Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A979
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: SJ20070524009796
Data do Acordão: 05/24/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :

I – As Relações não podem, com fundamento em presunções judiciais, alterar as respostas aos quesitos ou aos pontos da base instrutória, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.

II – Podem as Relações tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não alterem os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica daqueles.

III – O S.T.J., embora não possa recorrer a presunções judiciais, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 29/1/03, AA e esposa, BB, residentes na Avenida de ......., na freguesia das Marinhas, Esposende, intentaram a presente acção, com processo comum sob a forma sumária, posteriormente rectificada para ordinária, contra CC e marido, DD, residentes no lugar de ........, freguesia de Vila Chã, também de Esposende, pedindo:

A) que se declare que eles AA. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de .........., freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º 00096 – Vila Chã;

B) que os RR. sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade deles, AA., sobre o prédio acima identificado;

C) que os RR. sejam condenados a retirar os ferros e a rede de vedação colocada desde o vértice sul-poente do prédio destes, vértice esse situado a cerca de 10 metros para Norte a partir do prolongamento da fachada Nascente da casa de habitação dos A.A., até à varanda existente na parte Norte da casa de habitação dos AA., e que se prolonga para sul, bem como a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse dos AA;

D) que os RR. sejam condenados a desocuparem imediatamente o logradouro do prédio dos A.A., com a configuração e delimitação constante do sombreado vermelho no croquis junto como doc. n°. 5, repondo-o na situação em que se encontrava anteriormente;

E) que os RR. sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe ou viole o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima identificado;

F) que os RR. sejam condenados a pagar-lhes (a eles AA.) a indemnização a liquidar em execução de sentença quanto aos prejuízos e danos materiais e morais sofridos pelos AA. com a conduta dos RR. e até efectiva desocupação.

G) que os RR. sejam condenados a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 50 por cada dia de atraso na entrega e desocupação do logradouro, após o trânsito em julgado da decisão final, a dividir em partes iguais, entre os AA. e o Estado.

Fundamentam estes pedidos alegando, em síntese que são donos, por sucessão e usucapião, de um prédio urbano sito no lugar de ............., freguesia de Vila Chã, deste concelho de Esposende, o qual se compõe de casa de rés-do-chão e dois pavimentos, dependência e logradouro, este com a área de 155 m2, a confrontar do norte com o rego, do sul com o caminho, e do nascente e poente com DD, inscrito na matriz predial urbana no artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ........., de Vila Chã.

Os RR. são, por sua vez, donos de um prédio rústico sito no mesmo lugar, freguesia de Marinhas, o qual é composto de uma leira de lavradio denominada “A Horta”, com a área de 315 m2, e que confronta do norte e nascente com o rego, do sul com a estrada e do poente com AA, inscrito na matriz predial rústica no artigo 5475º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........, das Marinhas.

Os dois prédios são contíguos, confrontando o prédio deles AA. pelo lado nascente com o prédio dos RR..

Estes arrogam-se agora proprietários e pretendem ocupar abusivamente parte do logradouro daquele seu prédio urbano, e, no fim de semana de 22 a 24 de Novembro de 2002, eles RR. ou alguém a seu mando, aproveitando-se da ausência dos AA., procederam à colocação de uma rede de vedação em arame e ferro, desde o vértice sul/poente do prédio de que são donos, vértice esse situado a cerca de 10 metros para norte a partir do prolongamento da fachada nascente da casa de habitação dos AA., até à varanda existente na parte norte desta casa, prolongando-a em cerca de 3 metros para sul, e fizeram ainda diversos buracos na parede norte da mesma casa de habitação deles autores, mais concretamente na parede da sacada, onde fixaram os ferros de suporte da rede de vedação. Ao fazerem os buracos e ao introduzir os ferros partiram a parede em alguns pontos e deixaram abertos os buracos.

Em Dezembro de 2002 os mesmos RR. desnivelaram o terreno, na parte situada a norte e a nascente, da casa de habitação deles, AA., removeram pedras, eliminando sinais evidentes da linha divisória entre os dois prédios, lavraram e plantaram alguns arbustos e legumes, com o propósito e intenção de criarem a ideia de que já possuem o terreno há vários anos.

Contestaram os RR., pela forma como melhor consta de folhas 72 a 89, e deduziram reconvenção, pretendendo ser declarados legítimos donos da referida parcela de terreno.

Na contestação, para além de impugnarem os factos invocados pelos AA., não aceitando as áreas nem as confrontações que constam do registo do prédio destes na Conservatória do Registo Predial, impugnando que este prédio confronte com o seu pelo lado nascente, e que confronte pelo lado norte com o rego de águas bravas ali existente, pois, desse lado, confronta com o prédio deles RR., alegam ainda que colocaram uma rede de vedação no seu terreno, junto ao muro que o veda do terreno dos AA., e que os buracos existentes na parede do prédio dos AA. foram feitos há vários anos pelo inquilino destes, que, abusivamente, aí pôs diversos objectos e ferro velho na ausência deles RR., que, à altura, se encontravam emigrados na Córsega. Mais alegam que o desnivelamento do terreno, em Dezembro de 2002, foi feito por máquina retro-escavadora de uma empresa que estava a realizar o empreendimento de realargamento da estrada que liga Marinhas a Vila Chã, tendo como único objectivo limpar o rego da Ribeira do Peralto do “caulino” aí depositado pela fábrica de exploração de inertes de Vila Chã.

A reconvenção fundamentam-na afirmando que a parcela de terreno em discussão sempre a usaram e fruíram por ser parte integrante do seu prédio, que adquiriram por compra, celebrada em escritura pública, e que registaram a seu favor. Desde tal aquisição – 24/8/84 -, aí cortam ervas, arbustos e amieiros, usufruindo periodicamente do logradouro.

Assim, à vista de toda a gente, de forma pacífica, sempre no aludido terreno podaram e apararam e ainda cortaram arbustos e árvores de fruto, nele semearam erva e cortaram-na para a alimentação dos seus animais domésticos, aí desbastando, aparando ou cortando amieiros e outras espécies arbóreas, na convicção de serem os seus donos e de que não lesam direitos de ninguém, sendo por todos reconhecidos como proprietários do mesmo terreno, pelo que, eles sim, teriam adquirido o seu prédio, incluindo a fracção de terreno em causa, por usucapião.

Replicaram os AA., pela forma como melhor consta de folhas 107 e 108, onde, aceitando que os RR. somente regressaram a Portugal em 1999, impugnam os demais factos que estes alegam, dizendo que apenas nos finais do ano de 2002 é que eles “começaram a mexer” no terreno deles, AA., aproveitando-se da sua ausência e da sua idade avançada. Reclamando sua a propriedade sobre a parcela de terreno em causa, afirmam constituir ela o logradouro do seu prédio urbano, sendo aí que os AA. faziam a roda da azenha, limpavam e lubrificavam o aguilhão da azenha, dela retirando todas as utilidades que proporciona. Assim rebatem o pedido reconvencional.

Realizada uma audiência preliminar em que não foi obtida conciliação, os RR. requereram ainda a intervenção, como parte principal, da Junta de Freguesia de Vila Chã, o que lhes foi indeferido.

Proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, foi enumerada a matéria de facto desde logo dada por assente e elaborada a base instrutória, do que reclamaram os AA., tendo a sua reclamação, após resposta dos RR., sido oportunamente decidida por despacho que a indeferiu.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sujeita a instrução, após o que, apresentadas alegações escritas pelos réus, foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, declarando os AA. donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de ........., freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........ – Vila Chã, a confrontar do Norte com o rego, do Sul com caminho, do Nascente com o caminho e com os Réus, e do Poente igualmente com os Réus;

condenou os RR. a reconhecer o direito de propriedade deles, AA., sobre o prédio acima identificado;

mais condenou os RR. a desocupar imediatamente a parte do logradouro do prédio dos AA., que ocupam, com a configuração e delimitação constante do n.º 7 da matéria de facto, e concretamente na parte constante do sombreado vermelho, no croquis de fls. 37, que fica no interior do triângulo escaleno cujos lados são a fachada da parte urbana do prédio, a margem do Ribeiro do Peralto, e a linha sobre a qual está escrito “8,00”;

condenou ainda os RR. a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe ou viole o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima identificado, incluindo a parte do logradouro, com a configuração constante do n.º 7 da facticidade;

finalmente, condenou os RR. a pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a importância de € 50 por cada dia que prolonguem a ocupação do dito logradouro dos AA., a contar do dia seguinte ao do trânsito em julgado da decisão final do processo;

absolveu os RR. dos restantes pedidos formulados pelos AA.;

condenou os AA., a reconhecer o direito de propriedade dos RR. sobre o prédio rústico inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 5475º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........./.........., da freguesia de Marinhas, com a configuração que, no desenho de folhas 37 dos autos, é dada pelo sombreado verde, acrescida da parte triangular sombreada a vermelho, que imediatamente se lhe segue, sendo a divisória deste prédio com o dos AA. correspondente àquela linha onde está escrito “8,00” e à linha desenhada a caneta azul, que se encontra com aquela sensivelmente ao nível do cunhal Nascente/Norte da casa dos AA..

Apelaram autores e réus, tendo a Relação negado provimento ao recurso interposto pelos autores e concedido provimento ao recurso interposto pelos réus, revogando a sentença ali recorrida no tocante ao reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a parcela objecto do litígio e demais pedidos dele dependentes, declarando-se os réus donos e legítimos proprietários de tal parcela (ou seja, de todo o terreno que na sentença foi repartido pelos triângulos escaleno e isósceles).

É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, pelos autores, que, em alegações, formularam as seguintes conclusões:

1ª - O entendimento do acórdão recorrido no sentido de que os actos de despejo de águas ou de restos das obras, de reparação da roda da azenha e de colocação de roupa a secar sobre uma parte de um prédio constituído apenas por pedras, inculto e que não tem qualquer espécie de utilização, não tem significado ou relevância jurídica, contraria a realidade e a experiência da vida, uma vez que tais actos de posse praticados pelos autores são os únicos possíveis sobre uma parcela de terreno com tal natureza;

2ª - O acórdão recorrido padece de vício de interpretação e raciocínio e de erro de julgamento na parte em que se refere à questão da roda da azenha, interpretando mal a expressão “fazer a roda”, pois que interpretou tal expressão como acto de moer, quando a mesma significa reparar, arranjar e consertar a roda da azenha, o que condicionou e condiciona a apreciação da prova produzida;

3ª - Tendo a Relação entendido que não foi feita prova da posse do terreno em litígio, nem pelos autores nem pelos réus, não obstante os únicos actos de posse possíveis sobre o terreno em questão (de pedras e inculto) terem sido praticados apenas pelos autores, actos que a decisão recorrida desvalorizou injustificadamente e contra as regras da experiência da vida e do senso comum, dever-se-ia ter julgado improcedente também o pedido reconvencional, no tocante à questão da parcela em litígio;

4ª - No acórdão recorrido entendeu-se que a parcela de terreno em litígio se encontra fisicamente ligada ao prédio dos réus, sem soluções de continuidade, aproveitando-lhe a posse exercida sobre o prédio a que está ligado, entendimento que não se pode sufragar, por, desde logo, se basear em pressuposto inexacto e errado e que está em contradição com a inspecção judicial de fls. 338, uma vez que a parcela de terreno em litígio está ligada fisicamente quer ao prédio dos réus quer ao prédio dos autores, aplicando-se assim a presunção a que o acórdão se refere tanto aos réus como aos autores (e não apenas aos réus);

5ª - Por outro lado, entre o prédio dos réus e a parcela em litígio existe um desnível ou socalco, o que afecta e afasta, desde logo, a inexistência de soluções de continuidade, conforme resulta assente e provado na inspecção judicial ao local de fls. 338, onde se refere que ”do prédio dos réus para o terreno que os autores reivindicam e que fica junto ao regato, existe um socalco em pedras soltas que tem todo o aspecto de ser muito antigo”, que não foi considerada nem tida em conta no acórdão recorrido;

6ª - Há factos assentes nos autos que invalidam a resposta dada pela Relação ao quesito 15º, uma vez que da inspecção judicial de fls. 338 resulta provado que entre o prédio dos réus e o terreno em litígio existe um socalco ou desnível, o que conflitua com a presunção da inexistência de interrupção ou soluções de continuidade;

7ª - A presunção utilizada no acórdão recorrido vai contra a inspecção judicial, a qual constitui um meio de prova directa, violando assim a hierarquia dos meios de prova;

8ª - Do auto de inspecção de fls. 338 resulta ainda que na versão dos réus a roda da azenha dos autores estava a cerca de dois metros em posição paralela à parede da casa, o que também nem sequer foi considerado no acórdão recorrido;

9ª - Sendo os autores donos da azenha (facto assente e fora de litígio), é sabido e resulta da experiência comum que a mesma precisa de espaço para “fazer a roda”, ou seja, para a arranjar e consertar, espaço que os próprios réus reconhecem no auto de inspecção judicial ser de dois metros paralelamente à parede da casa de habitação dos autores, o que a decisão do acórdão recorrido contraria, desrespeitando o auto de inspecção judicial e as regras da experiência da vida;

10ª - O acórdão recorrido desvalorizou (mal e injustificadamente) a posse dos autores e, uma vez afastada tal posse, presumiu que a parcela em questão teria de pertencer aos réus, por estar ligada ao seu prédio, tendo procedido à alteração da matéria de facto em consonância com tal presunção;

11ª - O raciocínio do acórdão recorrido (que deve valer para os dois lados) encontra-se incorrecto e viciado, uma vez que, tendo os réus deduzido reconvenção, estes, com vista à sua procedência, teriam também de provar a sua posse sobre a parcela em litígio, o que não fizeram (devendo assim presumir-se que tal parcela pertence ao prédio dos autores, ao qual está física e naturalisticamente ligada);

12ª - A Relação não podia basear a sua convicção e alterar a quase totalidade das respostas aos quesitos com base numa presunção que, para além de enfermar de erro nos seus pressupostos, colide com outros meios de prova constantes dos autos, nomeadamente a prova por inspecção judicial, que (por se tratar de um meio de prova directa, na medida em que é o Tribunal a observar ele próprio os factos a provar), tem muitíssimo mais força do que as presunções judiciais, sob pena de violação das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico e de ilogismo;

13ª - A prova por presunção judicial tem como limites o respeito pela factualidade provada e não pode eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes, devendo o seu uso (prova por presunção) ser objecto de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao raciocínio efectuado, como é o caso dos autos;

14ª - O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, não com base na prova produzida e constante dos autos, mas com base na presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido (mal) que os autores não fizeram a prova da posse de tal parcela;

15ª - Encontrando-se a parcela de terreno em litígio física e materialmente ligada ao prédio urbano dos autores, os réus, que deduziram reconvenção invocando a posse e a aquisição da mesma por usucapião, teriam de provar actos materiais de posse sobre tal parcela conducentes à usucapião, não sendo suficiente nem lhes bastando a falta de prova da posse dos autores;

16ª - Tendo os réus deduzido reconvenção invocando a aquisição por usucapião da parcela de terreno em questão, teriam de provar os factos constitutivos do seu direito (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), - o que não fizeram -, sendo certo que a falta de prova da posse dos autores não significa que se tenha como provada a posse dos réus ou vice-versa;

17ª - Ao proceder à alteração da quase totalidade da matéria constante da base instrutória em consonância com a presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido que os autores não fizeram prova da posse sobre a mesma, o acórdão recorrido violou os regras do ónus da prova estabelecidas nos art.ºs 341º e 342º do Cód. Civil e o disposto nos art.ºs 653º, n.º 2, e 659º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil;

18ª - Entendendo que nem os autores nem os réus fizeram prova sobre a posse do terreno em litígio, a Relação deveria ter julgado também improcedente o pedido reconvencional (relegando a questão para uma eventual acção de demarcação ou outra), ou então deveria ter julgado improcedentes ambas as apelações, mantendo a decisão da 1ª instância, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito;

19ª - O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto de forma incompreensível, não tomando em devida conta e consideração a matéria quesitada, conforme resulta das respostas dadas aos n.ºs 3º, 4º, 5º, 6º e 15º da base instrutória, cujas respostas divergem da matéria quesitada;

20ª - Na resposta dada ao quesito 15º da base instrutória pela Relação foi introduzido o advérbio “sempre” e a expressão “estando a ele ligado sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores”, matéria que não foi alegada pelos réus em parte alguma dos seus articulados;

21ª - Tratando-se de matéria não alegada deve a mesma ser eliminada ou considerada não escrita, alterando-se a resposta ao quesito 15º para “provado apenas que os réus cultivaram o prédio de que são donos”;

22ª - Da matéria de facto fixada pela Relação não resulta provado a quem pertence o terreno em litígio, uma vez que das respostas dadas aos quesitos 15º, 16º, 17º e 18º o cultivo feito pelos réus à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, apenas se refere ao prédio de que os réus são donos (art.º rústico 5475º) e não à parcela em litígio;

23ª - O facto de se ter dado como provado que os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, o terreno a Nascente da casa dos autores, apenas confere aos réus o direito de propriedade sobre o seu prédio, mas não sobre a parcela de terreno em litígio que está ligada ao prédio, até porque tal parcela de terreno está também física e materialmente ligada ao prédio dos autores sem qualquer interrupção (a parcela de terreno em litígio está ligada a ambos os prédios, reclamando autores e réus que a mesma faz parte integrante dos seus prédios);

24ª - Era e é necessária prova da prática de actos materiais de posse sobre a parcela de terreno em litígio e não sobre os prédios que lhe estão ligados ou contíguos, quer dos autores, quer dos réus, uma vez que ambos reivindicam a parcela como parte integrante do seu prédio;

25ª - Tendo a Relação dado como provado que os réus apenas cultivam o prédio de que são donos (art.º rústico 5475º de Marinhas), mas não a parcela em litígio, não se verifica o requisito da aquisição por usucapião de tal parcela, por falta do corpus e animus em relação a esta;

26ª - Dos factos dados como provados resulta apenas que os réus são donos do art.º rústico 5475º da freguesia de Marinhas, ao qual está ligado o terreno em questão, mas não que sejam donos deste, uma vez que a usucapião apenas se verifica em relação ao prédio que é possuído ou ocupado, não se estendendo aos terrenos que lhe estão ligados ou contíguos;

27ª - Tendo em conta a matéria de facto fixada pela Relação, resulta que o terreno a Norte da casa dos autores é pertença destes e não dos réus, uma vez que, situando-se uma parte da parcela em litígio a Norte da casa e outra parte a Nascente da casa, apenas foi dado como provado que o prédio dos autores confina pelo Nascente com o prédio dos réus (e não pelo Norte) e que ao prédio dos réus está ligado o terreno a Nascente da casa dos autores (e não a Norte);

28ª - Se o terreno situado a Norte da casa de habitação dos autores integrasse o prédio dos réus, o prédio dos autores teria de confinar, necessária e obrigatoriamente, pelo Norte (e não pelo Nascente), com o prédio dos réus, resultando assim que os autores são donos da parcela de terreno em litígio situada a Norte da casa de habitação (parcela correspondente ao triângulo escaleno) e os réus da parcela situada a Nascente (parcela correspondente ao triângulo isósceles);

29ª - O acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.ºs 341º, 342º, 349º, 351º, 390º, 391º, 1263º, 1287º, 1296º e 1316º do Cód. Civil, e nos art.ºs 264º, 612º, 615º, 646º, n.º 4, 653º, n.º 2, 659º, n.ºs 2 e 3, 664º e 712º do Cód. Proc. Civil.

Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido, quer na parte em que procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito, devendo ser substituído por outro que julgue a reconvenção improcedente ou que mantenha a decisão da 1ª instância, com as legais consequências, decidindo-se, sempre como última alternativa, que os réus são donos apenas da parcela a nascente da casa dos autores, correspondente ao triângulo isósceles referido na sentença da 1ª instância;

ou, caso assim se não entenda, que o acórdão recorrido seja anulado.

Em contra alegações, os réus pugnaram pela confirmação daquele acórdão.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que na 1ª instância foram declarados assentes os factos seguintes:

1.- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 189° urbano e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...../........, da freguesia de Vila Chã, em nome dos autores, o seguinte prédio: “Urbano - lugar da Abelheira - casa de rés-do-chão e dois pavimentos, dependência e logradouro - áreas cob. 85 m2, dep. 32 m2 e logr. 155 m2 - norte, rego - sul, caminho - nascente, caminho e herdeiros de EE - poente, EE" (cfr. folhas 8 a 12).

2.- Os autores adquiriram o referido prédio por sucessão, através de partilha realizada nos autos de inventário obrigatório a que se procedeu por óbito de FF e GG, pais do autor marido (cfr. folhas 13 a 35).

3.- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 5475° rústico e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ....../......, da freguesia de Marinhas, em nome dos Réus, o seguinte prédio: “Rústico - Lugar de ........ - Leira de lavradio, denominado "A Horta" - 315 m2 – norte e nascente, rego - sul, Estrada - poente, AA".

4.- Os Réus adquiriram o referido prédio por compra a HH, através de escritura de compra e venda realizada em vinte e quatro de Agosto de 1984, no Cartório Notarial de Barcelos (cfr. folhas 38 a 42).

5.- Os prédios descritos em 1. e 3. são contíguos.

6.- O prédio descrito em 1. confronta do Norte com o rego, do Sul com caminho, do Nascente com o caminho e com o prédio dos Réus, referido em 3., e do Poente com um outro prédio dos Réus.

7.- Tomando como referência o desenho de folhas 37 o logradouro do prédio descrito em 1. tinha, na parte Nascente da casa, sensivelmente a forma de um triângulo equilátero, e na parte Norte também praticamente a forma de um triângulo, este escaleno, em que um dos lados coincide com a fachada da parte urbana do prédio, o outro com a margem do ribeiro do Peralto, e o terceiro é uma linha recta que, partindo do canto norte/nascente da casa, se prolonga até ao ribeiro, numa extensão de oito metros, havendo ainda uma outra área de logradouro na parte da frente da casa, como se refere infra em 17.

8.- Os AA. desde há 25 e mais anos que por si e seus antepossuidores têm utilizado e fruído todas as potencialidades do prédio referido em 1., incluindo o logradouro acima descrito, nele vivendo, acedendo à roda da azenha, fazendo muros, limpando-o e colhendo os seus frutos.

9.- À vista de toda a gente.

10.- Ininterruptamente.

11.- Convencidos de estarem a exercer um direito próprio.

12.- O prédio dos RR. tem uma área superior a 315 m2.

13.- No fim de semana de 22 e 24 de Novembro de 2002, os RR., ou alguém a seu mando, procederam à colocação de uma rede de vedação, em arame e ferro, desde o vértice sul/poente do seu prédio, vértice esse situado a cerca de 10 metros para norte a partir do prolongamento da fachada nascente à casa dos AA., prolongando-se em cerca de três metros para sul.

14.- Os Réus, desde que regressaram a Portugal, têm cultivado o terreno situado a norte da casa dos AA., referido em 7.

15.- Os AA. não deram o seu consentimento a que os RR. cultivassem aquele terreno.

16.- Os RR. impedem os AA. de fruir aquele terreno, arrogando-se proprietários daquela parte do logradouro, referido em 7.

17.- O logradouro dos AA., referido em 1., tem uma parte virada para a Estrada Camarária que liga Marinhas a Vila Chã e os AA. cederam algum terreno dela para o alargamento desta estrada.

18.- Os RR. têm utilizado e fruído a parte Norte do logradouro referido em 7., nele aparando, podando, e cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos.

19.- À vista de toda a gente.

20.- Com oposição dos AA.

21.- De forma continuada e ininterrupta.

22.- O prédio dos RR. confronta pelo lado Sul (parte) e Poente com o prédio dos AA.

23.- Os RR. colocaram uma rede de vedação no seu terreno sensivelmente no local onde antigamente existiu um muro que o separava do logradouro dos AA., na parte deste voltada a nascente, com a forma de triângulo equilátero, referida em 7.

24.- Os buracos, na parede Norte da casa dos AA., concretamente na parede da sacada, foram feitos há vários anos pelos inquilinos dos AA.

25.- Uma máquina rectro-escavadora de uma firma que esteve a realizar o empreendimento de realargamento da estrada que liga Marinhas a Vila Chã entrou no prédio dos Réus, e ainda em parte do logradouro do prédio dos AA., e foi até ao ribeiro do Peralto, para o limpar, regressando pelo mesmo caminho.

O acórdão recorrido alterou a decisão da matéria de facto constante daqueles n.ºs 6º a 12º, 14º a 16º, e 18º a 22º. Trata-se da decisão sobre os pontos de facto constantes, respectivamente, dos n.ºs 1º a 7º, 11º a 13º, e 15º a 19º, da base instrutória, que a Relação alterou eliminando os factos sob os n.ºs 7º a 12º, 14º e 22º, por ter substituído para “não provado” as respostas dadas aos pontos 2º a 7º, 11º e 19º da base instrutória.

E, quanto aos demais pontos dessa base acima indicados, substituiu as respectivas respostas pelas de se encontrar provado apenas que o prédio dos autores confina, do lado Sul, com estrada camarária, e do Nascente com prédio dos réus (ponto n.º 1º), que a colocação da vedação referida no ponto 8º (n.º 13º da descrição dos factos dados por assentes em 1ª instância, e inalterado) não teve o prévio consentimento dos autores (ponto n.º 12º), que os réus, com tal vedação, se propõem impedir o acesso dos autores ao terreno situado a Nascente da sua casa (ponto 13º), que os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores (ponto 15º), que os factos dados por provados acima sob os n.ºs 19º e 21º o são apenas em relação ao prédio mencionado na resposta sobre o ponto 15º (pontos n.º 16º e 18º), e que, também só em relação a esse prédio, os actos nele praticados pelos réus o foram sem oposição de ninguém (ponto n.º 17º).

A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a alteração da decisão sobre a matéria de facto feita no acórdão recorrido, e que pretendem seja revogada, por um lado por ter sido feita com base em presunção de que a parcela de terreno em litígio teria de pertencer aos réus por ter entendido que os autores não provaram a prática de actos de posse sobre a mesma parcela, e por outro por ter considerado provada matéria de facto não articulada.

Como é sabido, face ao disposto no art.º 729º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido (aqui, a Relação), o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, sem poder alterar a decisão proferida por aquele Tribunal quanto à matéria de facto, salvo o caso excepcional previsto no art.º 722º, n.º 2, do mesmo Código, ou seja, salvo havendo ofensa de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Com tem sido entendido, porém, no que a presunções judiciais respeita, não podem as Relações, com fundamento nelas, alterar as respostas aos quesitos, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.

Podem as Relações, no uso da sua competência em matéria de facto, recorrer a presunções judiciais, instituto previsto nos art.ºs 349º e 351º do Cód. Civil, inclusive para com base nelas desenvolverem a matéria de facto fixada na 1ª instância declarando provado algum facto por ilação de algum outro facto dado por provado, ou para reforçarem a fundamentação da decisão recorrida, mas não lhes é lícito, por essa forma, dar como provado o que nas respostas ao questionário ou à base instrutória foi considerado não provado ou por outra forma contrariar as respostas sobre a base instrutória, isto é, não podem, somente com base em presunções judiciais, ilididas na 1ª instância mediante prova testemunhal, alterar as respostas, positivas ou negativas, aos pontos da base instrutória, que só podem ser alteradas quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 712º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.

É lícito à Relação, com efeito, tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não altere os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica destes.

E o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, embora não possa recorrer a presunções judiciais, - pois que o Tribunal, ao afirmar um facto desconhecido porventura por não ter sido incluído na base instrutória, por meio de ilações, com base em juízos de probabilidade, em regras de experiência, em princípios de lógica, está a fazer um julgamento em matéria de facto -, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado (art.º 664º do Cód. Proc. Civil).

Neste sentido são numerosos os acórdãos proferidos sobre tal questão, caso dos acórdãos deste Supremo de 5/7/84, 3/11/92, 9/3/95, 26/9/95, 31/10/95, 20/1/98, 9/7/98, 7/7/99, 20/6/00, 19/3/02, 2/10/03, 15/2/05 e 7/11/06, facilmente detectáveis na Internet.

Ora, analisando o acórdão recorrido, constata-se que este, ao alterar a decisão sobre a matéria de facto, se baseou essencialmente na prova documental e testemunhal produzida que livre e pormenorizadamente analisou no uso dos seus poderes de apuramento da matéria de facto, pelo que não ocorrem as circunstâncias em que os recorrentes se baseiam para obterem alteração da matéria de facto fixada pela Relação.

Isto, porém, com uma excepção.

É que, perguntando-se no ponto 15º da base instrutória se “os réus têm utilizado e fruído o logradouro descrito em 2º, melhor assinalado a amarelo com tracejado vermelho no croquis de fls. 91, nele aparando, podando, cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos”, foi dada na 1ª instância resposta sobre esse ponto no sentido de se encontrar provado apenas que “os réus têm utilizado e fruído a parte Norte do logradouro referido no artigo 2º, nele aparando, podando, e cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos”; resposta esta que a Relação alterou para a de se encontrar provado que “os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores”.

E foi com base nessa ligação que o acórdão recorrido entendeu, por presunção natural, que a posse dos réus foi exercida também sobre a parcela em litígio.

Independentemente do facto de tal resposta, a ser mantida, implicar necessariamente que o dito terreno, se se encontra simplesmente ligado ao prédio dos réus, e portanto não nele integrado, é porque não faz parte dele, certo é que tal facto, consistente em que o dito terreno a Nascente da casa dos autores se encontra ligado sem qualquer interrupção ao prédio dos réus, é facto novo, não articulado em parte alguma nem resultante da instrução e discussão da causa, - de que, aliás, tanto resulta que o dito terreno se encontra ligado ao prédio dos réus como ao dos autores, não se vendo que não o esteja ao destes -, e, em consequência, não sujeito a instrução nem a contraditório, não podendo por isso ser atendido, à luz do disposto no art.º 664º do Cód. Proc. Civil, aplicável no presente recurso face ao disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 2, do mesmo diploma.

Há, assim, que excluir tal facto da resposta sobre o dito ponto 15º, que fica consequentemente reduzida a que se encontra provado apenas que “os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos”, só nessa medida se revogando a alteração da matéria de facto feita no acórdão recorrido.

E, sem aquele facto, cai pela base, por falta de pressupostos e por erro de raciocínio, a presunção de prática pelos réus de actos de posse, juridicamente considerada, sobre a parcela de terreno em causa.

Sustentam por outro lado os autores (conclusões 27ª e 28ª das suas alegações) que o terreno a Norte de sua casa lhes pertence e não aos réus, uma vez que, situando-se uma parte da parcela em litígio a Norte da casa e outra parte a Nascente, apenas foi dado por provado que o prédio deles autores confina a Nascente com o prédio dos réus, e não pelo Norte, e que ao prédio dos réus está ligado o terreno a Nascente da casa deles autores; ora, se o terreno a Norte integrasse o prédio dos réus, então o prédio dos autores confinaria, a Norte, com o prédio dos réus.

Não pode, porém, ao menos com este fundamento, ser-lhes reconhecida razão. Isto porque, embora na 1ª instância tenha sido dado por provado que o prédio dos autores confrontava, a Norte, com o rego, e a Nascente com o caminho e com o prédio dos réus, a Relação alterou esse facto para o de que o prédio dos autores confrontava, de Nascente, com prédio dos réus, não derivando daí em que prédio a parcela em causa, quer de Nascente, quer de Norte, se integrava.

Na verdade, se a parcela, na sua parte situada a Nascente da casa dos autores, fizesse parte do prédio destes, tal prédio confinaria, pelo extremo Nascente da parcela, com o dos réus, mas o mesmo se passaria se essa parte da parcela se integrasse no prédio dos réus, confinando então o prédio dos autores, pelo Nascente, com este, pelo extremo Poente da mesma parte da parcela. Já quanto à parte da parcela situada a Norte da casa dos autores, é de aceitar que, se fosse de considerar assente, como fez a 1ª instância, que o prédio destes confinava a Norte com o rego (e não, portanto, com o prédio dos réus), teria de se entender que essa parte da parcela se integrava no prédio dos autores, integrando-se no prédio dos réus se, em vez disso, fosse de considerar assente que o prédio dos autores, a Norte, confinava com o dos réus, obviamente pelo Sul dessa parte da parcela.

Simplesmente, ficou sem se saber, perante a alteração da respectiva resposta ao ponto 1º da base instrutória, feita no acórdão recorrido, qual a confrontação do prédio dos autores a Norte. Assim, ignorando-se se aí confronta com o rego ou com o prédio dos réus, não é possível determinar se a parcela em causa, nessa parte, se integra num ou no outro prédio, não se podendo do facto de só se provar que o prédio dos autores confronta a Nascente com o dos réus, sem se provar que confronte, a Norte, com ele, extrair a conclusão de que a Norte não confronta com ele mas com o rego para se concluir pela integração dessa parte da parcela no prédio dos autores.

Finalmente, não sendo os títulos de aquisição derivada dos seus respectivos prédios suficientes para possibilitarem a determinação de qual deles integra a parcela de terreno em litígio, quer os autores, na petição inicial, quer os réus, no pedido reconvencional, invocam usucapião sobre a dita parcela.

A usucapião, como se sabe, é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, consistente, segundo o disposto no art.º 1287º do Cód. Civil, na aquisição, pelo possuidor, do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, devido à posse do mesmo, mantida por certo lapso de tempo.

A posse referida nesse dispositivo, por sua vez, vem definida no art.º 1251º do mesmo Código como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Acrescentando o art.º 1253º, também do Cód. Civil, que são havidos como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.

Daqui resulta que a posse se caracteriza por dois elementos: o corpus, constituído pelo exercício do poder de facto sobre a coisa, e o animus, consistente na intenção de agir como titular do direito e que permite distinguir a verdadeira posse da simples detenção.

Ora, perante a alteração da matéria de facto assente feita pela Relação na parte que este Supremo, como se referiu, não pode sindicar, o que se verifica é não ter ficado provada a prática de qualquer acto de posse material, e muito menos da existência do necessário animus de possuidor, nem dos autores, nem dos réus, sobre qualquer parte da dita parcela de terreno.

E, recaindo sobre cada uma das partes o ónus da prova dos factos integrantes do direito que respectivamente se arroga (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), conclui-se que nem os autores nem os réus demonstraram a aquisição da parcela de terreno em causa, como respectivamente sustentaram na petição inicial e na contestação-reconvenção.

Donde resulta que quer a acção, no tocante à dita parcela, quer a reconvenção, tenham de ser julgadas improcedentes.

Pelo exposto, acorda-se em conceder em parte a presente revista, revogando-se o acórdão recorrido no tocante ao reconhecimento do direito de propriedade dos réus sobre a parcela de terreno objecto do litígio;

julgando-se a acção parcialmente procedente e declarando-se em consequência os autores donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de Abelheira, freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........, o qual confronta, a Sul, com estrada camarária, e a Nascente com prédio dos réus, condenando-se por isso os réus a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre esse prédio;

e julgando-se a acção improcedente na parte restante, julgando-se também improcedente a reconvenção, pelo que ficam absolvidos os réus e os autores dos respectivos pedidos contra eles formulados.

Custas, nas instâncias, pelos autores quanto ao pedido inicial, e pelos réus quanto ao pedido reconvencional; custas da presente revista por autores e réus, na proporção de metade para aqueles e de metade para estes.

Lisboa, 24 de Maio de 2007

Relator: Silva Salazar

Afonso Correia

Ribeiro de Almeida