Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
135/12.7TBPBL-C.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: ATRIBUIÇÃO PROVISÓRIA DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
FIXAÇÃO DE COMPENSAÇÃO AO CÔNJUGE
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO / CASA DE MORADA DE FAMÍLIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS ESPECIAIS / DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE / REGIME PROVISÓRIO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1406.º, N.º1, 1793.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 370.º, N.º 2, 376.º, N.º 3, 931.º, N.º 7, 629.º, N.º 2, AL. D), 931.º, N.º 7, 988.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

-DE 10/06/2014, PROCESSO N.º 3835/11.5TJVNF-C.P1.

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18/11/2008, PROCESSO N.º 08A2620;
-DE 26/04/2012, PROCESSO N.º 33/08.9TMBRG.G1.S1;
-DE 17/01/2013, PROCESSO N.º 2324/07.7TBVCD.P1.S1.
TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

II. Na verdade, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do art.do nº7 do art. 931º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

III. Deste modo, dependendo constitutivamente esse direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge de uma ponderação judicial, casuística e equitativa, ele só existe se o juiz o tiver efectivamente atribuído na decisão oportunamente proferida sobre tal matéria, não podendo ser inovatoriamente reconhecido através da propositura de acção ulterior.

IV. O acordo dos cônjuges, judicialmente homologado, no qual se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele atribuído a um dos cônjuges, deve ser interpretado, à luz do princípio da impressão do destinatário, no sentido de que as partes não contemplam o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização do imóvel – não sendo admissível uma modificação substancial dos respectivos termos, ao pretender transformar-se a utilização incondicionada, efectivamente prevista no acordo, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontra o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA propôs acção contra o ex-cônjuge, BB, pedindo se fixasse, como compensação pela utilização exclusiva da casa de morada de família, decretada provisoriamente no processo de divórcio a favor do R., a quantia correspondente a metade do valor locativo do imóvel (€ 175), até à partilha e entrega dos bens adjudicados, a liquidar até ao dia 8 de cada mês, nos termos do artigo 1793.º do CC, acrescida de juros moratórios desde a citação e dos compulsórios em caso de incumprimento. Pediu ainda a condenação do réu no pagamento da quantia de € 3 250,00, correspondentes ao período decorrido desde a data da referida decisão provisória até à instauração da presente acção.

Alegou, em abono da sua pretensão, que ela e o réu foram casados e que o casamento foi dissolvido por divórcio, convolando-se da inicial pretensão litigiosa para o mútuo consentimento dos cônjuges; que no âmbito da acção de divórcio foi provisoriamente atribuído ao réu o direito de utilizar a casa de morada de família, incluindo o recheio, e que desde então tem sido o réu quem a tem utilizado exclusivamente; que a casa de morada de família é propriedade da autora; que deve ser fixado a favor do autor um valor mensal, correspondente a metade do valor locativo do imóvel, que a compense pelo facto de o réu utilizar exclusivamente o imóvel que foi a casa de morada de família.

O réu contestou, invocando a excepção de caso julgado e pugnando subsidiariamente pela improcedência da acção.

Após a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

Julgar parcialmente procedente a excepção de caso julgado, absolvendo o réu da instância na parte relativa ao pedido de condenação no pagamento de uma contrapartida monetária pelo uso da casa de morada de família durante a pendência da acção de divórcio;

Julgar verificada a renúncia da requerente a qualquer contrapartida monetária pela utilização da casa de morada de família até à partilha, absolvendo o réu do respectivo pedido.

2. Inconformada, apelou a A., tendo a Relação concedido provimento ao recurso e julgado a acção improcedente - começando por fixar o seguinte quadro factual relevante:

1. A requerente AA e o requerido BB casaram um com o outro no dia 7 de Novembro de 1983, sem convenção antenupcial.

2. Enquanto casados, requerente e requerido fixaram a sua residência comum numa moradia unipessoal situada na Travessa …, …, ..., Pombal.

3. Por sentença de 4 de Novembro de 2013, transitada em julgado, foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre a requerente e o requerido e, para além do mais, homologado o acordo entre ambos obtido relativamente à utilização da casa de morada de família, o qual foi formulado nos seguintes termos: “no que se refere à casa de morada de família acordam em atribuí-la ao cônjuge marido, conforme o que já foi incidentalmente decidido e até à partilha dos bens comuns”.

4. A referida casa encontra-se mobilada e equipada com electrodomésticos adequados ao seu normal funcionamento.

5. Desde a separação de facto do casal, é o requerido quem tem utilizado tal casa e seu recheio, de forma exclusiva.

6. Corre termos junto do competente Cartório Notarial inventário para partilha dos bens comuns de casal, no qual o requerido exerce as funções de cabeça-de-casal, tendo já prestado as legais declarações e apresentado a relação de bens, estando em curso uma reclamação contra esta relação.

7. Foi diagnosticado à requerente um carcinoma mamário invasivo, tendo sido sujeita a mastectomia radical e posterior tratamento de quimioterapia, prosseguindo agora com tratamento farmacológico, tudo o que a deixou e deixa fragilizada e tem sido factor de desgaste emocional. Aufere um subsídio de doença que ronda os € 320,00 (trezentos e vinte euros) mensais.

8. Desde a separação de facto do casal, a autora vive em casa dos pais, dormindo num divã instalado na sala de tal casa, por os dois quartos de que esta dispõe estarem ocupados por cada um dos seus progenitores, os quais, por questões de saúde, não podem partilhar quarto ou cama.

9. A casa referida em 2) situa-se perto do centro da localidade da ..., do Chamado Rossio, dispondo de três quartos, 1 casa de banho, cozinha e sala, e, ainda, de um logradouro; está equipada com água, luz e gás; é servida de uma porta de entrada no seu alçado frontal, que deita directamente para um pequeno jardim, o qual, por sua vez, confronta com a via pública; dispõe, ainda, de uma passagem lateral que possibilita o acesso, a pessoas e veículos, às traseiras da casa e logradouro referido.

10. O requerido padece de patologias como diabetes tipo 2, Glaucoma e depressão, estando a ser medicado para esse efeito.

11. Foi submetido a exame de incapacidade permanente para o trabalho, aguardando decisão do Instituto de Segurança Social.

12. O requerido desenvolve trabalhos ocasionais por conta de familiares e amigos, que o compensam com géneros ou com quantias monetárias, com as quais o mesmo procura fazer face às suas despesas domésticas e correntes.

13. A ora recorrente requereu, na acção de divórcio instaurada contra o réu, que a utilização da casa de morada de família lhe fosse atribuída provisoriamente a si.

14. Na contestação à acção, o réu pediu a atribuição provisória a si da casa de morada de família.

15. A ré contestou o pedido.

16. Por sentença proferida em 15 de Maio de 2013, foi atribuída provisoriamente ao réu a casa de morada de família.

17. Em 18 de Junho de 2013, a autora requereu, no processo de divórcio, o pagamento pelo requerido de uma compensação/renda não inferior a € 175,00 pela utilização provisória da casa de morada de família, com todo o recheio e demais móveis e electrodomésticos.

18. O requerimento foi indeferido por decisão proferida em 11 de Setembro de 2013, com o fundamento de que o pedido formulado pela requerente era “processualmente descabido”, sob pena de se cair numa intolerável eternização das discussões sobre o objecto das acções, aditar pedidos que podiam e não foram formulados no momento oportuno” que a pretensão da requerente não era mais do que uma alteração/ampliação do seu pedido reconvencional já depois de findo o julgamento dos autos” [nota: a Meritíssima juíza que proferiu a decisão laborou no pressuposto de que havia sido o requerido a requerer a condenação da requerente no pagamento de uma renda pelo gozo da casa de morada de família. Era manifesto o lapso].

19. A requerente não se conformou com tal decisão e interpôs recurso de apelação.

20. No tribunal da Relação, o relator proferiu decisão sumária na qual decidiu não admitir o recurso; subsidiariamente, isto é se assim se não entendesse, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão.


3. Passando, de seguida, a pronunciar-se sobre as questões que integravam o objecto da apelação – e após ter considerado inverificadas as excepções de caso julgado e de renúncia à compensação pelo uso provisório exclusivo da casa de morada, atribuído ao R., -considerou a Relação no acórdão recorrido:

Pelas razões a seguir expostas, entendemos que o cônjuge a quem foi atribuída a casa de habitação, quer ao abrigo da fixação do regime provisório, quer ao abrigo do acordo previsto na alínea d), do n.º 1 do artigo 1775.º do Código Civil, não está constituído na obrigação de pagar ao outro cônjuge qualquer compensação pela utilização exclusiva da casa de habitação.

Antes de enunciarmos tais razões, importa dizer que a questão não tem obtido uma resposta uniforme da jurisprudência.

No acórdão proferido em 18 de Novembro de 2008, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XVI, Tomo III/2008, páginas 131 a 139, embora a questão suscitada no recurso fosse a de saber se o cônjuge que ficou a habitar na casa de morada de família após a cessação da coabitação estava obrigado a pagar ao outro cônjuge uma compensação por tal habitação em virtude de o bem ser comum, o acórdão pronunciou-se também sobre a questão de saber se a utilização da casa de morada de família ao abrigo do regime provisório fixado no artigo 1407.º, n.º 7, do Código Civil conferia ao outro cônjuge o direito a obter uma compensação pecuniária. A reposta foi negativa, como o atesta o seguinte trecho de tal decisão: “…em regimes provisórios de utilização de casa comum, tem-se entendido não ser de fixar a obrigação de qualquer pagamento ao outro cônjuge, precisamente por se tratar da casa de morada de família, bem comum do casal”.  

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido, em 26-04-2012, no processo n.º 33/08.9TMBRG, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido, em 1 de Julho de 2013, no processo n.º 2557/10.9TBVFX, e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 3835/11.5TJVNF, todos publicados em www.dgsi.pt. já afirmaram que a atribuição provisória da utilização da casa de morada de família implicava a fixação de uma compensação ao cônjuge a quem não fora atribuída a casa.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça fundou no regime da compropriedade a obrigação de pagamento da compensação, afirmando a este propósito o seguinte: “crê-se ter cabimento que aquele que da sua “quota-parte” não usufrui, tenha também direito a um gozo indirecto, que consistirá em perceber, tal como se locação houvesse, compensação pelo valor do uso de tal “quota-parte”. E acrescenta: “Isto, no plano dos princípios, pois, não disciplinando a lei, de forma específica, como efectuar a atribuição provisória que in casu pela ré, ex-cônjuge mulher, foi requerida, nada impede que nos socorramos, pelo menos como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no citado art. 1793.º (está em causa um bem comum dos cônjuges e não um imóvel arrendado).

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto acima indicado, citando a decisão do STJ proferida no processo n.º 33/08.9TMBRG, fundamentou a atribuição da compensação no regime do artigo 1793.º do Código Civil, dizendo que, apesar da atribuição provisória da casa de morada de família não estar directamente regulada no n.º 1 do artigo 1793.º, ainda assim o regime prescrito nestes normativos era indirectamente aplicável.

Quanto ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa acima indicado, invocou o acórdão do STJ proferido n.º 33/08.9TMBRG, acrescentando: “Aliás, não faria qualquer sentido que sendo esse manifestamente o regime legal para a atribuição definitiva da casa de morada de família, no âmbito do processo regulado no art.º 1413.º do C. P. Civil, não houvesse lugar a qualquer compensação para o regime provisório, ao abrigo do incidente previsto no n.º 7, do art.º 1407.º, do mesmo código, sendo certo que essa provisoriedade pode até prolongar-se por longos períodos”.


Vejamos, de seguida, as razões pelas quais entendemos que o cônjuge a quem foi atribuída a casa de habitação, quer ao abrigo da fixação do regime provisório, quer ao abrigo do acordo previsto na alínea d), do n.º 1 do artigo 1775.º do Código Civil, não está constituído na obrigação de pagar ao outro cônjuge qualquer compensação pela utilização exclusiva da casa de habitação.

Em primeiro lugar, não há obrigações sem causa, sem uma fonte. E as obrigações ou têm a sua fonte na lei geral ou têm a sua fonte na lei das partes (contratos e negócios jurídicos unilaterais). Segue-se do exposto que a obrigação de compensação, se existisse, teria de resultar ou da vontade dos cônjuges ou da lei geral.

No caso, a vontade dos cônjuges, como fonte da obrigação de compensação, é de afastar, pois não há prova – não foi sequer alegado - que o réu se tenha obrigado a pagar à autora qualquer compensação pela utilização da casa que foi casa de morada de família.

A lei não contém qualquer norma a afirmar que o cônjuge que utiliza a casa de morada de família ao abrigo do regime provisório previsto no n.º 7 do artigo 931.º do CPC [correspondente ao n.º 7 do artigo 1407.º do CPC de 1961] ou abrigo do acordo sobre o destino da casa de morada de família previsto na alínea d), do n.º 1 do artigo 1775.º do Código Civil, está obrigado a pagar ao outro cônjuge uma compensação pela utilização exclusiva da casa de morada de família.

No nosso entender, a obrigação de pagamento da compensação também não resulta nem do regime do artigo 1793.º do Código Civil, nem do regime da compropriedade.

Vejamos o caso do artigo 1793.º do Código Civil.

Nos termos deste preceito, “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro cônjuge, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.

Este preceito vale apenas para os casos em que um dos cônjuges pede ao tribunal – e pode fazer este pedido tanto depois de ser decretado o divórcio como na pendência da acção de divórcio, como resulta do n.º 4 do artigo 991.º do CPC - que a casa de morada de família, quer essa seja comum ou própria do outro cônjuge, lhe seja dada de arrendamento.

Este pedido não é assimilável ao pedido que um dos cônjuges faça no sentido de ser fixado um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC.

O pedido tido em vista pelo n.º 1 do artigo 1793.º, embora possa ser feito, como se escreveu acima, na pendência da acção de divórcio, visa regular a utilização da casa de morada de família após o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges. E visa regular a utilização mediante uma relação de arrendamento. Ao invés, o pedido no sentido de se fixar um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família vale apenas para o período da pendência do processo e não envolve a constituição de qualquer relação contratual entre os cônjuges.

Assim, no nosso entender, do n.º 1 do artigo 1793.º não se retira o princípio de que, no caso de um dos cônjuges utilizar em exclusivo a casa de morada de família, quer ela seja comum ou própria do outro cônjuge, está obrigado a pagar uma compensação ao outro cônjuge. Por outras palavras, o regime previsto no n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil vale apenas para os casos nele previstos, ou seja, para a utilização da casa de morada de família a abrigo de um arrendamento; não vale nem para os casos em que a casa foi atribuída provisoriamente a um dos cônjuges, ao abrigo do n.º 7 do artigo 931.º do CPC, nem para os casos em que a casa é utilizada por um deles com o acordo do outro, obtido no âmbito do divórcio por mútuo consentimento.

Como se escreveu acima, a obrigação de pagamento de compensação também não resulta do regime da compropriedade.

A única norma do regime da compropriedade que releva para o caso é a do n.º 1 do artigo 1406.º do Código Civil, sobre o uso da coisa comum. Segundo o mencionado preceito, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contando que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destine e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.

Esta norma serviria de amparo à pretensão da recorrente se dela resultasse que o comproprietário que use licitamente e de modo exclusivo a coisa comum está obrigado a indemnizar os outros comproprietários. Sucede que não é este o princípio que resulta da norma. O princípio que dela resulta é que o comproprietário que use a coisa comum está obrigado a indemnizar os outros comproprietários desde que prive ilicitamente os outros consortes de utilizar tal coisa.

Sucede que, no caso, não está preenchida esta condição, ou seja, a privação ilícita do uso da casa de morada de família pelo outro cônjuge. Com efeito, a casa está a ser usada exclusivamente pelo réu, primeiro por tal uso lhe ter sido atribuído por decisão judicial e depois por tal uso lhe ter sido atribuído por acordo estabelecido entre ele e a ora autora. A utilização exclusiva da casa de morada de família pelo réu é, pois, lícita.

Se a utilização exclusiva da coisa comum - casa de morada de família - é lícita; se a indemnização pela prática de actos lícitos só é devida nos casos excepcionais previstos na lei; e se a lei não prevê que o consorte que use exclusivamente, mas licitamente, a coisa comum indemnize os outros consortes, a conclusão a retirar é a de que a obrigação de compensação reclamada pela recorrente não tem amparo no regime da compropriedade.

No caso, a obrigação de compensação também não tem apoio no princípio da proibição do enriquecimento sem causa enunciado no n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil. Na verdade, o enriquecimento do réu, consistente na utilização da casa de morada de família, tem como causa uma decisão judicial e um acordo entre os cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família.

Em síntese: não há fundamento legal para impor ao réu a obrigação de pagar à autora, ora recorrente, o pagamento de uma compensação pelo facto de aquele estar a utilizar de modo exclusivo o imóvel que constitui a casa de morada de família.


4 - Inconformada com esta decisão, interpôs a A. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso é admissível por a decisão proferida em Segunda Instancia ter revogado as exceções de caso julgado e, de renuncia ao direito da compensação pela utilização da casa morada de família e, subsequente absolvição da instancia do recorrido proferida pela Primeira Instancia. E,

2. Nos termos do nº2 do art.º 665º do CPC conheceu do mérito da causa julgando totalmente improcedente a ação e, subsequentemente os pedidos aduzidos de compensação económica pela utilização exclusiva da casa morada de família pelo recorrido após o divorcio ter sido decretado.

3. Tal decisão contradiz e, afronta diretamente, os doutos Acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal de Justiça, em 26-04-2012, no âmbito do processo na 33/08.9TMBRG; pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 01 de Julho de 2013, no processo ne2557/10.9TBVFX e, pelo Tribunal da Relação do Porto, em 10 de Junho de 2014, no âmbito do processo ns 3835/11.5 TJVNF, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

4. 0 entendimento recorrido pressupõe, não existir fonte de obrigação legal que, impunha o pagamento gualquer compensação económica pela utilização lícita do comproprietário do bem comum.

5. Ora, tal entendimento salvo devido respeito, viola os princípios decorrentes da cessação da comunhão de direitos advenientes do património comum do casal.

6. E, o regime da compropriedade nos presentes autos advém dessa cessação.

7. Pelo que, a utilização exclusiva por um dos cônjuges tem de ser analisada e ponderada além, da circunstancia de se tratar de matéria de jurisdição voluntária não estando o Tribunal vinculado ao principio da legalidade estrita impõe-se, a aplicação de um critério de equidade e ponderação da posição dos cônjuges,

8. E, nos presentes autos a Recorrente tem a sua situação pessoal, familiar e, de saúde agravar-se, diariamente.

9. Com esforço pessoal, financeiro e, económico acrescido.

10. Por não utilizar a casa morada de família.

11. Em contrapartida o Recorrido tem usufruído de forma exclusiva e, plena das suscetibilidades do imóvel e respetivo recheio.

12. Atendendo à localização, tipologia, estado de conservação e, respetivas caraterísticas bem como do recheio do imóvel ê equitativo, justo e proporcional a fixação de uma compensação económica não inferior aos 175,00 euros peticionados pela Recorrente.

13. 0 Acórdão recorrido e objeto do presente recurso não teve em consideração os princípios basilares do direito aplicável e, as normas legais vigentes nos artigos 1403º; 1404°; 1406º: 1793º; do Código Civil e, artigos 931º nº 7 e 990º do Código de Processo Civil no que, confere à cessação do direito de propriedade, em comunhão, enquanto casa! e, ao regime subsequente da compropriedade e, respetiva atribuição da casa morada de família após o divorcio em exclusivo a um dos cônjuges,

14. A questão em casa e, ora suscitada impõe uma apreciação pela sai relevância jurídica, seja claramente necessária alteração da decisão e, para uma boa aplicação do direito.

Termos em que,

Deve, o presente recurso merecer provimento e, em consequência a decisão proferida em Segunda Instancia ser revogada condenando-se, o Recorrido no pagamento de compensação económica pela utilização exclusiva da casa morada de família no valor mensal de cento e setenta e cinco euros, ou aquele que, vier a ser fixado,


O recorrido contra alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido, com a consequente improcedência da presente acção.


5. O objecto da presente revista circunscreve-se, deste modo, à questão admissibilidade/possibilidade da fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge, privado da utilização do imóvel onde se situava a casa de morada da família, por força da decisão judicial que, no âmbito do divórcio, a atribuiu provisoriamente ao outro cônjuge, com base numa valoração prudencial e equitativa das necessidades dos membros do casal em vias de divórcio.

Tendo esta decisão acerca da atribuição da casa de morada de família natureza provisória e cautelar – e fundando-se a mesma em juízos equitativos, de conveniência e oportunidade, próprios dos processos de jurisdição voluntária, - importa verificar liminarmente da admissibilidade da revista – desde logo, se a tal decisão provisória e com funções cautelares não será aplicável a limitação no acesso ao STJ que vigora em sede de procedimentos cautelares, por força do art. 370º, nº 2, do CPC: na verdade, numa interpretação funcionalmente adequada dessa norma restritiva e das razões que lhe estão subjacentes, não se vê razão para não aplicar tal restrição no acesso ao Supremo a decisões contendo medidas tipicamente provisórias e cautelares, embora tomadas em procedimento especial, de cariz incidental – e não directamente num típico e normal procedimento cautelar, regido pelas disposições da parte geral do CPC.

Invoca, porém, a A. /recorrente, como específico fundamento da recorribilidade, a existência de um conflito jurisprudencial, quer ao nível das Relações, quer com acórdão que cita, proveniente do STJ, em que se teria efectivamente admitido, ao contrário do que sucedeu no acórdão recorrido, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge que, por virtude da referida decisão provisória, ficou privado da utilização do imóvel onde se situava a casa de morada da família dos cônjuges desavindos; e, efectivamente, como adiante se verá, essa contradição jurisprudencial existe realmente, notando-se uma clara linha de fractura entre a tese sustentada no acórdão recorrido, ao considerar que não há fundamento legal para impor ao R. a obrigação da pagar à A. uma quantia a título de compensação pela utilização exclusiva do imóvel que constitui casa de morada de família, atribuído provisoriamente àquele e outros acórdãos das Relações, nomeadamente o citado pela recorrente (Ac. Rel. Porto de 10/6/14 P. 3835/11.5TJVNF-C.P1), em que se entendeu que:

I - O regime provisório de utilização da casa de morada de família previsto no nº 7 do art.º 1407.º do CPC distingue-se, no plano processual, do incidente de atribuição da casa de morada de família, regulado no art.º 1413.º do mesmo diploma, porque este último visa a definição duradoura do regime de ocupação da morada do casal, a vigorar subsequentemente à decisão final de divórcio, ao passo que o regime provisório se destina apenas a acautelar a protecção da habitação de um dos cônjuges durante o processo de divórcio.

II - Tal regime provisório tem natureza cautelar, nele podendo ser atribuído, durante o processo de divórcio, ao cônjuge requerente privado do direito de utilização da casa de morada de família, metade do valor mensal locativo do referido imóvel do casal, habitado exclusivamente pelo cônjuge requerido.

III - A prestação em causa no incidente do regime provisório referido traduz-se numa compensação devida ao cônjuge que não habita a casa de morada de família, como contrapartida do uso e fruição exclusiva por parte do outro cônjuge, exercidos provisoriamente sobre o referido bem comum, sendo devida desde que se iniciou tal uso e fruição por um dos cônjuges de forma exclusiva e enquanto a mesma se mantiver, até à partilha dos bens comuns.)

Ora, mesmo que se entenda aplicável a medidas de natureza provisória e cautelar, incidentalmente decretadas em procedimentos especiais e incidentais, a norma do art. 370º, nº2, do CPC, tem de se considerar verificado um específico fundamento da recorribilidade para o STJ, conexionado no caso com a norma constante do art. 629º, nº2, al. d), do CPC – impondo-se, pois, dirimir esse conflito jurisprudencial, suscitado em matéria que, por razões estruturais, não seria normalmente susceptível de chegar ao STJ, em normal revista.

Importa, por outro lado, realçar que a única questão a dirimir nesta revista tem natureza necessariamente normativa, destacando-se claramente do juízo de conveniência e oportunidade que subjaz à decisão, prudencial e equitativa, que optou por atribuir o imóvel provisoriamente a um dos cônjuges e a estabelecer -ou não- uma contrapartida pecuniária a favor do outro cônjuge, privado do uso desse bem, com base na valoração casuística da situação pessoal e patrimonial dos interessados: como é evidente, esse juízo prudencial e casuístico, enquanto baseado em critérios de oportunidade e conveniência, típicos da jurisdição voluntária, nunca seria sindicável, nos termos do nº2 do art.988º do CPC, no âmbito de um recurso necessariamente circunscrito à dirimição de questões de direito.

O que cumpre decidir na presente revista é, pois, a questão da interpretação normativa, situada no plano geral e abstracto, do regime contido no nº 7 do art. 931º do CPC: ao prever-se a possibilidade de o juiz, no âmbito do divórcio, fixar, oficiosamente ou a requerimento do interessado, um regime provisório quanto à utilização da casa de morada de família a lei admite ou impõe que tal composição provisória de interesses conflituantes envolva a fixação de uma contrapartida pecuniária ao outro cônjuge, necessariamente privado do uso do bem enquanto durar o processo? Tal norma pressupõe uma atribuição provisória, necessariamente a título gratuito, da casa de morada da família a um dos cônjuges, tido por mais necessitado? ou pelo contrário, consente também numa atribuição do imóvel a título oneroso, envolvendo o pagamento de uma contraprestação ao outro cônjuge, em termos análogos aos que estão previstos a propósito da atribuição definitiva da casa de morada, face ao disposto no art. 1793º do CC, moldada fundamentalmente pelo regime do arrendamento?


6. Saliente-se que, no caso dos autos, em momento ulterior àquele em que o juiz fixara o regime de atribuição provisória ao R., foi decretado o divórcio por mútuo consentimento dos cônjuges e homologado o acordo obtido entre ambos, no que toca, nomeadamente, à utilização da casa de morada de família, acordando os interessados em atribuí-la ao cônjuge marido, conforme o que já fora incidentalmente decidido no início do processo, e até partilha dos bens comuns.

Ou seja: aqui, a utilização actual da casa pelo R. estriba-se, não apenas na inicial decisão provisória do juiz, mas no conteúdo de um acordo celebrado pelos ex cônjuges, que possibilitou, aliás, o imediato decretamento do divórcio por mútuo consentimento.

Sustenta, por isso, a recorrente que o decretamento do divórcio teria implicado a cessação dos efeitos da atribuição provisória da casa de morada, judicialmente decretada no início do processo; não é, porém, assim: como se decidiu no Ac. de 17/1/13, proferido pelo STJ no P. 2324/07.7TBVCD.P1.S1:

1. O acordo provisório estabelecido no âmbito de acção divórcio litigioso quanto à utilização da casa de morada de família não perde automaticamente a sua eficácia com o trânsito em julgado da sentença.

2. Em tais circunstâncias, o cônjuge interessado tem a possibilidade de obter uma resolução definitiva do conflito acerca da atribuição da casa de morada de família, nos termos do art. 1793º do CC, através do processo especial previsto no art. 1413º do CPC.

3. A persistência da situação não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, uma vez que a situação encontra justificação na sua própria inércia relativamente ao accionamento do mecanismo processual previsto no art. 1413º do CPC

Deste modo, a circunstância de já ter sido definitivamente decretado o divórcio não faz caducar automaticamente os efeitos da referida decisão provisória, aliás expressamente reiterados no acordo celebrado pelos cônjuges, protraindo a vigência de tal regime até ao momento da partilha dos bens do casal.

Aliás, o modo como está construída a presente acção não aponta minimamente para a existência de uma simples pretensão de reponderação da justificabilidade e dos termos em que havia sido feita a atribuição provisória, à luz de factos supervenientes, - desde logo, a consumação do divórcio: é patente que o que a A. pretende obter é a fixação retroactiva de uma compensação por tal atribuição provisória do bem ao R., reportada ao momento (15/5/13) em que foi proferida a originária decisão, invocando-se na petição a dívida actual de €3.325,00, correspondente aos 19 meses de ocupação exclusiva já verificados…


Invocam, desde logo, as partes a existência de contradição jurisprudencial entre as orientações constantes de dois acórdãos proferidos pelo STJ, em 26/4/14 e em 18/11/08, já que no primeiro ter-se-ia admitido a fixação de uma compensação ao cônjuge, privado do imóvel atribuído provisoriamente ao outro cônjuge, ao passo que, no segundo aresto, se teria concluído antes pela injustificabilidade de tal compensação pecuniária.

Não parece, porém, que tal contradição se verifique efectivamente.

No acórdão de 2012, proferido no P. 33/08.9TMBRG.G1.S1 , entendeu-se que:

1. São questões diferentes, a relativa à atribuição provisória da casa de morada de família durante o período da pendência do processo de divórcio (art. 1407.º, nºs 2 e 7 do CPC) e a de constituição de arrendamento da casa de morada de família, regulada, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do CC, e prevista, como efeito do divórcio, nos arts 1793.º e 1105.º do CC.

2. Tendo cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688.º do CC), face ao trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio, até à partilha, mantém-se a chamada comunhão de mão comum ou propriedade colectiva, com aplicação à mesma das regras da compropriedade (art. 1404.º do CPC).

3. No plano dos princípios, não disciplinando a lei, de forma específica, como efectuar a atribuição provisória da casa de morada de família (bem comum dos ex-cônjuges) na pendência do divórcio – in casu, até à adjudicação dos bens aos ex-cônjuges – nada impede, tudo aconselhando, ao invés, que nos socorramos, como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no citado art. 1793.º e dos índices de referência aí contidos;

4. Não havendo, de qualquer modo, que fixar a compensação devida ao ex-cônjuge privado da casa de morada de família a favor do outro pelos valores de mercado, desconsiderando a situação económica daquele que da casa mais necessitar


No acórdão de 2008, proferido no P 08A2620., decidiu-se que:

Tendo o aqui Autor saído da casa de morada de família e aí permanecendo sua mulher, aqui Ré, não mais sendo reatada a vida em comum, não tem aquele (que nem sequer alega se ter oposto a tal situação) direito a ser compensado por aquela em termos do valor locativo do prédio.


Em primeiro lugar, o acórdão proferido em 2012 não estabeleceu que a atribuição provisória da casa de morada implique, sempre e necessariamente, a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, limitando-se a sindicar a decisão das instâncias que, a pedido do interessado, oportunamente deduzido, a havia decretado, por entender que, nas circunstâncias concretas do caso, o intérprete se poderia socorrer, pelo menos como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no art. 1793º, acentuando a prevalência nesta sede da equidade sobre estritos juízos de legalidade.

Por outro lado – e ao contrário do que invocam as partes – o acórdão proferido em 2008 não estabeleceu que, em nenhuma circunstância, pode ter lugar  a fixação da dita compensação ao cônjuge privado da utilização do bem que constituía a casa de morada: o que ali se decidiu foi, bem vistas as coisas, que, nas circunstâncias peculiares da matéria litigiosa, a atribuição de tal compensação ao cônjuge que havia abandonado livremente a residência comum não se justificava materialmente – mas naturalmente sem excluir que, noutros casos, tal compensação pudesse ter lugar; como expressamente se afirma na parte final daquele aresto:

Por último, teremos de reconhecer que poderão surgir situações sensivelmente idênticas em que a solução a dar não coincida com aquela que aqui perfilhamos. Suponhamos esta hipótese: Com a separação de um casal, um dos cônjuges mantém-se a habitar a casa de morada de família, bem comum do casal, enquanto que o outro cônjuge se vê na necessidade de ir ocupar uma outra casa, adquirida por empréstimo bancário ou tomada de arrendamento. Este segundo cônjuge passa a ter de suportar um novo encargo, traduzido no pagamento de uma prestação mensal para juros e amortização do empréstimo ou para pagamento de uma renda. Ocupando o primeiro cônjuge uma habitação sem qualquer pagamento e tendo o segundo de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa que teve necessidade de arranjar, não nos repugna admitir que, aquando da partilha dos bens comuns do casal, possa haver um acerto de contas, nomeadamente, através da reclamação de um crédito por parte do segundo cônjuge, sobre o acervo patrimonial a partilhar, não sobre o outro cônjuge. Só que esta situação não é a dos presentes autos, pelo que continuamos a entender que aqui a solução correcta é a que perfilhamos.


As decisões proferidas assentaram, pois, decisivamente numa ponderação de especificidades, tidas por relevantes, dos casos sub juditio num e noutro processo, não podendo, deste modo, afirmar-se a existência de uma real contradição jurisprudencial acerca da possibilidade de compensação do cônjuge privado do uso da casa de morada, a qual pressupõe e passa sempre por uma análise e ponderação adequadas dos interesses contrapostos, em termos de critérios práticos de justiça e equidade.


7. Como atrás se referiu, a jurisprudência das Relações tem oscilado, quanto a esta questão, entre duas visões, rígidas e extremadas, entendendo uma das orientações, plasmada, por exemplo, no acórdão recorrido, que (independentemente de qualquer valoração ou ponderação concreta da situação dos cônjuges dissidentes) a fixação de tal compensação é legalmente inadmissível, ao passo que a outra corrente jurisprudencial considera que tal atribuição compensatória deverá ter necessariamente lugar, como forma de obviar a um inadmissível enriquecimento do cônjuge a quem o imóvel foi provisoriamente atribuído à custa do outro interessado.

Considera-se que nenhuma destas posições extremadas, assentes fundamentalmente numa análise conceitual do regime jurídico em causa, é adequada às exigências de ponderação equitativa das circunstâncias do caso concreto, especialmente prementes no campo da definição provisória das relações entre os cônjuges, na pendência do processo de divórcio: na verdade, a formulação legal – ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo - é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial e casuística das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso; no primeiro caso, o julgador entenderá que, perante o resultado de tal ponderação casuística, a vantagem auferida pelo cônjuge beneficiário com o uso exclusivo do imóvel não justifica a atribuição de uma contrapartida patrimonial ao outro cônjuge, privado temporariamente do uso do bem; na segunda situação, pode o juiz temperar tal atribuição exclusiva com a imposição da obrigação do pagamento ao outro cônjuge de uma contrapartida económica, fundada em razões de equidade e justiça, aproximando-se, neste caso, ao menos por analogia, do regime de arrendamento que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

Note-se que a resposta à questão que nos ocupa não pode fluir directamente de uma simples análise do regime da compropriedade, nomeadamente da norma que consta do art. 1406º, nº1, do CC: para além de as relações patrimoniais entre cônjuges ou ex-cônjuges se não poderem reconduzir, de um ponto de vista funcional, aos precisos quadros do regime legal da compropriedade em bens determinados, a referida norma, ao estabelecer uma possibilidade de uso individual do bem comum por cada comproprietário sem, todavia, privar de forma inadmissível os restantes contitulares de tal direito de uso, não contempla obviamente a específica situação litigiosa que nos ocupa, em que a atribuição do imóvel, em uso exclusivo a um dos contitulares, radicou numa decisão jurisdicional, que resolveu provisoriamente a situação de conflito, real ou latente, entre os interessados.

Tal significa, como é evidente, que o uso, individual e exclusivo, do bem pelo cônjuge a quem o mesmo foi judicialmente atribuído é lícito, encontrando ainda causa ou suporte precisamente na dita decisão, ou seja, na hétero composição de interesses que a mesma - injuntivamente – contém. Mas a circunstância de não existir efectivamente uma situação de responsabilidade civil do beneficiário da atribuição ou de enriquecimento sem causa deste não significa que se deva afastar em absoluto a possibilidade de, por exigências de justiça e equidade, face às circunstâncias concretas da vida dos cônjuges, tal atribuição exclusiva poder ser temperada com a compensação, no plano patrimonial, do outro cônjuge, privado do uso referido imóvel e, por isso, eventualmente obrigado a suportar outras despesas ou incómodos graves com o estabelecimento da sua residência, até à partilha dos bens…

Saliente-se que nos movemos no campo das decisões provisórias e cautelares, em que sempre se entendeu que o julgador dispõe de amplas possibilidades de valoração concreta e flexível dos interesses contrapostos, bem expressas, por exemplo, na norma constante do art. 376º, nº3, do CPC, ao prescrever que – em sede de procedimentos cautelares – o juiz não está sujeito à providência concretamente requerida, podendo decretar a que se revele mais eficaz e adequada à tutela do direito e à prevenção do periculum in mora.

O concreto conteúdo das medidas ou providências cautelares a decretar obedece, assim, desde há muito, a uma ampla possibilidade de modelação judicial, feita em função de juízos casuísticos, não se conciliando com uma rigidez de procedimentos, segundo a qual, independentemente das circunstâncias do caso, o tipo e a natureza da medida cautelar teriam de ser, sempre e necessariamente, definidas em abstracto; ora, tal flexibilidade impõe-se, por maioria de razão, no campo da jurisdição voluntária, em situações em que urge definir provisoriamente, segundo critérios substanciais de justiça e equidade, os interesses contrapostos dos cônjuges.

Interpreta-se, pois, a norma constante do nº 7 do art. 931º do CPC no sentido de a medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família poder ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.

Desta configuração normativa conferida à decisão que atribui, a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família decorre que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a tiver efectivamente atribuído na decisão proferida: ou seja, tal direito a uma compensação patrimonial pressupõe necessariamente, em termos constitutivos, a formulação de um juízo equitativo, em que o julgador, ponderadas as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges e por imperiosas razões de justiça material, considera que o equilíbrio dos interesses em confronto só se satisfaz com a imposição ao beneficiário da utilização do imóvel de uma contrapartida por tal uso exclusivo; e, assim sendo, não existe direito à compensação pelo uso exclusivo se se consolidar a decisão provisória acerca do uso da casa de morada, sem nela se prever explicitamente qualquer obrigação de pagamento por parte do cônjuge beneficiado com o uso exclusivo – estando, deste modo, excluída a possibilidade de o outro cônjuge vir ulteriormente, como sucede no caso dos autos, em nova acção, apensada ao processo de divórcio, pretender obter compensação, não prevista na decisão provisória oportunamente proferida nos autos sobre esse tema.

Acresce, no caso dos autos, que a referida decisão provisória foi, de algum modo, a partir do decretamento do divórcio, substituída ou consumida pelo acordo, celebrado pelos cônjuges, judicialmente homologado, no qual identicamente se não prevê o pagamento de qualquer compensação pecuniária pelo uso exclusivo da casa, nele explicitamente atribuído ao R.: saliente-se que tal acordo, interpretado à luz do princípio da impressão do destinatário, só pode significar que nele se não contemplava o pagamento de qualquer quantia como contrapartida da utilização expressamente permitida ao R – implicando a pretensão formulada na presente acção uma modificação substancial dos termos de tal acordo, ao pretender transformar a utilização incondicionada, ali efectivamente prevista, numa utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária, que não encontrava o mínimo rasto ou traço nas cláusulas que o integravam.

Deste modo, não estando prevista, quer na decisão provisória, proferida no início do processo de divórcio acerca da utilização provisória da casa de morada de família, quer no acordo dos cônjuges acerca desta matéria, judicialmente homologado, o pagamento de qualquer compensação à A. pela utilização exclusiva da casa de morada da família, atribuída ao R., não existe fundamento bastante para obter o reconhecimento ulterior de tal obrigação, que não decorre automática e necessariamente dessa atribuição provisória, pressupondo antes uma valoração judicial constitutiva que, no caso, se não verificou.


8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, confirmando, embora por diferente fundamentação, o juízo de improcedência da acção, formulado no acórdão recorrido.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.


Lisboa, 13 de Outubro de 2016


Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor