Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
841/13.9TJVNF.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
AÇÃO DE DEMARCAÇÃO
DEMARCAÇÃO
PRÉDIO CONFINANTE
RECONHECIMENTO DO DIREITO
DIREITO DE PROPRIEDADE
ESTREMA
PROVA PERICIAL
CASO JULGADO
DECISÃO
FUNDAMENTOS
Data do Acordão: 11/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / DIREITO DE DEMARCAÇÃO.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol V, p. 143 ; Processos Especiais, Volume II, 1982, p. 13;
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, p. 697;
- Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 240;
- Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol XII, 1937, p. 122, 133 a 135;
- Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, Almedina, p. 636;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª Edição, Revista e Actualizada, Vol. III, p. 201-202.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1353.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-07-1994, IN BMJ N.° 439, P. 526;
- DE 22-06-1999, IN CJSTJ, TOMO II, 1999, P. 161;
- DE 05-05-2005, PROCESSO N.º 05B691 IN WWW.DGSI.PT;
- DE 02-03-2010, PROCESSO N.º 690/09.9.YFLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 10-02-2004, IN CJTR, TOMO I, 2004, P. 105.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 15-01-2008, PROCESSO N.º 0722611, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
 I - Os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão e não aos respectivos fundamentos, sendo que os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final.

II - A demarcação é um dos poderes inerentes à propriedade imóvel, sendo configurado no artigo 1353º do Código Civil como um direito potestativo e pressupõe o reconhecimento do domínio sobre os prédios confinantes e a indefinição da linha divisória entre eles.

III - As acções de demarcação não têm por objecto o reconhecimento do domínio, embora o pressuponham; o seu fim específico é o de fazer funcionar o direito reconhecido ao proprietário pelo artigo 1353º do Código Civil, de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas respectivas.

IV - Demonstrando-se através dos meios de prova produzidos, designadamente da prova pericial, qual a definição da linha divisória entre o prédio da autora e o prédio dos réus, a demarcação deve ser feita em conformidade com os factos reveladores da extrema entre os prédios.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - RELATÓRIO


AA intentou contra BB e mulher, CC, e DD e marido, EE, acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo que seja ordenada a demarcação dos prédios da autora e dos réus na parte em que confinam, com recurso ao estabelecimento duma linha divisória dos prédios no sentido nascente-poente que fique situada a 7 (sete) metros da extremidade mais a sul da ramada que existe no prédio da autora e que a mesma linha divisória seja assinalada no solo pela colocação de dois marcos de pedra no solo, um em cada extremidade da linha que vier a ser estabelecida.


Alegou, em síntese, que é proprietária de um prédio que adquiriu por partilhas, mas que caso assim não se entendesse sempre teria adquirido por usucapião, e que os réus são proprietários de outro prédio, que também adquiriram por partilha e que a autora afirma ter a área de 3.200,00 m2 – área fixada na sequência da reclamação efectuada nos autos de inventário respectivo a qual não foi impugnada, mas que posteriormente os réus rectificaram como sendo 3.672,96 m2 junto da Conservatória do Registo Predial, rectificação que não corresponde à realidade. Na sequência dessa incorrecta rectificação, os réus desrespeitaram os marcos divisórios que separavam o prédio da autora.

Conclui que as partes estão desentendidas quanto à linha divisória dos respectivos prédios.

 

Contestaram os réus, impugnando o alegado pela autora, concluindo pela improcedência da acção e pela condenação daquela como litigante de má fé.


A autora respondeu, concluindo como na petição inicial, afirmando ainda que não litiga de má fé.

Foi proferida sentença em 20.07.2016, que julgou improcedente a acção e a absolveu os réus do pedido.


A autora interpôs recurso, tendo a Relação, por acórdão de 01.06.2017, julgado parcialmente procedente, tendo sido decidido anular parcialmente o julgamento e a sentença, determinando:

“a) A ampliação da matéria de facto, com vista a apurar a delimitação da parcela de terreno em litígio e;

b) A repetição do julgamento, apenas na parte necessária ao apuramento da nova matéria, com a realização pelo tribunal a quo de todas as diligências que se lhe afigure necessárias para alcançar esse desiderato, com vista ao cabal cumprimento do disposto no art. 1354º, n.º 2 do Código Civil”.

 

Repetido o julgamento, foi proferida nova sentença em 05.02.2019, que decidiu nos seguintes termos:

“Pelo exposto, determino que a demarcação do prédio propriedade da A. (identificado no ponto 1) relativamente ao prédio propriedade dos réus (identificado no ponto 5), se faça, por uma linha recta, no sentido Nascente-Poente, com início na estrada (Avenida das …) e fim no prédio propriedade de FF, situada a 3,5 metros (três metros e cinquenta centímetros) da extremidade mais a sul da ramada que existe no prédio da autora, na direcção do prédio dos réus”.

 

Os réus interpuseram recurso de apelação, tendo sido proferido acórdão em 13.06.2019, nos seguintes termos:

“Acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença e determinar que a demarcação da extrema entre o prédio da autora (identificado no ponto 1) e o prédio dos réus (identificado no ponto 5) se faça por uma linha recta, no sentido Nascente-Poente, com início na Avenida das … e fim no prédio propriedade de FF, definida pela ramada que existe no prédio da autora, devendo a linha divisória ser assinalada no solo pela colocação de dois marcos no solo, um em cada extremidade da linha”.


A autora recorreu de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1. O primeiro acórdão produziu efeitos de caso julgado relativamente aos factos considerados provados e em tudo o mais nele constante.

2. O acórdão recorrido ultrapassou a análise a que estava sujeito, isto é, a análise apenas da nova matéria de facto trazida para o novo julgamento, sendo certo que matéria de facto nova alguma apareceu.

3. O acórdão posto em crise pronunciou-se sobre assuntos, factos já apreciados, decididos e transitados em julgado.

4. Ao aditar os pontos de facto sob nºs 22, 23 e 24, o acórdão recorrido violou o princípio, a força e autoridade do caso julgado, que ocorreu com a prolação do acórdão inicial.

5. Ao conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento o acórdão em apreço padece de nulidade (cfr. alª d) do nº 1 do artº 615º do Cód. Proc. Civil).

6. Foi ainda violado o plasmado no nº 2 do artº 1354º do Código Civil, já que não foi possível, por falta de nova prova, proceder à delimitação do prédio da autora com o prédio dos réus.


Termina, pedindo que o acórdão seja declarado nulo e consequentemente, válida a douta sentença proferida em primeira instância.


Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.


II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

Mostram-se provados os seguintes factos:

1º – A autora é dona e legítima proprietária e possuidora do prédio rústico constituído por terreno de cultura, com videiras em ramada, a confrontar, actualmente, de norte com GG e de sul com BB e DD, nascente com Avenida das … e do poente com herdeiros de HH, sito no lugar de … ou Quinta da …, freguesia de …, do concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 00369 – … e inscrito na matriz rústica sob o art. 157º.

2º – Por escritura de Dissolução, Liquidação e Partilha, celebrada em 11 de Dezembro de 2008, de fls. 144 a fls. 146, do Livro de Notas para Escrituras Diversas com o nº 86, do Cartório Notarial da … a cargo do Notário II foi adjudicado o prédio identificado em 1º.

3º – Actualmente, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio identificado no número 1 encontra-se definitivamente registada em nome e a favor da autora.

4º – A autora, por si, ante-possuidores e ante-proprietários, sempre entrou e saiu no prédio identificado em 1º, lavrando-o, semeando-o, plantando e tratando as videiras, conservando as ramadas, usufruindo de todos os seus frutos e rendimentos, ocupando-o e permitindo a sua ocupação, pagando as contribuições devidas, o que dura há mais de 10, 20 e 30 e mais anos, agindo como sua dona e na convicção de ter essa qualidade e de não lesar direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.

5º – Por sua vez, os réus são, em comum e partes iguais, proprietários do prédio rústico a confrontar, actualmente, de norte com AA, sul com Estrada Nacional, nascente com Avenida das … e Poente com FF, sito no lugar de …. ou P…, freguesia de …, do concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 703 e inscrito na matriz rústica sob o artigo 156.

6º – Este prédio veio ao domínio dos réus por lhes ter sido adjudicado em partilhas, no Processo de Inventário instaurado por óbito de JJ que com o nº 2037/10.2 T… correu termos pelo 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de … .

7º – Neste processo de inventário, este prédio foi relacionado como verba nº 1 e, em 27.04.2012, foi proferido despacho, ordenando-se a rectificação da área deste prédio passando a constar como área 3.200 m2 e não de 3.672,96 m2 como constava da relação de bens, da descrição predial e caderneta predial e os réus não reclamaram ou deduziram qualquer impugnação a tal despacho. (“esta redacção advém da alteração feita pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães”).

8º – Os réus procederam junto do Serviço de Finanças de … – 1 e da Conservatória do Registo Predial de … à “rectificação” da área daquele prédio, alterando-a, novamente, para 3.672,96 m2.

9º – Por escritura celebrada no dia 9 de Setembro de 1982, a autora, conjuntamente com, a sua mãe, JJ e os seus irmãos, KK, GG, LL, DD e BB, procederam à partilha por óbito de seu pai, MM.

10º – De entre os bens a partilhar faziam os seguintes prédios:

1) Prédio misto constituído por uma casa de habitação, com quintal e junto horta de verão, sito no lugar do …, freguesia de …, concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 41.943 e inscrito na matriz sob os artigos 102º urbano e 508º rústico.

2) Prédio rústico denominado Campo …, sito no lugar de …, freguesia de freguesia de …, concelho de …, a confrontar do norte com KK e outros, do sul com JJ, do nascente com Caminho Público e do poente com Herdeiros de HH, que é parte do descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 41.949 e inscrito na matriz sob o artigo 482º rústico.

11º – O prédio identificado no número um, do ponto anterior foi adjudicado a JJ.

12 – E o prédio identificado no número dois foi adjudicado em comum à autora, a GG e à ré, DD,

13 – Que por escritura de 22 de Dezembro de 1993, lavrada no 2º Cartório Notarial de … procederam à sua divisão.

14 – Tendo constituído três lotes, com a seguinte constituição:

Lote Um – Prédio rústico, de terra de cultura com videiras em ramada, com a área de quatro mil e oitocentos metros quadrados, situado no lugar de Quinta da … ou …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar do norte com GG, do nascente com Estrada, do sul com JJ e do poente com HH, Herdeiros, inscrito na matriz sob o artigo 157º rústico (antigo artigo 482º);

Lote Dois – Prédio rústico, de terra de cultura com videiras em ramada, com a área de quatro mil e novecentos metros quadrados, situado no lugar de Quinta da … ou …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar do norte com DD, do nascente com Estrada, do sul com AA e do poente com HH, Herdeiros, inscrito na matriz sob o artigo 158º rústico (antigo artigo 482º);

Lote Três – Prédio rústico, de terra de cultura com videiras em ramada, com a área de quatro mil e novecentos metros quadrados, situado no lugar de Quinta da … ou …, freguesia de …, concelho de …, a confrontar do norte com KK, do nascente com Estrada, do sul com GG e do poente com HH, Herdeiros, inscrito na matriz sob o artigo 159º rústico (antigo artigo 482º);

15º – Em consequência da divisão efectuada o lote número um foi adjudicado à autora, o lote número dois foi adjudicado à GG e o lote número três foi adjudicado à Ré, DD.

16º – Cada lote teria na confrontação com a Avenida das … 50 metros.

17º – A ramada existente no prédio da autora está alinhada com uma pedra de granito com a forma de paralelepípedo, com comprimento de 80 cm (60 cm enterrado) e com as marcas de tinta lixiviada existentes no local.

18º – Por escritura de 14 de Fevereiro de 2003 a referida JJ vendeu a FF, os seguintes bens:

1) Prédio urbano, destinado a habitação, com a área coberta de 90 m2 e quintal com 200 m2, sito no lugar das … ou P…, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 41.943 e inscrito na matriz sob os artigos 102º urbano;

2) Parcela de terreno com a área de 1.600 m2 a destacar do prédio rústico denominado …, sito no mesmo lugar das … ou P…, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … com sendo a parte subsistente do número 41.943 e inscrito no artigo 156º da na matriz rústica”.

19º – Parcela que se destina a ampliação do quintal do prédio inscrito no artigo 102º urbano,

20º – E que se encontra devidamente demarcada e ficando a confrontar do norte, por onde mede 40 metros com o prédio de onde é destacada, do sul com o prédio urbano em que se vai integrar na extensão de 27,5 metros e, na extensão de 12,5 metros com a Estrada Nacional, do nascente onde mede 45,5 metros com o prédio de onde é destacado e do poente por onde tem igual medida com o prédio onde se vai integrar e com Herdeiros de HH.

21º – Ficou, ainda, definido que a demarcação pelo nascente é definida por uma linha recta que se situa a 2 metros do poço ali existente, o qual fica pertença exclusiva do prédio vendido.

22º – A autora mandou fazer as ramadas que constam dos prédios referidos em 14, designadamente a ramada que existe no prédio da autora identificado em 1º - aditado pelo acórdão da Relação de 13.06.2019.

23º- O marco referido em 17º encontra-se situado na confrontação poente do prédio da autora - aditado pelo acórdão da Relação de 13.06.2019.

24º - A delimitação do prédio da autora com o prédio dos réus é feita pela ramada mencionada em 17º, a qual está alinhada com um marco e as marcas de tinta lixiviada existentes na confrontação poente e com as marcas de tinta lixiviada existentes no muro de betão da confrontação nascente - aditado pelo acórdão da Relação de 13.06.2019.


Factos não provados:

«a) O prédio identificado no artigo 1º da petição inicial possui área de 4.800 m2, confrontando a sul para além de BB com DD e FF.

b) Este prédio da autora, desde há mais de 30 anos, tem a área de 4.800 m2.

c) O lote da autora tem a área de 4.552 m2.

d) O lote da GG a área de 4.544 m2.

e) E lote da ré, DD, a área de 4.544 m2.

f) Os prédios da autora e réus sempre tiveram a configuração e delimitação constantes do levantamento topográfico junto com a p.i. sob doc. nº 6.

g) E que sempre, por todos, foram respeitadas.

h) Os antecessores e ante possuidores do prédio da autora, bem como os ante–possuidores do prédio dos réus sempre respeitaram esta linha divisória.

i) Ou seja, uma linha recta, no sentido Nascente-Poente, com início na Estrada (Avenida das …) e fim no prédio propriedade de FF.

j) Esta linha divisória situa-se a sete metros da ramada que faz parte integrante do prédio da autora e para o lado do prédio dos réus.

k) A autora e seus antecessores sempre lavraram e semearam esta faixa de terreno com 7 (sete) metros de largura, desviada da sua ramada.

l) No início do corrente ano os réus procederam à colocação de esteios em granito e arame mesmo junto e paralelamente à ramada da autora.

m) Destruindo as plantações e sementeiras aí existentes e efectuadas pela autora.

(alteração feita pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que passou a considerar como não provados os seguintes factos):

n) A autora fez as ramadas que delimitam os três lotes.

o) Os réus por si e ante-possuidores sempre estiveram na posse do prédio até à ramada da autora.

p) Plantando e semeando.

q) Ou permitiram que plantassem e semeassem.

r) Colhendo os produtos.

s) Ou permitiram que colhessem os produtos».


 B) Fundamentação de direito


As questões a decidir na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o “thema decidendum” do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:

- Nulidade do acórdão;

- A questão de direito.


NULIDADE DO ACÓRDÃO


Alega a recorrente AA que o acórdão enferma da nulidade prevista no artigo 615º nº 1 alª d) do Código de Processo Civil, por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento.

Em síntese, referiu que o primeiro acórdão da Relação proferido em 01.06.2017, produziu efeitos de caso julgado relativamente aos factos considerados provados e o acórdão recorrido ultrapassou a análise a que estava sujeito, isto é, a análise apenas da nova matéria de facto trazida para o novo julgamento, sendo certo que matéria de facto nova alguma apareceu.

Ao aditar os pontos de facto sob nºs 22º, 23º e 24º, o acórdão recorrido violou o princípio, a força e autoridade do caso julgado, que ocorreu com a prolação do acórdão inicial.


Cumpre decidir.


Dispõe o artigo 615° n°1 na alínea d) do Código de Processo Civil que a sentença é nula quando:

d) o juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.


Esta nulidade está directamente relacionada com o artigo 608° n°2 do CPC, segundo o qual "o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras".


Neste circunspecto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Como já ensinava o Professor Alberto dos Reis[1] " São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão".

Esta nulidade só ocorre, tendo em atenção o caso concreto, quando haja pronúncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento, por não se referir a pontos fáctico jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções.

Assim, incumbe ao juiz conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente deve conhecer (artigo 608° n° 2 do CPC) à excepção daqueles cujo conhecimento esteja prejudicado pela anterior conhecimento de outros. O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição directa sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. 


No caso dos autos, importa saber se, ao aditar os pontos de facto sob nºs 22º, 23º e 24º, o acórdão recorrido violou o princípio, a força e autoridade do caso julgado.

O primeiro acórdão da Relação proferido em 01.06.2017 não produziu efeitos de caso julgado relativamente aos factos considerados provados, pois, a não ser assim, ficava o acórdão recorrido (o segundo) impedido de, se for caso disso, como foi, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 662º nº 1 do CPC.


Foi exactamente isso que aconteceu. Impugnada a decisão sobre matéria de facto no recurso de apelação interposto pelos réus (fls 581 a 593), a Relação aditou os novos pontos de facto acima mencionados, sem que, com isso, ofendesse a força e autoridade do caso julgado do primeiro acórdão relativamente aos factos provados.


O artigo 621º do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o alcance do caso julgado, determinando e fixando os respectivos efeitos, preceitua o seguinte:

A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)”.


Daqui decorre que os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão e não aos respectivos fundamentos.


Como defende Antunes Varela,[2] “Os factos considerados como provados nos fundamentos da sentença não podem considerar-se isoladamente cobertos pela eficácia do caso julgado, para o efeito de extrair deles outras consequências, além das contidas na decisão final”.


E ainda, no mesmo sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida[3], depois de afirmar que a autoridade do caso julgado não é, em princípio, “extensível aos fundamentos, motivação ou arrazoado da sentença”, declara que “os factos dados como assentes na fundamentação da sentença não devem, contudo, ser considerados (“uti singuli”, ou seja, enquanto autonomizados da decisão de que são pressuposto) como abrangidos pela força do caso julgado, isto é, como consequências exorbitantes do conteúdo da decisão final. Tais fundamentos não possuem valor “a se”, porquanto não vinculativos quando considerados isoladamente dessa decisão”.


Castro Mendes ensina que “o caso julgado é um fenómeno que só se reporta à decisão material. A decisão material é fundamentalmente uma manifestação ou declaração de ciência, referente a uma situação passada (referida ao momento do encerramento da discussão) ”[4].


A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça afina por aquele diapasão da doutrina.


O acórdão do STJ de 2 de Março de 2010[5] sentenciou: “(…) a problemática do respeito pelo caso julgado coloca-se sobretudo ao nível da decisão, da sentença propriamente dita, e, quando muito, dos fundamentos que a determinaram, quando acoplados àquela. Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”.


O acórdão do STJ de 5 de Maio de 2005[6] consignou: “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”


Desta forma, soçobra a argumentação trazida pela recorrente, pelo que o acórdão recorrido, sem violar a força e autoridade do caso julgado, podia aditar novos factos, como veio a acontecer, tal como lhe era permitido pelo artigo 662º nº 1 do CPC.


A QUESTÃO DE DIREITO


A demarcação é um dos poderes inerentes à propriedade imóvel, estando prevista no artigo 1353º do Código Civil como um direito potestativo.

Ali se estabelece que o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das extremas entre o seu prédio e os deles.


A demarcação pressupõe o reconhecimento do domínio sobre os prédios confinantes e a indefinição da linha divisória entre eles.

No caso vertente, a autora vem exercer o direito potestativo de demarcação contra os réus, pretendendo ver definitivamente fixada a extrema entre os respectivos prédios de que são proprietários.


O prédio rústico da autora confronta a sul com o prédio rústico dos réus, que é contíguo, a norte, com o prédio da autora.


Coloca-se aqui a questão de saber onde fica a extrema entre os respectivos prédios, já que as partes não se entendem a tal respeito.

Para a autora, a extrema situa-se a sete metros a sul da ramada de videiras existente no seu prédio, enquanto os réus referem que a extrema coincide com a linha traçada pela referida ramada.


Assim, na acção de demarcação, a causa de pedir traduz-se no facto complexo da existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou duvidosas[7].


A incerteza não tem, obviamente de dizer respeito necessariamente a todas as linhas divisórias de um prédio. Pode, de facto, dizer respeito, unicamente, à linha divisória com um certo prédio contíguo[8].


A acção de demarcação tem como pressuposto uma incerteza relevante, como a que resulta de as versões das partes não coincidirem quanto à implantação da linha de demarcação, a ponto de restar uma parcela de terreno a que ambos os interessados se arrogam um direito.


Na acção de demarcação cabe ao autor provar que é proprietário confinante e ao réu provar que a demarcação está feita e concretizada numa linha divisória.


Embora conexa com o direito das coisas, a acção de demarcação não é uma acção real, mas pessoal.

Por ela não se pretende a declaração de qualquer direito real, ou da sua amplitude, mas unicamente obter que se precisem as estremas de prédios confinantes, estremas essas que, depois de definidas judicialmente, em princípio, foram fixadas como sempre eram, sem porem em dúvida ou afectarem qualquer direito real.


O próprio artigo 1353º do Código Civil inculca que a acção destinada a realizar esse direito tende a tornar jurisdicionalmente efectivo um comportamento que se pode exigir, comportamento esse pessoal, embora em conexão com um direito real.

As acções de demarcação não têm por objecto o reconhecimento do domínio, embora o pressuponham; o seu fim específico é o de fazer funcionar o direito reconhecido ao proprietário pelo artigo 1353º do Código Civil, de obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas respectivas.


Sendo estes os pressupostos da acção de demarcação (prédios contíguos pertencentes a proprietários diferentes e desentendimento entre eles sobre a respectiva extrema), cabe agora verificar a existência dos critérios estabelecidos no artigo 1354º do Código Civil.


O artigo 1354º do Código Civil (Modo de proceder à demarcação), preceitua o seguinte:

“1. A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

2. Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

3. (…)”.


Na acção de demarcação não se discutem os títulos de propriedade, nem se admite prova contra eles; a prova admitida é apenas a destinada a definir a linha divisória de acordo com os títulos existentes.


Quais, então, os títulos a ter em consideração?

Os títulos a considerar são, desde logo, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 15.01.2008[9]os títulos de propriedade, nos quais vêm referidas, muitas vezes, as confrontações dos prédios e também as suas áreas. Será também o caso da certidão do registo de posse. Um outro título, deveras importante, é a planta do prédio. Segundo Cunha Gonçalves, ob. cit. pág. 128, “a planta é o retracto do terreno, retracto que se faz por processos matemáticos, com aparelhos de precisão, como o teodolito, e até por meio de fotogrametria aérea. A planta é, portanto, um trabalho técnico; tem uma veracidade natural”. É claro que os níveis de precisão científica na feitura de plantas prediais foram substancialmente melhorados desde então até aos nossos dias, o que confere ainda mais acerto às palavras daquele ilustre autor.

E o que dizer das inscrições matriciais e das descrições prediais?

Serão, umas e outras, títulos para os efeitos do disposto no artigo 1354º?

A resposta tem de ser negativa.

As primeiras relevam apenas no plano fiscal. De facto, é sabido que a finalidade das inscrições matriciais é essencialmente de ordem fiscal, não lhes sendo reconhecidas virtualidades para definir o conteúdo ou a extensão do direito de propriedade sobre qualquer prédio. Baseiam-se em participações dos interessados nas respectivas Repartições de Finanças, não sujeitas, em regra, ao controlo destas entidades – cfr., entre muitos outros, o Ac. Relação de Coimbra de 09.03.1999, CJ, Ano XXIV, Tomo II, pág. 14, e Ac. STJ de 04.12.2003, processo n.º 03B2574, em www.dgsi.pt

As descrições prediais constantes do registo, por seu lado, também não têm o condão de definir, em definitivo, as confrontações ou as áreas dos prédios a que respeitam, até porque estes elementos podem ser completados, rectificados, restringidos, ampliados ou inutilizados, por meio de averbamentos. Assim, com base no registo predial não se pode afirmar que determinado prédio tem esta ou aquela constituição, só por tal constar da respectiva descrição – v. Ac. Relação de Coimbra, de 05.06.1984, CJ, Ano IX, tomo 3, pág. 60 e Ac. Relação do Porto, de 07.11.1995, processo n.º 9520439, em www.dgsi.pt.

Não se divisa, pois, qualquer interesse em discutir o que consta ou não consta das inscrições matriciais e das descrições prediais dos imóveis em questão, mais a mais quando se sabe que as partes não concordam com as referências que constam desses documentos, nomeadamente no que respeita às áreas e às confrontações dos prédios.

Por outro lado, os títulos de propriedade e as várias plantas juntas também não nos dão referências seguras e incontroversas sobre a correcta definição da linha que os há-de dividir”.


No caso dos autos, dos títulos de aquisição da propriedade não ressaltam quaisquer elementos que permitam a determinação dos limites dos respectivos terrenos, de modo a proceder à fixação da linha divisória entre os dois prédios.


Quanto ao segundo critério, previsto no nº 2 do artigo 1354º (a posse).

Pires de Lima e Antunes Varela ensinam que[10], “a simples posse não havendo tempo necessário para a usucapião (caso em que o problema que se suscita é outro), não deve ter o relevo bastante para se sobrepor a qualquer outra prova (...). A posse pode ser arbitrária ou abusiva. Ela será assim um elemento que, tal como quaisquer outros elementos, ajuda a fixar a convicção do tribunal”.

E continuam os mesmos autores: “há, quanto à prova, uma diferença sensível entre o que se passa na acção de demarcação e na acção de reivindicação. Nesta, o reivindicante tem de fazer a prova da propriedade … ao passo que naquela o autor não precisa de provar a posse pelo tempo necessário para a usucapião (basta provar que é possuidor), nem de provar a existência de qualquer outro título aquisitivo; servir-lhe-á a simples prova pericial, testemunhal ou por presunções, acerca dos limites dos prédios e não dos títulos de aquisição”.


Nada se provou quanto à posse sobre a faixa de terreno em litígio, pelo que a questão não pode ser resolvida em consonância com a mesma.


Todavia, provaram-se factos que são relevantes para a definição das estremas.

Assim:

- A autora mandou fazer as ramadas que constam dos prédios referidos em 14º, designadamente a ramada que existe no prédio da autora identificado em 1º - (22º).

- A ramada existente no prédio da autora está alinhada com uma pedra de granito com a forma de paralelepípedo, com comprimento de 80 cm (60 cm enterrado) e com as marcas de tinta lixiviada existentes no local – (17º).

– O marco referido em 17 encontra-se situado na confrontação poente do prédio da autora – (23º).

- A delimitação do prédio da autora com o prédio dos réus é feita pela ramada mencionada em 17º, a qual está alinhada com um marco e as marcas de tinta lixiviada existentes na confrontação poente e com as marcas de tinta lixiviada existentes no muro de betão da confrontação nascente – (24º).


Na petição inicial a autora pretende que a demarcação se faça com recurso ao estabelecimento duma linha divisória dos prédios no sentido nascente-poente que fique situada a 7 (sete) metros da extremidade mais a sul da ramada que existe no prédio da autora e que a mesma linha divisória seja assinalada no solo pela colocação de dois marcos de pedra no solo, um em cada extremidade da linha que vier a ser estabelecida.


Agora, no recurso de revista, a autora pretende a confirmação da sentença da primeira instância que procedeu à demarcação entre os dois prédios através da divisão igualitária do terreno em disputa, nos termos do nº 2 última parte do artigo 1354º.


Todavia, tal caminho só seria de seguir quando não se lograsse atingir, por outro meio de prova, a correcta definição da linha divisória – artigo 1354º nº 1.


A perícia, desde que efectuada de forma rigorosa e precisa, constitui um meio de prova inestimável neste tipo de acções, podendo conduzir a essa definição de estremas.


Ora, consideramos que a existência das ramadas mandadas fazer pela autora (facto provado nº 22), constitui obstáculo à demarcação tal como a mesma pretende, o que sai reforçado com o esclarecimento do perito apresentado em 26.03.2018, onde refere que “ atenta a tradição dos campos agrícolas da região do Minho e Douro Litoral, as ramadas eram deixadas nos limites da propriedade” – fls 522 (sublinhado nosso).


Deste modo, mostra-se efectuada a demarcação, definida que se mostra a estrema entre os prédios da autora e dos réus, tal como vem decidido no acórdão da Relação de 13.06.2019.


Assim, improcedem as conclusões das alegações da autora.



III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 20.11.2019


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira 

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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[1] Código de Processo Civil Anotado, Vol V, pág. 143. Cfr. Ac. STJ de 7.7.94, in BMJ n° 439, pág. 526 e de 22.6.99, in, CJ STJ II/1999, pág. 161 e da RL de 10.22004, in CJ I/2004, pág. 105.
[2] Manual de Processo Civil, 1984, pág. 697.
[3] Direito Processual Civil, Volume II, Almedina, página 636.
[4] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 240.
[5] Procº nº 690/09.9.YFLSB.l1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.
[6] Procº n.º 05B691 in www.dgsi.pt/jstj
[7] Alberto dos Reis, “Processos Especiais”, Volume II, 1982, pág. 13 e Cunha Gonçalves, “Tratado de Direito Civil”, Vol XII, 133 a 135.
[8] Cunha Gonçalves, ob cit, Vol. XII, 1937, pág. 122.
[9] Procº nº 0722611, in www.dgsi.pt/jrp
[10] Código Civil Anotado”, 2ª Edição, Revista e Actualizada, Vol. III, pág. 201-202.