Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2723
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ADVOGADO
Nº do Documento: SJ200610170027231
Data do Acordão: 10/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1) O Advogado deve aconselhar o cliente sobre o merecimento do seu direito de forma conscienciosa e zelosa, facultando-lhe o melhor dos seus conhecimentos e recursos da sua experiência e actividade.

2) Se incumpre qualquer dos deveres para com o cliente, para além da comissão de ilícito disciplinar, pode-lhe ser assacada responsabilidade contratual - no âmbito do mandato forense - ou, em certos casos, e em alternativa, responsabilidade civil extra contratual.

3) O mandato forense não se extingue com o trânsito em julgado da sentença que põe termo à lide para a qual foi conferido, mantendo-se, durante um período razoável, a obrigação de o Advogado acompanhar o processo enquanto a questão não se mostrar definitivamente encerrada.

4) A declaração a que se refere o artigo 10º da Lei nº 2088 (comunicação do inquilino pretender reocupar o prédio locado após as obras) a ser feita num prazo não superior a oito dias após o trânsito em julgado da sentença que decretou o despejo, deve ter acompanhamento do mandatário constituído para aquela lide.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA", residente no Porto, intentou acção, com processo ordinário, contra os Drs. BB, CC, DD e EE, Advogados, com escritório naquela cidade.

Pediu a condenação solidária de todos a pagarem-lhe, a título de indemnização, a quantia de 69.881, 91 euros, acrescida de juros.

Alegou o incumprimento do mandato por parte dos Réus.

Foi requerida a intervenção principal de "Empresa-A, SA", com sede em Lisboa, para quem o 1º Réu transferira a responsabilidade civil resultante do exercício da sua actividade de Advogado.

Na 1ª Vara Cível da Comarca do Porto foi proferida sentença, que absolveu do pedido as Rés Drªs CC, DD e EE e condenou os Réus Dr. BB e a seguradora a pagarem ao Autor 45 526,09 euros, descontando-se, à Ré, a franquia de 10%, absolvendo-os do mais pedido.

O Réu Dr. BB agravou do despacho que não lhe admitiu prova pericial.

Autor e Réus condenados apelaram da sentença.

A Relação do Porto negou provimento a todos os recursos.

O Réu Dr. BB recorre da parte do Acórdão que negou provimento ao agravo.

A Ré "Empresa-A" pede revista, assim concluindo as suas alegações:

- A acção tem de ser julgada improcedente pois o mandato conferido ao Réu é um simples mandato forense destinado ao Processo nº 558/98, que correu termos na 3ª Secção da 6ª Vara Cível da Comarca do Porto e é nesses autos que se encontra junta a procuração;

- O mandato não foi conferido para além do trânsito em julgado da sentença ali proferida;

- Todos os factos alegados foram praticados depois daquele trânsito;

- O Réu não escreveu a comunicação a que alude o artigo 10º da Lei nº 2088 e, por isso, o Tribunal recorrido entendeu que foi negligente;

- Tal comunicação não cumpria ao mandatário forense da acção nº 558/98;

- Porque a obrigação nasce finda a acção, inexistindo mandato para a prática desse acto;

- Não ficou provado qualquer dano por acto imputável ao Réu nem nexo de causalidade adequado entre o dano e qualquer facto do Réu.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

- Na acção nº 558/98 da 3ª Secção, da 6ª Vara Cível da Comarca do Porto, que FF e mulher moveram ao, aqui, Autor, este mandatou o Réu Dr. BB, outorgando procuração forense em 16 de Junho de 1998;

- A contestação foi apresentada em 25 de Junho de 1998;

- Por apresentação tardia deste articulado, o Autor foi condenado na multa de 44000$00;

- No artigo 6º da mesma contestação consta: "está o R. interessado em continuar como inquilino do prédio a construir, ocupando o espaço identificado no artigo 25º da P.I.";

- Foi deduzido pedido reconvencional com o valor de 13465000$00;

- O pedido não foi admitido, sendo o Autor condenado nas respectivas custas;

- O recurso dessa decisão improcedeu;

- Por isso, o Autor foi condenado no pagamento de 381700$00 a título de custas;

- O Réu não procedeu ao pagamento dessas custas, tendo sido instaurada execução contra o Autor;

- As custas da execução ascenderam a 32552$00;

- Na acção foi reconhecida aos respectivos Autores o direito de realizarem obras de demolição e reconstrução do prédio no termo do período de arrendamento;

- Entendeu-se, perante o silêncio do Autor, que optava pela resolução do contrato de arrendamento, pelo que os senhorios enviaram para o escritório do Réu - em 13 de Julho de 2000 - um cheque de 521000$00, de que o Réu deu quitação;

- Foi, entretanto, movida execução para despejo do locado com custas a cargo do Autor, no montante de 17600$00;

- Em 19 de Outubro de 2000 o Réu devolveu o cheque ao senhorio, informando-o de que o Autor pretendia reocupar o espaço comercial;

- O senhorio lançou mão de consignação em depósito que foi julgada procedente e o Autor condenado em 30600$00 de custas;

- O Réu aconselhou o Autor a deduzir pedido reconvencional e a interpor recurso da sua não admissão;

- Além da humilhação, transtornos e angústias, sofreu o Autor pela presença de vizinhos e transeuntes;

- Ocupava o espaço comercial para comércio de joalharia/relojoaria, desde 1985, sendo renda de 2500$00;

- Numa zona comercial do Porto, com movimento de pessoas, relativamente segura, tendo clientela dedicada e firme;

- O trespasse do estabelecimento comercial, instalado desde 1964 valia, na altura, pelo menos, 8 000 000$00;

- O Autor apenas conferenciou com o Réu para apresentar a contestação;

- Não obstante o artigo 6º da contestação, o Autor também aceitava ser indemnizado;

- E levantou a quantia consignada em depósito;

- O Réu transferiu para a Ré-seguradora, através da apólice nº 54.162.165, a responsabilidade civil pelo exercício da sua actividade de Advogado, até ao montante de 49879,79 euros;

- Não comunicou à seguradora os factos dos autos.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Recurso do Réu.
2- Responsabilidade Civil.
3- Mandato forense.
4- Conclusões.

1- Recurso do Réu.

O Réu, Dr. BB, recorre do segmento do Acórdão da Relação que julgou improcedente o seu agravo.
Trata-se, evidentemente, de agravo interposto na 2ª instância da decisão que confirmou o julgado em 1ª instância indeferindo o pedido de prova pericial.

De acordo com o disposto no nº2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, e por não ocorrer o circunstancialismo da segunda parte desse preceito nem se verificar nenhuma das situações do nº3 (violação das regras de competência absoluta, ofensa a caso julgado, discordância quanto ao valor e não se tratando de impugnar decisão que tenha posto termo ao processo - nºs 2 e 3 do artigo 678º e alínea a) do nº1 do artigo 734º do diploma adjectivo), o recurso não é de conhecer.

2- Responsabilidade civil.

Fixemo-nos, então, na revista interposta pela Ré "Empresa-A, SA", com âmbito limitado às conclusões da sua alegação, "ex vi" dos nºs 2 e 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil.
A acção destina-se a efectivar a responsabilidade contratual do Advogado, por incumprimento - ou cumprimento defeituoso - do mandato forense.
Exige-se a demonstração do incumprimento de qualquer dos deveres elencados no nº1 do artigo 83º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Decreto Lei nº 84/84, de 16 de Março), vigente aquando dos factos (actualmente, a Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro e artigos 92 e seguintes).
Nuclearmente, o Advogado deve aconselhar o cliente sobre o merecimento do seu direito de forma conscienciosa e zelosa, pondo ao seu dispor o melhor dos seus conhecimentos e recursos da sua experiência e actividade.
Tal implica também informá-lo sobre o andamento das questões confiadas, com aconselhamento sobre eventual composição de interesses que entenda justa e equitativa, sendo que não deve, sem motivo justificado, abandonar o patrocínio do seu constituinte ou o acompanhamento das questões que lhe estão cometidas.
São, no essencial - e desenvolvidas com detalhe focado na especificidade do mandato forense - as obrigações do mandatário, constantes do artigo 1161º do Código Civil.
Sendo o mandato uma modalidade de prestação de serviços tendo por objecto a prática de actos jurídicos, é um contrato informal podendo, na sua vertente forense, ser conferido por mera declaração verbal no auto de qualquer diligência que se pratique no processo (alínea b) do artigo 35º do Código de Processo Civil).
Perspectivando o aperfeiçoamento dos actos jurídicos ínsitos no mandato, pode o mandatário praticar certos actos não jurídicos, que serão sempre instrumentais, (cf. Cons. Rodrigues Bastos, in "Dos Contratos em Especial", III, 1974, 43).

Certo que no mandato forense há sempre que conjugar as normas de conduta impostas pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, os deveres processuais constantes dos diplomas adjectivos e as praxes e práticas judiciárias sedimentadas, o que lhe confere características muito peculiares e transforma a lei civil em mero quadro base de referência.
A Advocacia é uma actividade difícil ("Para além do estudo minucioso e aturado das leis, o que exige qualidades de trabalho, de reflexão e de empenho, permanentes e quotidianas, e da capacidade de transmitir, com clareza, oportunidade e convicção o resultado desse conhecimento, o que determina o continuado aperfeiçoamento dos meios e técnicas de todas as formas de comunicação, o advogado tem de reunir em si outros requisitos" - Dr. Amadeu Teles Marques, in "Ser-se Advogado", 55; "os advogados hão-de continuar a ser um elemento essencial à administração da justiça, como diz o artigo 208º da CRP" - Prof. Avelãs Nunes, in "Advocacia, que fazer?", 65; "o advogado é um elemento imprescindível no exercício da cidadania num Estado de Direito Democrático, como é o nosso" - Dr. António Marinho e Pinto, "A Ordem dos Advogados deve ser um baluarte da cidadania", in "Advocacia...", 76; "a formulação de pretensões perante os tribunais, devidamente fundamentadas em termos racionais, em normas que se procurem sejam harmoniosas entre si e, por fim, em precedentes judiciais podem contribuir de forma decisiva para que se obtenha uma decisão judicial mais correcta e mais justa", Dr. Sampaio e Nora, "O Futuro da Advocacia", in "Advocacia...", 236) e de grande relevo social, com forte impacto na administração da justiça e na evolução do direito.
O mandatário forense não é um qualquer procurador, antes devendo ser onerado com especiais deveres e defendido por direitos próprios.
E se incumpre qualquer dos deveres para com o cliente, para além da comissão de eventual ilícito disciplinar será que pode ser-lhe assacada a responsabilidade contratual ou apenas poderá ser responsabilizado pelas regras da responsabilidade aquiliana.
Para o Dr. António Arnaut (in "Iniciação à Advocacia", 113, ss), a responsabilidade civil do advogado não se pode radicar no contrato de mandato não sendo, em consequência, contratual.
Yeves Avril procede ao "distinguo" entre a responsabilidade em relação aos clientes - sempre contratual - e para com terceiros - só extracontratual. (in "La responsabilité de l’avocat", 3ª, 2).
Admite-se que possam coexistir ambas, mesmo para com o cliente, dependendo do facto ilícito se traduzir no incumprimento de cláusula (ou dever) do mandato forense ou se tratar de violação de outro dever, ou preceito legal, não integrado, precisamente, no contrato de mandato. (cf.
Dr. L. P. Moitinho de Almeida, in "Responsabilidade Civil dos Advogados", 2ª ed, 13). Mas só uma pode ser invocada.
Ora, e como atrás se deixou dito, o Réu foi demandado com base na responsabilidade contratual).

3- Mandato forense.

A recorrente não põe em causa os "quanta" indemnizatórios questionando, apenas, a montante, a existência do dever de indemnizar.
E fá-lo nuclearmente com dois argumentos: 1) O mandato forense destinou-se à acção nº 558/98 e os factos alegados ocorreram após o trânsito em julgado da sentença proferida nesse processo; 2) Não foi feita a prova de dano nem de nexo causal.
Vejamos,
3.1- Está em causa o Réu não ter feito a comunicação a que se refere o artigo 10º da Lei nº 2088, de 3 de Julho de 1957 (alterada, mas não na parte que, aqui, releva pelo Decreto-Lei nº 329-B/2000, de 22 de Dezembro).
Tratando-se de acção de despejo com fundamento em execução de obras "o inquilino comunicará ao senhorio, por carta registada, até oito dias depois do trânsito em julgado da sentença de despejo " se opta por reocupar o locado após as obras, sendo indemnizado pela suspensão do arrendamento ou, antes, pretende uma indemnização pela resolução do arrendamento.
Nos termos do § único daquele preceito a falta de comunicação implica a opção pela última.
O Autor mandatou o Réu para o representar naquela acção.
Independentemente das vicissitudes de percurso (atraso na apresentação da contestação, pagamento de multa, não procedência da reconvenção, execução de despejo e respectivas custas) que não foram questionadas, importa saber da relevância, nesta lide, da não comunicação do Autor sobre a intenção de reocupar o locado.
Na contestação da acção de despejo, subscrita pelo Réu e, presuntivamente, por si elaborada, diz-se no artigo 6º que o Réu (ora Autor) está "interessado em continuar como inquilino do prédio a construir, ocupando o espaço identificado no artigo 25º da P.I".
Assim, o Réu sabia ser essa a vontade do seu cliente.
E não podia ignorar que a manifestação dessa vontade teria de ser feita por escrito até oito dias depois do trânsito em julgado da sentença que decretasse o despejo.

O mandato que lhe foi conferido não se extinguia com o trânsito da sentença que põe termo à lide, como aliás em regra não acontece (v.g. custas, reclamação da conta, procedimentos executivos) mantendo-se enquanto a questão "sub judicio" não se mostra definitivamente encerrada, ressalvando os casos de renúncia ou de revogação (artigo 39º do CPC).
E na situação em apreço mais claro se afigura que, ao menos até à expedição da comunicação do propósito de reocupar o locado (aliás em curto prazo, com o trânsito em julgado como "terminus a quo"), o Réu tinha o dever de assegurar o patrocínio.
Note-se, aliás, que mesmo no caso de renúncia do mandatário, e tratando-se de causa em que é obrigatória a constituição de Advogado, o patrocínio mantém-se durante certo período (nºs 2 e 3 do citado artigo 39º da lei processual).
Ademais, o E.O.A., faz, na alínea j) do artigo 83º então vigente, o "distinguo" entre "patrocínio" e "acompanhamento das questões" que lhe estão cometidas", sendo licito sempre concluir que, mesmo numa interpretação restritiva - a que não se adere - de termo de mandato com o termo da decisão final, o Advogado deve assegurar o acompanhamento das questões intimamente conectadas com as julgadas aconselhando e informando o cliente em conformidade.
Improcede, assim, a primeira parte das conclusões da alegação.

3.2- Refere, finalmente, a recorrente não ter ficado demonstrado o dano ou o nexo causal.
O dano que releva na parte objecto de recurso foi a perda do estabelecimento de joalharia/relojoaria avaliado (valor de trespasse) em 8 000 000$00, o que resulta inequivocamente da matéria de facto assente.
É, outrossim, patente o nexo causal por apelo à causalidade adequada.
No eventualmente omisso remetemos para o Acórdão recorrido.

4- Conclusões.

De concluir que:

a) O Advogado deve aconselhar o cliente sobre o merecimento do seu direito de forma conscienciosa e zelosa, facultando-lhe o melhor dos seus conhecimentos e recursos da sua experiência e actividade.
b) Se incumpre qualquer dos deveres para com o cliente, para além da comissão de ilícito disciplinar, pode-lhe ser assacada responsabilidade contratual - no âmbito do mandato forense - ou, em certos casos, e em alternativa, responsabilidade civil extra contratual.
c) O mandato forense não se extingue com o trânsito em julgado da sentença que põe termo à lide para a qual foi conferido, mantendo-se, durante um período razoável, a obrigação de o Advogado acompanhar o processo enquanto a questão não se mostrar definitivamente encerrada.
d) A declaração a que se refere o artigo 10º da Lei nº2088 (comunicação do inquilino pretender reocupar o prédio locado após as obras) a ser feita num prazo não superior a oito dias após o trânsito em julgado da sentença que decretou o despejo, deve ter acompanhamento do mandatário constituído para aquela lide.

Destarte acordam:

- não tomar conhecimento do agravo do Réu:

- negar a revista da Ré seguradora.

Custas, de cada recurso, pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Outubro de 2006

Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho