Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B209
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
FACTO NOTÓRIO
ALIMENTOS
ALTERAÇÃO
INFLAÇÃO
Nº do Documento: SJ200702150002097
Data do Acordão: 02/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Sumário : 1. O Supremo Tribunal de Justiça não tem competência funcional para sindicar a situação económica do alimentando nem o seu nível de necessidades, porque se trata de matéria de facto da exclusiva competência das instâncias.
2. É facto notório que o credor de alimentos e o obrigado à sua prestação realizam despesas com a sua própria alimentação.
3. Na possibilidade de o obrigado prestar alimentos deve atender-se, além do mais, à idade, ao sexo, ao estado de saúde e à sua situação económica e social, em termos de a fixação não afectar a própria manutenção em quadro de dignidade humana.
4. O aumento das necessidades do alimentando e a diminuição das possibilidades do obrigado a alimentos são susceptíveis de decorrer do próprio aumento do custo de vida, por exemplo, o que decorre da diminuição do poder de compra em virtude da inflação.
5. Se os factos provados apenas revelarem, no que concerne ao circunstancialismo motivador da fixação da pensão de alimentos, a posterior depreciação do valor da moeda durante cerca de vinte anos, é esta que deve relevar na sua alteração, mas tendo em conta que a inflação afectou de igual modo o obrigado. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

"AA" intentou, no dia 9 de Novembro de 2004, através de patrono por ela escolhido no quadro do apoio judiciário, contra BB, acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação no acréscimo da pensão de alimentos por ele devida na sequência de divórcio, de € 25 para € 150, actualizável anualmente de harmonia com a inflação com o limite mínimo de cinco por cento, com fundamento no aumento do custo de vida.
Foi concedido à autora o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e de encargos com o processo e de pagamento de honorários a mandatário escolhido, por despacho proferido nos serviços da segurança social no dia 7 de Setembro de 2004.
O réu, na contestação, afirmou não carecer a autora do aumento da pensão de alimentos e ele não ter possibilidades de os prestar, e, em reconvenção, pediu a declaração da cessação da pensão de € 25 a que estava vinculado.
A autora, na resposta, manteve a sua versão de necessitar de alimentos e afirmou ser o pedido reconvencional inadmissível, mas este foi admitido na fase do saneamento da acção.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 2 de Março de 2006, por via da qual o réu foi condenado a pagar à autora a quantia mensal de € 75, actualizáveis em Janeiro de cada ano com base na inflação.
Apelaram o réu e a autora, e a Relação, por acórdão proferido no dia 21 de Setembro de 2006, julgou improcedente o recurso interposto pelo réu e parcialmente procedente o recurso interposto pela autora, fixando a mencionada pensão em € 100 actualizáveis.

Interpôs BB recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- vive a recorrida há vinte anos com a pensão alimentar inicialmente fixada, tem casa própria, são exíguas as suas despesas e não tem necessidade de pensão alimentar porque pode prover integralmente ao seu sustento;
- o recorrente e cônjuge vivem, em casa arrendada, da sua pensão de velhice, não pode suportar mais despesas, designadamente pagar a pensão fixada pelo tribunal;

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- o recorrente tem melhores condições económicas do que a recorrida;
- ter vivido durante vinte anos com a pensão inicialmente fixada não significa do necessitar do seu aumento para sobreviver;
- o recorrente invoca algumas despesas sem suporte em factos provados.
II
É a seguinte a factualidade declarada provada no tribunal recorrida:
1. Por sentença proferida em processo de divórcio com o nº 76/84, que correu termos na 1ª Secção do 2º Juízo do Tribunal de Braga, foi o réu condenado a pagar à autora, a título de alimentos, a quantia equivalente a € 25, que o primeiro tem vindo a pagar à última, sem qualquer actualização.
2. A autora recebe do Centro Nacional de Pensões a pensão mensal de reforma de € 208, e gasta mensalmente € 30 em medicamentos e € 30 em água e electricidade.
3. O réu aufere a reforma mensal de € 1 250, que é o seu único rendimento, paga renda de casa no montante global de € 298, 69, e, mensalmente, em média, gasta € 75 com a água, electricidade, telefone e gás, e € 147,61 em médicos e medicamentos.
4. O réu é doente do foro cardíaco e urológico e tem o cônjuge, que não trabalha.
5. A autora vive em casa dela e da mãe, não tem de pagar renda, e não tem alguém a seu cargo.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se deve alterar-se a pensão alimentar a que o recorrente estava vinculado perante a recorrida nos termos definidos no acórdão recorrido.
A resposta à referida questão, sem embargo de a solução a dar a uma prejudicar a solução da dar a outra outras das sub-questões enunciadas, pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pressupostos da alteração da prestação alimentar;
- necessita ou não a recorrida da alteração da prestação alimentar em causa?
- tem ou não o recorrente possibilidade de prestar alimentos à recorrida?
- quantificação da alteração da prestação alimentar devida pelo recorrente.
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise dos pressupostos legais da alteração da prestação alimentar.
O recorrente vem prestando à recorrida alimentos na sua qualidade jurídica de ex-cônjuge, nos termos do artigo 2009º, nº 1, alínea a), do Código Civil.
Expressa a lei que se depois de fixados os alimentos pelo tribunal as circunstâncias determinantes da sua fixação se modificarem, eles podem ser reduzidos ou aumentados, conforme os casos (artigo 2012º do Código Civil).
A referida modificação depende simplesmente da alteração das circunstâncias em que se baseou a decisão de fixação da pensão de alimentos, ou seja, a decisão anterior só releva para a verificação do circunstancialismo em que assentou.
Nesse quadro, aumentando as necessidades do alimentando ou diminuindo as possibilidades do alimentado, pode um ou outro requerer a alteração da pensão em causa.
O aumento das necessidades do alimentando é susceptível de decorrer do próprio aumento do custo de vida, por exemplo, o que decorre da diminuição do poder de compra em virtude da inflação.
Não se conhece o circunstancialismo em que assentou a fixação da pensão alimentar no montante mensal de 5 000$ devida pelo recorrente à recorrida, nem algum elemento de facto concreto específico revelador da sua alteração.
Não obstante, sabe-se, por um lado, terem decorrido mais de vinte anos sobre a mencionada fixação da pensão, e, por outro, que, nesse período de tempo, o valor da moeda, na sua relação com bens e serviços por ela susceptíveis de ser adquiridos, diminuiu consideravelmente.
E tanto basta, em princípio, para que se deva considerar alterado o circunstancialismo em que assentou a fixação da aludida pensão no montante actualmente correspondente a € 25.

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se a recorrida necessita efectivamente da alteração da pensão alimentar em causa.
O conceito de alimentos envolve, em regra, o que for indispensável ao sustento, habitação e vestuário (artigo 2003º, nº 1, do Código Civil).
A prestação de alimentos deve ser proporcionada aos meios daquele que tiver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de os receber (artigo 2004º, n.º 1, do Código Civil).
Este Tribunal não tem competência funcional para sindicar a situação económica da recorrida nem o seu nível de necessidades, porque se trata de matéria de facto, em regra da competência exclusiva das instâncias (artigos 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Resulta dos factos provados que a recorrida vive em casa dela e da mãe, não paga renda de casa, não tem alguém a seu cargo, recebe uma pensão de reforma no montante de € 208 e a pensão alimentar de € 25, e que gasta mensalmente € 60 em medicamentos, água e energia eléctrica.
Além disso, consideraram as instâncias, com fundamento na notoriedade geral, a que se reporta o artigo 514º, nº 1, do Código Civil, que a recorrida, além das referidas despesas, suporta as concernentes à própria alimentação e saúde.
A medida dos alimentos deve ser fixada tendo em conta, além do mais relativo a quem deva prestá-los, o nível razoavelmente exigido de satisfação das necessidades essenciais da pessoa carecida.
Como foi referido na sentença e no acórdão recorridos, não é fácil a definição de padrões económicos de vida em casos de baixos rendimentos, como é a situação da recorrida, e um dos elementos objectivos a ponderar, a par de outros, é o relativo ao montante pecuniário do salário mínimo nacional.
Perante o quadro de facto disponível, relativo ao rendimento da recorrida e ao seu quadro de despesas normais, a conclusão é no sentido de que ela necessita que o recorrente lhe continue a prestar alimentos lato sensu.

3.
Vejamos agora a sub-questão de saber se o recorrente tem ou não possibilidades de prestar alimentos à recorrida.
Nas possibilidades do obrigado de prestar alimentos deve atender-se, além do mais, à idade, ao sexo, ao estado de saúde, à sua situação económica e social, sem que a sua obrigação afecte a sua própria manutenção em quadro de dignidade humanamente exigível.
Mas só resulta dos factos provados, por um lado, padecer o recorrente, de doença cardíaca e urológica e ter a cargo o cônjuge, que não trabalha, e perceber o único rendimento derivado da pensão de reforma de € 1 250.
E, por outro, pagar renda de casa no montante global de € 298, 69, e, mensalmente, com a água, a energia eléctrica, o telefone, o gás, os médicos e os medicamentos, em média, a quantia de € 222,61.
Além disso, como é notório, também o recorrente tem de realizar despesas com a sua própria alimentação e a do seu cônjuge (artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O referido quadro económico revela que o recorrente, apesar do nível das despesas que realiza, tem possibilidades de continuar a prestar à recorrida uma pensão de alimentos.

4.
Atentemos agora na quantificação da alteração da prestação alimentar devida pelo recorrente.
Conforme acima se deixou expresso, os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los, atendendo-se a possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência (artigo 2004º do Código Civil).
Ignora-se a situação económica e a condição social do agregado familiar que o requerente e a recorrida constituíam antes de ocorrer a dissolução do casamento e a fixação.
O quadro dos encargos da recorrida é significativamente inferior ao quadro de encargos do recorrente, mas o rendimento deste é consideravelmente superior ao rendimento daquela.
Não está provado qualquer circunstancialismo concreto superveniente a fixação da pensão de alimentos cuja alteração se pretende, salvo a depreciação do valor da moeda decorrente do fenómeno da inflação entre a data da respectiva decisão e a da propositura da acção.
A variação do índice dos preços no consumidor sem as rendas do mercado de habitação, entre 1984 e 2004, inclusive, foi de 19.3, 11.7. 9.4, 9.6, 12.6, 13.4, 11.4, 8.9, 6.5, 5.2, 4.1, 3.1, 2.2, 2.7, 2.3, 2.8, 4.4, 3.7, 3.3 e 2.4
Tendo em conta a referida variação dos preços no consumidor, e considerando que também o recorrente foi por ela afectado, circunstância que não pode deixar de ser considerada, julga-se adequada a alteração da pensão em causa para o montante de € 50, actualizável nos termos fixados no acórdão recorrido.

5.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Os factos só revelam, no que concerne ao circunstancialismo que motivou a fixação da pensão em causa, que entre o tempo dessa decisão e o da instauração desta acção se desenvolveu o fenómeno da depreciação do valor da moeda no confronto com a aquisição de bens e serviços.
A recorrida tem necessidade de que o recorrente lhe continue a prestar alimentos, e o recorrente tem possibilidades para continuar a prestar-lhos.
O quadro dos factos provados apenas justifica a alteração da pensão de alimentos em causa por virtude da consideração do referido fenómeno inflacionário, mas tendo em conta que ele afectou de igual modo o recorrente.
Deve, por isso, o recorrente prestar à recorrida a prestação alimentar mensal de € 50, actualizável nos termos definidos pelas instâncias.

Improcede, por isso, parcialmente o recurso.
Vencidos, são o recorrente e a recorrida responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como a recorrida beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e de encargos com o processo, tendo em conta o disposto nos artigos 10º, nº 1, 13º, nºs 1 a 3 e 16º, nº 1, alínea a), da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenada no pagamento das referidas custas.
Considerando que a recorrida também beneficia do apoio judiciário na modalidade de pagamento de honorários ao respectivo patrono, tem este direito a percebê-los à conta do erário público (artigo 3º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).
Tendo em conta que a recorrida, através do advogado CC, apresentou o instrumento de resposta à alegação do recurso no dia 18 de Dezembro de 2006, isto é, antes da alteração do valor da unidade de conta, os honorários devidos àquele causídico estão legalmente fixados no montante de € 200,25 (nº 1.3.1. da Tabela aprovada pela Portaria nº 1386/2004, de 10 de Novembro).


IV
Pelo exposto, dá-se parcial provimento ao recurso, revoga-se parcialmente o acórdão recorrido, altera-se a prestação alimentar devida pelo recorrente à recorrida para o montante de cinquenta euros, condena-se o recorrente no pagamento das custas da acção e dos recursos na proporção do vencimento e fixam-se os honorários devidos ao advogado CC no montante de duzentos euros e vinte e cinco cêntimos.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís