Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3794
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: SJ200611290037941
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1) A fixação dos factos baseados em meios de prova livremente apreciados pelo julgador está fora do âmbito do recurso de revista.

2) Só em casos excepcionais é que o Supremo Tribunal de Justiça conhece matéria de facto (artigos 26º da Lei 3/99 e 722º nº2 e 729º nº2 do Código de Processo Civil).

3) Assente a existência de valores a apurar, mas não se tendo determinado, com precisão, o seu montante, deve condenar-se no que se liquidar em execução de sentença, se tal liquidação se afigurar possível, designadamente por recurso a meios de prova na fase de liquidação.

4) Tal significa a oportunidade para provar os montantes que não se lograram demonstrar na fase declarativa mas, e apenas, com os limites do pedido que nunca podem ser ultrapassados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"Empresa-A ", com sede em ...., Torino, Itália, intentou acção, com processo ordinário, contra "Empresa-B", com sede no Porto pedindo a sua condenação a pagar-lhe 52.722.732 liras italianas, acrescidas de juros, preço de venda de lâminas circulares.

A Ré contestou e deduziu pedido reconvencional de 87.471.530 liras, a converter em escudos ou euros, acrescidos de juros.

Na 1ª Vara Cível da Comarca do Porto a acção e reconvenção foram julgadas parcialmente procedentes e operada a compensação recíproca dos créditos da Autora e Ré, com remessa das partes para execução de sentença onde liquidariam o pedido reconvencional.

Apelou a Autora tendo a Relação do Porto dado parcial provimento ao recurso e determinado alterar a decisão recorrida quanto à liquidação em execução de sentença do crédito da Ré.

A Autora pede revista, assim concluindo as suas alegações:

- São absolutamente relevantes as declarações produzidas pela A. e constantes dos documentos de fls. 46 e 47 (com tradução de fls. 63 e 65).

- E tão relevantes foram para a Ré que esta, em visível embaraço, falseou - e o tribunal de 1ª instância nenhuma relevância daqui extraiu - os factos que bem sabia serem verdadeiros - vide artigos 42º e 43º da réplica e a actuação da Ré em 23º em tréplica e impugnação dos documentos (parte final da tréplica).

- Quando bem sabia que os tinha recebido, o que veio a provar-se em julgamento, constando mesmo tais documentos da sentença.

- Na comunicação de 23/7/98 a A., após insistências sem resultado, dá um prazo limite, de 27/7/98, para a resposta, acrescentando que sem o qual "seremos obrigados, o que lamentamos, a seguir as vias mais oportunas para a tutela dos nossos interesses".

- Ou seja, não havendo resposta, a A. considerava sem efeito o acordo estabelecido com a Ré, sendo que não houve a solicitada resposta.

- Um normal declaratário, colocado na posição da Ré, assim o entenderia.

- A Ré assim o entendeu.

- Pelo que a reconvenção não poderia proceder.

- Violou, pois, o douto Acórdão recorrido, por omissão, o disposto no artigo 236º do CCV.

- A Ré, falsamente, alegou que tinha sido acordado com a A. que a retoma dos stocks era pelo preço por que tinham sido facturados.

- Diz a sentença da 1ª instância: "Já não ficou provado, todavia, que se tenha obrigado a retomá-los pelo preço por que tinham sido facturados".

- Depois, inexplicavelmente e em grosseiro erro, o julgador tenta dar o dito por não dito e refere que "um declaratário normal, colocado na posição da Ré, era assim que entenderia a declaração da A. de que aceitava a retoma dos artigos em stock".

- Além de que haverá algum declaratário "normal" que ache que lâminas de 1982 (16 anos relativamente a 1998) tenham algum valor comercial, quando toda a gente sabe - incluindo o declaratário normal - que o processo de fabricação do aço foi melhorando, as técnicas de operação com materiais de aço foram muito melhoradas, e que lâminas com 16 anos servem para a sucata?

- Não tem o mínimo cabimento, e é ilegal, a tese da 1ª instância, erradamente confirmada pela Relação do Porto.

- Também é absurdo que o julgador se mostre preocupado por não se ver, nem resultar dos autos "qualquer outro critério para apurar o valor de retoma". Foi a Ré que deitou lenha para a sua própria fogueira. E as perícias sempre servem para alguma coisa.

- E, se necessário fosse, sempre restaria um critério, o do bom senso que, por exemplo, relegaria para a execução de sentença o apuramento do valor comercial das lâminas a retomar.

- Nesta sede, o Tribunal a quo violou, por erradíssima aplicação, o disposto no artigo 236 do CCV.

Contra alegou a recorrida em defesa do Acórdão em crise.

As instâncias deram por assentes os seguintes factos:

- A Autora dedica-se à produção e comercialização de serras e afins.

- Em Janeiro de 1997, no exercício da sua actividade, a Autora declarou vender à Ré, e esta declarou aceitar, 670 lâminas circulares, pelo preço de 43.351.650 liras italianas.

- Tais lâminas foram entregues pela A. à Ré.

- A 28 de Abril de 1981, A. e R. celebraram um acordo pelo qual esta passava a ser, para o mercado português, a representante exclusiva da A.

- Em consequência do acordo referido a R., de 1981 até 1998, promoveu em Portugal a venda dos artigos de produção da A.

- Por efeito do acordo a R. comprava á A os artigos de produção desta e, posteriormente, vendia-os no mercado português.

- As partes não fixaram quantidades mínimas de compras por parte da R. à A.

- Conforme acordado, a R. deveria pagar o preço até ao dia 31/05/97.

- A relação que A. e R. mantiveram pressupunha que esta, para bem distribuir os produtos daquela, tivesse em stock quantidades suficientes para evitar que os clientes, por cada solicitação, esperassem que os artigos fossem pedidos a Itália.

- Em Março de 1998 A. e R. acordaram em pôr de imediato termo ao acordo referido com a obrigação da A retomar todos os artigos que a R tinha em stock.

- A 2/10/98 a R enviou à A, via fax, uma lista de artigos que lhe haviam sido fornecidos por esta.

- E interrogou-a sobre o modo de expedição de tais artigos.

- A Autora não deu resposta ao fax.

- Em Março de 1998, a Ré declarou à Autora a sua vontade de fazer a compensação.

- Nos artigos referidos incluem-se as lâminas mencionadas.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Factualidade.
2- Liquidação.
3- Conclusões.

1- Factualidade.

A recorrente insurge-se, em primeira linha, contra o acervo de factos que a Relação deu por assente já que, na sua óptica, terá desvalorizado os documentos de fls. 46 e 47 (traduzidos a fls. 63 e 65).
Já antes - e em sede de apelação - se insurgira contra a matéria de facto.
E se aí o fez em sede própria, o mesmo não pode dizer-se quanto à revista.
É que o Supremo Tribunal de Justiça só conhece matéria de direito, por força do disposto no artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro).

A fixação dos factos materiais da causa, baseada na prova de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito do recurso de revista.
O tribunal de revista limita-se a aplicar o regime jurídico adequado aos factos fixados pelo juízo "a quo" (nº1 do artigo 729º do Código de Processo Civil).
As situações de excepção consistem no erro de apreciação das provas e na fixação dos factos pela Relação só ocorrendo violação expressa de norma que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou de norma que estabeleça a força probatória de certo meio de prova, tal como resulta dos artigos 722º nº2 e 729º nº2 da lei adjectiva.
Assim, o STJ só pode conhecer do juízo de prova da Relação quando tenha sido dado por assente um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tivessem sido violados os preceitos reguladores da força probatória de alguns meios de prova.
Dos autos, e da alegação da recorrente, não resulta tal patologia, pelo que terá de quedar-se intocada a matéria de facto que a Relação fixou.
Dir-se-á, contudo e "ex abundantia", que, ao conhecer da apelação, a Relação foi exaustiva e escrupulosa na reapreciação dos factos materiais assentes.
Assim, e de acordo com o nº2 do artigo 712º, voltou a analisar as provas que motivaram as respostas em crise, ponderando o conteúdo das alegações da recorrente e atendeu aos elementos que teriam contribuído para a formação da convicção do julgador "a quo".
Houve, pois, um verdadeiro segundo grau de jurisdição na apreciação da prova, com sistema de prova livre (artigo 655º nº1 CPC) com nova leitura, para formação de juízo conducente a infirmar certos pontos de facto julgados.
E não cabe, agora, nos poderes deste Supremo Tribunal censurar o uso pela Relação da faculdade de alterar, ou modificar as respostas aos quesitos, salvo se essa modificação tivesse sido feita ao arrepio de um preceito legal, "maxime" o nº1 do artigo 712º da lei processual, o que não foi o caso.
Improcede, assim, o primeiro segmento das alegações.

2- Liquidação.

As instâncias ponderaram correctamente o regime jurídico aplicável ao caso em apreço, procedendo a uma correcta subsunção.

Apenas nos cumpre esclarecer um ponto que, para a recorrente, não terá ficado inequívoco no Acórdão da Relação.
E tal reporta-se ao valor das lâminas a retomar, para efeitos de compensação.
Não resultando dos autos elementos permissivos de atribuir esse valor, será na fase da liquidação que tal irá ser apurado.
Nesta lide declarativa, é remetido para execução de sentença - nos termos do nº2 do artigo 661º do CPC - o "quantum", por ter sido entendido, e bem, não existirem elementos bastantes para o fixar.
A propósito da liquidação em fase executiva, embora reportada a indemnização, disse-se no Acórdão do STJ de 24 de Outubro de 2006 - 06 A1858 - deste relator: "Tal situação, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Junho de 1997 - Pº 846/96 1ª -, acontece "não como consequência de fracasso da prova na acção declarativa, mas sim como a consequência de ainda se não conhecerem, com exactidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda se não terem revelado ou estarem em evolução alguma ou todas as consequências do facto ilícito, no momento da propositura da acção declarativa."
Uma vez assente a existência de danos mas não se tendo apurado com precisão o seu montante, e antes de lançar mão da equidade, há que condenar no que se liquidar em execução de sentença.
Tem de estar provado o prejuízo, e apenas não determinado o "quantum debeatur", não se estando a facultar ao autor uma nova oportunidade para provar os danos, se o não logrou fazer na fase declarativa.
A fase executiva destina-se, por isso, a uma mera quantificação.
E no caso de não se terem provado danos na acção declarativa, há, nessa parte, caso julgado material, impedindo a reabertura da fase probatória na acção executiva (cf. v.g. Acórdãos do STJ de 19/4/01 - Acórdão STJ, 2ª, 33 - de 11 de Janeiro de 2005 - Pº 4007/04, 6ª e Prof. Vaz Serra, RLJ 114º-310).
Assim, na acção declarativa são determinados os limites dentro dos quais se irá fazer a quantificação dos danos não podendo, na execução, ultrapassar tais limites."
Isto significa, "in casu", que apurada a existência de material para retoma e tendo de proceder-se a uma compensação de créditos da Autora e da Ré, sendo um deles constituído pelo conjunto desses artigos, será na fase de liquidação que tal valor vai ser encontrado.
E assim, afinal, julgou a Relação ao dizer que da conferência do estado dos preços a entregar "é que há-de resultar com exactidão quais os preços que efectivamente a Ré tem para devolver sendo necessário ainda determinar por que valor foi cada uma delas facturada pela Autora."

Certo que, como acima se acenou, talvez a não univocidade da linguagem pudesse ter propiciado alguma confusão interpretativa na recorrente.
Mas assim sendo, e antes de interpor recurso, devia ter lançado mão do incidente de aclaração, ficando desde logo esclarecida de que o valor comercial das lâminas a retomar seria apurado na fase de liquidação (assim não podendo deixar de ser face à alteração da resposta ao quesito 8º).

3- Conclusões.

De concluir que:

a) A fixação dos factos baseados em meios de prova livremente apreciados pelo julgador está fora do âmbito do recurso de revista.
b) Só em casos excepcionais é que o Supremo Tribunal de Justiça conhece matéria de facto (artigos 26º da Lei 3/99 e 722º nº2 e 729º nº2 do Código de Processo Civil).
c) Assente a existência de valores a apurar, mas não se tendo determinado, com precisão, o seu montante, deve condenar-se no que se liquidar em execução de sentença, se tal liquidação se afigurar possível, designadamente por recurso a meios de prova na fase de liquidação.
d) Tal significa a oportunidade para provar os montantes que não se lograram demonstrar na fase declarativa mas, e apenas, com os limites do pedido que nunca podem ser ultrapassados.

Nos termos expostos, acordam negar a revista, com esclarecimentos à leitura do Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 29 de Novembro de 2006

Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho