Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2226
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
LEI SUBSTANTIVA
REVOGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200405130022267
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 2183/02
Data: 01/21/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : O artº 508º, n.º 1, CC, foi tacitamente revogado pelo artº 6º, DL 522/85, de 31/12.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Com fundamento no disposto no artº503º, 1, CC (1) (responsabilidade pelos riscos próprios do veículo), a Companhia de Seguros A, foi condenada a pagar ao viúvo e três filhos da vítima mortal de acidente de viação a quantia global de 9.250.000$00, muito superior ao limite máximo fixado no artº508º, 1, CC, na redacção que vigorava à data do acidente (4.000.000$00, visto que, à data do acidente, a alçada da Relação, base de cálculo daquele montante, era de 2.000.000$00).
Para a ultrapassagem daquele aparentemente intransponível obstáculo legal, foi considerado que o dito artº508º, 1, fora tacitamente revogado pelo artº6º, DL 522/85, de 31/12.
E a Relação coonestou esse entendimento.
Vem, agora, pedida revista, nestes termos:
· a revogação tácita pressupõe que as normas em confronto se situem no mesmo plano ou na mesma área de intervenção, o que não é o caso;
· o entendimento de que a 2ª Directiva comunitária (84/5/CEE), obsta à vigência do artº508º, CC, apenas terá reflexos no direito interno no momento em que se proceder à sua transposição; antes disso, a interpretação que as instâncias deram ao questionado artº6º, DL 522/85, não encontra, no texto da norma, um mínimo de correspondência, como impõe o artº9º, 2, CC, e viola o princípio da protecção da confiança;
· considerar o artº508, CC, tacitamente revogado pelo artº6, DL 522/85, implica violação do carácter geral e abstracto das normas jurídicas, uma vez que aquele artº508º, não se aplica, apenas, aos acidentes de viação.
A parte contrária não alegou.
2. O problema da vigência do artº508°, CC, na redacção que vigorava antes da entrada em vigor do recente DL 59/04, de 19/03, apenas se deve pôr relativamente ao segmento da norma que fixa os montantes do limite máximo da responsabilidade.
Não se discute, obviamente, o princípio geral, ínsito na mesma disposição, de que a responsabilidade pelo risco dos veículos de circulação terrestre não é ilimitada, ao contrário da responsabilidade por facto ilícito.
Isto posto, deve dizer-se que é perfeitamente compreensível a dúvida sobre se os montantes fixados no citado artº508° ainda se encontravam em vigor, à data do acidente, tendo em conta que, nesse particular, o Estado Português só recentemente (através do citado DL 59-04, de 19/03) adaptou a redacção do artigo à Directiva 84/5/CEE, mais concretamente, aos artº1º, 2, e 5º, 3, na redacção que lhes foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às Adaptações dos Tratados, artigos aqueles que, segundo o entendimento do TJCE (2) , expresso no acórdão de 14.09.2000 (3), "obstam à existência de limites máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório neles fixados ".
Não é claro que as citadas disposições da directiva implicassem uma tal consequência, mas essa é a interpretação que o TJCE tirou delas, no já citado acórdão, que foi tirado em procedimento de reenvio prejudicial (ex-artº177° e actual 234°, do Tratado da UE, assinado em 2.10.97, e ratificado em Portugal pelo decreto do Presidente da República nº65/99 (4) accionado pelo Tribunal Judicial de Setúbal.
Apesar de as decisões prejudiciais do TJCE não terem mais que uma autoridade relativa, no sentido de que a força obrigatória dos julgados se limita ao âmbito do processo onde foi suscitado o incidente, apesar disso, é bom não esquecer a força que ao precedente é reconhecida na prática daquele tribunal.
É de tal maneira que não são poucas as decisões que se limitam a sumariamente remeter para o caso paralelo anteriormente decidido.
Tendo em conta o entendimento já expresso, neste particular, pelo TJCE, órgão máximo da interpretação do direito comunitário, há razões para concluir que o Estado Português se encontrava em falta com as suas obrigações internacionais, no caso, o de transposição para o direito interno daquela directiva comunitária, na parte em que, segundo a interpretação do TJCE, proíbe os estados membros de introduzirem, nas respectivas legislações internas, limites máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório " fixados nas directivas pertinentes.
Mas, as directivas comunitárias, como é por demais sabido, não entram no direito interno dos estados membros sem um prévio acto legislativo de transposição, ao contrário do que sucede com os regulamentos.
Antes, apenas implicam a obrigação do estado membro de as adoptar no respectivo direito interno, através do referido acto legislativo de transposição, não podendo, por isso, ser invocadas pelos particulares, como fonte de direitos ou de obrigações.
É o que se chama de efeito vertical (que se produz) em contraponto com o efeito horizontal (que se não produz).
Pois bem.
A mencionada directiva (84/5/CEE, e seus artº1º, 2, e 5º, 3) não tem, pelo que foi dito, força jurídica para se substituir ao artº508°, CC, na parte em que este fixa o montante dos limites indemnizatórios.
Assim tem decidido este Supremo Tribunal, nas vezes em que lhe foi posta a questão.
E é assim, ainda que, na esteira de jurisprudência do TJCE, tirada em épocas de um porventura mais acentuado pendor integracionista, se queira interpretar a parte do artº249º, do Tratado UE, relativa às directivas, num sentido não estritamente apegado à letra, ressalvando, p. ex., os casos em que o acto como tal qualificado enuncia uma "“obrigação incondicional e precisa".
Mas, no caso que nos ocupa agora, as instâncias colocaram o problema numa outra perspectiva, qual seja a de saber se a derrogação não terá sido levada a cabo, não pela directiva, em si, mas, e ainda que tacitamente, pelo artº6°, DL522/85, de 31/12, que, precisamente em cumprimento dos citados artº1º, 2, e 5°, 3, daquele diploma comunitário, tem vindo a estabelecer, nas suas sucessivas redacções, montantes mínimos de seguro obrigatório substancialmente acima dos que se encontram fixados para o máximo de responsabilidade civil automóvel.
O DL 522/85, de 31/12, visou reforçar e aperfeiçoar o sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e fê-lo, designadamente, através da transposição de normas da referida directiva.
A primitiva redacção do artº6°, citado, levava, precisamente, como justificativa (assim se diz no relatório do diploma) a necessária adequação entre os valores máximos de responsabilidade civil pelo risco (entretanto alterados, para mais, pelo DL 190/85, de 24/6) e os valores do seguro obrigatório.
Na altura em que o DL 522/85 saiu, havia sido publicado há pouco tempo, para entrar em vigor no princípio do ano de 1986, a anterior (5) redacção do art°508°, CC, introduzida pelo DL 190/85, de acordo com o qual os valores máximos de responsabilidade civil pelo risco automóvel ficaram indexados à alçada da Relação, que, na altura, e por força do DL 264- C/81, de 3/9, era de 400 contos.
Assim, aqueles valores máximos passariam a ser, a partir de 1.1.86, e considerando, apenas, as indemnizações em capital:
800 contos (morte ou lesão de uma pessoa); 2.400 contos (lesão ou morte de várias pessoas); 400 contos (danos em coisas, ainda que pertencentes a diversos proprietários; 7.200 contos (acidente causado por veículo utilizado em transporte colectivo); 24.000 contos (acidente ferroviário).
O art°6°, que entraria em vigor precisamente na mesma data de 1.1.86, e que, como se disse, foi redigido com a preocupação de adequar os valores do seguro obrigatório àqueles novos limites máximos de responsabilidade pelo risco, fixou os seguintes montantes de capital obrigatoriamente seguro:
3.000 contos, por lesado; 5.000 contos no caso de coexistência de vários lesados; 10.000 contos no caso de seguro relativo a transporte colectivo (exceptuado o ferroviário, não abrangido no regime de seguro obrigatório - artº1º, 2).
Como se vê, a operação de adequação levada a cabo pelo legislador do DL 522/85, foi isso mesmo, não uma igualização.
Os limites mínimos do seguro obrigatório ficaram, desde logo (isto é, desde 1.1.86) superiores aos máximos da responsabilidade pelo risco automóvel.
Com a entrada em vigor, que foi imediata, da Lei 38/87, de 23/12, que subiu a alçada da Relação para 2.000 contos, os valores do seguro obrigatório ficaram de novo para trás (salvo no que toca ao capital por lesado, em que os valores do seguro e do máximo de responsabilidade pelo risco ficaram iguais), mas isso foi por pouco tempo, pois logo em 1 de Janeiro seguinte, entraram em vigor (DL 394/87, de 31/12) novos valores mínimos de seguro obrigatório que colocaram, de novo, os montantes de capital daquele seguro bastante acima dos máximos de responsabilidade civil por risco.
E, a partir de então, a distância foi-se acentuando, sempre a favor dos limites mínimos do capital do seguro, à medida que o Estado Português, no cumprimento das suas obrigações comunitárias, foi aumentando gradualmente aqueles valores.
As novas alçadas, postas em vigor em 14.1.99, pela Lei 3/99, de 13/1, atenuaram, mas pouco, a longa distância que, até à entrada em vigor da nova redacção dos artº508º e 510º, CC, existia entre aqueles valores.
A enormidade da diferença provocou, naturalmente, um alerta na consciência jurídica e desafiou os juristas para a procura de soluções.
E então diz-se: se a ideia, quer do legislador comunitário (na interpretação do TJCE), quer do legislador nacional (expressa no relatório do próprio DL 522/85), é a de uma íntima ligação entre os limites máximos de responsabilidade civil e o capital do seguro obrigatório, então a existência de limites máximos de indemnização inferiores ao do capital obrigatoriamente seguro seria um contra-senso do legislador, na medida em que aquilo que é considerado como "uma medida de alcance social.... uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados" (cfr. relatório do DL 522/85) acabaria por se revelar, em muitos casos, uma garantia sem objecto (na parte em que excede os limites máximos de responsabilidade).
Sendo assim, como o capital obrigatoriamente seguro tem o sentido e o alcance de uma medida de protecção dos lesados em acidente de viação, de mínimo garantido às vítimas (suposta, naturalmente, a responsabilidade de terceiro), tal como resulta do DL 522/85 e, também, da directiva 84/5/CEE, em harmonia com a qual deverá, na medida do permitido pelas regras internas de hermenêutica, ser interpretado o correspondente direito nacional, deverá concluir-se, então, que os sucessivos aumentos do capital do seguro obrigatório foram sendo, também, a correspondente elevação dos limites máximos de responsabilidade civil, porque, nessa medida, isto é, na medida em que vão além dos anquilosados limites previstos no artº508°, CC (6), as normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm também a natureza de regras de direito material da responsabilidade civil, revogatórias, nessa parte, do artº508°, CC (7).
Assim o impõe uma compreensão unitária e articulada dos sistemas de responsabilidade civil automóvel e do correspondente seguro obrigatório, assim o impõe, afinal, a unidade do sistema jurídico, que constitui uma das preocupações fundamentais da tarefa de interpretação das leis (artº9°, 1, CC).
Não vemos razões para rejeitar esta perspectiva de solução do problema, antes pelo
contrário.
Ela deixa, do artº508°, CC, (8) o pensamento legislativo fundamental subjacente: o de que a responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos é limitada.
Ela dá, das normas que fixam os limites mínimos do seguro automóvel, uma exacta perspectiva de normas materiais do direito da responsabilidade civil, que acresce à sua natural condição de regras do direito dos seguros, harmonizando, assim, de forma perfeita as duas perspectivas, tal como o que supomos ser o pensamento legislativo.
Pensamento legislativo esse que tem, no texto do artº6, DL 522/85, e ao contrário do que diz a recorrente, um mínimo de correspondência, embora imperfeito, correspondência que se surpreende na indicação de montantes indemnizatórios obrigatoriamente garantidos aos lesados de acidente de viação, por culpa ou risco.
É o mesmo sentido que o TJCE tirou da correspondente norma da directiva 84/5/CEE, e que, segundo o princípio de interpretação da lei interna conforme ao direito comunitário, ele próprio tributário do primado do direito comunitário sobre a ordem jurídica estatal, os tribunais portugueses deverão, por isso mesmo, adoptar.
A matéria do artº508º, CC (9), na parte em que fixa os limites máximos da responsabilidade, foi sendo regulada noutro local do sistema legislativo, e deve, por isso, considerar-se revogada pelo artº6°, DL 522/85.
Entre as duas normas, na dimensão referida, existe a incompatibilidade a que se refere o nº2, do artº7°, CC.
Uma interpretação, assim, da lei interna, poderá constituir uma surpresa para a recorrente, mas, na medida em que, como dissemos, decorre duma compreensão do direito interno em conformidade com a ordem jurídica comunitária, não viola, por isso mesmo, o princípio da protecção da confiança.
A ideia da recorrente de que considerar o artº508, CC (10), tacitamente revogado pelo artº6, DL 522/85, implicaria violação do carácter geral e abstracto das normas jurídicas, uma vez que aquele artº508º, se não aplica, apenas, aos acidentes de viação, só pode dever-se a uma distracção, pouco compreensível distracção. O artº508º, citado, só se aplica á indemnização por acidente de viação.
Há, porém, quem veja no artº16°, DL 423/91, de 30/10, e na nova redacção que, em plena vigência do atrás referido DL 394/87, de 31/12, ali foi dada ao nº2, do artº508°, CC, como que uma espécie de prova de vida deste artigo, na sua globalidade (11).
Como entender que o legislador se dedicasse a rever um artigo de lei que tinha como
revogado?
O argumento prova demais.
Ele supõe um legislador inteiramente coerente e no perfeito domínio de todo o sistema legal que pôs cá fora, o que, nos dia de hoje, é princípio a seguir com muita cautela, visto que a lei tende a estender a sua malha sobre os mais imbricados aspectos da vida social e económica, e que a origem dos textos legais é vária e diversificada e com cada vez maior presença da de origem supranacional.
O legislador tende a ser disperso, e, com a dispersão, potencialmente contraditório, cabendo à jurisprudência a magna tarefa unificadora e harmonizadora, no integral respeito pelo mais profundo e fundamental pensamento legislativo.
O nº2, do artº508°, CC, à época em que foi alterado, era uma norma morta, porque apontava para limites de indemnização que, como se disse, já não estavam em vigor.
A nova redacção daquela disposição foi, assim, e passe o termo um nado morto.
E foi-o porque o legislador não se apercebeu de que os valores e interesses que havia assumido na ordem jurídica interna eram incompatíveis com os desvalorizados limites máximos tanto do nº1, como do nº2, do art°508°, CC.
O recente AUJ Acórdão Uniformizador de Jurisprudência , tirado na revista nº3515-03, da 7ª secção, e já transitado em julgado, tirado por uma grande maioria dos juízes deste Supremo Tribunal, firmou jurisprudência no sentido aqui adoptado, que é a de que o segmento inicial do nº1 do art. 508º, CC, na redacção que antecedeu o DL 59-04, foi tacitamente revogado pelo art. 6º, DL nº522/85, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº3/96.
A nova redacção dos artº508º e 510º, CC, feita pelo citado DL 59-04, não obstante ser duvidosa a sua natureza interpretativa, constitui uma indicação segura de que a interpretação adoptada, quer aqui quer no mencionado AUJ, sendo, como se procurou demonstrar, possível, corresponde ao mais genuíno e profundo pensamento legislativo.
3. Por todo o exposto, negam a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
----------------------
(1) Código Civil
(2) Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias
(3) Processo C-348/98, publicado na CJ do TJCE, p.I-6711
(4) Diário da República, 1ª série, nº42/99, de 19/2
(5)Antes da actual, resultante do DL 59-04, de 19/03
(6) Anterior redacção
(7) Cfr. Calvão da Silva, in R.L.J. 134º/118 e segs.
(8) Anterior redacção
(9) Anterior redacção
(10) Anterior redacção
(11) Cfr. Nuno Pinto Oliveira, in Scientia Iuridica, tomo LI, 2002, nº292, pag.97 e segs.
(12) Acórdão Uniformizador de Jurisprudência.