Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
92/05.6TYVNG-M.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
CONSUMIDOR
TRADIÇÃO DA COISA
SINAL
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 95, 19 DE MAIO DE 2014, P. 2882-2894
ANOTAÇÃO DE MORAIS, FERNANDO GRAVATO DE, IN CADERNOS DE DIREITO PRIVADO,Nº 46, P. 32-56, ABRIL/JUNHO 2014
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual:  UNIFORMIZAÇÃO DE JURSIPRUDÊNCIA
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 442.º, N.º 2, 755.º, N.º1, ALÍNEA F), 759.º, N.º2, 799.º, N.º1.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 97.º, 102.º, 104.º, 106.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 660.º, N.º2, 684.º, N.º3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º, N.º1.
Sumário :
No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.
Decisão Texto Integral:

 1. RELATÓRIO.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em plenário das Secções Cíveis.

Na sequência da sentença que declarou a Sociedade Construções AA Lda. em estado de insolvência foram reclamados vários créditos entre os quais o de BB no montante de € 108.488,54 e o da Caixa Geral de Depósitos no valor inicial de € 3.489.328,30 entretanto reduzido para € 3.333.736,38.

Foi igualmente junto parecer pelo Exmo. Administrador de Insolvência, segundo o qual todos os créditos reclamados estão devidamente fundamentados.

A sentença que procedeu à graduação dos créditos reconheceu ao crédito reclamado por BB, o “direito de retenção” no tocante às frações prediais I e X, apreendidas para a massa, graduando-o antes do da Caixa Geral de Depósitos, garantido por hipoteca.

Desta decisão recorreu a Caixa Geral de Depósitos pedindo a revogação da mesma, de molde a que o seu crédito fique graduado acima do do reclamante cujo direito de retenção até questiona.

O Tribunal da Relação na procedência da apelação, revogou, na parte impugnada, a decisão da 1ª instância e determinou que, com o produto da venda das frações I e X do apenso de apreensão de bens, sejam pagos os créditos graduados segundo a seguinte ordem:

1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;

2º Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário da Caixa Geral de Depósitos, S.A.;

3º Do remanescente, dar-se-á pagamento ao restante crédito privilegiado do Instituto de Segurança Social, I.P.;

4º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns (nos quais se inclui o do credor BB);

5º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, caso existam, pela ordem prevista no artigo 48º.

Por seu turno inconformado, recorreu de revista BB, tendo pedido que se revogue o decidido na parte que a ele concerne, proferindo-se acórdão que consagre a decisão da 1ª instância. Ainda antevendo a hipótese de o julgamento levar à possibilidade de vencimento de solução jurídica oposta à sua tese, no domínio da mesma legislação, requereu pois, nos termos do artigo 732º-A do Código de Processo Civil, o julgamento com a intervenção do Plenário de secções cíveis por forma a assegurar a uniformidade de jurisprudência.

Apresentou as seguintes,

Conclusões.

1) O ora recorrente veio, no âmbito do processo de insolvência de Construções AA Lda., reclamar, na qualidade de promitente comprador das frações I e AX um crédito na importância de l08.488,54 € correspondente ao preço integral das ditas frações, pago a titulo de sinal ao longo da relação contratual estabelecida, invocando o direito de retenção a que indubitavelmente tinha direito.

2) O seu crédito foi qualificado como privilegiado, não tendo sido impugnado pela credora hipotecária CGD.

3) A final foi lavrada sentença pelo Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, que reconheceu o crédito do recorrente como privilegiado, garantido pelo privilégio do direito de retenção sobre as frações em questão.

4) Inconformada com tal decisão veio a CGD interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que proferiu Acórdão em sentido contrário à primeira instância, abordando primeiro o instituto do direito de retenção considerando que o beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido goza de direito de retenção de acordo com a alínea f) do nº 1 do art.º 755º do Código Civil,

5) Acrescentando ainda que, atentando no disposto no art.º 604 nº 2 do CC verifica-se que no concurso de créditos e na presença de legítimas causas de preferência, a par da hipoteca, só existem os privilégios e os que conferem direito de retenção, mas havendo concurso do direito de retenção com a hipoteca, prefere o credor que tem aquela garantia real, sempre que a um credor for conferido o direito de retenção sobre uma coisa imóvel, o seu crédito fica graduado antes do crédito hipotecário - art.º 759º nsº 1 e 2 do CC. (sic).

6) Seguidamente, e no sentido de dar o seu cunho pessoal relativamente à apreciação das normas legislativas em questão, afirma que não se percebe porque é que para o legislador o beneficiário de promessa de transmissão a quem haja sido entregue o bem prometido merece mais proteção que o titular do bem ou do direito, de modo que quem tiver constituído hipoteca está sujeito a ver a sua garantia esfumar-se na execução hipotecária, para finalmente rematar e concluir que enquanto tal mudança legislativa não sucede o direito de retenção continuará a prevalecer sobre a hipoteca.

7) Relativamente ao contrato promessa com eficácia meramente obrigacional, no que aqui nos interessa, o Mto. juiz ad quem conclui que o cumprimento do contrato fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou recusa do cumprimento invocando o art.º l02º nº 1 do CIRE, que em si pode configurar-se como uma causa de justificação legal do não cumprimento, fazendo uma especifica e restritiva interpretação do mencionado artigo por forma a dele extrair a conclusão de que, no âmbito da insolvência, não é de aplicar o art.º 442º do Código Civil à recusa de cumprimento do contrato promessa pelo AI, considerando que a inaplicabilidade deste artigo afasta o direito de retenção previsto no art.º 755º nº 1 al. f) do CC, ou seja, o crédito do reclamante/aqui recorrente tem que ser tratado como crédito comum.

8) O Tribunal considera que não pretendendo, expressa ou tacitamente o AI cumprir o contrato, não se lhe aplicam as consequências do art.º 442º do Código Civil alegadamente porque no âmbito da especificidade do processo de insolvência não seria aplicável o conceito civilista de incumprimento imputável a uma das partes. Como não existe um dever de cumprir, a ilicitude e a culpa, como pressuposto do funcionamento do art.º 442º do CC, seriam excluídas.

9) Para concluir e retirar ao aqui recorrente o privilégio que a lei confere ao promitente-comprador de fração imóvel em que haja tradição da coisa.

10) O recorrente discorda frontalmente desta construção jurídica em virtude dos artigos mencionados do CIRE - artigos 102º e 119º não excluírem simplesmente o referido privilégio - a determinação da fixação e da valorização dos créditos não se encontra aí especificamente regulamentada,

11) E parece fazer crer que hipoteticamente uma determinada entidade, promitente compradora ou vendedora, incumpre sistematicamente o contrato, torna-o impossível de facto, bastando apresentar-se à insolvência para que os efeitos do incumprimento contratual sejam lavados e ultrapassados - ora tal é insustentável.

12) O art.º 119º do CIRE diz-nos apenas que qualquer convenção das partes não pode excluir, ou limitar as normas anteriores (não existe aqui qualquer convenção) e o art.º 102º nº 3 al. e) nada refere ou limita quanto ao crédito e inequivocamente não exclui o privilégio.

13) O CIRE tem uma norma clara e expressa que trata sobre os efeitos da insolvência quanto à extinção dos privilégios e garantias - art.º 97º e nele não está incluída a garantia de que beneficia o recorrente, não exclui nem colide com o privilégio atribuído ao recorrente. Aliás nenhuma norma do CIRE o faz, apenas o Mto. juiz ad quem o fez.

14) Todos os requisitos do direito de retenção previstos no art.º 755 nº l alínea f) do CC são observados e cumpridos pelo aqui recorrente: é beneficiário de promessa de transmissão sobre uma coisa; obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, exercendo sobre ela um verdadeiro direito de propriedade, agindo como se dono dela fosse (pagando os respectivos consumos de água, luz, condomínio, fruindo sem reservas das suas frações, inclusivamente chegou a efetuar o pagamento do IMT nas Finanças conforme consta dos autos), e um crédito formado nos termos do art.º 442º do CC resultante do incumprimento do contrato promessa imputável ao promitente transmitente

15) A jurisprudência dominante vai no sentido de entender que o regime legal que atribui ao beneficiário de promessa de transmissão da propriedade de imóvel que obteve a tradição deste, tem direito de retenção pelo crédito derivado de incumprimento pelo promitente vendedor, prevalecendo esse direito sobre a hipoteca tendo como finalidade a tutela dos direitos e expectativas do consumidor no caso de aquisição de habitação, sendo a circunstância deste regime legal ter na sua base a tutela e segurança dos direitos dos consumidores, manifestando a prevalência, para o legislador, do direito dos consumidores à proteção desses seus específicos interesses, que legitima a restrição á confiança e segurança associadas ao registo predial, face ao disposto nos arts.º 60 e 65º da CRP.

16) Não podendo por isso considerar-se inconstitucional o facto de a sentença ter graduado o crédito do aqui recorrente à frente do credor hipotecário, como privilegiado por se entender tratar-se de um consumidor, como de facto o é, ao contrário do pretendido pela recorrida CGD.

17) Ainda relativamente à eventual inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 442º e 755º, ambos do Código Civil, há que tecer as seguintes considerações: o próprio Supremo Tribunal já repetidamente se pronunciou pela não inconstitucionalidade material das normas atrás mencionadas, nomeadamente no Acórdão de 18/09/2007 que refere que tais normas, especialmente o nº 2 do artigo 442º e nº 1 alínea f) do artigo 755º não violam os princípios da proporcionalidade, da proteção da confiança e segurança do comércio jurídico imobiliário e do direito de propriedade privada, ínsitos nos artigos 2°, 18º nº l e 62º da Lei Fundamental uma vez que a concessão do direito de retenção atribuído ao promitente-comprador não viola qualquer desses direitos fundamentais dos credores hipotecários, podendo entender-se mesmo que não estamos perante direitos fundamentais.

18) Mais ainda, relativamente às normas do CIRE - artigos l02.º nº 2 e 119.º vem o Acórdão do Supremo de 27/11 /2007 afirmar que a recusa do cumprimento do contrato promessa pelo AI provoca a extinção do contrato e essa recusa equivale a um incumprimento do insolvente Já que foi o insolvente que deu causa á insolvência, conclusão prevista no art.º 20.° do CIRE.

19) Essa mesma recusa gera um crédito sobre a insolvência previsto também no art.º l04.º nº 5 específico para vendas com reserva de propriedade que pressupõem a não entrega de um bem, sendo por isso inaplicável ao caso dos autos, pois neste foi entregue uma coisa e houve pagamento substancial a titulo de sinal.

20) Ora não sendo aplicável in casu o nº 5 do art.º 104º também não o é a remissão para o art.º 102º nº 2 porquanto o art.º 119º apenas atribui natureza imperativa às normas dos arts.º l02.º ao 118.°, sempre do mesmo diploma legal, quanto a convenções das partes que pretendam excluir ou limitar o alcance de tais normas, mas já não quanto a outras normas jurídicas, não admitindo a letra do preceito outra interpretação.

21) Dada a impossibilidade de uma interpretação extensiva de tais normas acima mencionadas, sempre ter-se-á que aplicar o regime previsto para o incumprimento contratual dos contratos promessa previsto no art.º 442º do CC, sendo este incumprimento somente imputável ao insolvente, que se colocou em posição de não poder cumprir, que claramente é o caso dos autos, resultando tal previsão do art.º 799º nº 1 do CC.

22) Importante será reter que o regime regra do art.º 759º do CC não é alterado pelo processo de insolvência e de toda a forma o art.º l02.º do CIRE nada diz acerca das garantias dos créditos, aplicando-se assim o nº 2 do art.º 759 do CC que estipula claramente que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, não permitindo a letra da lei outras interpretações.

23) Ainda que possam surgir posições em sentido contrario, nomeadamente o Acórdão do Supremo de 14/06/2011, mesmo assim sempre se esclarece que não terão aplicação neste caso concreto porquanto o mesmo prevê que o direito de retenção só tutela o promitente adquirente quando este for um consumidor, sendo que a norma do art.º 755 nº 1 alínea f) do CC é uma norma material e excecional de proteção do consumidor e deve ser interpretada restritivamente para o beneficiar somente a ele.

24) Essa carência de proteção, essa necessidade de tutela do promitente adquirente/consumidor que a norma visa conceder verifica-se com maior acuidade ainda nos processos de insolvência face ao incumprimento, quer do próprio insolvente, quer do administrador de insolvência quando recusa o cumprimento do contrato prometido.

25) No caso em apreço dúvidas não restam que o aqui promitente-comprador/recorrente é um cidadão individual, um consumidor com cerca de 70 anos de idade que investiu as poupanças de uma vida nas frações que habita com o seu agregado familiar, tem a posse das mesmas, não é um comerciante ou profissional do ramo imobiliário,

26) Ao longo do tempo fez tudo o que estava ao seu alcance para outorgar escritura de compra e venda e só não atingiu os seus objetivos por culpa da insolvente, não tendo reclamado mais do que o sinal em singelo prestado, estando assim em condições de beneficiar, e merecer, toda a proteção que a lei lhe concede, devendo o seu crédito ser qualificado como privilegiado e à frente do credor hipotecário CGD, derivado do direito de retenção que indubitavelmente beneficia.

    

Contra-alegou a Caixa Geral de Depósitos pugnando pela confirmação do decidido terminando por propor que se negue a revista, mantendo-se a decisão recorrida e firmando-se jurisprudência no sentido de que: “No Domínio dos negócios em curso à data da declaração de insolvência um promitente-comprador de fração de edifício com traditio, cujo contrato-promessa (com eficácia meramente obrigacional não foi cumprido pelo administrador da insolvência não goza do direito de recebimento do sinal em dobro e da qualificação do seu crédito como garantido por via do direito de retenção”.

Entendendo o Sr. Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça tudo indicar que a questão que nos ocupa nos presentes autos possa vir a surgir em vários outros determinou, ao abrigo do artigo 732º nº 1 do Código de Processo Civil, que se proceda a julgamento ampliado com vista a uniformização de jurisprudência, tal como havia sido requerido.

A Sra. Procuradora Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido de que se profira decisão onde se consigne que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador, ainda que com eficácia meramente obrigacional, com traditio que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência, goza do direito de retenção nos termos do disposto nos artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil, devendo o seu crédito ser graduado como privilegiado em confronto com o crédito hipotecário ainda que anteriormente constituído”.

A Caixa Geral de Depósitos fez juntar aos autos douto Parecer dos Profs. CC e DD em abono da tese que defende.                   

Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir.

*

2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. BB reclamou da massa falida o crédito de € 108.488,54.

2.1.2. No mapa a que se refere o artigo 129º, nº 2, do CIRE, junto a fls. 13/14, a Ex.ª Administradora de Insolvência reconheceu esse crédito, fazendo constar no espaço destinado à natureza do crédito: "Direito de Retenção".

2.1.3. Esse credor veio mais tarde, cumprindo despacho judicial, indicar que "as frações autónomas sobre as quais goza de direito de retenção são:

– Fração I destinada a habitação, localizada no 2° andar direito da Rua 25 de Abril, nº 255, Madalena, Vila Nova de Gaia, com lugar de garagem localizada na cave do mesmo prédio;

- Fração X, destinada a arrumos. Localizada na cave do prédio anteriormente descrito.

2.1.4. As frações em causa têm a descrição 00900/ 030894, freguesia da Madalena, da 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia".

2.1.5. Por seu turno, a Caixa Geral de Depósitos reclamou o crédito de 3.489.328,30 €, entretanto reduzido para 3.333.736,38 € (cfr. fls. 59), também reconhecido e garantido por hipoteca.

                        *

2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos arts.º 660º nº 2 e 684º nº 3 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- O direito de retenção e a hipoteca no âmbito do contrato-promessa. Enunciado e estado da problemática.

- Direito de retenção e hipoteca: razões de uma atribuição e consequente prevalência.

- O contrato-promessa de compra e venda de imóveis no âmbito do CIRE. Incumprimento.

- Análise crítica dos momentos mais relevantes da tese contrária.

- Implicações constitucionais desta problemática.

                        +

2.2.1. O direito de retenção e a hipoteca no âmbito do contrato-promessa; Enunciado e Estado da problemática.

Tendo sido decretada a Insolvência da Sociedade Construções AA Lda. e aberta a fase da reclamação e verificação de créditos, vários foram reclamados, entre os quais o da Caixa Geral de Depósitos e o de BB. O crédito da primeira beneficia de hipoteca, onerando os prédios I e X, sendo certo que o credor supra-apontado foi indicado como gozando igualmente do “direito de retenção” sobre os mesmos para o pagamento da referida importância de 108.488,54, emergente do incumprimento de um contrato-promessa de natureza obrigacional reportado aos prédios acima identificados. Este último credor havia obtido a tradição dos imóveis em causa.

Está em causa saber se em contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre o crédito hipotecário da Caixa Geral de Depósitos que sobre eles incidia. Tal análise será levada a cabo à luz do ordenamento civil vigente e do direito constitucional.

A problemática explanada não obteve resposta uniforme das instâncias. Efetivamente a 1ª instância reconheceu ao crédito do reclamante BB o “direito de retenção” e consequente prevalência perante o hipotecário; já a Relação, partindo do princípio de que estando em causa um crédito emergente de um contrato-promessa, sustenta que haverá que fazer, em sede geral, a destrinça consoante o contrato tenha eficácia real ou meramente obrigacional; tratando-se da primeira hipótese - sendo pois a promessa oponível a terceiros, nos termos do artigo 413º nº 1 do Código Civil e se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador - o administrador da insolvência não poderá negar o cumprimento do contrato de harmonia com o estatuído no artigo 106º nº 1 do CIRE; caso contrário sujeitar-se-á às consequências previstas no artigo 104º nº 5 do mesmo Diploma Legal. Na segunda hipótese – que é aliás a do caso sub iudice - estando em causa um contrato-promessa com eficácia apenas obrigacional em que o promitente-comprador obteve a tradição da coisa, o Acórdão que analisamos revogou o decidido em 1ª instância, propendendo para a prevalência da hipoteca face ao crédito do reclamante, conferindo assim na graduação de créditos prioridade ao direito da Caixa Geral de Depósitos.

A Jurisprudência produzida sobre esta matéria mostra-se dividida, mau grado opte, maioritariamente, nestes casos pela concessão do “direito de retenção” e assim pela prevalência do crédito provido com tal direito sobre a hipoteca desde que haja tradição do objeto e ainda que o contrato tenha eficácia meramente obrigacional[1]. Também a Doutrina não congrega unanimidade face à problemática em análise, registando-se até de alguns setores propensão para a prevalência da hipoteca excluindo o “direito de retenção” do promitente-comprador maxime quando o contrato-promessa não tem efeito real e ainda que tenha havido tradição da coisa que a que se reporta[2].

 2.2.2. Direito de retenção e hipoteca; razões de uma atribuição e prevalência.

O caso em análise.

        

O “Direito de retenção” regulado nos artigos 754º ss do Código Civil “consiste na faculdade que o devedor de uma coisa possui de a não entregar enquanto não for pago do crédito que por sua vez lhe assiste”[3]. Por seu turno a hipoteca é também uma garantia real que concede aos credores o direito a serem pagos pelo valor de certos bens em regra imóveis do devedor, estando os seus créditos devidamente registados[4]. O DL 379/86 de 11/11 alargou o “direito de retenção” a vários casos entre os quais nos cabe destacar o da alínea f) do nº 1 do artigo 755º quando estatui que goza de tal direito “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte nos termos do artigo 442º”. Dispõe este normativo legal no seu nº 2 “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.

                  

No caso em análise, o Administrador da Insolvência reconheceu ao reclamante, ora recorrente, o direito de retenção sobre as frações que foram objeto do contrato-promessa com tradição referidos nos autos. A 1ª instância entendeu que “a constituição de sinal e a tradição da coisa têm subjacente uma forte confiança na firmeza e concretização do negócio. Daí que se imponha com particular acuidade defender o mais possível o exato cumprimento do contrato e que a execução específica não resulte inoperante mercê da alienação da coisa a terceiro, quando a promessa se encontre destituída de eficácia real. Nessa mesma linha se concede o direito de retenção sobre ela. (…) Pode admitir-se que há transmissão da posse do promitente vendedor para o promitente-comprador, não por via do contrato-promessa mas por força do acordo negocial da traditio e da efetiva entrega da coisa. Neste caso o promitente-comprador que recebe a coisa e a usa como se fosse sua praticando sobre ela os atos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, é um verdadeiro possuidor em nome próprio”; daí a concessão e prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca que recaía igualmente sobre as frações”.

     A Relação optou por posição divergente, nos termos já antes referidos.

A súmula das posições baliza a problemática cabendo optar por uma delas; e inclinando-nos pela concessão e consequente prevalência do “direito de retenção” face à hipoteca, procuraremos justificar essa tomada de posição, cotejando-a com a tese segundo a qual a hipoteca prefere ao crédito do reclamante.

O DL nº 236/80 de 18 de Julho veio reforçar a posição jurídica do promitente-comprador nomeadamente no âmbito das transações de imóveis para habitação, conferindo-lhe em caso de incumprimento da outra parte e em alternativa ao direito ao sinal em dobro, também o valor da coisa desde que a mesma lhe tivesse sido transmitida encontrando-se pois em seu poder. Tal desiderato surge corporizado na alteração então introduzida ao nº 2 do artigo 442º do Código Civil. Por seu turno, o DL 379/86 de 11-11, além de haver modificado o normativo em análise veio ainda, coerentemente com tal alteração, elencar no âmbito dos titulares do “direito de retenção” a que se reporta o artigo 755º do Código Civil, o do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito sobre a coisa a que se reporta o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte de harmonia com o artigo 442º (então modificado)[5]. O Diploma de 1986 explica as razões que estiveram na base da alteração introduzida. A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente seletividade na concessão de crédito[6]. Justificou-se destarte que na linha de orientação que vinha já do DL 236/80, a que acima fizemos referência, o mais recente Diploma que alterou o regime do contrato-promessa, tenha vindo balizar o âmbito e o funcionamento do “direito de retenção” nestes casos.

A Ré Caixa Geral de Depósitos - cuja tese obteve no geral o apoio da 2ª instância - discordando da solução que concede e faz prevalecer o direito do reclamante acima do crédito hipotecário, chama desde logo à colação o que entende genericamente ser “a injustiça de tal solução legal”. Aduz em abono da sua tese, que à publicidade da hipoteca, materializada pelo respetivo registo, se contrapõe o cariz oculto do “direito de retenção”, sendo de impossível previsão precisamente por não gozar da publicidade que necessariamente acompanha a primeira. Um processo negocial oneroso, maduramente ponderado, pode soçobrar perante um expediente oculto, havendo ainda a possibilidade de através dele se propiciarem situações de fraude ao titular da hipoteca, dificultando ou impedindo o respetivo credor de ver pagos os seus créditos, já que, desde logo, este não pode impedir ulteriores vendas acordadas em termos que lhe podem ser intencionalmente lesivos[7]. Esta objeção, apesar de alertar para hipóteses que podem verificar-se, não tem, salvo o devido respeito, o relevo que lhe é dado. Começaremos por referir que o “direito de retenção” é apenas uma dentre outras garantias (v.g. os privilégios creditórios) de igual ou maior gravosidade com que se poderá defrontar o credor hipotecário no âmbito de um processo de insolvência[8]; e a sua inserção valorativa no seio do ordenamento jurídico é tão só o resultado de uma ponderação de interesses que a conjuntura social motivou no legislador graduar de uma determinada forma, acautelados os limites constitucionais. A tudo acresce que o “direito de retenção” é ainda, acima dos não registáveis, o mais transparente, já que tem, na generalidade dos casos, uma faceta visível em resultado da sua própria natureza; a do uso do objeto sobre que recai (na maioria imóveis para habitação) o que implica naturalmente, dada aquela compleição, a publicidade, que quase sempre funciona como aviso aos restantes credores em ordem a melhor poderem acautelar-se antes de optarem pela concessão de um crédito que comporta sempre certa álea de risco[9]. Aliás a proteção ao promitente-comprador que o legislador tem seguido nos termos apontados, também não pretende ver postergados os legítimos interesses do credor hipotecário, que tendo investido, por via de regra, capitais avultados financiando a construção do imóvel quer ver assegurado o respetivo retorno, acrescido dos juros devidos. Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º nº 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor[10].                                              +

2.2.3. O contrato-promessa de compra e de imóvel no âmbito do CIRE. Incumprimento.

A declaração de insolvência provoca, como é sabido, efeitos nas relações jurídicas subsistentes a essa data. Quanto aos negócios não cumpridos, estatui o artigo 102º do CIRE: 1 – Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.

2 – A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.

3 – Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:

a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;

b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efetuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;

c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;

d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:

i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);

ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);

iii) Constitui crédito sobre a insolvência;

e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respetivos montantes.

4 – A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável”.

Para a hipótese do contrato promessa, rege o artigo 106º o qual estatui que “1 – No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.

2 – À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no nº 5 do artigo 104º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.

Na vigência do CPEREF – artigo 164º-A, o contrato-promessa que se encontrasse por cumprir à data da falência extinguir-se-ia, com perda de sinal entregue ou restituição do sinal recebido, conforme os casos, mau grado isso não tivesse lugar de modo necessário, já que o liquidatário judicial, ouvida a comissão de credores poderia “optar pela conclusão do contrato-prometido ou requerer a execução específica da promessa que lhe seja facultada”. Previa-se igualmente no nº 2 que “tratando-se de promessa com eficácia real, o promitente adquirente poderá exigir à massa falida a celebração do contrato prometido ou recorrer à execução específica que lhe seja facultada; sendo o falido promitente-adquirente, ao liquidatário cabe decidir sobre a conveniência da execução do contrato satisfazendo a execução convencionada”[11]. O normativo que no CIRE trata desta matéria é o artigo 106º esclarecendo no seu nº 2 que “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”[12]. Em tal hipótese e caso o administrador não cumpra o contrato celebrando o contrato definitivo em conformidade, poderá o promitente-comprador lançar mão da execução específica de harmonia com o estatuído nos artigos 827º, 830º e 442º nº 3 todos do Código Civil.

No entanto o artigo 106º supracitado não menciona a situação relativamente vulgar em que o contrato-promessa, mau grado de natureza obrigacional, foi acompanhado de tradição da coisa para o promitente-comprador; é também o caso que aqui analisamos. Dúvidas não há, que não se verificando a tradição da coisa e tendo o contrato efeito meramente obrigacional, ao administrador cabe ponderar e decidir pelo cumprimento ou não cumprimento do mesmo; isto só não sucede caso alguma das partes tenha cumprido na íntegra a sua obrigação e havendo incumprimento definitivo[13]. Contudo, havendo tradição da coisa, a norma não esclarece qual a consequência daí resultante; todavia tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao “lugar paralelo” resultante da conjugação dos artigos 106º nº 2 e 104º nsº 1 do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa[14]. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no “promitente-comprador” quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e “corporizada” destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro animus de agir como possuidor, não já nomine alieno mas antes em nome próprio[15]; a partir do momento em que o insolvente entregou as chaves dos prédios ao promitente-comprador, materializou a intenção de transferir para este os poderes sobre a coisa, faltando apenas legalizar uma situação de facto consolidada. Parificada tal situação com as hipóteses do efeito real dos contratos em termos de impedir a resolução respectiva, poderá assentar-se em que o incumprimento dá assim origem ao despoletar do “direito de retenção” a que se reporta o artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil viabilizado pela interpretação a que acima fizemos referência no tocante ao artigo 106º[16], pelo que assim sendo subsiste a preferência a que aludimos.

O Administrador não cumpriu o contrato, como é sabido e tal resulta até do facto de ter reconhecido o crédito no seu parecer junto.

Acrescentaremos, mau grado a questão não seja diretamente colocada em crise, que face ao incumprimento do Administrador, o crédito do reclamante sobre a insolvência tem a sua proteção assegurada no artigo 102º nº 3 alínea c), do CIRE atento o reconhecimento supra-aludido sendo certo que o aquele pede apenas uma quantia em singelo.

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2.2.4. Análise crítica dos momentos mais relevantes da tese contrária.

O Tribunal da Relação opta, como vimos, por uma visão distinta desta problemática, com reflexos inerentes na solução a conferir-lhe. Na sua tese, declarada a insolvência, o artigo 102º do CIRE confere ao Administrador o direito a não cumprir a obrigação já que “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que à data da declaração de insolvência não haja total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. Destarte, sendo a própria lei a admitir a possibilidade de não cumprimento por parte do administrador, tal significa que não há dever de cumprimento, o que necessariamente afasta a possibilidade de ilicitude e culpa, que supõem uma obrigação prévia de agir de outra forma; a reforçar este entendimento, argumenta ainda a CGD com o estatuído no artigo 119º do CIRE ao salientar nos seus nsº 1 e 2 que “1– É nula qualquer convenção das partes que exclua ou limite a aplicação das normas anteriores do presente capítulo.

2 – É em particular nula a cláusula que atribua à situação de insolvência de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos dos previstos neste capítulo”.

Corolário lógico desta argumentação seria assim o afastamento do âmbito do CIRE da aplicabilidade do artigo 442º do Código Civil referente ao incumprimento do contrato promessa; a cominação constante do nº 2 desse normativo está dependente da constatação de culpa da parte não cumpridora. Só que esta, com a declaração de insolvência da Sociedade Construções AA Lda. transmudou-se, não sendo já a entidade que era, estando agora representada pelo administrador. Tal modificação traria consigo a impossibilidade de responsabilizar aquela pelo incumprimento do contrato-promessa, uma vez que já não subsiste juridicamente. Em consequência não haveria direito do promitente-comprador ao dobro do sinal prestado, desaparecendo de igual forma o seu direito de retenção. O respetivo crédito iria assim figurar na graduação com uma natureza meramente comum.

A Doutrina expendida no Douto Parecer junto vem em reforço desta posição.

Com o devido respeito, optamos pela solução contrária. Começaremos por referir que a norma do artigo 102º do CIRE acima transcrito se aplica, como se vê do próprio texto, “sem prejuízo do estatuído nos artigos seguintes”, conferindo de certa forma autonomia ao estatuído no artigo 106º; e aqui a lei é expressa ao referir que “no caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador; a isto acresce que nada apontando, a nosso ver, para o facto de ter havido intuito de modificar com a entrada em vigor do CIRE a orientação legislativa ao nível das consequências de incumprimento da promessa do contrato e suprindo pelo recurso ao regime da compra e venda com reserva de propriedade, a omissão da regulamentação do contrato promessa com efeito obrigacional e tradição do objeto, ficará o nº 2 do artigo 106º aplicável apenas ao contrato promessa com efeito meramente obrigacional e em que não tenha havido aquela tradição ao promitente-comprador[17]. Só aqui, e a menos que uma das partes tenha cumprido integralmente a sua obrigação, poderá o administrador optar por cumprir ou recusar a execução do contrato.

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Não se aduza ainda, contra o entendimento exposto, que não há imputação de culpa a fazer em caso de insolvência porque com a declaração desta última, a relação jurídica existente, então reconfigurada, não a poderá comportar, já que ao insolvente se substitui e passa a figurar em juízo apenas a massa falida e o administrador; é para nós claro o cariz redutor deste entendimento; a insolvência não surge do nada, radicando antes e à partida no comportamento de uma entidade que se mostrou não ter cumprido as suas obrigações. Nestes casos já foi decidido e bem, neste Supremo Tribunal de Justiça[18], que se verifica uma imputabilidade reflexa considerando o comportamento da insolvente na origem do processo falimentar; acresce que, seria sempre a esta última que cumpriria afastar a culpa, que se presume, em matéria de responsabilidade civil contratual – artigo 799º nº 1 do Código Civil. Por último diremos que o artigo 97º do CIRE que se reporta à extinção de privilégios creditórios e garantias reais, com a declaração de insolvência, não enumera “o direito de retenção” no elenco dos extintos. Adiante-se ainda que, como bem salienta o recorrente, bastaria, caso contrário, que uma empresa promitente vendedora e incumpridora do contrato, se apresentasse à insolvência para evitar as consequências do incumprimento.

Em suma concluímos que não sendo afetado o contrato-promessa, mantêm-se os efeitos do incumprimento a que se reporta o artigo 442º nº 2 do Código Civil. Destarte o crédito pedido do reclamante, valor em singelo no montante de € 108.488,54, mantém a prevalência que lhe é conferida pelo “direito de retenção” tendo sido e bem, graduado acima da hipoteca da CGD.

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2.2.5. Implicações constitucionais desta problemática.

Entende a CGD que a interpretação segundo a qual o âmbito do artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil se restringirá aos casos em que o promitente-comprador seja um consumidor viola a Constituição da República designadamente os princípios da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito democrático constante do artigo 2º da Constituição da República, igualdade, proporcionalidade e confiança.

     No tocante ao princípio da igualdade estatui o artigo 13º nº 1 da Constituição da República que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Mas seria ocioso tecer grandes considerações sobre aquilo que é de há muito um dado adquirido sobre aquele normativo: não se pode tratar de uma forma igual aquilo que à partida é desigual. Ora a dilucidação desta problemática depende essencialmente de uma ponderação dos valores e interesses legítimos vigentes na sociedade num determinado momento histórico. E considerações semelhantes valem também no tocante ao princípio da proporcionalidade, também informador do sistema jurídico; a sua aplicação ao caso concreto terá que fazer-se tendo em vista os valores que se entende constituírem os prevalentes na comunidade, harmonizando-os axiologicamente entre si[19]. Como em muitos outros setores do ordenamento jurídico, também aqui, ao nível do contrato promessa, o legislador no seu poder-dever de corrigir desequilíbrios e tomando em linha de conta os interesses e riscos em presença, entendeu propender para a proteção da parte mais débil, o promitente-comprador, face ao credor hipotecário, desde que aquele tivesse entregue ao outro outorgante o sinal e obtido a tradição do objeto do contrato. Assim e na linha do entendimento do que tem vindo a ser repetidamente decidido por este Supremo Tribunal e ainda pelo Tribunal Constitucional, não vemos que haja qualquer inconstitucionalidade naquela opção legislativa[20]. A acrescer ainda a estas razões, não pode igualmente esquecer-se que no momento em que a garantia hipotecária se constituiu, já estavam em vigor os artigos 755º nº 1 alínea f) e 759º nº 2 do Código Civil, o que reforça a necessidade de o credor hipotecário ter de acautelar-se contra os efeitos para eles possivelmente nefastos daquela preferência[21]. Não se argumente pois de igual modo que os princípios da previsibilidade e segurança seriam afetados pela concessão e prevalência do direito de retenção; trata-se de mais uma escolha do legislador, à semelhança de outras – v.g. créditos de trabalhadores - que evidencia claramente uma ponderação de interesses em atenção à parte mais fraca no âmbito da relação contratual, o que implica necessariamente compressão de alguns direitos com vista à busca de uma solução mais equitativa; é o que sucede quanto à prevalência excecional do crédito emergente de contrato promessa ainda, que de natureza obrigacional, sobre a hipoteca, desde que se tenha verificado a tradição do respetivo objeto acompanhada pelo pagamento total ou parcial do preço[22]. Poder-se-á dizer, parafraseando um acórdão deste Supremo Tribunal[23], estarem assim presentes, na interpretação exposta das normas aplicadas, os critérios práticos da justa medida, razoabilidade e adequação material ínsitos no princípio da proporcionalidade que temos vindo a comentar.

     Equacionada desta forma a problemática, especialmente sob o ponto de vista de ambos os reclamantes apontados no âmbito do processo de insolvência, diremos que a solução obtida encontra no contexto socioeconómico que vivemos, premente atualidade; é que se bem que as normas legislativas pertinentes, maxime as constantes do Código Civil, tenham tido na sua génese, de um modo especial, a inflação que se viveu entre o final da década de 70, aproximadamente até meados dos anos 80 do século passado, não é menos certo que o eclodir da crise económica que atravessamos, inesperada para a generalidade dos consumidores, trouxe consigo um elevadíssimo número de insolvências em que naturalmente se poderão surpreender questões desta natureza. Daí que o entendimento adotado se imponha com força redobrada[24].

Impor-se-á destarte revogar na parte impugnada o Acórdão da Relação, decidindo que em seu lugar fique a vigorar o estatuído em 1ª instância.

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3. DECISÃO.

Nesta conformidade:

I - Acorda-se em conceder a revista revogando assim na parte impugnada o Acórdão da Relação e decidindo que em seu lugar fique, na parte impugnada, a vigorar o decidido em primeira instância, nos seguintes termos:

Com o produto da venda das frações I e X do apenso de apreensão de bens, sejam pagos os créditos graduados segundo a seguinte ordem:

1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem imóvel;

2º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito do credor BB.

3º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário da Caixa Geral de Depósitos SA.

4º Do remanescente, dar-se-á pagamento ao restante crédito privilegiado do Instituto de Segurança Social, I.P.;

5º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns artigo 47º nº 4 alínea c).

6º Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos subordinados, caso existam, pela ordem prevista no artigo 48º.

Custas pela recorrida.                                                         *

De harmonia com o preceituado no artigo 732º-A do Código de Processo Civil uniformiza-se Jurisprudência nos seguintes termos:

= No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil. =.

Lisboa, 20 de Março de 2014. – Távora Victor (Relator) -Fernandes do Vale (subscrevo a declaração de voto do Exmo. Cons. Fonseca Ramos) - Granja da Fonseca - Fernando Bento - Tavares de Paiva - Silva Gonçalves - Ana Paula Boularot – Maria Clara Sottomayor - Azevedo Ramos - Moreira Alves (com a declaração de voto que anexo) - Alves Velho (com declaração de voto, que junto) - Sousa Leite – Fonseca Ramos (anexo declaração de voto) – Ernesto Calejo – Helder Roque - Salazar Casanova (com declaração de voto) - Álvaro Rodrigues - Orlando Afonso - Sérgio Poças (Vencido. Acompanho nos seus termos o voto de vencido apresentado pelo colega A. Geraldes) - Gabriel Catarino (Vencido) - João Trindade (Vencido de acordo com a declaração do Conselheiro João Bernardo) - Abrantes Geraldes (com declaração de voto anexa) - Sebastião Póvoas (Vencido nos termos da declaração de voto junta) - Nuno Cameira (Vencido, conforme declaração de voto que junto) - Pires da Rosa (Vencido, conforme declaração que junto) - Bettencourt de Faria (Vencido conforme o voto de vencido do Cons. Lopes do Rego) - Salreta Pereira (Vencido conforme voto junto) - Pereira da Silva (Vencido, consoante declaração de voto que junto) - João Bernardo (Vencido conforme voto que junto) - João Camilo (Vencido) - Paulo Sá (Vencido com declaração que anexo) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Vencida, nos termos da declaração junta) - Oliveira Vasconcelos (Vencido, nos termos da declaração do Exmo. Conselheiro Lopes do Rego)- Serra Baptista (Vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Lopes do Rego) – Lopes do Rego (Vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Henriques Gaspar (Presidente)

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Declaração de Voto

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Voto o acórdão, mas não perfilho o paralelismo acolhido entre o Artº 106º nº 2 e 104º nº 1 do C.I.R.E., daí que, salvo melhor opinião, não possa concluir-se pela impossibilidade de o administrador recusar o cumprimento, quando o contrato - promessa é meramente obrigacional, ainda que tenha ocorrido tradição da coisa.

Assim, recusado o cumprimento, aplica-se o regime geral do Artº 102º nº 3, sem prejuízo do direito de retenção, havendo tradição da coisa.

Restringiria, por isso, a garantia ao valor do crédito que resultasse da aplicação do critério definido no citado nº 3 do Artº 102º do C.I.R.E.


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Lisboa, 13/3/2014

Moreira Alves

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Declaração de voto.

Voto o acórdão.

Não acompanho, porém, os seus fundamentos quanto à convocação do “lugar paralelo” a que se refere o art. 104º-1 do CIRE (parte final do ponto 2.2.3) e à interpretação proposta para o n.º 2 do art. 106º do mesmo diploma (2º parágrafo do ponto 2.2.4).

 Incluiria também no segmento de uniformização a menção de restrição da garantia do direito de retenção ao valor do crédito resultante da aplicação do disposto no art. 102º-3 do CIRE.

( Alves Velho)

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Declaração de voto.

         Não acompanho o trecho da fundamentação quando se afirma que, em relação ao promitente vendedor declarado insolvente, “se verifica uma imputabilidade reflexa” causal da insolvência, considerando o comportamento (ilícito) do promitente vendedor na origem reflexa do processo falimentar, porque, desde logo, a insolvência pode ter sido fortuita – arts. 185º e 189º, nº1, do CIRE.

 Ligar o incumprimento do contrato promessa à opção (lícita) do administrador da insolvência em cumprir ou não cumprir o contrato em curso, contraria a opção potestativa daquele – art. 102º, nº1 do CIRE – ope legis desligada da actuação do insolvente, não sendo tal opção compaginável com o disposto nos arts. 798º e 799º do Código Civil.

A recusa do administrador da insolvência em executar o contrato promessa de compra e venda em curso de execução, em que era promitente-vendedor o ora insolvente, não exprime incumprimento de tal contrato mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo insolvencial, não sendo aqui aplicável o normativo do art. 442º, nº2, do Código Civil – “incumprimento imputável a uma das partes” – que pressupõe um juízo de censura em que se traduz o conceito de culpa, neste caso ficcionando que a parte que incumpre seria o administrador da insolvência na veste do promitente ora insolvente.

Fonseca Ramos

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O administrador da insolvência pode optar por cumprir ou não cumprir o contrato-promessa em que houve tradição sem eficácia real (artigos 102.º/1 e 106.º/1 do CIRE) salvo se a opção for considerada abusiva (artigo 102.º/4 do CIRE). A opção pelo não cumprimento, em si lícita, radica, porém numa situação de insolvência, não eximindo a responsabilidade em que incorre o promitente que, deixando-se cair em insolvência, perde os poderes de administração e disposição dos seus bens que passam a competir ao administrador da insolvência (artigo 81.º/1 do CIRE).

O não cumprimento é, por conseguinte, imputável ao promitente insolvente, gozando de direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido (artigo 755.º/1, alínea f) do Código Civil).

A limitação do direito de retenção ao beneficiário da promessa que seja consumidor não é determinada pelo regime da insolvência, decorre da interpretação restritiva deste último preceito, afigurando-se-nos que vale para todos os casos em que o mesmo seja aplicável.

Lisboa, 20-3-2014

Salazar Casanova    

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A minha discordância relativamente ao decidido circunscreve-se apenas à explicitação de que o direito de retenção conferido pelo art. 755º, nº 1, al. f), do CC, apenas pode ser invocado no processo de insolvência nos casos em que o promitente-comprador, titular do crédito reclamado, tem a qualidade de consumidor.

Como decorre dos preâmbulos do Dec. Lei nº 236/80, de 18 de Julho, e do Dec. Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, o objectivo fundamental das modificações que foram introduzidas no regime do contrato-promessa de compra e venda, designadamente no que se reporta à atribuição do direito de retenção em situações de tradittio do bem, foi o de tutelar os interesses dos promitentes-compradores em geral, sem que o legislador tenha assumido formalmente a aludida limitação subjectiva. Por isso, não encontro motivos para a sua inscrição num acórdão de uniformização de jurisprudência proferido num processo em que, aliás, nem sequer foi discutida a qualidade em que o reclamante interveio no contrato-promessa de compra e venda.

Por conseguinte, além de sustentar a exclusão dessa limitação da fundamentação do acórdão, considero que a súmula jurisprudencial deveria ser a seguinte:

“No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o crédito do promitente-comprador emergente de contrato-promessa, ainda que com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC”.

Abrantes Geraldes

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Declaração de Voto

Não subscrevo o Acórdão ora votado pelas razões que sumariamente (e o tempo disponível não me permite ser mais sucinto) passo a expor:

1. Em 19 de Setembro de 2006 relatei o Acórdão 06 A2335 tendo, além do mais, concluído que: “a falência gera uma situação de impossibilidade objectiva e superveniente de cumprimento, por parte do promitente vendedor falido, a quem essa impossibilidade é imputável por se ter colocado em situação que não lhe permite satisfazer pontualmente as suas obrigações.”

E que “tendo o falido recebido o sinal, a massa fica devedora do seu dobro”.

Finalmente, afirmou-se que “a alínea f) do artigo 755.º do Código Civil garante o direito de retenção – direito de garantia «erga omnes» e atendível no concurso de credores – ao promitente-comprador que obteve a tradição da coisa, pelo crédito do dobro do sinal prestado”.

Assim continuo a entender na vigência do CPEREF, e respectivo artigo 164-A, reportado à extinção dos contratos-promessa, com eficácia meramente obrigacional, não cumpridos mas que, ao tempo da falência, ainda não padecessem de uma situação de incumprimento definitivo.

Mau grado a declaração de falência, mantinha-se a aplicação do artigo 442.º do Código Civil, com o regime do sinal e da execução específica sendo que daí resultava o direito de retenção por força da alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil.

Este direito real de garantia tinha uma natureza atípica por se afastar da conceptualização do artigo 754.º daquele diploma já que o crédito garantido não resultava de despesas feitas com a coisa retida ou de “danos por ela causadas”.

2. Acontece, porém, que actualmente o CIRE, aqui aplicável, alterou toda a dogmática anterior.

Vejamos, então.

Como se disse, o n.º 1 do citado artigo 164-A do CPEREF dispunha que o contrato promessa com eficácia meramente obrigacional, “que se encontre por cumprir à data da declaração de falência, extingue-se com esta, com perda do sinal entregue ou restituição em dobro do sinal recebido, como dívida da massa falida consonante os casos”, admitindo-se “a possibilidade de o liquidatário judicial, ouvida a comissão de credores, optar pela conclusão do contrato prometido, ou requerer a execução específica da promessa se o contrato o permitir.”

O vigente CIRE dispõe, no artigo 102.º, sob a epígrafe “Princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos”:

“1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.

2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.

3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:

a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;

b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;

c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;

d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:

I) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);

II) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);

III) Constitui crédito sobre a insolvência;

e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.

4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.”

E o artigo 106.º, subordinado ao título “Promessa de contrato”:

“1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.

2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor.”

Vê-se, pois, ter ocorrido uma profunda alteração quanto aos contratos ainda não cumpridos.

E tal é, expressamente referido, e justificado, no relatório preambular do actual diploma, nos seguintes termos:

“O capítulo dos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios jurídicos em curso é um daqueles em que a presente reforma mais se distancia do regime homólogo do CPEREF. Ele é objecto de uma extensa remodelação, tanto no plano da forma como no da substância, que resulta de uma mais atenta ponderação dos interesses em causa e da consideração, quanto a aspectos pontuais, da experiência de legislações estrangeiras. Poucas são as soluções que se mantiveram inalteradas neste domínio. De realçar é desde logo a introdução de um «princípio geral» quanto aos contratos bilaterais, que logo aponta para a noção de «negócios em curso» no âmbito do processo de insolvência: deverá tratar-se de contrato em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento tanto pelo insolvente como pela outra parte. O essencial do regime geral disposto para tais negócios é o de que o respectivo cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Vários outros tipos contratuais são objecto de tratamento específico, surgindo diversas e relevantes inovações nos domínios da compra e venda, locação, mandato, entre outros. O capítulo termina com uma importante norma pela qual se determina a nulidade de convenções que visem excluir ou limitar a aplicação dos preceitos nele contidos. Ressalvam-se, porém, os casos em que a situação de insolvência, uma vez ocorrida, possa configurar justa causa de resolução ou de denúncia do contrato em atenção à natureza e conteúdo das prestações contratuais, o que poderá suceder, a título de exemplo, no caso de ter natureza infungível a prestação a que o insolvente se obrigara.”

3. Daí o ser notório que o legislador quis ver excluído o regime do artigo 442.º do Código Civil nos contratos-promessa de compra e venda, ao contrário do que acontecia no diploma anterior.

E, como consequência, deixa de ter aplicação a alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º daquele Código.

Neste segmento acompanhamos o Acórdão do STJ de 14 de Junho de 2011 – 6132/08.OTBBRG-J.G1.S1 – de relato do M.º Conselheiro Fonseca Ramos onde se afirma: “Assim, não sendo aplicável na insolvência o artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, desde logo não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção nos termos do artigo 755.º, n.º 1, f) do Código Civil.”

Porém, o Dr. Gravato de Morais (in “Promessa Obrigacional de Compra e Venda com Tradição da Coisa e Insolvência do Promitente Vendedor” apud, “Cadernos de Direito Privado”, 29, 9 e ss) aceita, nestes casos, a admissibilidade do direito de retenção.

Mas, e como acenei, o citado n.º 2 do artigo106.º, do CIRE, com remissão em 2.º grau para o também citado artigo 102.º, estabelece um regime autónomo de regulação das consequências da recusa de cumprimento da promessa de contrato sem eficácia real, “maxime” quanto à indemnização, a tornar inaplicável o artigo 442.º do Código Civil.

4. Por isso entendo que não existe o direito de retenção previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º já que este pressupõe a indemnização/aplicação do último preceito citado.

E ainda perante este quadro, e sob pena de violação do princípio “ubi lex non distinguit…” não pode, como se pretende no aresto votado buscar-se a figura de “comerciante-consumidor” a cujo apelo fazem o Acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 2011 – 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1 e o Dr. Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, n.º 33 e 41).

5. Razões por que fui vencido.

Sebastião Póvoas

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Votei vencido pelos fundamentos expressos na alínea b) da declaração de voto da Consª Maria dos Prazeres Beleza e nas alíneas b) e c) da declaração de voto do Consº Lopes do Rego, que subscrevo.

Lisboa, 13 de Março de 2014

(Nuno Cameira)

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Vencido quanto, e apenas quanto, ao segmento uniformizador do acórdão.
Recuperando o meu voto de vencido no acórdão (intercalar ) que reconheceu a nulidade do original acórdão proferido nestes autos, anulando-o, direi que a questão colocada perante este Supremo Tribunal não é a da dicotomia consumidor/não consumidor como linha que separa a existência da inexistência do direito de retenção ( até porque, reconhecidamente, esse problema se não colocou nas instâncias – veja-se a nota 7 a fls.19 do acórdão onde se escreve « não sofre dúvida que o promitente comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda » ), mas antes a de saber se sim ou não, em processo de insolvência, se mantém vivo o direito de retenção configurado na al. f ) do nº1 do art.755º do CCivil, exactamente tal como essa configuração existe e tendo por detrás, naturalmente, as considerações constantes dos preâmbulos dos Decs.leis nºs236/80, de 10 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro.
Mas exactamente porque a questão que nos é colocada era esta – a que se descreveu – e não outra, não penso que se possa redigir o segmento uniformizador do acórdão de um modo que não seja circunscrito a isso mesmo, deixando intacta a formulação do direito de retenção constante do artigo. Assim, por exemplo: o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, inscrito no art.755º, nº1, al. f ) do CCivil, permanece qua tale em processo de insolvência.
Aos tribunais, caso a caso, competirá descobrir se se está ou não perante a situação de facto socialmente atendível em que deve nascer um tal direito, o que farão afinando o conceito de tradição até à afirmação de que sem consumo não há tradição.
Assim se protegerá o consumidor (art.2º, nº1, da Lei nº24/96, de 31 de Julho) e só o consumidor, cumprindo o desiderato dos diplomas legais referenciados.

                        (Pires da Rosa)

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VOTO DE VENCIDO
 
Anulado o acórdão proferido na revista nº 92/05.6TYVNG-M.P1.S1, por se ter reconhecido que o segmento uniformizador contradizia a respectiva fundamentação, houve que suprir tal nulidade, pondo termo à reconhecida contradição.
      A maioria que fez vencimento decidiu manter a fundamentação do acórdão anulado, alterando o segmento uniformizador, onde passou a constar:
"No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o promitente-comprador consumidor, em contrato com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos estatuídos no artº 755º nº 1 al. f), do CC, como garantia do pagamento do seu crédito, no caso do administrador da insolvência optar pelo seu não cumprimento".
Quando da discussão e votação do acórdão anulado, foi decidido, por uma quase unanimidade, que qualquer promitente-comprador, com tradição da coisa, goza do direito de retenção para garantia do pagamento do seu crédito, nos termos do disposto no artº 755º nº 1 al. f), do CC.
Por outro lado, o DL 379/86, ao alterar a disciplina do contrato-promessa, designadamente os artºs. 410º, 412º, 413º, 421º, 442°, 755º n° 1 al f) e 830º, todos do CC, não restringiu o direito de retenção ao promitente-comprador consumidor.
Por último, não está sequer dado como provado nos autos que o recorrente seja um promitente-comprador consumidor.
Por estas razões manteria o segmento uniformizador do acórdão anulado e alteraria a respectiva fundamentação, conformando-a com a decisão de que o direito de retenção assiste a todo o promitente-comprador, com tradição da coisa.

Salreta Pereira

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido, tão só no tocante ao segmento uniformizador do acórdão que redigiria nos termos propostos pelo Sr. Conselheiro Pires da Rosa, pelas razões constantes da declaração de voto que subscreveu.


Lisboa, 13 de Março de 2014

as) Pereira da Silva

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Votei vencido quanto à inclusão da referência a “consumidor” no texto uniformizador, entendendo que se devia manter a orientação seguida no Acórdão Uniformizador entretanto declarado nulo.

Não vejo no texto da alínea f) do n.º1 do artigo 755.º do Código Civil o mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso a que alude o artigo 9.º, n.º2 do mesmo Diploma Legal, no sentido de distinguir os “consumidores” dos “não consumidores”.

 Em qualquer caso, entendi que, dos factos provados não resulta que o reclamante seja “consumidor”.

João Bernardo

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Voto de vencido:

Entendo que o direito de retenção aqui reconhecido se deve estender, tal como resulta da letra do disposto no art. 755º, nº 1, al. f) do Cód. Civil, ao credor que se encontre na situação prevista nesta alínea, sem a restrição de ter de revestir a qualidade jurídica de consumidor.

Esta qualidade jurídica de consumidor integra o bem jurídico que o legislador visou proteger ao atribuir o direito de retenção em causa, alterando a redacção primitiva do preceito do art. 755º, nº 1 referido.

Mas essa mesma qualidade não foi querida pelo legislador como elemento constitutivo do direito de retenção em causa.

Assim e em conclusão, votaria o acórdão em apreço com a parte uniformizadora que reconhecesse o direito de retenção em causa sem a restrição de o respectivo titular ter de ser consumidor.

João Camilo

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Votei vencido, no essencial, nos termos do voto do Conselheiro Abrantes Geraldes.

Dissocio-me, igualmente, da fundamentação do acórdão, nos termos da declaração de voto do Conselheiro Alves Velho.

Lx, 13 de Março de 2014

(Paulo Sá)

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Votei vencida por duas razões:

1ª) Em primeiro lugar, porque teria corrigido a nulidade do acórdão de fls…harmonizando a fundamentação com o segmento uniformizador que votei, e que não incluía a restrição ao promitente-comprador que, simultaneamente, tivesse a qualidade de consumidor.

2ª) Em segundo lugar, porque penso que essa restrição não tem tradução nos preceitos legais relevantes para determinar se, nas condições verificadas no caso presente (contrato-promessa sem eficácia real, declaração de insolvência do promitente-vendedor, opção do administrador da insolvência pela não realização do contrato definitivo), o promitente-comprador que obteve a tradição da coisa goza ou não do direito de retenção, como garantia do crédito resultante do incumprimento imputável à contraparte.

Conforme consta de declaração que juntei ao acórdão anulado, e pelas razões indicadas no acórdão de 12 de Maio de 2011 (proc. nº 5151/06.TBAVR.C1.S1), discordo da interpretação perfilhada para o nº 2 do artigo 106º do CIRE, porque me parece que, se o contrato-promessa não tiver eficácia real, a circunstância de ter havido tradição não afasta a possibilidade de recusa de cumprimento, por parte do administrador da insolvência.

Essa possibilidade, no entanto, não implica a recusa de reconhecimento de uma situação de incumprimento imputável ao insolvente e, consequentemente, do direito de retenção, tendo em conta o conceito de imputabilidade perfilhado no acórdão de 22 de Fevereiro de 2011, proc. nº 1548/06.9TBEPS-D.G1.S1, aliás citado no ponto 2.2.4 do acórdão –  equivalente a “ter dado causa”, “ter motivado” .

Saliento, ainda, que o reconhecimento do direito de retenção é independente de saber qual o regime aplicável à determinação do montante do crédito assim garantido (cfr. nº 2 do artigo 102º do CIRE  e nº 2 do artigo 442º do Código Civil); e que a delimitação subjectiva dos beneficiários do direito de retenção, no âmbito do contrato-promessa, se deve fazer interpretando devidamente o conceito de tradição da coisa que se prometeu vender, como se observa na declaração de voto do Conselheiro Lopes do Rego, assim se cumprindo o objectivo com que a lei estendeu o direito de retenção ao promitente-comprador.

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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Vencido, já que ao suprir a nulidade - que a maioria do Plenário entendeu inquinar o acórdão anteriormente proferido -  teria mantido inteiramente a formulação que oportunamente votei para o segmento uniformizador e que não tenho qualquer razão substancial para alterar, ou seja:

No âmbito da graduação de créditos em insolvência o promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil.

Concordando, no essencial, com os argumentos expostos na fundamentação do presente acórdão e que consideram aplicável, mesmo no âmbito da insolvência, a garantia real outorgada ao promitente comprador que obteve a tradição da coisa pela alínea f) do nº1 do art. 755º do CC ( embora se nos afigure que esta tutela não é equiparável à do titular de um verdadeiro direito real de aquisição, emergente da concessão de eficácia real à promessa de alienação), discordamos que se institua como elemento constitutivo do direito de retenção, quando circunstancialmente  invocado em processo de insolvência, a qualidade de consumidor do promitente comprador que obteve a tradição do imóvel.

É que, no nosso entendimento:

a) a questão a dirimir no presente recurso de uniformização de jurisprudência consiste apenas em determinar se a garantia real outorgada ao promitente comprador que obteve a tradição do imóvel pela alínea f) do nº1 do art. 755º do CC ( independentemente do valor do crédito resultante do incumprimento, ou seja, de este se calcular pelos critérios específicos consagrados no art. 442ºdo CC ou antes pelos resultantes das normas do Código da Insolvência) é invocável no âmbito do processo de insolvência.

Ora, afigura-se que o âmbito e os pressupostos do direito de retenção atribuído ao promitente comprador que obteve a tradição da coisa devem ser exactamente os mesmos, verifique-se ou não a situação de insolvência do promitente vendedor – não fazendo sentido admitir que, independentemente da qualidade de consumidor – não prevista como elemento da fattispecie daquela norma do CC - , o promitente comprador goze de direito de retenção fora do âmbito do processo falimentar – passando, porém, a exigir-se aquele requisito adicional, restritivo do âmbito da referida garantia real, quando reclame o seu crédito em procedimento de liquidação universal.

Na realidade, não encontramos qualquer apoio que permita considerar que os pressupostos legais da garantia real/ direito de retenção possam ou devam ser diferentes, consoante tal garantia real seja efectivada em acção comum ou no âmbito de um processo de liquidação universal.

b) Isto não significa que se não tenha em consideração que a atribuição do direito de retenção ao promitente comprador nos casos de tradição do imóvel prometido vender - e o regime de prevalência desta garantia real sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada - não tenha subjacente uma essencial intenção legislativa de protecção do consumidor (aliás claramente explicitada pelo legislador no preâmbulo dos diplomas legais que, nesta sede, alteraram o regime originário do CC): simplesmente, não pode confundir-se a identificação do bem ou interesse jurídico tutelado por certa norma legal com o plano da previsão dos elementos constitutivos do tipo ou fattispecie normativa em questão: e, no caso em apreciação, afigura-se que o bem jurídico primacialmente prosseguido ( a tutela do consumidor) não foi arvorado pelo legislador em elemento constitutivo do direito de retenção previsto na alínea f) do nº1 do art. 755º do CC, pelo que não terá tal qualidade de ser alegada e provada, como verdadeiro elemento essencial da causa de pedir, pelo reclamante que pretenda efectivar esta garantia real em processo de insolvência.

Saliente-se, aliás, que a orientação ora adoptada pelo Plenário, ao erigir a qualidade de consumidor em verdadeiro elemento constitutivo essencial da garantia real/direito de retenção, impondo, consequentemente, ao reclamante o ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade de consumidor, vem criar uma situação delicada nos processos pendentes, em que o reclamante não curou naturalmente de alegar, em termos processualmente adequados, tal qualidade jurídica, cuja essencialidade não era razoavelmente previsível – estando ultrapassado o momento processual próprio para completar ou corrigir a petição insuficiente.

c) Na verdade, a ponderação e o relevo a atribuir à dita qualidade de consumidor devem traduzir-se, a nosso ver, no plano de uma correcta interpretação dos pressupostos tipificados na norma constante da alínea f) do nº1 do art. 755º do CC, nomeadamente do sentido a atribuir ao conceito legal de tradição do imóvel, de modo a proceder-se uma interpretação funcionalmente adequada deste verdadeiro requisito ou elemento constitutivo do direito de retenção – excluindo a existência de tradição do imóvel em todos os casos em que se verifique que, afinal, o promitente comprador lhe não deu um uso real , permanente e efectivo, afectando-o a uma satisfação dos seus interesses e necessidades cuja intensidade justifique a tutela reforçada da confiança na estabilidade da sua posição jurídica que resulta da atribuição da garantia real em questão.

                                                        Lopes do Rego

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[1] De interesse para a análise desta problemática, inclinando-se alguns para a concessão e consequente prevalência do direito de retenção cfr. Acs. deste Supremo Tribunal de 27-11-2007 (Silva Salazar); 7-4-2005 in Revista 487/05 6ª secção (Azevedo Ramos); 11-7-2006 Revista 2106/06, 2ª secção (Duarte Soares); 18-11-2008 in Revista nº 3203 – 2ª Secção (Oliveira Vasconcelos); 12-1-2010 in Revista nº 630/09. 5YFLSB 1ª Secção (Alves Velho);25-5-2010 in Revista nº 1336/06. 2TBBCL-G1.S1 7ª Secção; 30-11-2010 in Revista nº 2637/08. 0TBVCT-F - 1ª Secção (Moreira Camilo); 22-11-2011 in Revista nº 1548/06. 9TBEPS-D.S1 – 6ª Secção (Azevedo Ramos); 20-5-2010 in Revista 1336/06.2TBBCL-G.G1.S1 – 7ª Secção. Nas Relação os Acs. da Rel Coimbra de 15-1-2013 in Apel. 511/10.0TB; Rel Évora s.d. in Ap. 3052/10. 1TBSTR Todos das Bases da DGSI.

Em sentido diverso e pela prevalência da hipoteca, não gozando até o promitente-comprador, no caso de incumprimento do contrato promessa, direito de retenção, à luz do novo CIRE, poderão ver-se a nível das Relações, para além do aresto que ora analisamos, os Acs. da Rel de Guimarães de 14-12-2010 in 6132/08.oTBBRG.G1 e Rel. do Porto de 13-12-2012 in Apelação 1092/10.0TB.LSD-G.P1. Merece ainda relevo pela sua peculiaridade o douto Ac. deste STJ de 14-6-11 (Fonseca Ramos 6132/ 08).
[2] É o que sucede com Maria da Conceição da Rocha Coelho in “O Crédito Hipotecário face ao Direito de Retenção” Tese de mestrado Universidade Católica Portuguesa, 2011, págs. 39 ss. Cfr. ainda as considerações de Cláudia Madaleno in “A Vulnerabilidade das Garantias Reais”, Coimbra Editora 2008 págs. 262 ss; João Maldonado “O Direito de Retenção do beneficiário da promessa de transmissão de coisa imóvel e a hipoteca” Tese de Mestrado in Revista Julgar. Salvador da Costa “O Concurso de Credores” Almedina, Coimbra 3ª Edição, maxime págs. 220 ss. – nomeadamente levantando reservas à concessão do “direito de retenção” com prejuízo da hipoteca em caso de incumprimento do contrato promessa; Menezes Leitão “Garantias das Obrigações” Almedina, Coimbra, 2006, págs. 243, nota 552. No entanto em sentido contrário e conforme com o entendimento maioritário jurisprudencial, Pestana de Vasconcelos “Direito de Retenção Contrato Promessa e Insolvência” in Cadernos de Direito Privado nº 33, págs. 3 ss; Luís Manuel Telles de Menezes Leitão, já no “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado 6ª Edição.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado” I, em anotação ao artigo 754º; Almeida Costa “Direito das Obrigações”, Almedina, Coimbra, 8ª Edição, págs. 899 ss. Júlio Gomes “Do Direito de Retenção” Arcaico mas eficaz in Cadernos de Direito Privado págs. 3 ss.
[4] Cfr. Pires de Lima “Noções Fundamentais de Direito Civil” I, págs. 336.
[5] Cfr. para um historial breve desta evolução Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit. I 4ª Edição, pags, 772 ss em anotação aos normativos ali citados e o Ac. deste STJ de 2-5-2010 proferido na Revista nº 1336/06.2TBBCL.G.G1.S1 (Alberto Sobrinho) in Bases da DGSI.
[6] Para além dos arestos citados nomeadamente deste Supremo Tribunal refiram-se ainda os de 08-10-1992 in Bol. do Min. da Just., 420, 495.
[7] Dando conta destes riscos aliás inegáveis, cfr. Salvador da Costa in Concurso de Credores, Almedina 3ª Edição pags, 220 que aponta a possibilidade de simulação contratual dos devedores dos bancos com terceiros visando a criação de falsas situações de incumprimento para prejudicar as instituições de crédito; Pires de Lima e Antunes Varela in Ob. Cit e Menezes Cordeiro in “O novíssimo Regime do Contrato-promessa” CJ Ano XII, Tomo II, 1987 págs. 16 chamam a atenção para o retraimento dos bancos na concessão de crédito em resultado do risco corrido com a solução que se propõe.
[8] Cfr. v.g. o Ac. deste STJ de 18-9-2007 in Revista nº 2235/07 – 6ª Edição in Bases da DGSI
[9] Cfr. neste sentido desde logo o Ac. deste STJ de 30-1-2003 in Proc. 02B4471  in bases da DGSI.
[10] Cfr. v.g. Miguel Pestana de Vasconcelos “Direito de Retenção Contrato promessa e Insolvência” in “Cadernos de Direito Privado”, 3 págs. 8 ss. Não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda.
[11] Não suscitava dúvidas nomeadamente a nível da Doutrina; Cfr. Maria do Rosário Epifânio “Os efeitos substantivos da falência” Porto 2000, Universidade Católica págs. 290 ss; Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda “Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado” Quid Iuris 3ª Edição págs. 428 s. 
[12] Esclarecendo que se trata de um direito efectivo do promitente-comprador cfr. Oliveira Ascensão “Insolvência: Efeitos Sobre os Negócios em Curso in Revista Themis, 2005.
[13] O incumprimento definitivo verifica-se aliás no caso em análise, sendo concludente o comportamento do administrador da insolvência ao mencionar na relação de créditos apresentada o crédito do reclamante com as garantias que entende ser portador – artigo 129º do CIRE; a declaração prestada pelo Administrador leva implícita a existência de incumprimento.   
[14] No fundo trata-se da solução já preconizada pelo douto Acórdão deste Supremo Tribunal de 20/10/2010) (Revista nº 273/05.2TBGVA.C1.S1 (Helder Roque).
[15] Aliás em abono do exposto. o preferente BB refere estar paga a totalidade da dívida.
[16] Conf. com interesse, Menezes Leitão in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, Almedina 6ª Edição, 2012, em anotação ao artigo 106º; e ainda mesmo A. “Direito da Insolvência” Coimbra, Almedina, 2009, págs. 181 ss. 
[17] Cfr. para além do citado estudo de Pestana de Vasconcelos, Gravato de Morais in “Cadernos de Direito Privado” nº 29 págs. 3 ss.
[18] Cfr. os doutos Acs. deste Supremo Tribunal de 19-9-2006 (Sebastião Póvoas); os já citados acórdãos proferidos in Revista 1548/04 (Azevedo Ramos) in Bases da DGSI e ainda Gravato de Morais ob cit. págs. 10)
[19] Genericamente Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República in Anotação ao artigo 13º e Bibliografia aí apontada; Gomes Canotilho “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Almedina, Coimbra 5ª Edição págs. 413 ss. Ac. do Tribunal Constitucional nº 594/2003 in site respectivo, proporcionalidade);
[20] Cfr. os Acs deste STJ de 18-11-2008 (Oliveira Vasconcelos) in Revista 3203/08, 2ª edição in site da DGSI.
[21] Salientando este ponto, cfr. Ac. TC 356/04, referindo ainda que “o direito de retenção associado à tradição da coisa implica uma conexão com o imóvel ou fracção objecto da garantia real que não existe por via de regra nos privilégios creditórios gerais”.
[22] Dando conta das implicações sociais da opção legislativa e do equilíbrio a que aludimos cfr. os Acs. do TC 357/2004; nº 594/2003; o entendimento do princípio da proporcionalidade; vincando a desigualdade entre as instituições de crédito detentoras da garantia hipotecária e os particulares consumidores, o Ac TC 374/2003, todos no respectivo site. 
[23] Ac. STJ 30-1-2003 – Proc 02B4471 (Nascimento Costa) in Bases da DGSI.
[24] Já o Projecto de Acórdão estava com julgamento agendado foi publicado na Revista de Direito Privado nº 41 págs. 5 ss um estudo de Pestana de Vasconcelos “Direito de Retenção per conditio creditorum” onde se fazem considerações algumas coincidentes com a posição por nós assumida particularmente no que toca à busca da justiça material que o caso impõe.