabilidade , sentido e alcance da cópula .

Por isso se configurou , com acerto , o crime de acto sexual com adolescentes .

Como acima se deixou dito a violação e as três relações sexuais mantidas pelo arguido com a menor situam-se temporalmente numa altura em que a avó daquela se achava no hospital , traindo o arguido a relação de confiança que nele depositara ao confiar-lhe a sua neta , que o considerava como de família , ( tio) , funcionando quanto à violação as agravantes da menoridade de 16 anos , prevista no art.º 177.º n.º5 , do CP , agravando de 1/3 a pena nos seus limites máximo e mínimo , ou seja entre 4 e 13 anos e 4 meses de prisão .

Com referência aos 3 crimes de abuso sexual de menores dependentes , com previsão no art.º 172 .º , n.º1 , do CP , funcionam as agravantes da menoridade de 16 anos –art.º 177.º n.º 5 e a sua gravidez , -n.º4 , do CP, resultando que , por força do n.º 7 , do mesmo preceito só uma delas pode funcionar como agravante , justamente a que mais agrava a responsabilidade penal do arguido , excluindo aqueloutra , e que é a gravidez , na forma de um acréscimo de metade ao limite máximo e mínimo da moldura penal e quanto a um desses três crimes.

11. Medida concreta das penas :

O poder cognitivo cabido a este STJ estende-se a todas as penas englobadas no concurso , conducentes à formação da pena respectiva , nos termos do art.º 432.º n.º 1 c) , do CPP .

O processo de formação da medida da pena é um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de limites e finalidades da aplicação das penas , com definição no art.º 40.º , do CP , primordialmenteà tutela dos bens jurídicos e reinserção social do agente .

A medida da tutela dos bens jurídicos é definida pela necessidade em concreto , tanto maior quanto a sua importância , expressa na maior ou menor amplitude da moldura penal abstracta , intervindo na sua modulação em concreto factores provindos da mais díspar origem , uns relacionados com o facto , sua ambiência e ao agente em concreto , doutrina o Prof. Figueiredo Dias , in Direito Penal Português –AS Consequências Jurídicas do Crime , pág. 228 .

A pena em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa , pelo que num modelo de índole pragmática vertido naquele art.º 40.º , de protecção dos bens jurídicos , à culpa não se pede um papel de retribuição , de fundamentação da pena como no direito alemão , mas apenas a de a limitar ; funcionando a culpa como “ antagonista da prevenção “ .

De acordo com aquela filosofia programática , e em consonância com ela , o legislador desce aos critérios de formação concreta da pena , de acordo , desde logo com o dolo , as necessidades de prevenção , e ainda com certas circunstâncias que não fazendo parte do tipo , agravam ou atenuam a responsabilidade penal do agente , como resulta do art.º 71 .º , do CP .

Pelo apelo ao conceito de prevenção , o legislador dá realização ao fim público que lhe é atinente e ao fim particular que lhe incumbe , ou seja à prevenção geral , de protecção de bens jurídicos para tutela da expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma jurídica , postas em crise pelo crime –cfr. Prof. Figueiredo Dias , op.cit ., pág. 227 e segs . , e especial , de emenda cívica do agente do crime , de modo a retornar em condições de , pela interiorização dos maus efeitos do crime , não voltar a hostilizar o tecido social

Estes elementos enunciados no art.º 71.º , do CP , fornecem caminhos a percorrer pelo julgador , na sua missão de fixação concreta da pena , para ele vinculativos , embora goze de alguma autonomia no processo complexo de formação concreta da pena , já que se trata do delicado processo de converter factos em “ magnitudes “ penais .

Há por assim dizer um ponto óptimo , desejável comunitariamente , da protecção dos bens jurídicos , mas abaixo desse , pela intervenção dos factores indicados no art.º 71.º , do CP, outros ainda se poderão estabelecer pela convergência de razões de prevenção especial , que ditam , em último lugar , a medida concreta da pena , na forma de um patamar abaixo do qual o julgador não pode descer , por já não corresponder às expectativas comunitárias , insuportável à luz dos fins das penas .

Onde a pena se divorcie alongadamente da necessidade de protecção de bens jurídicos , sofre o princípio da humanidade na formação das penas , do respeito pela dignidade da pessoa humana, uma profunda derrogação e , com isso , compressão desnecessária o princípio da proporcionalidade , com consagração no art.º 18.º , da CRP , e que o arguido reputa desrespeitado .

Vejamos , pois .

O dolo , a vontade criminosa do arguido , mostra-se intensa e visivelmente actuada , não o fazendo demover de manter relações sexuais pela força e sem o ser as condições especiais da vítima , jovem entre os 14 e 15 anos , que lhe fora confiada durante o tempo de internamento da avó , fragilizada por estar entregue apenas aos cuidados do arguido e sem possibilidades de recorrer ao auxílio de terceiros , com o que denota uma personalidade mal formada , portadora de qualidades desvaliosas que se não identificam com as do homem fiel ao direito , relevando , em seu desfavor , pela via da culpa e da prevenção .

O modo de execução dos crimes justifica uma intervenção vigorosa do direito penal punitivo já que para consumar a violação , sem ser descoberto , e que nunca assumiu , até tapou as janelas do quarto da menor com um cobertor .

Depois aproveitou-se da ausência da avó da menor no hospital para manter relações de sexo , traindo a relação de confiança que aquela depositara na esperança que dela cuidasse bem e a respeitasse , integrado como estava no círculo das suas limitadas relações familiares .

As consequências dos crimes foram muito gravosos para a menor , que desflorou .

E se o desfloramento já não assume a natureza de estigma social do passado mercê da evolução da maneira de pensar que os tempos trouxeram , não deixa de ser quando a perda da virgindade se faz pela força , contra a vontade da vítima ,causa para esta de trauma físico e psíquico , e então motivo de muito forte juízo de reprovação social e ética , facto altamente condenável , socialmente inaceitável , repugnante ao sentimento jurídico reinante

Da manutenção das relações sexuais , sem o cuidado devido , ao menos para a menor não engravidar, pelo arguido , homem feito , sexualmente experiente , resultou a gravidez da CC , que veio a abortar em 29.5.2008 , por intervenção médica , tendo o feto que já gerara como pai o próprio arguido .

A gravidez , enquanto descoberta imprevista , “pode ser um momento extremamente desorganizador e vivido com grande sofrimento , sentimentos de pecado e de culpa , exigindo ajustamentos psicológicos individuais e familiares difíceis de serem elaborados e aceites “ , escreveu Isabel Alberto, in O Abuso Sexual de Menores , em co-autoria com Rui do Carmo e Paulo Guerra , pág. 38

E o aborto traz , genericamente , à mulher sequelas de ordem física e psíquica , a que não foi imune a vítima , que , depois , passou a ser alvo de acompanhamento psicológico , face ao seu mau aproveitamento escolar , passando por grande dificuldade em verbalizar os acontecimentos , em concretizar as respectivas datas , pesadelos nocturnos , chegando a não conter a micção nocturna.

O grau de ilicitude , de demérito da acção , é muitíssimo elevado.

Este não interiorizou as consequências do seu acto , preocupando-se mais em justificá-lo por acção do consumo excessivo do álcool , mostrando, por isso, fraca consciencialização do dano, centrando a sua preocupação essencialmente na sua pessoa e nas consequências que o processo lhe trará;

O arguido denota uma falta de rectitude de carácter ; uma sensibilidade embotada , essencialmente pelo consumo excessivo de álcool, pelo que as necessidades de prevenção especial, de emenda cívica, se fazem sentir em grau muito elevado, atendendo ao grau de violação dos deveres impostos e aos sentimentos revelados .

Os crimes que praticou são muito graves , pela prática frequente registada entre nós e não só , observando Daniel Borrillo , in op. e loc . cit. , que o crime sexual representa na actualidade o paradigma do mal absoluto , sendo o seu autor um ser associal, portador de periculosidade por excelência , embora , de um ponto de vista de imputabilidade penal só cerca de 30% o não seja .

Essa constatação tem levado a uma certa “demonização” do agente do crime sexual, a uma exigência acrescida de punição , à reclamação da exasperação da pena , afirmando alguns autores que esse objectivo só convém ao modelo de sociedade e de Estado firmado na “ volúpia punitiva “ , alienante da população , gerador de violência acrescida , causador de um ciclo macabro sem termo , para quem o direito penal penitenciário não passa de um processo” deslegitimante” .

O arguido é delinquente primário, próximo dos 60 anos à data dos factos, porém o quadro de patologias de que padece não reduzem a culpa e ilicitude , a confissão parcial dos factos, no sentido de que por duas ou três vezes manteve relações de sexo com a menor, embora parcial, funda uma muito ligeira alteração na fixação da pena de concurso, furtando-se porém - não era forçado a isso –a assumir o comportamento anterior , não menos importante , da violação .

Numa moldura de 4 a 13 anos e 4 meses de prisão a pena concreta de 6 anos de prisão é ajustada para o crime de violação agravada ; a pena de 18 meses de prisão para o crime de acto sexual com adolescente é a adequada ; a de 5 anos de prisão não merece reparo quanto ao crime agravado de abuso sexual de menores dependentes , p . e . p pelo art.º 172.º n.º 1 e 177 .º n.º 4 , do CP ( em abstracto de 18 meses a 12 anos de prisão ) , como não merece censura a de 2 anos e seis meses num arco penal de 1 a 8 anos de prisão , para cada um dos dois tipos de crime simples .

12. No conjunto global das penas , atingindo o limite máximo de 17 anos e meio de prisão a pena de concurso de 10 anos adoptada em 1.ª instância peca por um relativo excesso , que se repara , reduzindo-a a 9 ( nove ) anos de prisão , no que vai condenado , respondendo , esta , ainda , na exemplaridade às vertentes da culpa e prevenção .

Pelo exposto se concede parcial provimento ao recurso .

Taxa de justiça : 7 Uc,s .

Lisboa, 16 de Junho de 2010

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral