Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6149/20.6T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECLAMAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Não se verifica a invocada nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC).
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça



1. Notificadas do acórdão proferido nos autos em 5 de Maio de 2022, vieram as Recorrentes arguir a nulidade do mesmo com o seguinte fundamento:

«Nos termos do disposto das alíneas c) do n.º 1 do Artigo 615.º do C.P.C. invocar a nulidade do Aresto, o que faz nos termos e pelos fundamentos seguintes:

1) Nos termos do preceito sobredito, padece de nulidade a Decisão cujos fundamentos estejam em oposição coma decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

2) Tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência  que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, a fundamenta ção da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocio, apontando para deter minada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a o posição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se”.

3) De resto, tem sido esse o entendimento sereno desse Colendo Supremo Tribunal.

4) Veja-se a propósito e entre outros o Acórdão de 09.02.2017, onde se pode ler que: “Ocorre a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC quando os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, não se verificando quando a solução jurídica decorreu de interpretação dos factos, diversa da pretendida pelo arguente.”

5) Pelo que, sem se questionar neste momento processual o acerto do julgamento, a que bem se sabe já não há lugar, o que importa é aquilatar que o Aresto em mérito padece de um vício formal do silogismo atinente à harmonia formal entre premissas e conclusão.

6) Revertendo ao caso dos autos: a questão submetida a apreciação tinha a ver no essencial com o pressuposto processual da legitimidade processual ativa, já que a sua existência é pressuposto para que o Tribunal se debruce sobre o mérito da questão a decidir.

7) Assim, temos que a legitimidade não é confundível com o mérito da questão submetida a julgamento (é um prius em relação à respetiva apreciação).

8) No caso vertente, as AA. sustentam a existência de uma lacuna e pugnam pela respetiva integração, através da aplicação analógica dos artigos 1905.º, n.º 2 do CC e do 1989.º, n.º 2 do CPC.

9) Isto com vista a permitir que terceiro, que não os destinatários dos alimentos, fiquem em posição de legitimante demandar os demais co-obrigados a alimentos (evitando um enriquecimento na esfera patrimonial de uns à custa do empobrecimento patrimonial de outros).

10) Começa esse Colendo Tribunal por citar o insigne Mestre Batista Machado que nos dá a definição de lacuna por apelo àquilo que será uma incompletude do sistema (uma falha, uma falta) – vide pág. 23 do Douto Acórdão.

11) Sendo exato e acertada a asserção que esse Colendo Tribunal efetua quando refere que um caso omisso só é verdadeiramente uma lacuna se este caso omisso deva ser juridicamente regulado e para concluir-se nesse sentido há que perscrutar os indícios normativos em que se ancora a reclamação dessa consideração do direito – Cf. Página 24 do Douto Aresto.

12) Mais esclarecendo o Colendo Tribunal que no caso em análise o silêncio do legislador foi eloquente (intencional) atenta a natureza intuito personae do direito a alimentos, já que “via de regra” (citação ipsis verbis) o direito a alimentos está sujeito à vontade do alimentando - cf. Pág. 25 do Acórdão.

13) E foram essas as razões matriciais, no entender desse Colendo Supremo Tribunal, que levaram o legislador pátrio a não estender a legitimidade ativa a terceiro que não o alimentando, in casu as descendentes: quer pela natureza pessoalíssima desse direito, quer por respeito pela autonomia dos alimentandos.

14) Pois bem, estamos em crer que estes são precisamente os argumentos que imporiam que esse Colendo Tribunal decidisse pela existência de uma lacuna na lei e pela necessidade da sua integração.

15) Basta ver que no caso dos descendentes este é também um direito pessoalíssimo e há a mesma autonomia a respeitar.

16) E esse Colendo Tribunal até é particularmente feliz ao fundamentar de molde que se tivesse de concluir pela necessidade de integração da lacuna, quando afirma que à data do Código Civil (1966) o legislador terá atentado naquela que era a regra.

17) Hoje em dia como bem aquilatou a Formação (6.ª Secção) no seu Douto Acórdão de Fls._ a admitir a presente revista excecional a regra já não é a dos pais auxiliarem os filhos.

18) Com efeito e muito acertadamente ali se lê sem tibiezas que a questão faz “… convocar interesses materiais e morais num país em que a maioria da população é idosa, solitária e com pensões de reforma, na sua grande maioria, bastante baixas, sujeitas assim à proteção da família e das instituições” (vide página 13 do Douto Acórdão que vimos de citar).

19) Mais: prossegue esse Colendo Supremo Tribunal dizendo que o que justificou a intervenção legislativa cirúrgica, no caso dos menores, foi a constatação de que tal inércia do menor, em face de um dos ascendentes, era penalizadora para o progenitor que cumpria a sua obrigação alimentícia (como resulta da página 25 do Acórdão).

20) Ora e entre o mais, esse Colendo Tribunal também não deixa de reconhecer de forma expressa que as filhas da alimentanda que estão a cumprir a sua obrigação alimentícia, diga-se, de forma voluntária, estão a sofrer na sua esfera patrimonial esse mesmo prejuízo (igual penalização àquela que sofre o progenitor convivente) – vide página 26 do Acórdão;

21) Mais flagrantemente: o Douto Aresto acaba por reconhecer que a questão em apreciação poderia originar a responsabilidade civil do Estado português, em sede própria, por omissão legislativa, vide página 26 do Acórdão;

22) Para, depois, com todo o respeito, mas de forma incompreensível, contraditoriamente decidir pela improcedência do recurso, por julgar pela inexistência de lacuna em sentido próprio.

23) Assim e concluindo, quer porque o Colendo Supremo Tribunal de Justiça é quem adita, efetivamente, todos os argumentos que relevam para que se alcance a existência de uma lacuna que importa integrar [numa questão que ultrapassa os meros interesses das partes e tem reflexos em toda a sociedade (porventura na maioria dessa sociedade)], quer porque é ostensiva, com todo o máximo respeito devido, a existência de manifesta contradição entre fundamentação e decisão (ou seja o raciocínio lógico – cuja clareza se aplaude – expendido por esse Colendo Tribunal, imporiam diversa conclusão) e, finalmente, mas não menos importante, porque sempre haveria que respeitar o comando ínsito no artigo 8.º, n.º 1 do CC de acordo com o qual o tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio, o Douto Acórdão encontra-se fatalmente atingido pelo vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, o qual aqui expressamente se argui.

24) Nulidade que deverá ser sanada, o que se requer, a final, concluindo-se pela existência de uma lacuna em sentido próprio que deverá ser integrada nos termos já aventados em sede de alegações de recurso, para onde expressamente se remete.».

Pugnam as Recorridas pela não verificação da invocada nulidade do acórdão.

Cumpre apreciar e decidir.


2. Invocam as Recorrentes padecer o acórdão de nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão (art. 615.º, n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Civil), alegando essencialmente que, em sede de fundamentação, o acórdão reconhece a existência de uma lacuna normativa para a final, decidir pelo não preenchimento da mesma.

Vejamos se assim é, retomando a fundamentação do acórdão, na parte relevante:

«Defendem as AA. que se verifica uma lacuna de regime jurídico, a integrar através da aplicação analógica do disposto nos arts. 1905.º, n.º 2, do Código Civil e 989.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o que permitiria a demanda dos obrigados à prestação de alimentos por parte de terceiro, in casu, pelas AA..

Na lição de Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 194):

 «A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou uma falha. (…) uma incompletude relativamente a algo que propende para a completude. Diz-se, pois, que uma lacuna é uma “incompletude contrária a um plano”. (…) // (...) Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global, - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica.».

Para se apurar se existe uma lacuna por integrar importa proceder à interpretação e conjugação das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto, sendo certo que, nas esclarecedoras palavras de Mário Bigotte Chorão («Integração de Lacunas», in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Volume 3, Verbo, pág. 594):

«Bem pode acontecer, com efeito, que certo caso não encontre cobertura normativa no sistema, sem que isso frustre as intenções ordenadoras deste. Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. Esses “silêncios eloquentes” da lei não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos competentes». Pode, assim, haver casos em que a inexistência de regulamentação (ou de regulamentação com um determinado conteúdo) corresponde a um plano do legislador e não da lei, a uma inexistência planeada, que não representa, enquanto tal, uma deficiência, mas apenas pode motivar críticas no plano da política legislativa.». [negrito nosso]

Assim, «não é suficiente concluir que o caso cabe dentro da descrição fundamental da ordem jurídica, sendo ainda necessário determinar se ele deve ser juridicamente regulado, tendo, pois, de se encontrar algum indício normativo que permita concluir que o sistema jurídico requer a consideração e solução daquele caso.» (Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, pág. 422).

Ora, como é comumente aceite:

«O direito a alimentos encontra-se ligado à pessoa do alimentando, tendo indiscutivelmente, em relação a si, um caráter intuitu personae. (…) (Maria João Vaz Tomé, in Código Civil Anotado, coord. Clara Sottomayor, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1071).

E, logo à frente, afirma a mesma autora:

«O alimentando está somente autorizado a não exercer o seu direito de peticionar os alimentos – na medida em que, por via de regra, a constituição da obrigação de alimentos está sujeita à vontade do alimentando. O respeito pela liberdade do alimentando remete para o livre arbítrio o exercício do direito a alimentos, que lhe é concedido também no seu próprio interesse».

Transpondo as considerações supra para o caso que nos ocupa, temos por evidente que o legislador optou por não estender a legitimidade activa para a propositura da acção de alimentos a terceiros, no caso de alimentos devidos a ascendente, atendendo à natureza pessoalíssima do direito a alimentos, ao respeito pela autonomia do ascendente, assim como, ao menos até certo ponto, à especificidade da relação entre pais e filhos, de acordo com a qual, em regra, são os pais que auxiliam os filhos e não o contrário.

Precisamente em razão do respeito pela autonomia dos ascendentes (autonomia que, no caso sub judice, é, aliás, expressamente reconhecida pelas Recorrentes ao afirmarem «estarmos perante pessoa idosa, cardíaca e de arreigados princípios éticos que não» quer «ver-se envolvida numa contenda judicial com as suas filhas») e da especificidade da relação entre pais e filhos, diversamente do alegado pelas Recorrentes, não se afigura possível transpor para a situação dos autos, o regime dos arts. 989.º, n.º 3, do Código de Processo Civil e 1905.º, n.º 2, do Código Civil.

Com efeito, o que justificou a alteração cirúrgica ao disposto nestas normas legais (realizada pela Lei n.º 122/2015, de 1 de Setembro) foi o entendimento de que «o temor fundado dos filhos de intentar esta ação» era, na grande maioria de casos, penalizador para o progenitor convivente que acabava por arcar com todas as despesas inerentes ao sustento dos filhos (cfr. Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos casos de Divórcio, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, nota 983 da pág. 497).

Considera-se, assim, que a ausência de expressa regulamentação da situação apresentada pelas Recorrentes não configura uma lacuna em sentido próprio, pelo que apenas poderá ser ultrapassada/resolvida em eventual e futura intervenção do legislador mediante a introdução de norma legal que permita a propositura de acção de alimentos por terceiro. Em razão do princípio da separação de poderes, estruturante do Estado de Direito, não pode o julgador criar normas onde não existe lacuna, enquanto falha de regulamentação, restando esperar que o legislador pondere as razões de ordem social descritas pelas Recorrentes em sede de alegações recursórias, vindo a intervir na ordem jurídica em conformidade com o que entender mais adequado.

No quadro legal em vigor – que não cabe ao julgador alterar, mas sim interpretar e aplicar –, na ausência de impulso processual por parte da alimentanda, a fixação de prestação de alimentos não pode ser exigida por terceiros, in casu, pelas filhas da alimentanda, ainda que estas possam vir a ser prejudicadas pela inércia da sua progenitora.

No plano constitucional, e diversamente do invocado pelas Recorrentes, a ausência de norma legal que atribua legitimidade a terceiros para requerer a fixação de alimentos para pessoa deles necessitada apenas poderia ser equacionada, na sede própria, com fundamento em eventual responsabilidade civil do Estado por omissão legislativa.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.» [negritos nossos]

Do teor da fundamentação supra transcrita resulta que o acórdão afirmou expressamente que «a ausência de expressa regulamentação da situação apresentada pelas Recorrentes não configura uma lacuna em sentido próprio», decidindo em conformidade.

Deste modo, conclui-se pela não verificação da alegada nulidade.


3. Pelo exposto, indefere-se o requerimento das Recorrentes.

Custas pelas Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


Lisboa, 23 de Junho de 2022


Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira