Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30249/14.2YIPRT.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL CÍVEL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INJUNÇÃO
TELECOMUNICAÇÕES
CONTRATO ADMINISTRATIVO
AUTARQUIA
CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 10/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA.
DIREITO ADMINISTRATIVO - CONTRATO ADMINISTRATIVO. CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO - PROCESSO ADMINISTRATIVO - TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS / COMPETÊNCIA..
Doutrina:
- Livro Verde sobre as Parcerias Público-Privadas e o Direito Comunitário em Matéria de Contratos Públicos e de Concessões, de 30 de Abril de 2004, citado por Manuel Pereira Augusto de Matos, no trabalho infra indicado.
- Manual de Procedimento da Contratação Pública de Bens e Serviços – Do início do Procedimento à Celebração do Contrato, do Ministério das Finanças e da Administração Pública – Secretaria Geral, elaborado por Sérvulo & Associados/ Sociedade de Advogados, RL, acessível na Internet, 7.
- Manuel Pereira Augusto de Matos, trabalho de pós-graduação, apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, intitulado A Escolha dos Procedimentos Pré-contratuais, de Abril de 2012, p. 4, acessível na Internet.
- Mário de Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2015, 165-166; Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição, 160, 161, 163.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.º 3, 96.º, ALÍNEA A), 99.º, N.º 1, 195.º, N.ºS 1 E 2, 278,º, N.º 1, ALÍNEA A), 577.º, ALÍNEA A), 615.º, N.º 1, 630.º, N.º 2.
CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS (CCP), APROVADO PELO DEC.-LEI N.º 18/2008, DE 29-01: - ARTIGOS 1.º, N.º 6, ALÍNEAS A), E), 2.º, N.º 1, ALÍNEA C), ARTIGO 3.º, N.º 1, ALÍNEA A), 4.º, 5.º, 16.º, N.º 1 E 2, ALÍNEA E), 450.º E SEGUINTES.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 211.º, N.º 1, 212.º, N.º 3.
DEC.-LEI N.º 214-G/2015, DE 02/10: - ARTIGO 15.º.
DEC.-LEI N.º 62/2013, DE 10-05: - ARTIGO 10.º.
DIPLOMA ANEXO AO DEC.-LEI N.º 269/98, DE 01/09/, NA REDAÇÃO ACTUAL: - ARTIGOS 7.º E SEGUINTES.
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS (ETAF): - ARTIGO 4.º, N.º 1, ALÍNEAS E) E F).
LEI N.º 62/2013, DE 26-08 – LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGOS 38.º, 40.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE CONFLITOS:

-DE 11/03/2010, PROCESSO N.º 028/09, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 16/02/2012, PROCESSO N.º 021/11, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 19/12/2012, PROCESSO N.º 20/12, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 14/04/2016, PROCESSO N.º 0849/15, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. O contrato de prestação de serviço de telecomunicações entre uma empresa comercial, como fornecedora, e uma autarquia, como cliente, reveste a natureza de contrato administrativo, nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), e 450.º e seguintes do Código dos Contratos Públicos (CCP), estando submetido também ao regime dos procedimentos da contratação pública, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1, alínea e), e 16.º, n.º 1 e 2, alínea e), do mesmo Código

II. O conhecimento dos litígios emergentes desse contrato, nomeadamente em sede da sua execução, como é a realização coativa do cumprimento das respetivas obrigações, é da competência material da jurisdição administrativa, tanto ao abrigo das alínea e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na redação anterior às alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, como na atual redação da alínea e) daquele normativo, dada por este diploma.

III. O recurso ao procedimento de injunção previsto e regulado nos artigos 7.º e seguintes do Diploma Anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, de 01/09/, na redação atual, por força e nos termos do preceituado no artigo 10.º do Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10-05, é compatível com os meios processuais do contencioso administrativo.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. A sociedade AA - Comunicaçãoes, S.A., atualmente denominada BB - Comunicaçãoes, S.A.., apresentou, em 28/02/2014, junto do Banco Nacional de Injunções, requerimento de injunção, fundado em obrigação emergente de transações comerciais, contra a Freguesia Real, a pedir o pagamento da quantia total de € 3.792,62, compreendendo as seguintes verbas: € 3.362,18, a título de capital, juros de mora no montante de € 264,74, outros valores no montante de € 89,20 e ainda da taxa de justiça de € 76,50.  

Para tanto alegou, em síntese, que, no âmbito de um contrato de prestação de bens e serviços de telecomunicações, datado de 29/10/2009, celebrado entre A. e R., aquela forneceu à esta bens e serviços, entre 29/10/ 2009 e 26/03/2013, segundo tarifário escolhido pela mesma R., conforme faturas que discrimina, mas que a R. não pagou.     

2. Em 28/03/2014, foi apresentado, no Balcão Nacional de Injunções, o requerimento de fls. 3, assinada pelo cidadão CC, a informar que a Freguesia Real já não existia, tendo cessado juridicamente como pessoa coletiva de direito público, a partir do início da existência jurídica da nova freguesia criada pela agregação de freguesias na União das Freguesias de Real, Dume e Semelhe, após 20/12/2013.

3. Após tal informação, foi o processo apresentado à distribuição junto do então designado Tribunal Judicial de Braga, sendo autuado como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.     

4. Conclusos os autos, foi proferida a decisão de fls. 12/13, datada de 30/04/2014, a considerar que o requerimento de fls. 3 não equivalia a dedução de oposição e que a R., apesar de pessoalmente citada, não tinha contestado, face ao que, tendo por inexistentes, de forma evidente, exceções dilatórias e por não manifestamente improcedente o pedido, conferiu força executiva ao sobredito requerimento de injunção.

5. Veio então a União das Freguesias de Real, Dume e Semelhe, arguir a nulidade e pedir a reforma daquela sentença, bem como apelar, simultaneamente, da mesma para o Tribunal da Relação de Guimarães, invocando a incompetência do tribunal em razão da matéria, a falta de personalidade da R. demandada, a nulidade da citação e a ilegitimidade da Recorrente para a ação.

6. O tribunal de 1.ª instância pronunciou-se, através da decisão de fls. 37-42, datado de 11/07/2014, no sentido da improcedência da invocada nulidade, acabando por relegar a sua reapreciação para o tribunal superior (despacho de fls. 55) no âmbito do recurso interposto e admitido a fls. 160.

7. Por sua vez, o Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida, conforme acórdão de fls. 167-179, datado de 04/02/2016.

8. Mais uma vez inconformada, veio aquela apelante pedir a reforma do sobredito acórdão e, além disso, recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões: 

1.ª - Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou a Secção Cível da Instância Local do Tribunal Judicial da Comarca de Braga competente em razão da matéria para julgar o mérito da causa controvertida.

2.ª - A Recorrente não concorda com o discorrido no acórdão recorrido, pois que entende que a jurisdição administrativa era e é competente para conhecer do mérito da causa.

3.ª - A Recorrente tão-pouco concorda que o conhecimento oficioso e inovador da questão à luz da nova redação do artigo 4.º, n.º 1, e), do ETAF, pudesse ser feito sem que lhe tivesse sido dada oportunidade para se pronunciar sobre a questão controvertida, com a qual foi surpreendentemente confrontada na decisão.

4.ª - Deve, por isso, o acórdão recorrido ser anulado, porquanto se afigura eivado de uma nulidade processual concomitante.

5.ª - O acórdão recorrido declarou a jurisdição cível competente com um enquadramento e raciocínio inovadores, que a surpreenderam,

6.ª - Pois com isso não podia contar nem nunca se havia pronunciado sobre o tema com a configuração que o acórdão recorrido empregou.

7.ª - O Tribunal “a quo” não podia, nesses termos, ter conhecido da questão controvertida atinente à competência sem antes dar oportunidade à Recorrente para se pronunciar.

8.ª - Por não ter convidado a Recorrente a pronunciar-se, o acórdão recorrido consubstancia uma decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório, tal como vem consagrado no artigo 3.º do CPC e que o Tribunal Constitucional tem considerado ínsito no direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente cristalizado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

9.ª - Violação esta que gera uma nulidade processual relevante, já que a omissão verificada é suscetível de influir na decisão da causa (artigo 195.º, n.º 1, CPC), o que implica a anulação dos atos ulteriores que dependam absolutamente dessa notificação (artigo 195.º, n.º 2, CPC), ou seja, em concreto, a anulação do acórdão recorrido.

10.ª - Acresce que, no que tange à fixação da competência, o artigo 38.º da LOSJ estabelece a regra da “perpetuatio jurisdictionis”, segundo a qual a competência do tribunal se fixa no momento da propositura da ação, sendo, em princípio, irrelevantes as modificações, de facto ou de direito, que ocorram posteriormente.

11.ª - Não ocorreu qualquer das exceções consagradas no n.º 2 do artigo 38.º da LOSJ, aplicando-se integralmente o disposto no n.º 1 deste normativo, e em concordância com o artigo 4.º, n.º 1, e), do ETAF, na redação anterior ao Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, pois era esta a norma que lhes atribuía a competência em razão da matéria no momento da propor-situra da ação.

12.ª - Mantendo-se, por esse motivo, a competência do tribunal estavelmente predeterminada desde o momento da propositura da ação, nos termos do art.º 38.º, n.º 1, LOSJ, isto é, mantendo-se sob a alçada da jurisdição administrativa.

13.ª - Os tribunais comuns são, in casu, absolutamente incompetentes em razão da matéria, o que constitui uma exceção dilatória» obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa e dando lugar à absolvição da R. da instância ou à remessa do processo para o tribunal competente - artigos 278.º, n.º 1, alíneas a) e e), e n.º 2, mas também 576.º/2 e 577,º/a);

14.ª - Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 38.º, n.º 1, da LOSJ, conjugado com o artigo 4.º, n.º 1, e), do ETAF, na redação anterior ao Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10;

15.ª - Confira-se o que unanimemente se decidiu no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 11-03-2010, proc. n.º 028/09: “Os tribunais administrativos, e não os tribunais judiciais, são competentes para conhecer das questões emergentes de contratos de prestação de serviços de comunicação de dados, circuitos e banda larga celebrados entre o Estado-Maior-General das Forças Armadas e uma entidade particular, passíveis de serem submetidos a um procedimento pré-contratual de direito público”

16.ª - O artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, seja na sua redação atual ou precedente, determina a competência da jurisdição administrativa em matéria de contratos com base em dois critérios, que não têm de ser cumulativos: por um lado, o critério do contrato administrativo, por outro lado, o critério do contrato submetido às regras da contratação pública.

17.ª - Socorrendo-nos da noção ensaiada pelo Professor Pedro Costa Gonçalves, "o contrato administrativo resulta da conjugação de três elementos decisivos: (i) trata-se de um contrato que (ii) envolve a participação de, pelo menos, um contraente público e que (iii) cumpre um dos critérios legais de administratividade" (Direito dos Contratos Públicos, Almedina: Coimbra, 2015, pp. 389-390).

18.ª - A Recorrente é um contraente público, atento o disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), e artigo 2.º, n.º 1, alínea c), ambos do CCP.

19.ª - No que concerne aos factores legais de administratividade, previstos no artigo 1.º, n.º 6, CCP, também se tem por observado o constante da alínea a), porquanto o contrato celebrado, de prestação de serviços, consubstancia um contrato administrativo tipificado no CCP.

20.ª - O contrato de prestação de serviços de que aqui se cura é, por força do CCP, mais precisamente o Titulo II da Parte do Código, um contrato administrativo, visto que aquele diploma legal o qualifica e tipifica como tal no artigo 450.º.

21.ª - Quanto ao segundo critério, o critério do contrato submetido às regras da contratação pública, também se pode dar por verificado, pois que o contrato em causa sempre esteve - e assim se mantém - sob a égide das regras da contratação pública.

22.ª - Não releva se as partes efectivamente o submeteram a um procedimento pré-contratual, antes releva que a lei o submeta a um procedimento de formação regulado por normas de direito administrativo - neste caso, a parte II do CCP.

23.ª - Pelo que, mesmo que se entendesse que não se está perante um contrato administrativo, o que respeitosamente não se aceita, sempre se diria que estamos perante um contrato que o CCP submete às regras procedimentais estatuídas na parte II do CCP.

24.ª - Isto porque, de harmonia com o artigo 5.º, n.º 1, a contrario, e artigo 16.º, n.º 1, e n.º 2, alínea e), ambos do CCP, se trata de uma prestação de interesse concorrencial.

25.ª - Embora a Recorrente entenda que a competência se fixa na propositura da ação e que, portanto, a norma aplicável sempre seria o artigo 4.º, n.º 1, alínea e), ETAF, na redação anterior ao Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10, a entrada em vigor deste diploma nada muda no caso em concreto.

26.ª - Ou seja, o âmbito da jurisdição administrativa em matéria de contratos continua a aferir-se em função da verificação de um dos dois critérios já enunciados: o critério do contrato administrativo e o critério da submissão a regras da contratação pública.

27.ª - A novel redação da norma do artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF resulta da concentração das antigas alíneas b), e) e f) do artigo 4.º, n.º 1, do ETAF, isto é, tratou-se tão-somente de uma mera simplificação redacional.

28.ª - Isso mesmo atesta ex professo o Professor Mário Aroso de Almeida (Manual de Processo Administrativo, Almedina; Coimbra, 2a edição, 2016, pp.161-165), que integrou a Comissão Revisora do CPTA e ETAF, versando já sobre a nova redação da alínea e), do n,° 1, do artigo 4.° do ETAF.

29.ª - De tudo quanto se expendeu, salvo o devido respeito, incorreu o Tribunal a quo num erro de aplicação da norma do artigo 1.º, n.º 6, alínea a), do CCP, conjugada com a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

30.ª - Tudo concorre, sem exceção, para que a jurisdição administrativa seja considerada competente, devendo, por isso, julgar-se por provada e procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal “a quo” e, por consequência, absolver-se a R. da instância.

9. Não foram apresentadas contra-alegações.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Delimitação do objeto do recurso


Atento o teor das conclusões da Recorrente, em função do que é delimitado o objeto do recurso, as questões a decidir circunscrevem-se ao seguinte:

a) – em primeira linha, à invocada nulidade processual pela inobservância, por parte do tribunal a quo, do prévio contraditório relativamente à questão da exceção da incompetência material aqui em causa, na linha em que veio a ser equacionada e decidida;  

b) – seguidamente, a própria questão da arguida exceção dilatória de incompetência dos tribunais judiciais, em razão da matéria, para conhecer do presente litígio.


III – Fundamentação


1. Quanto à nulidade processual invocada


A Recorrente começa por arguir uma nulidade processual estribada no facto de o tribunal a quo ter equacionado e decidido a questão da incompetência material, por aquela deduzida em sede de apelação, mas convocando e aplicando o disposto no artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, na atual redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, em vez da redação precedente daquele normativo tal como fora alegado pela Recorrente e sem que tivesse ouvido previamente esta sobre esse novo enquadramento.

Nessa base, concluiu que se está perante uma decisão-surpresa violadora do princípio do contraditório, à luz do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, determinativa de nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º 1 e 2, do mesmo Código, implicando a anulação do acórdão recorrido.

O tribunal a quo, embora se tivesse pronunciado, subsequentemente, sobre o requerimento autónomo de reforma do acórdão proferido, deduzido a fls. 183-187, que julgou inadmissível, não se chegou a ocupar da sobredita nulidade, como se alcança do acórdão proferido em conferência a fls. 231-232, de 21/04/2016.

Ora, em bom rigor, ao tribunal a quo competia ter conhecido daquela nulidade enquanto nulidade processual geral prevista no art.º 195.º do CPC, que não qualquer das nulidades especificamente configuradas no n.º 1 do artigo 615.º do mesmo Código; da decisão sobre essa nulidade caberia então recurso nos termos do n.º 2 do artigo 630.º deste diploma. 

De todo o modo, ainda que a Recorrente tenha arguido também a mesma nulidade como fundamento da revista, mas verificando-se que, no âmbito desta, acabou por exercer cabalmente o contraditório sobre a decidida questão fundamental da exceção de incompetência material aqui em causa, afigura-se dispensável devolver os autos à Relação para conhecer daquela nulidade, que assim se tem por prejudicada.


2. Quanto à exceção de incompetência material


Antes de mais, convém ter presente que a A./requerente, logo no requerimento de injunção (fls. 2), indicou como tribunal competente para a distribuição, nos termos da alínea l) do n.º 2 do artigo 10.º do Diploma Anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, de 01/09, o Tribunal Judicial de Braga.  

Por sua vez, no despacho liminar de fls. 12/13, de 30/04/2014, o tribunal da 1.ª instância declarou, além do mais, não ocorrerem, de forma evidente, exceções dilatórias, declaração esta genérica que, não versando em concreto sobre qualquer exceção dessa natureza, não tem a virtualidade de produzir efeito de caso julgado formal, nomeadamente sobre a competência do tribunal, conforme doutrina e jurisprudência hoje consolidada à luz do disposto no n.º 2 do artigo 625.º do CPC.

De resto, a ora Recorrente apelou dessa decisão, suscitando, entre outras, precisamente a questão da incompetência material do tribunal judicial, sustentando que, dada a natureza do contrato que serve de fundamento à pretensão injuntiva (contrato administrativo de aquisição de serviços) e o regime de contratação pública a que esse contrato está sujeito, a pretensão em causa é da competência do contencioso administrativo, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.


Por fim, o Tribunal da Relação considerou, em síntese, que o contrato em referência não se inseria em qualquer das categorias de contratos públicos previstas no n.º 6 do artigo 1.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), embora pudesse ser alcançado pelo complexo de questões contempladas na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, na redação anterior à alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, enquanto emergentes de “contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.

Porém, considerou o mesmo Tribunal que, em face da nova redação daquela alínea dada pelo indicado Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, já não bastaria a simples possibilidade de o contrato ser regulado ou submetido a um procedimento pré-contratual de direito público, exigindo-se agora que tenha sido celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública, o que não se encontrava demonstrado nos autos.

        Nesta base, julgou improcedente a exceção ajuizada, mantendo a decisão da 1.ª instância.


        Todavia, vem a Recorrente de revista contrapor, no essencial, que:

i) - em primeiro lugar, deve ser aplicada a lei em vigor à data da instauração da ação, uma vez que é nesta data que se fixa a competência do tribunal;

ii) – subsidiariamente, o contrato ajuizado é um contrato de aquisição de serviços por contraente público, tipificado como contrato administrativo, nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), e 450.º do CCP;

iii) – além disso, tal contrato está sujeito às regras da contratação pública, tanto mais que envolve prestações de interesse concorrencial, nos termos e para os efeitos do artigo 16.º, n.º 1 e 2, alínea e), do CCP;

iv) – por fim, a nova redação da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF não alterou o conteúdo essencial da anterior redação, apenas concentrando nela as anteriores alíneas b), e) e f) daquele número, numa mera simplificação de redatorial.      


Vejamos.

            

Como é sabido, segundo doutrina e jurisprudência pacíficas, o pressuposto processual da competência material deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objetiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjetiva, respeitante às partes, tomando-se, pois, por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor[1].

Por outro lado, o artigo 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – prescreve que:

1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe foi atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.        

E refira-se, a este propósito, que das normas transitórias do artigo 15.º do Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, no respeitante às alterações introduzidas ao ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, não consta nenhuma que incida sobre a matéria da competência aqui em foco.

Perante este quadro normativo, embora a determinação da competência deva ser feita, em regra, à luz da lei em vigor à data da propositura da ação - no caso em 28/02/2014, data em que o requerimento de injunção foi apresentado junto do Balcão Nacional de Injunções -, poderá ainda assim verificar-se a exceção da última parte do n.º 2 do citado artigo 38.º, se porventura for de concluir que a alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015 à alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF se traduz numa atribuição aos tribunais judiciais de competência de que inicialmente careciam, no domínio da questão em apreço. Nesta hipótese, seria então de aplicar a nova lei. 

Ora, o n.º 1 do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República consigna que:

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

E o n.º 3 do art.º 212.º da mesma Lei Fundamental, determina que:

   Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

        

Já em sede infra-constitucional, no que aqui releva, o artigo 4.ºdo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02, na redação precedente ao Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, em vigor na data da instauração da ação, prescrevia que:

1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto:

[…]

e) – Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contrato a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

f) – Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

Em contraponto, nos termos do artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (LOSJ), os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Ponto é saber se o contrato que serve de fundamento à pretensão da A. se inscreve no tipo de relações jurídicas abrangidas pelas alíneas e) ou f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.


No caso dos autos, tal como consta do teor narrativo do requerimento de injunção, estamos no âmbito de um pretensão injuntiva que tem por objeto uma obrigação pecuniária emergente de um contrato de fornecimento de serviços de telecomunicações celebrado, em 29/10/2009, entre a sociedade comercial A., na qualidade de fornecedora, e a então CC, como cliente, cuja execução aqui em apreço se situou entre 29/10/ 2009 e 26/03/2013.

Considerada a data do contrato (29/10/2009), a questão da sua qualificação, nomeadamente para efeitos de determinação do foro competente, terá de ser equacionada à luz do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29-01, em vigor desde 30-07-2008.

Ora, antes da entrada em vigor do CCP, ao nível substantivo, subsistia alguma ambiguidade na delimitação das relações jurídico-administrativas, nomeadamente com vista a determinar a jurisdição competente para apreciar os litígios delas emergentes.    

Como refere Mário Aroso[2], “foi nesse contexto que surgiu o ETAF de 2002, e, com ele, a clara assunção da necessidade de se abandonar, no plano processual, a definição de contrato administrativo que decorria do art.º 178.º do CPC, para o efeito de delimitar o âmbito da jurisdição administrativa no que respeita à apreciação de litígios emergentes de contratos”.   

Assim, a alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF de 2002, estendia a jurisdição administrativa a atos pré-contratuais e a contratos a respeito dos quais houvesse lei específica que os submetesse, ou que admitisse que fossem submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

Nas palavras de Mário de Aroso de Almeida[3]:

«A previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, […] atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes de todos os contratos que a lei submeta, ou admita que possam ser submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público, independentemente da questão de saber se “a prestação do co-contraente pode condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.» 

Para tais efeitos, nos termos daquela disposição, a delimitação da competência material entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais deixou de se estribar na distinção tradicional entre “atos de gestão pública” e “atos de gestão privada”, para passar a fazer-se com abstração da natureza das normas que materialmente regulam o contrato, bastando que “a lei preveja a possibilidade da sua submissão a um procedimento pré-contratual de direito público”, como se refere no acórdão do Tribunal de Conflitos, de 11/03/2010, proferido no processo n.º 028/09[4], observando-se ainda que “o acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é aqui colocado não no conteúdo do contrato nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais potencialmente aplicáveis”[5].


Sucede que sobreveio o Código de Contrato Públicos (CCP), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 18/2008, de 29-01, em vigor desde 30-07-2008, cujo artigo 1.º, n.º 6, estatui, sem prejuízo de legislação especial, que “reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado ente contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer” das categorias configuradas nas quatro alíneas daquele número.  

     Segundo o ensinamento de Mário Aroso de Almeida, in Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição, p. 163, tais “categorias podem ser reconduzidas a três grandes grupos”:    

«a) O primeiro grupo corresponde aos contratos administrativos por natureza, que são submetidos a um regime de Direito Administrativo em razão da natureza pública do seu objecto ou do seu fim. Pode dizer-se que integram este grupo os contratos a que se referem as alíneas b), c) e d) do n.º 6 do artigo 1.º do CCP.

b) O segundo grupo corresponde aos contratos administrativos por determinação da lei e abrange os tipos contratuais que, ainda que não sejam contratos administrativos por natureza, a própria lei opta directamente por qualificar como administrativos, submetendo-os a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), do CCP). Integram este grupo: (i) os contratos administrativos típicos previstos no Título II da Parte III do CCP; e (ii) os demais contratos administrativos típicos ou nominados previstos em legislação avulsa.

c) O terceiro grupo corresponde aos contratos administrativos por qualificação das partes e abrange contratos administrativos atípicos que poderiam ser contratos de direito privado (por esse motivo, a doutrina qualifica-os como contratos administrativos com objecto passível de contrato de direito privado), mas são contratos administrativos apenas porque as partes o querem e determinam: trata-se de contratos que, não sendo administrativos por natureza, nem a eli os qualificando como administrativos, só são administrativos na medida em que a lei aceita que as próprias partes, desde que uma delas seja um contraente público, os qualificam como administrativos ou os submetam a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 1.º, n.º 6, alínea a), e artigos 3.º, n.º 1, alínea b), e 8.º do CCP).»    

E em relação a este terceiro grupo de contratos, acrescenta aquele Autor que:

«A referida opção do CCP de qualificar todos os contratos de aquisição e locação de bens móveis e de aquisição de serviços por contraentes públicos como contratos administrativos veio, no entanto, esvaziar praticamente esta modalidade de contratos administrativos, retirando-lhe o relevo, assim como às questões que a seu respeito se colocavam.»

 

Como observa o referido Autor[6], a partir daí:

   «(…) deixou de existir qualquer razão para que o ETAF não fizesse referência à figura do contrato administrativo na determinação do âmbito da jurisdição em matéria de contratos. Foi o que, com a revisão de 2015, ele passou a fazer, justificadamente, na nova alínea e) do n.º 1 do art.º 4.º, que veio substituir as diferentes alíneas (b), segunda parte, e) e f) …»

Todavia, a nova redação da sobredita alínea e) continua a estender o âmbito da jurisdição administrativa, mas agora a “quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.” 


Seja como for, no que aqui releva, o n.º 6 do artigo 1.º do CCP dispõe que:

Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integrem em qualquer das seguintes categorias:

a) - Contratos que, por força do presente Código […] sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público.  

E o artigo 2.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Código considera como entidades adjudicantes, entre outras, as autarquias locais, as quais, segundo o artigo 3.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma se têm também por contraentes públicos. 

Por seu lado, os artigos 450.º a 454.º do Capítulo V, sob a epígrafe Aquisição de Serviços, integrado no Título II, respeitante a Contratos Administrativos em Especial, da Parte III, relativo ao Regime Substantivo dos Contratos, do CCP, contêm a disciplina específica do tipo de contrato administrativo de aquisição de serviços, que vem definido no referido artigo 450.º como sendo “o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço.»    

Acresce que, relativamente aos procedimentos para a formação de contratos, em sede de contratação pública, o artigo o artigo 6.º, n.º 1, do CCP, no que aqui releva, dispõe que:

A formação de contratos a celebrar entre quaisquer entidades adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º, a parte II do presente Código só é aplicável quando o objecto de tais contratos abranja prestações típicas dos seguintes contratos:

a) -----------------------------------------------------------------------------

b) -----------------------------------------------------------------------------

c) -----------------------------------------------------------------------------

d) -----------------------------------------------------------------------------

e) Aquisição de serviços  


Por sua vez, o artigo 16.º do mesmo Código prescreve que:

1 – Para a formação de contratos cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adoptar um dos seguintes tipos de procedimentos:

a) – Ajuste directo;

b) – Concurso público;

c) – Concurso limitado por prévia qualificação;  

d) - Procedimento de negociação;

e) – Diálogo concorrencial

2 – Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objecto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza:

a) -----------------------------------------------------------------------------

b) -----------------------------------------------------------------------------

c) -----------------------------------------------------------------------------

d) -----------------------------------------------------------------------------

 e) Aquisição de serviços.

Convém, neste contexto, realçar que a tipificação como contratos administrativos dos contratos, nomeadamente, de aquisição de bens móveis e serviços, por parte de entes públicos a contraentes particulares, radica na ideia, veiculada por sucessivas gerações de diretivas comunitárias, de “uma economia aberta e de livre concorrência” e visa “assegurar a efectiva eliminação das chamadas barreiras «invisíveis» ao mercado interno da contratação pública, bem como condições fundamentais de igualdade dos agentes económicos na participação nos diversos procedimentos de formação dos contratos públicos.”[7] Segundo a própria Comissão Europeia, “as diversas directivas de contratos públicos visam não apenas assegurar a transparência dos processos e a igualdade de tratamento dos operadores económicos, mas impõem igualmente que um número mínimo de candidatos seja convidado a participar nos processos, quer se trate de concursos públicos, concursos limitados, processos por negociação ou diálogos concorrenciais.”[8]

E quanto ao âmbito do regime da contratação pública consagrado no nosso CCP, é bem elucidativo o trecho constante do Manual de Procedimento da Contratação Pública de Bens e Serviços – Do início do Procedimento à Celebração do Contrato, do Ministério das Finanças e da Administração Pública – Secretaria Geral, elaborado por Sérvulo & Associados/ Sociedade de Advogados, RL, acessível na Internet, p. 7, quando nele se refere que:     

«O Código dos Contratos Públicos (CCP) visa, em primeira linha, transpor as directivas comunitárias relativas à celebração de contratos públicos de empreitada de obras públicas, de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços (Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004).

Porém, o CCP não se restringe aos contratos abrangidos pelas directivas, aplicando-se, tendencialmente, a todo e qualquer contrato celebrado pelas entidades adjudicantes nele previstas cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado (cf. n.º 2 do artigo 1.º e n.º 1 do artigo 16.º). Além disso, o CCP regula não apenas a fase de formação dos contratos públicos mas também a fase de execução daqueles que revistam a natureza de contrato administrativo (de acordo com os critérios fixados no n.º 6 do artigo 1.º).»

Bastarão estas considerações para se afigurar que o contrato de prestação de serviço de telecomunicações celebrado, em 29/10/2009, entre a sociedade comercial A., na qualidade de fornecedora, e a então CC, como cliente, se traduz num contrato administrativo legalmente tipificado e nominado nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alínea a), e 450.º do CCP, de que emerge a transação comercial em causa, não estando contemplado como contrato excluído da aplicação do citado Código no respetivo artigo 4.º ou da contratação pública nos termos do seu artigo 5.º. Ademais, está este contrato ainda submetido à disciplina da contratação pública dos procedimentos para a formação de contratos previstos nos artigos 16.º, n.º 1, e seguintes do CCP.

Assim sendo, torna-se claro que as questões de interpretação, validade e execução do mesmo, incluindo nesta a realização coativa das respetivas prestações imputadas à R. se integram, nuclearmente, seja nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na redação em vigor à data da instauração da presente ação, seja na redação atual da alínea e) deste normativo dada pelo Dec.-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10. Salvo o devido respeito, não se trata, pois, sequer de um contrato só potencialmente sujeito, por vontade das partes, ao regime da contratação pública, mas sim de um contrato legalmente tipificado com contrato administrativo.     

Nessa conformidade, o conhecimento do presente litígio, tendo por objeto a realização coativa de prestação pecuniária emergente desse contrato, será da competência material dos tribunais administrativos, pelo que se verifica a invocada exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal da causa, em razão da matéria, determinativa da absolvição do réu da instância, nos termos conjugados dos artigos 96.º, alínea a), 99.º, n.º 1, 278,º, n.º 1, alínea a), e 577.º, alínea a), todos do CPC.


Mas poderia colocar-se a questão da compatibilização do procedimento de injunção previsto e regulado no Diploma Anexo ao Dec.-Lei n.º 269/98, de 01-09, na sua atual redação, com o contencioso dos tribunais administrativos. Esta problemática encontra-se proficientemente abordada no recente acórdão do STA, de 14/04/2016, proferido no processo n.º 0849/15[9], que aqui se segue de perto.

Ora, numa estratégia de combate à chamada “litigância de massa” que então assolava os tribunais judiciais, o Dec.-Lei n.º 404/93, de 10/12, criou o procedimento de injunção como um meio facultativo, des-jusridicionalizado, simplificado e célere, para o credor de obrigações emergentes de contrato, em valor não excedente a metade da alçada do tribunal da 1.ª instância, mediante requerimento, obter um título executivo, mormente em caso de falta de oposição do requerido, através da simples aposição de uma fórmula executória, nesse requerimento, pelo secretário judicial (art.º 5.º do referido diploma). Só em caso de oposição ou de frustração da notificação do requerido é que o procedimento se jurisdicionalizava, seguindo a tramitação do então processo declarativo sumaríssimo (art.º 6.º).

Entretanto, uma recomendação da Comissão Europeia de 12/05/ 1995, recomendava aos Estados Membros medidas jurídicas para assegurar a eficácia e celeridade nos pagamentos contratuais das transações comerciais, nomeadamente por via de processos extrajudiciais.

Por sua vez, o Dec.-Lei n.º 329/A/95, de 12/12, que aprovou a Revisão do CPC de 95/96, previu no seu artigo 7.º a possibilidade de criação de um processo com tramitação própria no âmbito das competências dos tribunais judiciais de pequena instância cível.

Na concretização desse desiderato, mas com generalização ao conjunto dos tribunais judiciais, veio o Dec.-Lei n.º 269/98, de 01/09, introduzir, em Diploma Anexo, uma espécie de ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, incorporando aí também o procedimento de injunção com a configuração essencial dada pelo Dec.-Lei n.º 404/93, que fora então revogado, tendo sido criadas as secretarias-gerais de injunção em Lisboa e Porto, pela Portaria n.º 433/99, 16/06.

Mais tarde, o Dec.-Lei n.º 32/2003, de 17/02, transpondo a Diretiva 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29/06/2000, veio fixar o “regime especial relativo a atrasos de pagamento em transações comerciais” e estendeu a aplicação do regime de injunção ao pagamento de créditos emergentes de transações comerciais, independentemente do montante da dívida, só excetuando alguns tipos de contratos. E posteriormente, a Portaria n.º 220-A/2008, de 04/03, extinguiu as secretarias-gerais de injunção, criando em seu lugar, o “Balcão Nacional de Injunções”.     

Por fim, o Dec.-Lei n.º 62/2013, de 10/05, transpondo a Diretiva n.º 2011/7/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/02/2011, veio rever o regime dos pagamentos feitos a título de remunerações de transações comerciais, salvo raras exceções (art.º 2.º, n.º2), entre empresas (art.º 4.º) e entre empresas e entidades públicas (art.º 5.º), conferido ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida, nos termos do artigo 10.º daquele diploma.  

Do historial evolutivo do procedimento de injunção resulta que o mesmo começou por se circunscrever à dita “litigância de massa” junto dos tribunais judiciais, mas o seu ulterior alargamento à generalidade das transações comerciais envolvendo até entidades públicas e, por consequência, litígios da esfera do contencioso administrativo, suscita agora a sua compatibilização com este contencioso.   

Ora, o acórdão do STA acima citado alinha no entendimento de que “nada, em princípio, parece impedir que esse meio célere e desburocratizado de obter um documento com força executiva possa ser utilizado fora do âmbito da jurisdição comum”; e que tal procedimento será “utilizável na área administrativa sempre que o respetivo operador económico o pretenda, e desde que se trate de um atraso de pagamento em «transações comerciais».

De resto, ali se observa que “se dúvidas razoáveis houvesse (…), sempre as mesmas deveriam ser resolvidas em sentido positivo, pois não admitir o procedimento de injunção na jurisdição administrativa, e no universo litigioso em referência, corresponderia a uma discriminação negativa de credores de entidades públicas que contraria o princípio da interpretação conforme ao direito da União Europeia”.

Nesta linha de entendimento, afigura-se que, no caso de requerimento de injunção fundado em créditos relativas a transações comerciais emergentes de contratos administrativos, como o dos autos, os tribunais competentes para a subsequente fase jurisdicionalizada, em caso de oposição ou de frustração da notificação do requerido, serão os tribunais administrativos, assim se compatibilizando o procedimento de injunção com os meios processuais daquele contencioso.


Nesta linha de entendimento, afigura-se que em face da causa de pedir configurada no requerimento de injunção, competia ao juiz da 1.ª instância ter conhecido, oficiosa e liminarmente, da exceção de incompetência em razão da matéria. Não o tendo feito, tal questão pode ainda ser apreciada nomeadamente por via de recurso, inclusive de revista.


Aqui chegados, não nos resta senão declarar procedente a exceção de incompetência material do tribunal da causa, por se tratar de questão do foro dos tribunais administrativos, dando assim provimento à revista.   

    

IV - Decisão


Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em sua substituição, julga-se procedente a exceção de incompetência do tribunal da causa em razão da matéria, absolvendo-se a R. da instância.  

As custas do recurso ficam a cargo da A..


Lisboa, 13 de outubro de 2016


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo


Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria


________________
[1] Vide, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 19/12/2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Pires da Graça, proferido no processo n.º 20/12, acessível na Internet.
[2] In Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2.ª Edição pp. 160.  
[3] In Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2015, pp. 165-166. 
[4] Acórdão relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Azevedo Moreira, acessível na Internet.
[5] No mesmo sentido, vide, entre outros, o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 16/02/2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Rodrigues da Costa, proferido no processo n.º 021/11, acessível na Internet.
[6] Ob. cit. p. 161
[7] Vide Manuel Pereira Augusto de Matos, trabalho de pós-graduação, apresentado na Faculdade de Di-reito da Universidade de Lisboa, intitulado A Escolha dos Procedimentos Pré-contratuais, de Abril de 2012, p. 4, acessível na Internet, em que, a este propósito, cita os Autores Rui Medeiros, Maria João Estorninho e Margarida Olazabal.    
[8] Livro Verde sobre as Parcerias Público-Privadas e o Direito Comunitário em Matéria de Contratos Públicos e de Concessões, de 30 de Abril de 2004, citado por Manuel Pereira Augusto de Matos, no trabalho indicado na nota anterior.
[9] Relatado pelo Exm.º Juiz Cons. José Veloso, estando acessível na Internet .http://www.dgsi.pt/sjta.