Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
033728
Nº Convencional: JSTJ00004262
Relator: DANIEL FERREIRA
Descritores: CHEQUE
CHEQUE SEM PROVISÃO
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197312050337283
Data do Acordão: 12/05/1973
Votação: MAIORIA COM 2 VOT VENC
Referência de Publicação: DG IS 1974/01/02, PÁG. 2 - BMJ Nº 232 ANO 1974 PÁG. 31 - RT ANO 92 PÁG 34
Tribunal Recurso:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: D 13004 DE 1927/01/12 ARTIGO 21 ARTIGO 22 ARTIGO 23 ARTIGO 24.
LUCH ARTIGO 1 N5 ARTIGO 2 ARTIGO 13.
CP886 ARTIGO 217 ARTIGO 220 ARTIGO 450.
CCIV66 ARTIGO 892.
CPP29 ARTIGO 669.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP 1967/01/21 IN JR ANO13 PAG131.
ACÓRDÃO RC DE 1970/05/15 IN JR ANO16 PAG576.
Sumário :
Vale como cheque, para o efeito dos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o titulo a que falta a indicação do lugar onde e passado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo de Tribunal de Justiça:

Um dos excelentissimos adjuntos do Procurador da Republica junto do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 669 do Codigo de Processo Penal, interpos, oficiosa e extraordinariamente, recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, visando obter a fixação de jurisprudencia sobre o ponto de saber se, para efeito da verificação do crime de que tratam os artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o titulo sacado com a palavra cheque, inserta no proprio texto, tera necessariamente de conter a indicação do lugar onde o referido titulo foi passado ou, pelo menos, a indicação de qualquer lugar ao lado do nome do sacador.
O recorrente fundamenta deste modo o seu pedido:
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acordão de 23 de Junho de 1971, decidiu que: o conceito de cheque expresso nos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004 e o proprio do Direito Comercial que nos e dado pelos artigos 1 e 2 da Lei Uniforme sobre Cheques e, nos termos destas ultimas disposições, para que exista validamente o cheque, importa que este revista os requisitos enumerados no artigo 1 da referida Lei Uniforme e, entre eles, o do n. 5 "indicação do lugar onde o cheque e passado".
Assim, omitindo-se no titulo este requisito, ele não pode valer como cheque, não tem existencia juridica como tal e, por isso, quando não tenha cobertura ou provisão, não se verifica o crime previsto e punido nos termos dos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004.
Este acordão, fotocopiado a folhas 4 e seguintes destes autos, transitou em julgado.
Posteriormente, o mesmo Tribunal por acordão de 14 de Abril de 1972, veio a decidir: - "A exigencia do n. 5 in fine do artigo 1 da Lei Uniforme relativa ao cheque (indicação do lugar onde o cheque e passado), não constitui requisito essencial para a validade do titulo e, consequentemente, o cheque omisso quanto ao lugar onde foi emitido tem validade como tal, nomeadamente para o efeito de motivar procedimento criminal contra o emitente nos termos do artigo 23 do Decreto n. 13004.
Deste ultimo acordão, transcrito na certidão de folhas
11 e seguintes, não podia interpor-se recurso ordinario e, por isso, perante a oposição estabelecida entre os dois acordãos, proferidos no dominio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, era licita a interposição do presente recurso extraordinario sob a permissão da citada norma do artigo 669 do Codigo de Processo Penal.
No acordão de folhas 28 e seguintes, julgou-se existir a invocada oposição entre os julgados em questão e existirem, tambem, as demais condições exigidas para o prosseguimento do recurso.
O excelentissimo ajudante do Procurador-Geral da Republica junto da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça no seu douto parecer de folhas 35 e seguintes entende que o conflito de jurisprudencia deve ser solucionado no sentido de se fixar, por assento, que não tem validade como cheque, ainda que para o efeito dos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o titulo a que falta a indicação do lugar onde e passado ou qualquer designado ao lado do nome do sacador.
Cumpre decidir:
Em primeiro lugar e de reconhecer que se verifica todo o condicionalismo legal exigido pelo artigo 669 do Codigo de Processo Penal para a admissão do recurso, adoptando-se, neste particular, a decisão tomada pela Secção Criminal no acordão de folhas 28 e seguintes.
Pode, pois, passar-se a apreciação da questão para a qual se busca uma solução que ponha termo a oposição jurisprudencial atras referida.
O artigo 23 do Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, considera criminosa a emissão de um cheque que, apresentado a pagamento, no competente prazo... não for integralmente pago por falta de provisão e o artigo 24 do mesmo decreto dispõe que o sacador de um cheque, cujo pagamento por falta de provisão tiver sido verificado nos termos e no prazo prescritos nos artigos 21 e 22 do presente decreto, sera aplicado, a pedido do portador do cheque, a pena de seis meses a dois anos de prisão correccional.
Estas disposições destinam-se a tutelar penalmente no nosso direito (outros paises o fizeram igualmente) a bem conhecida função economico-juridica do cheque, titulo de credito destinado a uma intensa circulabilidade e estruturado, a partir de um deposito de cobertura, num pressuposto de confiança do tomador e extensivel ao publico em geral, de modo a todos deverem acreditar que tal titulo cambiario tem potenciabilidade para efectuar pagamentos e entrar em compensações varias com o efeito de, ate, contribuir para a redução da propria circulação fiduciaria.
Tais disposições, com o indicado escopo, começaram a vigorar antes da aplicação no nosso direito interno da Lei Uniforme relativa ao cheque.
Esta lei começou por regular a emissão a "forma" daquele titulo de credito (artigo 1) e, relativamente a forma, enumerou os requisitos que deve conter, prescrevendo, no seu n. 5, que um deles e a indicação do "lugar onde o cheque e passado".
Seguidamente o artigo 2 prescreve que o titulo a que faltar qualquer desses requisitos não produz efeito como cheque, salvos os casos determinados nas alineas seguintes, a ultima das quais admite que o cheque sem a indicação do lugar da sua emissão se considera passado no lugar designado ao lado do nome do sacador.
Deste modo e no estrito aspecto formal regulado pela Lei Uniforme, desde que o titulo não contenha a indicação de qualquer lugar que a face dessa lei possa ser havido como o da emissão, não produzira efeito como o cheque.
Com base nesta consideração e vendo-se aqui traçado, em direito comercial, o conceito normativo de cheque a impor-se, segundo as melhores regras de interpretação, em direito penal, podera concluir-se sem mais:- não havendo cheque não podera punir-se a falta de provisão que ele inculcaria ou faria pressupor.
E a posição do acordão da Relação de Lisboa, de
23 de Junho de 1971 que ja anteriormente fora tomada pelos acordãos da Relação do Porto, de 21 de Janeiro de 1967 e da Relação de Coimbra, de 15 de Maio de 1970 (conferir Acordãos das Relações, anos 13, pagina 131, e 16, pagina 576, respectivamente) e a qual aderiu o excelentissimo ajudante do Procurador-Geral da Republica no seu douto e ja referido parecer de folhas 55 e seguintes destes autos.
Todavia, a opinião oposta e aquela que devera prevalecer, por isso que possibilita manter a conduta que se julgou merecedora de punição dentro do ambito da lei punitiva sem desrespeitar os principios proprios do direito comercial reguladores do titulo de credito de que se trata.
Este harmonico entendimento da lei justifica-se, fundamentalmente, pelo seguinte:
1 - O cheque omisso quanto ao lugar onde foi passado, e um cheque incompleto quanto a indicação dos seus requisitos formais mas não deixa de constituir uma realidade acolhida pelo Direito e, designadamente, pelo artigo 13 da respectiva Lei Uniforme, relativamente ao qual o nosso pais não formulou qualquer reserva;
2 - Ora, segundo os principios gerais, um titulo de credito incompleto e valido posto que tenha de ser completado ate ao pagamento.
E ferido de ineficacia e a esta especialmente se refere o pressuposto do artigo 2 da Lei Uniforme.
Apesar de toda esta ineficacia, não lhe e retirada aptidão circulatoria;
3 - Como ja se deixou esboçado, o bem juridico tutelado quando a lei pune o crime de emissão de cheque sem cobertura e, essencialmente, a circulação do titulo e a confiança que a aparencia do mesmo nas funções economica e juridica que e chamado a desempenhar, devera inculcar;
4 - A lei penal, ao descrever acções diversas merecedoras de sanção, refere-se muitas vezes a diversos nomen juris de outros ramos de direito, sem exigir uma completa verificação dos respectivos conceitos normativos e a plena validade e eficacia dos respectivos negocios juridicos.
E um dos aspectos afirmativos da prclamada autonomia do direito penal.
Assim, por exemplo, o Codigo Penal refere-se no artigo
450 a uma segunda venda que pelo artigo 892 do Codigo Civil e considerada nula e toma como "letra de cambio" para efeito do crime de falsificação, um titulo assinado em branco que seja preenchido abusivamente, facto que, segundo o entendimento deste Tribunal, cai sob a alçada dos artigos 217 e 220 do referido Codigo Penal.
Este ultimo caso não deixa de ser aproximavel da hipotese em debate;
5 - Partindo de tal realidade, tem-se considerado em França que a emissão de cheque sem provisão tem lugar não so quando o cheque seja invalido por motivo de fundo, como por exemplo, no caso de incapacidade do sacador, como, ainda, quando o cheque seja formalmente irregular, desde que, como diz o Tribunal de Cassação, o titulo tenha a aparencia de um cheque e tenha sido entregue e aceite como tal (conferir Joseph Hamel, tomo II, Le Cheque, por M.
Vasseur et X. Marin - Sirey, 1969, pagina 79);
6 - E que a circulação do cheque faz-se sob a pressuposta admissibilidade de completa cobertura que e assegurada pelo sacador a partir do acto da emissão.
A possibilitação desta, mediante a assinatura daquele em tal qualidade, e a implicita possibilitação da correspondente cobertura, são actos dependentes da vontade daquele sacador e a falta desta cobertura consuma o delito que nos ocupa.
Logo, esta consumação verifica-se independentemente da apresentação do titulo a pagamento e tal apresentação e a recusa daquele pagamento são meras condições de possibilidade como geralmente se tem entendido.
Assim, quando o estabelecimento bancario recusa o pagamento do cheque, quer seja por falta ou por irregularidade de requisitos formais, quer seja por falta de provisão, o crime de que se trata consuma-se em momento anterior a verificação de qualquer razão invalidativa do titulo na tocante a aspectos de fundo ou de forma, relevantes em Direito Comercial;
7 - A admissão da doutrina do acordão de 23 de Junho de 1971, colocaria nas mãos do sacador meio facil para, na sequencia do seu plano fraudativo, maxime tratando-se de requisitos pouco aperceptiveis e de menor repercussão, como e o usado nos autos, eliminar, por acto seu, a sanção penal que sobre ele impendia, deixando, como reservada ma fe, de mencionar esse requisito (conferir Cabrillac, Le Cheque et le Virement, pagina 59; Dr. J. C. Moitinho de Almeida, Scientia Iuridica, XVIII, pagina 142);

8 - E não se diga que, sendo permitido no nosso direito a figura juridica do cheque em branco, o tomador poderia completar a parte omissa, significando a sua abstenção em completar tal parte, a renuncia ao exercicio de procedimento criminal. O que esta em causa e a conduta relativa ao sacador que não assegura provisão, seja o cheque completo ou incompleto, pois todos estão aptos a entrar em circulação e e esta que se procura proteger nos termos ja afirmados.
Por tudo o que fica exposto acordam os juizes do Supremo Tribunal de Justiça reunido em Tribunal Pleno, em decidir o conflito de jurisprudencia objecto do presente recurso com a formulação do seguinte assento:
Vale como cheque, para o efeito dos artigos 23 e 24 do Decreto-Lei n 13004, de 12 de Janeiro de 1927, o titulo a que falta a indicação do lugar onde e passado.

Lisboa, 5 de Dezembro de 1973

Daniel Ferreira (Relator) - Ludovico da Costa - Oliveira Carvalho - Adriano Vera Jardim - Eduardo Correia Guedes - Adriano de Campos de Carvalho - Manuel Jose Fernandes Costa - João Moura - Falcão Garcia - Eduardo Arala Chaves
- Bruto da Costa - Manuel Arelo Ferreira Manso - Alfredo Azevedo Soares - Jose Antonio Fernandes (Vencido. Desde que a lei comercial exige como requisito da validade do cheque a indicação do lugar onde e passado ou qualquer designado ao lado do nome do sacador, não pode haver - na sua falta - o crime previsto pelos artigos 23 e 24 do Decreto n. 13004, de 12 de Janeiro de 1927, que pressupõe aquele requisito.
O artigo 18 do Codigo Penal proibe a interpretação extensiva das normas incriminadoras). - Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (Vencido por identicas razões).