Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6450/05.9TBSXL.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA GRAVADA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :

1. Se a matéria de facto não tiver sido impugnada pelo apelante em termos procedimentalmente adequados – ou seja, com o cumprimento dos ónus impostos pelo art. 690º-A do CPC, criando para a Relação o poder-dever de, através da audição da gravação do julgamento, sindicar a livre convicção da 1ª instância – a Relação tem os seus poderes de sindicância da matéria de facto circunscritos aos casos em que - mesmo antes da vigência do DL 39/95, que implementou um sistema de gravação das audiências e da prova nelas produzida - lhe era lícito alterar as respostas aos quesitos, pressupondo tal possibilidade que todos os elementos probatórios relevantes constem dos autos ou que o valor reforçado de certo elemento probatório, cabalmente documentado no processo, inviabilize que a livre apreciação de quaisquer outras provas o possa abalar.

2. É lícita a utilização pelas Relações de presunções naturais ou judiciais, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração directa das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória fora do quadro normativo consentido pelo nº1 do art. 712º, nem a um desenvolvimento, no próprio acórdão, da base factual do litígio, susceptível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterada ou imodificada.

3. Cabe no âmbito de um recurso de revista e nos poderes cognitivos que nele exerce o STJ controlar se a Relação extravasou os poderes de substituição ao tribunal recorrido na valoração da matéria de facto que resultam do preceituado no nº1 do art. 712º e, bem assim, se fez ou não um uso processualmente legítimo das presunções naturais, cuja substância ou conteúdo se não está, desta forma, a pretender sindicar.
Decisão Texto Integral:

    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

    1. A Associação dos Bombeiros Voluntários do ........intentou contra AA e mulher, CC, DD e EE acção pauliana , impugnando a eficácia do negócio de venda de determinada fracção predial, sita no Seixal. que identificam, que os primeiros RR fizeram aos segundos, por escritura de 29DEZ2004, alegando que tal negócio jurídico teria como objectivo diminuir as garantias de satisfação do crédito da A., emergente de irregularidades financeiras que o 1º R. teria cometido no exercício de funções de tesoureiro daquela pessoa colectiva.
    Os RR contestaram por impugnação, sustentando, nomeadamente, que o crédito invocado pela A. já se encontrava adequadamente garantido, através das diligências realizadas, em sede de penhora, na acção executiva instaurada contra eles.
    A final veio a ser proferida sentença que, por considerar indemonstrados os pressupostos da impugnação pauliana - agravamento da impossibilidade de satisfação do crédito e a má-fé dos adquirentes - julgou improcedente a acção.
    Inconformada, apelou a A. , impugnando, desde logo, a decisão proferida quanto à matéria de facto.

    Apreciando tal impugnação, a Relação alterou, em pontos fundamentais, o decidido na 1ª instância quanto aos factos provados e não provados, entendendo, nomeadamente que se não mostrava «racionalmente fundada» a decisão quanto à matéria do «quesito» 1º, tida por não provada, e contraditória a matéria que constava dos pontos 19 e 24, eliminando, em consequência o facto que a 1ª instância ali tinha dado como assente, afirmando:

    Perguntava-se no quesito 1 se “ao outorgarem a escritura referida em M) os RR pretendiam dissipar os seu património e impedir o pagamento à A. da quantia em dívida”, tendo tal quesito recebido resposta negativa. Para fundamentar tal resposta invocou-se terem os RR negado aquela intencionalidade e ser plausível que no momento da realização do negócio estivessem até convencidos, como argumentaram, de que o pagamento da dívida estivesse assegurado com a penhora que havia sido efectuada sobre os bens do Seixal Futebol Clube.
    Contra tal resposta se insurge a recorrente invocando que a intencionalidade referida no clube se retira dos demais factos provados, designadamente, a falta de pagamento do preço, ter ocorrido logo após a citação para a execução, o terem continuado a residir na casa.
    Com vista à liquidação total da sua dívida para com a A. os RR instauraram execução contra o Seixal Futebol Clube e à ordem da mesma foi depositada quantia que mais do que permitia tal liquidação; e em função desse facto, alegam os RR, estavam convencidos de que a dívida estava paga, não sendo sua intenção impedir a satisfação do crédito da Autora.
    E foi nesse circunstancialismo que se fundou a convicção do Mmº juiz a quo.
    Não se nos afigura, porém, que essa convicção seja racionalmente fundada.
    O alegado convencimento dos RR é posto em crise perante a citação efectuada para a execução e o apressado registo da venda.
    Com efeito, de acordo com padrões de experiência comum de vida, quem está convencido de que angariou meios de liquidar uma dívida e se vê confrontada com a citação para execução onde se pretende obter a cobrança da dívida é, no mínimo, ir esclarecer a situação. E muito menos ir apressadamente inscrever no registo – a citação é de 19OUT e o registo provisório é de 2NOV – a venda de imóvel ao irmão.
    E se a estas circunstâncias juntarmos o facto de nenhum dinheiro terem recebido dos compradores e de continuarem a residir na casa como dantes faziam afigura-se-nos ser inquestionável, à luz da experiência comum de vida, uma intencionalidade de salvaguardar o local de residência, ainda que sem a intencionalidade de impedir a cobrança da dívida.
    Entende-se, pelo exposto, ser de alterar a resposta ao quesito 1 para “provado apenas que ao outorgarem a escritura referida em M) os RR pretendiam salvaguardar o imóvel de poder vir a ser penhorado para pagamento do crédito da Autora”.

    Para além desta, outras alterações se impõem à matéria de facto.
    Desde logo as decorrentes do constante das certidões de nascimento entretanto juntas aos autos (fls 196 e 252).
    Mas também o constante da al. S) dos factos assente (“a venda do imóvel supra descrito foi efectuada como forma de arranjar financiamento para os 1ºs RR fazerem face à dívida para coma A.”) por, para além da manifesta contradição com a resposta dada ao quesito 2, não se encontrar confessado o facto uma vez que à alegação, constante nos artigos 13º e 8º das contestações, de que a venda “foi efectuada como forma de arranjar financiamento para os 1 .°s RR. fazerem face à dívida para com a A.” esta opôs, no artº 11 da sua réplica que “tal ajuda não consistiu, ao contrário do alegado, numa forma dos 1ºs RR se financiarem para pagarem à A”.


    E, em consequência de tais modificações, fixou a Relação o seguinte quadro factual ( em que se assinalam a negrito as alterações introduzidas pela Relação aos factos tidos por provados na 1ª instância:

    1. A Autora é uma instituição pública, na qual o 1º R. foi funcionário, exercendo funções de responsável de tesouraria, no período compreendido entre Fevereiro de 1981 e Outubro de 2003 – alínea A) da matéria de facto assente;
    2. O 1º R. foi demitido na sequência de uma auditoria interna, na qual se descobriu que aquele se havia apropriado da quantia de € 215.916,62, pertença da A. – alínea B) da matéria de facto assente;
    3. Por escrito particular de 13/10/2003 celebrado entre a A. e os 1.°s RR., denominado "declaração de reconhecimento de dívida e acordo
    de pagamento", obrigaram-se os 1.°s RR. a pagar A. a quantia de € 216.856,78 em quatro prestações - alínea C) da matéria de facto assente;
    4. O facto de o 1º R. se ter apropriado de tal quantia foi objecto de amplo falatório por todo o ........e de várias notícias nos meios de comunicação social locais e regionais – alínea D) da matéria de facto assente;
    5. Foi pública a realização de uma auditoria interna à A. e a denúncia
    criminal contra o 1.°R. - alínea E) da matéria de facto assente;
    6. Os 1.°s RR. apenas entregaram à A. a quantia de € 154.888,59 -
    alínea F) da matéria de facto assente;
    7. Para cobrança judicial da quantia em falta, no valor de € 61.968,19, e juros de mora, a A. deu entrada em 29/07/2004 da acção executiva que corre termos no 1º Juízo de Competência Especializada Cível do Seixal sob o n.° 4563/04.3TIXSXL – alínea G) da matéria de facto assente;
    8. Os 1 .°s RR. apenas foram citados nessa execução em 19.10.2004 - alínea H)) da matéria de facto assente;
    9. Mostra-se descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 0000000000 a fracção autónoma designada pela letra "M", correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano sita na Av. ...................., n.° .........., F............., Paio ...., Seixal - alínea I) da matéria de facto assente;
    10. Pela inscrição G-1 de 17/08/84 encontrava-se inscrita aquisição a favor dos 1 .°s RR. sobre o referido imóvel - alínea J) da matéria de facto assente.
    11. Pela inscrição G-2 de 02/11/2004 foi inscrita aquisição provisória a favor dos 2.°s RR. sobre o referido imóvel, por compra aos 1 .°s RR. - alínea K) da matéria de facto assente;
    12. Tal inscrição foi convertida em definitiva em 17/02/2005 – alínea L) da matéria de facto assente;
    13. Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca lavrada em 29/12/2004, no Cartório Notarial do Seixal, os 1.°s RR. declararam vender em comum aos 2.°s RR., que, para sua habitação própria permanente, aceitaram a venda, a fracção autónoma supra identificada pelo preço já recebido de € 92.800 – alínea M) da matéria de facto assente;
    14. No mesmo acto, os 2.°s RR. confessaram-se devedores ao Banco Comercial Português, S.A., da quantia de € 80.000, constituindo a favor do Banco hipoteca voluntária sobre o imóvel supra identificado - alínea N) da matéria de facto assente;
    15. Os 2.°s RR. viviam em comunhão de cama, mesa e habitação, em condições análogas às dos cônjuges, como tal sendo reputados, tendo-se casado em 9SET2005 e divorciado em 20NOV2008 - alínea O) da matéria de facto assente e certidão de fls 252v;
    15-A. Os 1º e 3º RR são irmãos – certidões de fls 196 e 252;
    16. Dada a proximidade familiar entre os RR., o convívio entre eles havido e o facto referido em 4), os 2.°s RR. tiveram conhecimento que o 1º R. se tinha apropriado da quantia em causa e que se tinha obrigado a devolvê-la à A. - alínea P) da matéria de facto assente;
    17. Os 1 .°s RR. continuam a residir na fracção autónoma supra identificada e os 2.°s RR. continuam a habitar onde já residiam antes, todos residindo no ........- alínea Q) da matéria de facto assente;
    18. O 2.° R. é funcionário da Câmara Municipal do Seixal - alínea R) da matéria de facto assente;
    19. [eliminado];
    20. Os 1ºs RR., através de depósito autónomo, entregaram a quantia de € 8.400 à ordem da acção executiva mencionada em G) - alínea T) a matéria de facto assente;
    21. Nesses autos encontra-se em curso a penhora do salário da 1ª Ré no valor mensal de € 496,88, encontrando-se depositada, em 04/04/2006, a quantia de € 5.473,14 – alínea U) da matéria de facto assente;
    22. À ordem da acção executiva n.° 3.604/04.9TBSXL, em que é exequente o ora 1º R. e executado Seixal Futebol Clube, que corre termos no 1º Juízo de Competência Especializada Cível do Seixal, encontra-se penhorado um crédito sobre Seixal Futebol Clube no valor de € 54.025,44 – alínea V) da matéria de facto assente;
    23. A acção executiva referida na alínea que antecede tem a quantia exequenda de € 49.000,86 e nela foram reclamados créditos por FF, GG, Ministério Público e Instituto de Segurança Social, lP, no valor total de € 769.879,6, graduados antes do crédito exequendo por sentença transitada em julgado – alínea W) da matéria de facto assente.
    23-A. Ao outorgarem a escritura referida em 13) os RR pretendiam salvaguardar o imóvel de poder vir a ser penhorado para pagamento do crédito da Autora – artº 1º da Base Instrutória
    24. O preço declarado na escritura referida em 13) não foi entregue pelos 2.°s RR. aos 1 .°s R. – artigo 2º da Base Instrutória.

    De seguida, passando a aplicar o direito aos factos que teve por definitivamente fixados, considerou a Relação no acórdão recorrido:

    Como refere a sentença recorrida, três são os requisitos para a procedência da impugnação pauliana:
    - a anterioridade do crédito em relação ao acto impugnado;
    - a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito;
    - e, tratando-se de um acto oneroso, a má-fé por parte do devedor e do terceiro, consistindo esta na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

    O preenchimento do primeiro requisito vem inquestionado.
    A impossibilidade da satisfação do crédito é uma impossibilidade prática e imediata; o que releva é se o credor viu frustrada a sua possibilidade de no momento cobrar eficazmente o seu crédito. E ainda que a cobrança do crédito estivesse assegurada pela penhora do vencimento da 1ª Ré tal facto não assegura a imediata
    satisfação do crédito; nem a entrega de avultada quantia em execução de crédito dos 1ºs RR assegura essa cobrança. O retirar do património do devedor a titularidade do único bem imóvel conhecido (e é de salientar que, ao contrário do afirmado na sentença e por força do artº 611º do CCiv, era aos RR que competia a prova da existência de outros bens de igual ou maior valor) é agravar a possibilidade de o credor obter imediata e integral satisfação do seu crédito.
    E quem intenta, como os RR, com o negócio realizado, evitar a possibilidade de o bem poder vir a ser penhorado para pagamento do crédito, não pode deixar de ter consciência de que está a prejudicar o credor.
    Além de que se poderia sempre dizer ser, no caso, dispensável o requisito da má-fé uma vez que não tendo os 2ºs RR entregue o preço aos 1ºs RR, o negócio seria de qualificar como gratuito e não oneroso.
    Termos em que se conclui pela verificação de todos os requisitos exigidos para a impugnação pauliana.

    Não poderá, contudo, ser decretada o peticionado cancelamento do registo da aquisição pelos 2ºs RR uma vez que a procedência da impugnação pauliana não tem por efeito invalidar o negócio, mas apenas permitir que o credor execute o bem no património do adquirente na medida do seu interesse (artº 616º do CCiv).

    E, perante tal enquadramento jurídico, proferiu a Relação a seguinte decisão:

    Termos em que, na procedência da apelação, se revoga a sentença recorrida e, em substituição, se julga procedente a impugnação pauliana do contrato de compra e venda outorgado em 29 de Dezembro de 2004 no Cartório Notarial do Seixal, a fls 61 e segs do Livro ....., pelo qual os 1ºs RR venderam aos 2ºs RR a fracção autónoma designada pela letra ....’, correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano sito na Av. ..............,..., ..........., Paio Pires, Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o nº .... da freguesia de Paio Pires, inscrito na respectiva matriz sob o artº 987.

    2. É contra esta decisão que se insurgem os recorrentes, interpondo a presente revista que encerram com as seguintes conclusões que lhe definem o objecto:
    1.° - O presente recurso incide sobre o douto Acórdão recorrido que concedeu provimento ao recurso de Apelação interposto pela autora, revogando a decisão proferida em 1.a instância, julgando procedente a impugnação pauliana do contrato de compra e venda outorgado em 29 de Dezembro de 2004 no Cartório Notarial do Seixal, a fls 61 e segs do Livro 120-G, pelo qual os l.°s RR venderam aos 2.°s RR a fracção autónoma designada pela letra “M” correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano sito na Av. .............., ...., ..........., Paio Pires, Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o n.° .... da freguesia de Paio Pires, inscrito na respectiva matriz sob o art.° 987.
    2.°- No presente processo está em causa saber se estão reunidos os requisitos para a procedência da impugnação pauliana, nos termos conjugados dos artigos 610.°, alíneas a) e b) e 612.° do C.C., e que são os seguintes:
    - anterioridade do crédito em relação ao acto a impugnar;
    - impossibilidade ou agravamento da impossibilidade de satisfação integral do crédito;
    - e, tratando-se de um acto oneroso, exige-se ainda a má fé por parte do devedor ou terceiro, consistindo esta má fé na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
    3.°- No Acórdão recorrido concluiu-se pela verificação de todos os requisitos acima mencionados, tendo sido ainda alterada a matéria de facto.
    4.°- Quanto ao segundo requisito, entendem os recorrentes que o mesmo não se verificou, porquanto à data do acto impugnado, 29/12/2004. encontrava-se penhorado o crédito sobre o Seixal Futebol Clube, no valor de € 54.025,44, tendo sido colocado à ordem da execução em 14/07/2004 pelos próprios réus. Igualmente fizeram os réus em 08/11/2004 um depósito autónomo à ordem da execução, no valor de € 8.400,00.
    5.°- Portanto, em 29/12/2004, era sua convicção que o crédito da autora estava já assegurado na sua totalidade, atendendo a que a soma do crédito penhorado (€ 54.025,44) e do depósito autónomo (€ 8.400,00) totalizava o montante de € 62.425,44, valor superior à quantia exequenda.
    6.°- Assim sendo, resulta provado que da venda do imóvel em causa nos autos não resultou a impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade, pois que á data do acto o crédito da autora se encontrava assegurado na sua totalidade por outros bens pertença dos réus, nos termos doart. 611.° do C.C.
    7.°- No que respeita ao terceiro requisito, entende-se que o mesmo também não se verifica, não se podendo concluir pela má fé dos réus.
    8.°- No Acórdão recorrido diz-se a este respeito que no caso em apreço poderia considerar-se dispensável o requisito da má fé, uma vez que resultou provado que os 2.°s réus não entregaram o valor do preço aos l.°s réus, sendo o negócio de qualificar como gratuito e não oneroso.
    9.°- Contudo, resulta do artigo 14.° da matéria de facto que foi contraído um empréstimo bancário pelos 2.°s réus e constituída uma hipoteca sobre o imóvel em causa, o que demonstra que o negócio foi oneroso.
    10.°- Assim, não é dispensável a verificação do mencionado requisito, não se verificando a má fé dos réus, pois que não se provou que os mesmos tenham actuado em conluio e com a intenção, propósito e consciência de prejudicar a autora.
    11.°- Aliás, resulta do que acima ficou dito, que os réus, á data do acto impugnado, tinham a convicção de que a quantia exequenda estava assegurada na sua totalidade pelos valores que já se encontravam â ordem da execução movida pela autora, pelo que a realização da escritura de compra e verida em nada a prejudicava.
    12.°- Entende-se assim, tal como se entendeu na sentença proferida em l.ª instância, que não se verificam os dois últimos requisitos necessários para proceder a impugnação pauliana, e por conseguinte, impunha decidir-se pela improcedência da acção.
    13.°- Por último, cumpre dizer que a alteração à matéria de facto constante do Acórdão recorrido foi levada a cabo sem que tenham sido ouvidos os depoimentos gravados em sede de audiência de julgamento, fundando-se apenas na demais matéria dada como provada ou resultante dos autos.
    14.°- Ora, salvo o devido respeito, entendemos que a audição dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento teria sido imprescindível para formar a convicção do Tribunal de recurso, porquanto não podemos esquecer que a imediação e oralidade na recolha da prova são elementos indispensáveis à formação da convicção do Tribunal, e dos quais beneficiou o Tribunal de l.a instância.
    15.°- Conclui-se, destarte, que o douto Acórdão recorrido violou o preceituado nos artigos 610.°, 611.° e 612.° do Código Civil.

    A entidade recorrida pugna pela manutenção do acórdão proferido pela Relação, acentuando que o objecto a revista está necessariamente limitado à discussão de questões de direito.

    3. Saliente-se liminarmente que – do ponto de vista da solução jurídico-material alcançada - a argumentação dos recorrentes é manifestamente improcedente ; ou seja: se tiver de considerar-se irremediavelmente assente o quadro factual fixado pela Relação, é evidente que se verificam integralmente os pressupostos da impugnação pauliana, não podendo questionar-se o agravamento da impossibilidade de integral satisfação do crédito do A. e a consciência pelo adquirente do imóvel do prejuízo que decorre da sua alienação para a consistência prática do direito do credor , num quadro factual, caracterizado pela ocorrência:
    - de uma venda entre irmãos;
    - que visava «salvaguardar o imóvel de poder vir a ser penhorado para pagamento do crédito da A.»;
    - cujo registo de aquisição foi lavrado logo após a citação dos vendedores como executados;
    - os quais continuaram a residir na fracção alienada;
    - e cujo preço, declarado na escritura, não foi entregue pelos compradores aos vendedores – não entrando, desse modo, no património dos alienantes qualquer elemento patrimonial que representasse a contrapartida da venda realizada.

    E, nesta perspectiva, é obviamente irrelevante que os vendedores/executados tivessem, na execução que contra eles fora movida, indicado à penhora um crédito que invocavam sobre terceiro, cuja consistência prática se desvaneceu totalmente com a ulterior reclamação de créditos prioritários : dada a natureza do bem penhorado e a sua manifesta fragilidade para a efectiva garantia do direito do credor, não pode obviamente «cristalizar-se» nesse momento originário da penhora a solução da questão da suficiência do bem para a garantia integral do credor, não podendo o devedor deixar razoavelmente de contar com a eventualidade de o crédito penhorado vir a revelar-se totalmente inconsistente – e permanecendo, em consequência, essencial à garantia do credor o imóvel que precipitadamente trataram de alienar, antes de se terem certificado da consistência prática e patrimonial do referido direito creditório.
    Deste modo, a sorte da presente revista passa decisivamente pela legitimidade da Relação para introduzir no quadro factual as alterações que irremediavelmente conduziriam à verificação dos pressupostos da impugnação pauliana.

    Saliente-se que, no caso dos autos estamos confrontados com uma situação invulgar, inteiramente imputável à estratégia processual seguida pela entidade recorrente na apelação que deduziu: é que – tendo ocorrido gravação em suporte digital da audiência final e dos depoimentos nela produzidos ( como está documentado nas actas da audiência) e foi, aliás, requerida pela A., a fls. 188, - na apelação interposta , dissentindo embora da decisão de facto tomada em 1ª instância, não se deduziu uma impugnação de tal decisão estribada nessa gravação, de modo a possibilitar que o Tribunal «ad quem» pudesse exercer plenamente o duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, ouvindo efectivamente o registo da prova e procedendo a uma livre valoração dos depoimentos gravados, sindicando amplamente a convicção da 1ªinstância e formando a sua própria convicção sobre os pontos de facto controvertidos na apelação, face ao conteúdo da prova produzida no julgamento.
    Na verdade, e como se reconhece expressamente na contra-alegação ora apresentada, « a impugnação da matéria de facto constante da apelação não se apoiou no art. 690º-A, nº2, do CPC. Realmente, a ora recorrente em sede de apelação considerou verificado um erro na decisão de facto, amparando-se, para fundar a sua alegação, nas regras da experiência comum e no elenco factual considerado provado no Tribunal de 1ª instância, mostrando as contradições insanáveis aí existentes. Ora, ao contrário do que os recorrentes parecem apregoar, a impugnação da decisão de facto só obriga a Relação a auscultar os depoimentos gravados quando o recurso tenha sido fundado no nº2 do art. 690º-A do CPC, ou seja, quando os meios de prova invocados tenham sido gravados…».

    4. Quais as consequências desta estratégia da apelante no âmbito dos poderes cognitivos da Relação?

    Ao exercer o duplo grau de jurisdição sobre o julgamento que a 1ª instância fez da matéria de facto, sujeita à sua livre apreciação, dispõe a Relação, conforme os casos, de poderes de substituição ao tribunal «a quo» - nºs 1 a 3 do art. 712º- e de poderes cassatórios da decisão por este proferida – nºs 4 e 5 deste preceito legal.

    Os poderes de substituição da Relação ao tribunal recorrido – envolvendo a possível alteração da decisão de facto por este tomada -
    pressupõem naturalmente que o tribunal «ad quem» tenha acesso bastante aos elementos fácticos e probatórios que suportam a decisão proferida pelo tribunal «a quo», de modo a permitir uma adequada e efectiva reapreciação e reponderação do juízo de livre apreciação das provas que subjaz à decisão recorrida : e tal acesso verifica-se naturalmente em termos profundamente diversificados consoante se impugne a livre valoração fundada em meios probatórios gravados – a que a Relação terá naturalmente acesso, podendo e devendo, ao sindicar a decisão recorrida, apreciar e valorar o conteúdo das gravações, em conexão com o teor das alegações produzidas pelas partes, nos termos previstos no nº2 do art. 712º; ou, pelo contrário, quando, não tendo a Relação acesso à gravação ou registo integral da audiência e das provas nela produzidas, apenas possa atender ao teor literal da decisão recorrida e aos demais elementos objectivos que constam do processo.

    Salienta-se que era esta última a situação que se verificava no nosso sistema processual civil numa época – que vigorou até à edição do DL 39/95 - caracterizada pela prevalência de um sistema de «oralidade pura», sem normalmente envolver redução a escrito das provas produzidas perante o tribunal colectivo, cerceando, em consequência, drasticamente os poderes de reapreciação substancial pela Relação da decisão proferida sobre a matéria de facto, - restringindo-se, em tal quadro normativo, a possibilidade de, no exercício do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento de facto, se alterarem as respostas aos quesitos aos casos – obviamente excepcionais – em que constassem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria do quesito objecto de impugnação ou os elementos fornecidos pelo processo revelassem que a decisão recorrida desconsiderou prova dotada de valor reforçado, insusceptível de ser destruída pelos depoimentos prestados oralmente em audiência e não registados ou gravados.

    O âmbito do duplo grau de jurisdição consentido às Relações foi drasticamente incrementado a partir do momento em que se estabeleceu o princípio da gravação audio das audiências e das provas nelas produzidas, passando a caber à Relação o poder-dever de reapreciar, nessas circunstâncias, o acerto da livre convicção formada pelo tribunal recorrido, podendo alterar a decisão erradamente tomada sobe os pontos da matéria de facto objecto de impugnação, com base – não naturalmente em meras considerações genéricas e no apelo a regras de plausibilidade ou máximas de experiência – mas numa análise crítica e efectiva do teor das gravações a que tem acesso (eventualmente complementada, se necessário, pela renovação dos meios probatórios absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade).

    Porém – e como resulta do preceituado na segunda parte da al. a) do nº1, conjugada com o nº2 do art. 712º - o exercício desse amplo duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto depende decisivamente, não apenas de ter havido registo ou gravação da audiência, mas de a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, livremente valorada em 1ª instância, ter sido impugnada pelo apelante nos termos do art. 690º-A, ou seja, cumprindo o recorrente os ónus que tal preceito legal lhe impõe, submetendo a sua argumentação, tendente a demonstrar a existência de um erro na livre apreciação das provas, à análise crítica da contraparte e culminando na imposição à Relação de um dever de audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, com vista a sindicar adequadamente a convicção formada pelo juiz «a quo» com base na valoração dos meios probatórios relevantes.
    E, deste modo, se a matéria de facto não tiver sido impugnada pelo recorrente em termos procedimentalmente adequados – ou seja, com o cumprimento dos ónus impostos pelo referido art. 690º-A – a Relação, ao apreciar a apelação, acabará por ver os seus poderes de sindicância da matéria de facto circunscritos aos casos em que, mesmo antes da vigência do DL 39/95, lhe era lícito alterar as respostas aos quesitos, - pressupondo tal possibilidade, como atrás se referiu, que todos os elementos probatórios relevantes constam dos autos ou que o valor reforçado de certo elemento probatório, cabalmente documentado no processo, inviabilize que a livre apreciação de quaisquer outras provas o possa abalar.

    Transpondo estas considerações gerais sobre os poderes das Relações para a especificidade da situação dos autos, verifica-se que:

    - os depoimentos prestados em audiência foram gravados;

    - apesar disso, a entidade recorrente – dissentindo embora da valoração de aspectos fulcrais da matéria de facto – optou por não a impugnar nos precisos termos do referido art. 690º-A, limitando-se a questionar perante a Relação o acerto da decisão tomada em 1ª instância de forma genérica, sem apelar ao conteúdo da gravação da prova, invocando – em termos de verdadeira «presunção natural» - as circunstâncias externas e envolventes aos factos considerados provados para sustentar a pretendida e radical alteração à resposta dada ao art. 1º da base instrutória;

    - neste concreto e peculiar circunstancialismo, a Relação acabou por julgar a impugnação deduzida contra a matéria de facto, não através da apreciação crítica do conteúdo das gravações, nos termos previstos no nº2 do art. 712º, mas mediante apelo aos «padrões de experiência comum de vida», que tornariam criticável, por um lado, a plausibilidade da resposta negativa à matéria do referido «quesito» 1º, inferindo antes uma resposta parcialmente positiva a tal matéria de facto dos demais factos provados, interpretados à luz das máximas ou regras de experiência ;

    - por outro lado, considerou a Relação que ocorria «contradição» entre certo facto, considerado como admitido por acordo das partes, e a resposta dada à matéria do quesito 2º, determinando-se, em consequência, a eliminação da matéria que constava do ponto 19 da descrição dos factos assentes, por fundada em incorrecta apreciação do ónus de impugnação que incidia sobre os litigantes, uma vez que tal facto, invocado na contestação, se mostrava impugnado na réplica apresentada;

    - finalmente, teve ainda em conta a Relação, no acórdão recorrido, as certidões de nascimento juntas aos autos, para considerar provado certo vínculo familiar entre os interessados.

    Como é evidente, esta última alteração ou aditamento à base factual da causa não suscita qualquer objecção, encontrando fundamento bastante no preceituado na al. b) do art. 712º, dado o valor probatório pleno as certidões do registo civil, entretanto incorporadas nos autos.

    Do mesmo modo, entende-se que nenhuma censura merece a eliminação do referido ponto 19 da descrição da base factual do litígio, já que a razão determinante e essencial de tal eliminação foi uma errada aplicação do ónus da impugnação, levando a ter como matéria assente por acordo das partes (cfr. fls. 180 e segs.) um facto que, afinal, se mostrava devidamente impugnado pela parte contrária, na réplica que apresentou – e decorrendo inteiramente a solução de tal ponto da matéria de facto da resposta dada em julgamento ao art. 2º da base instrutória .
    O mesmo se não passa, porém, com a alteração determinada pela 2ª instância à matéria fundamental que integrava o art. 1º da base instrutória –
    e que, como se referiu, acabou por ver inflectido o sentido decisório, não através da análise crítica pela Relação do conteúdo das gravações, - feita na sequência de impugnação procedimentalmente adequada da matéria de facto pela entidade recorrente – mas através de verdadeiras presunções naturais, extraídas pela Relação da restante matéria de facto apurada, e que levariam a que a convicção a 1ª instância não fosse racionalmente fundada de acordo com padrões da experiência comum de vida , devendo, consequentemente, alterar-se o sentido decisório expresso no quesito 1º.

    Ora, como vem, aliás, entendendo a jurisprudência do STJ, tal operação – utilização pela Relação de presunções naturais como via exclusiva para alterar a resposta que a 1ª instância deu a determinado ponto da matéria de facto – não é possível, por extravasar o âmbito do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto que, nesse preciso circunstancialismo, cabe à 2ª instância : como se afirma, por exemplo, no Ac. de 24/5/07, proferido pelo Supremo no P.07A979:

    Podem as Relações, no uso da sua competência em matéria de facto, recorrer a presunções judiciais, instituto previsto nos art.ºs 349º e 351º do Cód. Civil, inclusive para com base nelas desenvolverem a matéria de facto fixada na 1ª instância declarando provado algum facto por ilação de algum outro facto dado por provado, ou para reforçarem a fundamentação da decisão recorrida, mas não lhes é lícito, por essa forma, dar como provado o que nas respostas ao questionário ou à base instrutória foi considerado não provado ou por outra forma contrariar as respostas sobre a base instrutória, isto é, não podem, somente com base em presunções judiciais, ilididas na 1ª instância mediante prova testemunhal, alterar as respostas, positivas ou negativas, aos pontos da base instrutória, que só podem ser alteradas quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 712º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
    É lícito à Relação, com efeito, tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não altere os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica destes.

    Ou seja: a utilização pelas Relações de presunções naturais ou judiciais é lícita, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração directa das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória, nem a um desenvolvimento, no próprio Acórdão, da base factual do litígio, susceptível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterado ou imodificado. Como se afirma, por exemplo, no acórdão de 2/12/10 , proferido pelo STJ no P. 1/04.0TBCPV.P1.S1:

    É permitido ao julgador extrair ilações de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349º C.Civil). As instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas.
    Mas essas deduções hão-de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida.
    Quando tal aconteça a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no art. 349º C.Civil e, como tal, é passível de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça na conformidade do estatuído no nº 2 do art. 722º C.Pr.Civil.

    Ou, como resulta do Ac. de 7/7/10, proferido pelo STJ no P. 2273/03.8TBFLG.G1.S1:

    A Relação não pode ultrapassar a falta de prova do nexo de causalidade recorrendo a presunções judiciais, assim tornando contraditório o julgamento da matéria de facto, que não alterou.

    Ora, na concreta situação dos autos, é evidente:
    - por um lado, que se não verificam os pressupostos a que o nº1 do art. 712º condiciona a possibilidade de a Relação alterar a decisão do tribunal de 1ª instância, expressa na resposta negativa dada
    à matéria constante do art. 1º da base instrutória : não tendo sido impugnada tal resposta pela recorrente nos termos do art. 690º-A do CPC, não constam obviamente do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão ( assente essencialmente nos depoimentos oralmente prestados em audiência), nem existem nos autos quaisquer elementos probatórios, dotados de valor reforçado, que, só por si, impusessem resposta diversa da proferida na 1ª instância;

    - por outro lado, como atrás se referiu, não era efectivamente possível à Relação, ao exercer, neste concreto circunstancialismo, o duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, alterar apenas através de presunções naturais a resposta que a 1ª instância deu a tal ponto de facto, com base na apreciação dos meios probatórios efectivamente produzidos perante si no decurso da audiência.

    5. Ao contrário do que sustenta a entidade recorrida, cabe plenamente no âmbito de um recurso de revista e nos poderes cognitivos que nele exerce o STJ controlar se a Relação extravasou, porventura, os poderes de substituição ao tribunal recorrido na valoração da matéria de facto que resultam do preceituado no nº1 do art. 712º e, bem assim, se fez ou não um uso processualmente legítimo das presunções naturais, cuja substância ou conteúdo se não está, desta forma, a pretender sindicar.

    Na verdade, esta operação - que nada tem a ver com a limitação decorrente do preceituado no nº6 do citado art. 712º quanto à sindicabilidade pelo STJ do uso ou não uso dos poderes que os restantes números do preceito conferem à Relação – expressa-se num controlo dos pressupostos legalmente estabelecidos quanto aos poderes das Relações, ou seja, quanto ao âmbito normativo do duplo grau de jurisdição sobre a decisão de facto que lhes está legalmente cometido, envolvendo a definição ou formulação de um verdadeiro critério normativo sobre o âmbito das suas próprias competências, assente em critérios interpretativos dotados de generalidade e abstracção, e, portanto, totalmente destacáveis e desligados da concreta e casuística definição da base factual do litígio.

    Ora, assente que os poderes normativos conferidos às Relações no exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto não lhe consentem, através do uso de meras presunções naturais, o poder de alterar a matéria de facto fixada em 1ª instância, com base na livre valoração dos meios probatórios produzidos em audiência – e não impugnada pelo recorrente com apelo à gravação da audiência, nos termos previstos e regulados no art. 690º-A – não pode efectivamente subsistir o acórdão recorrido, na parte em que considerou alterada a resposta dada em 1ª instância ao art. 1º da base instrutória.

    Já não compete, porém, ao Supremo decidir se, no concreto circunstancialismo dos autos, pode e deve a Relação exercer os poderes cassatórios que lhe resultam da previsão normativa contida no nº 3 do
    referido art. 712º, pronunciando-se, nomeadamente, sobre eventuais deficiências, contradições ou obscuridades da decisão proferida sobre a base factual do litígio, definida na 1ª instância - e, sendo caso disso, determinando a consequente anulação do julgamento, nos termos de tal preceito – competência que, aliás, lhe cabe em exclusivo e definitivamente, face à limitação à recorribilidade para o Supremo que consta do nº6 de tal preceito legal.

    6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se parcial provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido apenas na parte em que determinou a alteração, com apelo a presunções naturais, da matéria de facto que constava da resposta ao art.1º da base instrutória, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal «a quo» a fim de que este possa, se assim o entender, exercer sobre a matéria de facto apurada em 1ª instância os poderes cassatórios que lhe são conferidos pelo nº4 do art. 712º do CPC.
    Custas por recorrente e recorridos, de acordo com o decaimento que se verificar a final.

    Lisboa, 30 de Junho de 2011

    Lopes do Rego (Relator)
    Orlando Afonso
    Távora Victor

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