Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16368/09.0T2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
VENDA DE BENS ONERADOS
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PRAZO DE CADUCIDADE
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Doutrina: - ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 63.
- ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª edição, págs. 73, 110 e ss e 240 e ss.
- CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, págs. 36 e ss; e, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443.
- MENEZES CORDEIRO, Boa Fé, I, pág. 604.
- MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág. 337.
- PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. II, 1968, pág. 149.
- PEDRO ROMANO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 1994, págs.417, 418.
- RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, Vol. IV, 1995, pág. 94.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, 219.º, 227.º, 251.º, 254.º, 287.º, N.º1, 309.º, 328.º, 405.º, 762.º, N.º1 E 2, 798.º, 799.º, NºS 1 E 2, 879.º, ALÍNEAS C) E B), 905.º A 912.º, 913.º, N.º1, 916.º, 917.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 511.º, N.º1.
Sumário :
I – Não têm aplicação ao regime da venda de bens onerados, previsto nos artigos 905º a 912º do Código Civil, as normas da caducidade de acção estabelecidas nos artigos 916º e 917º do mesmo diploma, respeitantes ao regime da venda de coisas defeituosas.
II – Logo, invocando-se uma situação de venda de imóvel onerado com uma servidão de vistas, cuja existência foi ocultada ao comprador, estaremos – a comprovar-se tal situação – perante um cumprimento defeituoso da obrigação, por violação dos deveres laterais do negócio, conducente à obrigação de reparação dos consequentes danos causados.
III – Assim sendo, o direito à indemnização apenas prescreve decorrido o prazo ordinário de vinte anos previsto no artigo 309º do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Nos Juízos Cíveis da Comarca de Sintra (mais tarde, Sintra – Juízo Grande Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste), AA – Imobiliária e Turismo, Lda, em acção com processo ordinário, intentada contra BB e marido CC, pediu que, com a procedência da acção, sejam os Réus condenados a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 475.000,00, acrescido de juros legais a partir da citação.

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, o seguinte:
Por escritura pública outorgada em 24.10.1996, a Ré (autorizada pelo marido) vendeu à Autora o prédio urbano sito na Avenida das ........, nº ..., Portela de Sintra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº ......e inscrito na matriz sob o artigo 942º da freguesia de Santa Maria e S. Miguel.
Não se mostravam registados quaisquer ónus ou encargos sobre o prédio, que foi vendido e comprado já com projecto aprovado pela Câmara Municipal de Sintra para edificação de um edifício com oito pisos.
Em Novembro de 1996, já depois de demolida a construção que existia no prédio e de terem sido iniciadas as obras de construção do novo edifício, a ora Ré alertou a Autora para a existência de uma servidão de vistas sobre o prédio vendido, constituída em favor de um prédio identificado por “Vivenda.........”.
Em momento posterior, os Réus confessaram que conheciam a existência dessa servidão, que veio a ser registada entre a data da escritura e a do registo da aquisição em favor da Autora.
A existência dessa servidão foi reconhecida em acção proposta pelos proprietários da “Vivenda.........”.
Em sede de execução da sentença aí proferida (em embargos de executado), a Autora alcançou acordo com os demandantes nessa acção, nos termos do qual pagou, para obter a renúncia à servidão, a quantia de € 475. 000,00, o que representa um prejuízo para a Autora de igual montante e constituiu os Réus na obrigação de indemnizar, estando verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual.

Os Réus contestaram, invocando, no que aqui releva, a excepção de caducidade do direito de acção, com o fundamento de que, estando em causa o exercício de direitos fundados em venda defeituosa, a acção deveria ter sido intentada, na pior das hipóteses, no prazo de cinco anos, contado do conhecimento do vício, nos termos dos artigos 916º e 917º do Código Civil, sendo que esse conhecimento teve lugar em Novembro de 1996 e a presente acção apenas foi intentada a 19.05.2009.

A Autora replicou, reafirmando que não pretende a anulação do contrato de compra e venda, mas apenas ser indemnizada dos prejuízos decorrentes do incumprimento do contrato, pelo que o prazo aplicável é o ordinário da prescrição, ou seja, é de vinte anos, para além de que só podia pedir o reembolso do montante que pagou para extinguir a servidão depois de ter efectuado esse pagamento.

Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu julgar procedente a arguida excepção peremptória da caducidade, com a consequente absolvição dos Réus do pedido.

Após recurso da Autora, foi, no Tribunal da Relação de Lisboa, proferido acórdão, segundo o qual se julgou improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Ainda inconformada, veio a Autora interpor o presente recurso de revista excepcional, com fundamento no artigo 721º-A, nºs 1, a), 2, a), do Código de Processo Civil (CPC), vindo a ser proferido, pela formação a que alude o nº 3 do mesmo artigo, o acórdão de fls. 327 a 335, a admitir a presente revista excepcional.

A recorrente, nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª – A Recorrente comprou aos Recorridos o imóvel urbano sito na Avenida ......................,.... em Sintra, para nele edificar um prédio urbano com seis pisos e duas caves, conforme projecto aprovado pela Câmara Municipal de Sintra, a pedido dos próprios vendedores.
2ª – Em 27 de Agosto de 1996 tiveram início as obras de construção, com a prévia demolição da construção que ali existia.
3ª – Em Novembro de 1996, já demolida a antiga construção e construídos os muros de suporte e as fundações, a Recorrente tomou conhecimento de uma servidão contratual de vistas, em benefício de outro imóvel – a Vivenda......... –, que impedia, no local, quaisquer construções com altura superior a cinco metros a contar do solo térreo.
4ª – Os beneficiários da servidão, não tendo conseguido chegar a um entendimento com os Recorridos, propuseram uma acção ordinária contra estes, pedindo o reconhecimento da servidão e a condenação a demolir, até à altura máxima de cinco metros, a construção que a Recorrente já havia iniciado.
5ª – Uma tal acção, que correu seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal de Sintra, sob o nº 31/97, afastou os Recorridos da acção, ao arrepio do estatuído nos números 1 e 3 do artigo 907º do C.C., e condenou na totalidade dos pedidos apenas a ora Recorrente, que foi a ela chamada por ser, entretanto, a nova proprietária do imóvel.
6ª – Na execução da identificada acção judicial, a ora Recorrente viu-se forçada a pagar aos beneficiários da servidão uma indemnização de € 475.000,00 contra a renúncia à mesma por parte destes, sendo certo que os vendedores não resolveram o problema, concretamente a expurgação do ónus, como haviam prometido.
7ª – A acção agora proposta pela Recorrente visa obter dos vendedores Recorridos uma indemnização igual àquela que pagou.
8ª – O acórdão de que se recorre deu como procedente a excepção de caducidade do artigo 917º do C.C., porque entendeu que era de aplicar o regime jurídico da venda de coisas defeituosas.
9ª – A Recorrente discorda deste entendimento, na medida em que entende que uma servidão não é um defeito do imóvel, mas um vício do direito transmitido, o que lhe confere diferente tratamento jurídico, designadamente o previsto nos artigos 905º a 912º.
10ª – A sentença recorrida errou na aplicação do direito, ao ter escolhido o regime da Secção VI, do Livro II, Título II do Código Civil, esquecendo o regime da Secção antecedente – a Secção V – sobre a venda de bens onerados.
11ª – A sentença recorrida, ao dizer que não podemos passar ao lado do disposto nos artigos 916º e 917º do C.C., adoptou uma interpretação extensiva que a lei não consente, visto estarmos em presença de realidades e conceitos distintos e é claramente atentatória do elemento sistemático de interpretação.
12ª – As disposições sobre a venda de bens onerados não contêm o prazo de caducidade para a anulação do negócio, como o fazem as relativas à venda de coisas defeituosas.
13ª – É o regime da venda de bens onerados que subsidiariamente é aplicável à venda de coisas defeituosas, sem que exista na letra da lei, ou na ratio legis, qualquer indicação de inversão desta subsidiariedade.
14ª – Na falta de lei especial, aplicar-se-á a lei geral, como é reconhecido e indiscutível, pelo que no caso, não havendo prazo de caducidade previsto na Secção própria da venda de bens onerados, há que aplicar a parte geral do Código Civil, designadamente o artigo 309º.
15ª – Pelo que não se verifica a excepção de caducidade, sendo a acção de indemnização intentada pela Recorrente tempestiva.
16ª – A Recorrente não podia optar pela anulação do contrato, atentos os efeitos da anulação de um negócio (artigo 289º do C.C.), o que era materialmente impossível no caso em apreço.
17ª – A acção proposta faz todo o sentido, ao fundar-se no cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, aplicando-se-lhe as disposições gerais sobre a responsabilidade civil contratual.
16ª – A acção está em tempo, visto beneficiar do prazo de prescrição ordinário de vinte anos (artigo 309º do Código Civil).
17ª – O acórdão recorrido omitiu os artigos 905º a 912º do Código Civil, especificamente aplicáveis à venda de bens onerados, devendo por isso ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção.

Contra-alegaram os recorridos, defendendo a confirmação do julgado.

Cumpre apreciar e decidir.

II – 1. O que está em causa no presente recurso consiste em determinar se a instauração da presente acção estava sujeita a prazo de caducidade e, na hipótese afirmativa, a dimensão desse prazo e o termo inicial da sua contagem – como entenderam as instâncias –, ou se estaremos antes perante um incumprimento contratual, com a inerente responsabilidade civil, em que se aplica o prazo ordinário da prescrição, relativamente ao respectivo direito – como defende a recorrente.

Na 1ª instância, depois de se aludir ao regime da venda de coisas defeituosas, escreveu-se:
“Ora, no caso dos autos, é patente que a Autora alega ter comprado um imóvel onerado por uma servidão de vistas que desconhecia existir; considerando, por isso, que os Réus/vendedores cumpriram deficientemente a sua prestação contratual.
Ocorre que, como a Autora alega, podia ter pedido a anulação do contrato.
Optou por não o fazer pelos motivos que enuncia. Porém, em conformidade com a alegação da demandante, da violação contratual acima indicada levada a cabo pelos ora Réus, resultaram prejuízos para a ora Autora, prejuízos que a Autora não teria se o contrato de compra e venda fosse perfeitamente cumprido.
Por isso, a Autora tomou a opção de pedir indemnização pelo interesse contratual positivo, com vista a ser colocada na situação em que estaria se os ora Réus tivessem cumprido devidamente a sua prestação (venda do imóvel sem ónus).
O que menos se compreende, nos termos sobreditos, é porque é que a Autora pretende, em termos de fundamentação jurídica, afastar a sua pretensão do contexto em que esta se insere: a compra e venda defeituosa; uma vez que pretende manter-se no âmbito do simples incumprimento contratual.
Voltando ao disposto pelos arts. 916º/917º, do C. Civil, em face do que é alegado pela própria Autora, cremos que poderá entender-se ter existido denúncia relativamente à existência do ónus sobre o imóvel (a servidão de vistas) na reunião a que a Autora se refere em 18º, da sua petição inicial, que terá ocorrido em Novembro de 1996 (cfr., ainda, art. 15º, da p.i.) – ver, quanto à forma da denúncia, os arts. 217º e 219º, do C. Civil.
Ora, assim sendo, das duas uma: ou se considera que, nesta ocasião, da reunião, ocorreu a denúncia e a acção de indemnização deveria ter sido interposta decorridos seis meses sobre a denúncia; e, não o tendo sido, como não foi, caducou o direito de acção; ou se considera que inexistiu efectiva denúncia, e findo o prazo de cinco anos após a entrega do imóvel (27 de Agosto de 1996, cfr. art. 13º, da p.i.), caducou o direito de acção (arts. 916º, 917º, do C. Civil); nada se vendo ou tendo sido alegado passível de suspender ou interromper o prazo de caducidade – cfr. art. 328º, do C. Civil.
Deste modo, em face dos termos em que a própria Autora configura a acção; e mesmo admitindo que os seus fundamentos de facto lograssem provar-se, sempre a acção improcederia, em função da procedência da alegada excepção de caducidade do direito de acção.”.

2. Chegando ao mesmo resultado – a procedência da excepção peremptória da caducidade –, embora com diferente fundamentação, refere o acórdão ora recorrido:
“Como se conclui da leitura da decisão recorrida, foi ali considerado que era aplicável ao caso o preceituado nos artigos 916.º e 917.º do C. Civil, e que, conforme doutrina e jurisprudência abundantemente citadas, o regime ali estabelecido para a acção de anulação era aplicável, por interpretação extensiva, ao exercício dos demais direitos que fossem fundados na compra de coisa defeituosa.
Ora bem, quanto à última parte, julga-se ser pacífico o entendimento de que o prazo de caducidade, estabelecido no art. 917.º do C. Civil para a propositura da acção de anulação do contrato de compra e venda de coisa defeituosa, também é aplicável às demais acções fundadas em venda de coisas defeituosas. Tal solução mostra-se adequadamente justificada na decisão recorrida, com oportuna invocação de doutrina e jurisprudência, não se justificando agora ir mais longe nessa apreciação, contra a qual, de resto, nada vem oposto.
Pois que o que a apelante questiona e, a nosso ver com razão, é a aplicabilidade do regime estabelecido para a venda de coisas defeituosas, nos art. 913.º e seguintes do C. Civil, a uma situação de venda de um bem onerado, que o mesmo código regula nos art. 905.º a 912.º.
Com efeito, a presente acção não é fundada numa venda de coisa defeituosa, prevista nos art. 913.º e seguintes, mas numa venda de um bem onerado – um prédio onerado com uma servidão – regulada nos já referidos art. 905º a 912.º.
Ora, uma vez que é o regime da venda de bens onerados que, por força da remissão feita no n.º 1 do art. 913.º do C. Civil, é subsidiariamente aplicável, à venda de coisas defeituosas, e não inversamente, e uma vez que o questionado prazo de caducidade está estabelecido para a venda de coisas defeituosas, parece resultar do confronto dos dois regimes que esse prazo não será directamente aplicável à venda de bens onerados. Para além de que, como observa Pedro Romano Martinez, em «Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada» 1994, 417, “é duvidosa a viabilidade de se aplicarem prazos por via analógica, principalmente sendo estes curtos e de caducidade”.
Admite-se, pois, que assista razão à apelante quando pretende que não é aplicável ao caso dos autos o prazo de caducidade estabelecido no art. 917.º do C. Civil.
Mas já não quando, de seguida, pretende que, não sendo aplicável aquele prazo, a lei não sujeita a qualquer prazo o exercício do direito de indemnização fundado na compra e venda de bens onerados. Que, consequentemente, apenas ficaria limitado pelo prazo geral da prescrição, que, nos termos do art. 309.º do C. Civil, é de vinte anos.
Como já acima ficou referido, e foi fundadamente justificado na decisão recorrida, no que respeita à compra e venda de coisas defeituosas, é quase pacífico o entendimento de que o regime da caducidade, estabelecido no art. 917.º do C. Civil para acção de anulação, é igualmente aplicável às demais acções que possam ser fundadas no mesmo cumprimento defeituoso, inclusive para o pedido de indemnização, mesmo que deduzido desacompanhado de qualquer outro pedido.
Ora, se em relação à compra e venda de coisa defeituosa é reconhecida a aplicabilidade do mesmo regime de caducidade a qualquer dos direitos que o comprador possa exercer, fazendo-se interpretação extensiva da norma do art. 917.º, julga-se que idêntica conclusão deve ser estabelecida no que respeita ao exercício de direitos fundados na venda de bens onerados, considerando-se, neste caso, o prazo da acção de anulação para que remete o art. 905.º do C. Civil. Pois que as razões que justificam a interpretação extensiva no primeiro caso, também a justificam no segundo.
Deste modo, tal como na venda de coisas defeituosas, deve entender-se que o exercício de quaisquer direitos fundados na venda de bens onerados está sujeito ao mesmo regime de caducidade. Regime que é aplicável ao direito de indemnização, mesmo que desacompanhado de qualquer pedido de anulação.
Nos termos do art. 287 n.º 1 do C. Civil, o respectivo prazo é de um ano, contado do conhecimento do vício que lhe serve de fundamento.
Neste mesmo sentido se pode ver Pedro Romano Martinez, obra citada, pag. 418.
Contra este entendimento não colhe o argumento de que o montante do dano só foi conhecido depois de transitada a decisão que reconheceu a existência da servidão e depois da transacção em que foi acertado o montante que a autora desembolsou para desonerar o prédio, sempre muito tempo depois de esgotado o prazo acima considerado.
Como decorre da sua alegação, a autora tomou conhecimento da existência da servidão de vistas em Novembro de 1996, e foi nesse mesmo mês que foi requerida a inscrição desse encargo no registo predial. Assim, o ónus ficou logo identificado e a desvalorização que o mesmo representava para o prédio onerado era, desde logo, determinável, podendo ser prontamente exercidos os direitos que assistissem à compradora, fundados na sua existência.”.

3. É pacífico que estamos aqui perante a venda de um bem onerado.

O regime da venda de bens onerados encontra-se regulado na Secção V do Capítulo I do Título II do Código Civil (artigos 905º a 912º).

Supõe-se nesta secção a existência de encargos ou ónus que incidam sobre o direito transmitido (vícios do direito) e não a existência de vícios da coisa, aos quais se refere a secção seguinte.

Segundo os Profs. PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA (Código Civil Anotado, Vol. II, 1968, pág. 149), são vícios do direito um usufruto, uma hipoteca, um privilégio por obrigação anterior que se venha a executar, um penhor, uma servidão, etc., constituídos em benefício de terceiro. Já não são vícios do direito os encargos ou ónus inerentes aos direitos da mesma categoria, como são as limitações legais ao direito de propriedade e as servidões legais. São estes os limites normais a que se refere o artigo 905º, segundo o qual, “Se o direito transmitido estiver sujeito a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”.

Havendo ónus ou limitações que excedam esses limites normais, a venda é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade. São, pois, aplicáveis as disposições dos artigos 251º (erro sobre o objecto do negócio) e 254º (dolo), designadamente no que se refere à essencialidade do erro e à sua recognoscibilidade para o declaratário (obra e local citados).

Por sua vez, o Conselheiro RODRIGUES BASTOS, citando Larenz (Notas ao Código Civil, Vol. IV, 1995, pág. 94), diz: “Existe vício na venda quando, em consequência de defeitos na titularidade do vendedor, o comprador recebe um direito diminuído relativamente àquele que segundo o contrato o vendedor estava obrigado a proporcionar-lhe. Sucede assim se o vendedor não pode proporcionar ao comprador a propriedade da coisa porque ele próprio não é proprietário dela, e não pode sequer adquirir a sua propriedade, ou não puder proporcionar-lhe uma propriedade livre de encargos por ela estar onerada com um direito real pertencente a terceiro, ou finalmente, quando não puder facultar-lhe o exercício pacífico das faculdades de domínio porque um terceiro tem um direito de aproveitamento ou um direito de proibição que possa ser exercido contra o comprador”.

Sendo o termo ónus aqui utilizado num sentido técnico, designa ele geralmente encargos ou limitações do gozo da propriedade.

4. Já vimos que, embora com fundamentação não totalmente coincidente, as instâncias acabaram por considerar que, na presente situação, se está perante a caducidade do direito de acção, sendo que, tendo a 1ª instância optado pela aplicação do regime da venda de coisas defeituosas (artigo 917º) por interpretação extensiva, a Relação, com um raciocínio algo confuso, acabou por entender ser de aplicar a mesma disposição legal.

A Autora invoca, na sua petição inicial, a compra aos Réus de um prédio urbano e que, ainda antes da realização da escritura, se diligenciou no sentido de se obter a viabilidade da edificação de oito pisos que a Autora, após a demolição do primitivo edifício, tinha ali em vista, vindo a ser confrontada, já com as obras em curso, com a existência de uma servidão de vistas a favor de um terceiro, facto que lhe havia sido ocultado pelos vendedores.

Perante esta situação, a Autora alega ter tido necessidade de chegar a um entendimento com os beneficiários da servidão já após decisão judicial a reconhecer a existência desta, pagando-lhes a quantia de € 475.000,00 pela renúncia à servidão.
Mais alega que, se tivesse tido oportuno e atempado conhecimento da limitação que impendia sobre o objecto da venda, não o teria adquirido, ou, ainda que o tivesse feito, seria por preço incomparavelmente inferior, bem como que, quando descobriu o encargo sobre o imóvel, já este se encontrava demolido e já havia despendido avultados montantes na construção do novo, razão por que não poderia já requerer a anulação do negócio.

Fundamenta a Autora o seu pedido de indemnização na responsabilidade civil contratual.

Ora, tendo o credor o direito à prestação, há a necessidade imposta ao devedor de realizar a prestação, sob a cominação das sanções aplicáveis à inadimplência.

Ao lado das obrigações principais, que definem o tipo ou módulo da relação (assim, na compra e venda há por parte do comprador a obrigação de pagar o preço e por parte do vendedor a obrigação de entrega da coisa, ut art. 879º, alíneas c) e b), do Código Civil), surgem ou podem surgir outros, chamados secundários ou laterais (ex: os destinados a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação), e, ainda, os chamados deveres acessórios de conduta (por ex. no contrato referido, a obrigação do vendedor de conservar devidamente a coisa até à entrega) (cfr. ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª edição, págs. 73 e 110 e seguintes).

“Quanto à sua disciplina jurídica, a generalidade dos deveres acessórios de conduta não dá lugar, como vimos, à acção de cumprimento (artigo 817º), próprio dos deveres de prestação, mas a sua violação pode obrigar à reparação dos danos causados à outra parte ou…” (autor e obra citados, pág. 129).

É que, como ensina ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 63), “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários –, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc.. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”.
Na mesma ordem de ideias, podemos, ainda, citar MOTA PINTO (Cessão da Posição Contratual, pág. 337), que refere que “além dos deveres principais de prestação e dos direitos correspectivos, que definem o tipo da relação contratual, existem ou podem existir, também, deveres secundários de prestação”, ou deveres secundários com prestação autónoma ou deveres secundários acessórios da prestação principal, para além dos deveres laterais.

No mesmo sentido, CARNEIRO DA FRADA (Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443) alerta-nos para o facto de o contrato convocar “uma ordem normativa”, que o envolve, sujeitando os contraentes aos ditames da regra da boa fé por todo o seu período de vida e daí que, “ao lado dos deveres de prestar – sejam eles principais de prestação ou acessórios da prestação principal –, floresce, na relação obrigacional complexa, um leque mais ou menos amplo de deveres que disciplinam o desenrolar da relação contratual, que podem designar-se deveres laterais ou simples deveres de conduta”.

Ainda segundo CARNEIRO DA FRADA (Contrato e Deveres de Protecção, págs. 36 e seguintes), estes deveres laterais “não estão virados, pura e simplesmente, para o cumprimento do dever de prestar, antes visam a salvaguarda de outros interesses que devam, razoavelmente, ser tidos em conta pelas partes no decurso da sua relação” e “exprimem, na formulação de Larenz, a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, e costumam fundamentar-se no princípio da boa fé”.

Não é, pois, uma simples vontade, um simples capricho, embora consagrado no clausulado, ou até uma razoável expectativa que se pode transformar num direito à prestação do credor e sua correlativa obrigação de prestar por parte do devedor.

As ditas “obrigações laterais” surgem-nos como o resultado do comprometimento das partes e ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, e, portanto, merecedoras da tutela do Direito.
Elas podem surgir, assim, como tendo estado na base de todo o desenvolvimento negocial, quiçá determinando-o (MENEZES CORDEIRO qualifica estes deveres como “acessórios” e qualifica-os em deveres de protecção, de esclarecimento e de lealdade – Boa Fé, I, pág. 604).

No domínio dos contratos em particular, a regra é a da liberdade: “a liberdade contratual consiste na faculdade que as partes têm, dentro dos limites da lei, de fixar, de acordo com a sua vontade, o conteúdo dos contratos que realizarem, celebrar contratos diferentes dos prescritos no Código ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver” (cfr. artigo 405º do Código Civil).

Com efeito, “a liberdade reconhecida às partes aponta para a criação do contrato”, sendo este “um instrumento jurídico vinculativo, um acto com força obrigatória” (ANTUNES VARELA, obra citada, págs. 240 e seguintes).

Daí que o seu incumprimento, pondo em crise a relação contratual, acabe por quebrar o nexo sinalagmático entre as prestações.

É esta a conclusão a que chega MOTA PINTO – “implicando a sua culposa infracção, por qualquer dos sujeitos da obrigação, responsabilidade civil com fundamento em violação do contrato (art. 798º) e dando à contraparte, sob certas circunstâncias, o direito de resolução, tal como se tratasse do não cumprimento culposo do dever da prestação.”

É que, muito embora tais deveres não realizem a obrigação principal, acabam por tutelar outros interesses da contraparte, “coenvolvidos no interesse contratual, não implicando a sua violação o inadimplemento ou a mora no cumprimento do dever de prestação, mas importando uma violação contratual positiva” (obra citada, págs. 240 e seguintes).

5. O caso dos presentes autos enquadra-se perfeitamente no incumprimento: é nele que nos iremos apoiar na abordagem concreta que a questão impõe.

Havemos de questionar, então, se os Réus violaram os tais “deveres laterais” no negócio que celebraram com a Autora, para, de seguida, determinar, as suas consequências, caso a 1ª questão venha a obter resposta afirmativa.

Ora, estabelece o nº 1 do artigo 227º do Código Civil que “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

Por outro lado, “O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” – artigo 762º, nº 1, do referido Código.
“No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé” – nº 2 do mesmo artigo.

A materialidade fáctica alegada pela Autora na sua petição inicial faz imputar aos Réus a responsabilidade pelo desconhecimento, por parte daquela, do ónus que, alegadamente, incidiria sobre o prédio urbano adquirido, aquando da sua aquisição pela ora recorrente.

Acresce que aí se invocam as razões por que não poderia a Autora optar pela anulação do negócio com base em vício de vontade (erro).

No fundo, e ao contrário do que entenderam as instâncias, a causa de pedir consubstancia uma situação de cumprimento defeituoso do contrato (venda de um bem onerado), à qual terá de ser aplicado o regime da responsabilidade civil por incumprimento do contrato.

“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor” – artigo 798º do Código Civil.

“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”, sendo que “A culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil” (nºs 1 e 2 do artigo 799º do mesmo diploma).

Encontramo-nos, assim, aqui perante uma alegada responsabilidade civil contratual, pelo que não se coloca a questão da caducidade do direito de acção – como erradamente decidiram as instâncias –, mas a aplicação do prazo ordinário de prescrição, que é de vinte anos, nos termos do artigo 309º do Código Civil.

Logo, terá a acção de prosseguir para conhecimento do pedido formulado.

6. Infere-se, assim, do exposto que colhem as conclusões da recorrente, tendentes ao provimento do recurso, pelo que o acórdão recorrido, confirmativo, embora com diferente fundamentação, da decisão da 1ª instância, terá de der revogado, devendo os autos prosseguir na 1ª instância com a enunciação dos Factos Assentes e com a elaboração da Base Instrutória (cfr. artigo 511º, nº 1, do CPC).

III – Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, determinando-se a remessa dos autos directamente à 1ª instância, a fim de ser dado prosseguimento ao processo, mediante a enunciação dos Factos Assentes e a elaboração da Base Instrutória.

Custas, aqui e na Relação, a cargo dos recorridos.


Lisboa, 31 de Maio de 2011



Moreira Camilo (Relator)
Paulo Sá
Garcia Calejo