Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2538
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
ENDOSSO
RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÕES MEDIATAS
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
COLIGAÇÃO ACTIVA
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
REQUISITOS
EMBARGOS DE EXECUTADO
Nº do Documento: SJ200409300025382
Data do Acordão: 09/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 142/04
Data: 02/05/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I. As letras de câmbio assumem a natureza de títulos de crédito transmissíveis por via de endosso, incorporando uma obrigação abstracta, literal e autónoma e de livre circulabilidade (artº 46º da LULL).
II. No domínio das relações mediatas não pode o sacado-aceitante opor ao portador as excepções baseadas nas suas relações obrigacionais-creditícias com o sacador (relação material subjacente ou relação fundamental).
III. O devedor originário (o aceitante como responsável cambiário directo), só com a respectiva apresentação a pagamento (artº 38°, nº 1, da LULL) fica a conhecer a identidade do credor "actual", passando a a partir de então a poder exercitar o direito à restituição dos títulos conferido pelo nº 1 do artº 39º do mesmo diploma.
IV. Para que se extinga a obrigação cambiária o pagamento tem de ser feito ao respectivo portador.
V. Em sede de oposição à execução, há que atentar nas regras de repartição do ónus da prova plasmadas no artº 342º do C. Civil.
VI. Sendo o exequente o legítimo portador das letras dadas à execução, ao devedor/executado demandado incumbirá a prova da ocorrência dos factos impeditivos, modificativos e extintivos da pretensão da contraparte (factos constitutivos da invocada excepção).
VII. Os princípios da abstracção, da literalidade e da autonomia de cada um dos títulos de crédito (letras de câmbio) exequendos são em princípio impeditivos de que entre os respectivos pedidos exista a conexão exigida no artº 30° do CPC, sendo que a não verificação desses requisitos é, outrossim, e de per si, impeditiva da possibilidade da apensação de execuções (art. 275°, 1 "a contrario", CPC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Na 8ª Vara Cível do Porto, o "A", deu à execução as duas letras de câmbio juntas a fls. 6 e 7, de que é portador, por virtude de endosso, do montante individual de 2.000 contos cada uma, do aceite do demandado "B", e em que figura como sacadora "C", visando obter por este meio a sua cobrança coerciva.
2. O executado aceitante dos títulos de crédito veio deduzir oposição por meio de embargos, alegando que as letras exequendas constituem re-formas de outras letras, cujo pagamento das amortizações respectivas foi por ele (B) efectuado à sacadora.
3. Contestou a entidade bancária exequente considerando irrelevante tudo quanto o embargante alegara na petição, perante os títulos de crédito exequendos, de que é legítimo portador, por via de endosso, determinado por operação de desconto bancário, praticado no exercício da sua actividade.
4. Por despacho-saneador sentença de 15-9-03, o Mmo. Juiz da 8ª Vara Cível da Comarca do Porto, considerando provado que «a exequente/embargada é a legítima portadora das duas letras de câmbio juntas a fls. 6 e 7 dos autos principais, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no montante de 2.000 contos cada uma, que são do aceite do executado/embargante (B) - e nas quais figura como sacadora a sociedade "C, Lda" - julgou improcedentes os embargos, ordenado, em consequência, a continuação regular da acção executiva.
5. Inconformado, apelou o embargante, mas o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 5-2-04, negou provimento ao recurso.
6. De novo irresignado, desta feita com tal aresto, dele veio o embargante B recorrer de revista formulando as conclusões que a seguir se transcrevem na parte útil:
...
G)- É do enquadramento jurídico encontrado para a decisão do presente pleito que versa o presente recurso, conforme se dispõe no artigo 722°, do CPC.
H)- Ora, entende, e salvo o devido respeito, a recorrente que esta matéria dada como provada não é suficiente para julgar os presentes embargos como procedentes, na medida em que, não obstante estar provado que o recorrido é o detentor da letra, não está provado que a mesma não está paga;
I)- O que se alega é que o recorrente tem vindo a reformar várias letras entre elas as dadas à presente execução. Onde o embargado tem pago as respectivas amortizações ao sacador, que também é executado nesta acção, e que em lugar de devolver as letras amortizadas, ao ora recorrido, fique com elas e procede ao seu desconto no exequente;
J)- O que aliás se pode verificar pelos dois documentos juntos com a PI, e que são considerados títulos executivos, onde resulta que os mesmos não são oriundos de transacção comercial, mas sim de amortização de outro título executivo;
L)- Entende pois o recorrente que também aqui o M.° Juiz não tem matéria de facto que lhe permita concluir pelo conhecimento de mérito, e consequentemente pela improcedência, não cumprindo desta forma o estipulado no artigo 712° do CPC;
M)- O recorrente alegou ter efectuado várias reformas e consequentes amortizações às referidas letras, pedindo a sua absolvição da instância, na medida em que estava a ser executado também na acção n° 1286103, a correr termos pela 7ª Vara Cível -1ª Secção deste Tribunal, em que o executado é o ora recorrente e o exequente é o sacador, estando a serem executadas letras que foram objecto de amortizações, por forma a evitar a sua condenação em ambos os processos;
N)- O recorrente pugna pela apensação, destes dois processos, por forma a evitar a sua dupla condenação, nos termos do disposto no artigo 275°, do CPC, conjugado com o que se estipula no artigo 30°, do mesmo código;
O)- E porque entende o recorrente que a causa de pedir em ambos os processos é a mesma;
P)- Caso assim senão entenda, sempre haveria lugar á aplicação do disposto no artigo 274°, do CPC, uma vez que a presente causa está dependente do julgamento do outro processo, tendo em consideração o motivo aqui alegado, isto é, evitar a dupla condenação do executado pela mesma dívida.
7. Contra-alegou a entidade bancária exequente "A, SA" sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:
Iª- O douto acórdão recorrido tem necessariamente de manter-se, pois consubstancia a única solução que consagra a justa e rigorosa interpretação e aplicação ao caso "sub judice" das normas legais e dos princípios jurídicos competentes;
IIª- Alega o recorrente que a matéria dada como provada não é suficiente para julgar os embargos improcedentes, na medida em que não obstante estar provado que o Banco recorrido é o detentor das letras, não está provado que as mesmas não estão pagas;
IIIª- Tal pretensão deve-se, alegadamente, ao facto, por um lado, de as letras executadas pelo Banco recorrido serem provenientes de reformas, cujos títulos foram executados pela sacadora e, por outro, que o recorrente tem vindo a reformar várias letras, entre elas as dadas à execução;
IVª- Sucede que, em nenhum momento foi pelo recorrente alegado que pagou as letras dadas à execução ao Banco recorrido, devendo-se dar como assente que as letras em causa não foram pagas, bem como, que o banco recorrido é o seu legítimo possuidor;
Vª- O tribunal recorrido conheceu de tudo quanto se devia conhecer para a decisão da causa dos embargos, não enfermando o acórdão de qualquer nulidade;
VIª- O recorrente baseia todos os seus argumentos na tese, sem qualquer fundamento legal, que consiste em ignorar a distinção essencial entre as relações imediatas e as relações mediatas existentes nas obrigações cambiárias;
VIIª- Ora, uma vez que, é precisamente a supra-citada distinção a questão fulcral em causa nos presentes autos, dúvidas não restam da falta de razão que assiste ao recorrente;
VIIIª- O Banco recorrido é absolutamente estranho e alheio às relações entre a sacadora e a aceitante;
IXª- Os títulos de crédito são considerados documentos necessários para exercer e transferir o direito literal e autónomo neles mencionado;
Xª- De acordo com o disposto no artigo 17.° da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, as excepções fundadas sobre as relações pessoais que estiveram na base da subscrição do título são inoponíveis ao portador;
XIª- O que só não se verifica se o portador tiver agido em detrimento do devedor;
XIIª- Ora, tal nunca foi alegado, nem podia ser, já que o Banco recorrido agiu sempre de boa-fé, encontrando-se, neste momento, lesado nos montantes titulados pelas letras, jamais tendo tido conhecimento de qualquer facto que consubstanciasse uma excepção oponível à sacadora de tais letras por parte da recorrente;
XIIIª- Com efeito, se a recorrente pagou ou reformou as letras que se encontravam na posse da sacadora e não diligenciou no sentido de as mesmas serem inutilizadas ou, melhor ainda, devolvidas à mesma, a responsabilidade por tal conduta só à mesma pode ser assacada, sendo a isto o Banco totalmente alheio;
XIVª- Em face do exposto, é manifesta a falta de fundamento dos argumentos vertidos pelo recorrente, quer quanto aos alegados pagamentos efectuados ao sacador em sede de reforma das letras, quer quanto às alegadas apensação, coligação, litispendência e/ou prejudicialidade das causas, bem coma à suspensão da instância, já que não se verificam em concreto os pressupostos exigidos na lei para nenhuma daquelas situações.
8. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
9. Em matéria de facto, deu a Relação como assente, por remissão para a decisão de 1ª Instância, o seguintes ponto:
"A exequente-embargada é portadora das duas letras de câmbio juntas a fls 6 e 7 dos autos principais, cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido, no montante de 2.000.000$00 cada uma, letras essas aceites pelo executado-embargante e em que figura como sacadora a sociedade "C, Lda".
Passemos ao direito aplicável.
10. Não põe o recorrente em causa a realidade e legitimidade da detenção dos dois títulos exequendos em causa por banda da entidade bancária exequente e ora recorrida.
Apenas insiste em que se não encontra provado que as mesmas se não encontrem já pagas.
Mas uma tal posição subverte, a um tempo, quer as regras de repartição do ónus da prova (pretendendo fazer impender sobre o credor a prova do facto extintivo excepção peremptória do "pagamento" - artº 342º, nº 2, do C. Civil), quer a regra básica do direito cambiário segundo a qual no domínio das relações mediatas não pode o sacado-aceitante opor ao portador as excepções baseadas nas suas relações obrigacionais-creditícias com o sacador (relação material subjacente ou relação fundamental).
Com efeito, assumem as letras de câmbio dadas à execução a natureza de títulos de crédito (como tais regulados pela LULL) que foram transmitidas à entidade bancária exequente (e ora recorrida) por via de endosso; como assim, a exequente/embargada é a portadora das mesmas por via desse acto transmissivo, sendo o executado/embargante o respectivo aceitante.
De resto - e tal como bem observa a Relação - o requerimento executivo remete, pura e simplesmente, para o teor das letras exequendas, nada nele se contendo alegado relativamente à relação fundamental.
Destarte, a causa de pedir invocada radica nas próprias letras, como títulos executivos que são, incorporando uma obrigação abstracta, literal e autónoma e de livre circulabilidade (conf. artº 46º da LULL).
E daí que o devedor originário (o aceitante como responsável cambiário directo), só com a respectiva apresentação a pagamento (artº 38°, nº 1, da LULL) fica a conhecer a identidade do credor "actual", passando a partir de então a poder exercitar o direito à restituição dos títulos conferido pelo nº 1 do artº 39º do mesmo diploma.
Para que se extinga a obrigação cambiária o pagamento tem de ser feito ao portador, e se tal não acontecer, essa obrigação permanecerá subsistente.
É o que decorre, aliás, do disposto nos artºs 769° e 770°do C. Civil, nos termos dos quais não ocorrendo as excepções pelo último admitidas, a prestação feita a quem não for o verdadeiro credor, no momento do cumprimento, é ineficaz relativamente a este.
Não exercendo o direito que lhe é conferido pelo art. 39°, 1, de exigir a restituição (devolução) do título pago ou (supostamente) reformado, (como foi alegado), o devedor sujeita-se ao risco de utilização do mesmo, cujo pagamento teria então de voltar a fazer.
Com escreve Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, vol III, 1956, págs 38 e 39 "sendo a posse da letra a condição indispensável para o exercício e transmissão do direito nela incorporado, o facto de haver duas letras a circular não impede que o devedor não possa ser demandado pelas duas". Isto é, o devedor (como o aqui aceitante delas/recorrente) será responsável pelas respectivas prestações, enquanto continuarem a circular no mercado jurídico. E, mais adiante: "o direito de crédito não se extingue com o pagamento se o título continuar em circulação; pagando o aceitante ao portador, mas deixando a letra nas mãos deste, pode ser compelido a pagar segunda vez - a pagar a um terceiro de boa-fé a quem esse portador tenha endossado a letra" (sic).
De resto, também neste domínio da execução dos títulos cambiários, mais propriamente em sede de oposição à execução, há que atentar nas regras de repartição do ónus da prova plasmadas no artº 342º do C. Civil, tal como acima já se deixou dito, nos termos das quais cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável.
Deste modo, e volvendo ao caso «sub-judice», sendo o exequente, como é realmente, o legítimo portador das letras dadas à execução, ao devedor/executado demandado incumbiria a prova da ocorrência dos factos impeditivos, modificativos e extintivos da pretensão da contraparte (factos constitutivos da invocada excepção).
Mas o certo é que em momento algum foi pelo embargante/executado, ora recorrente, alegado que, face ao vencimento e apresentação a pagamento das letras exequendas, as tivesse pago ao Banco exequente/recorrido.
E jamais questionou quer o seu "aceite" aposto em tais títulos, quer a sua legítima posse e detenção por banda da entidade bancária, nem tão pouco a veracidade e/ou a autenticidade da assinatura (subscrição) por si nos mesmos aposta.
Acresce que - como bem salientou a Relação - para tal está já ultrapassado o momento processual próprio - como também o relativo à verificação da «exceptio doli» prevista na parte final do artº 17°, cuja prova era indispensável para que a defesa pudesse surtir efeito e ser eficaz contra o Banco ora recorrido/exequente/embargado.
E daí que o acerto da conclusão das instâncias de que tudo se passe como se as letras dadas à execução não hajam sido efectivamente pagas ao exequente pelo executado na data do respectivo vencimento.
11. As impetradas apensação de execuções e coligação de exequentes.
Nas conclusões M), N), O) e P) da respectiva alegação, o recorrente alegou ter efectuado várias reformas e consequentes amortizações às referidas letras, pedindo a sua absolvição da instância na medida em que estaria a ser executado também na acção n° 1286103, a correr termos pela 7ª Vara Cível -1ª Secção da Comarca do Porto, na qual o executado é o ora recorrente e o exequente o sacador, estando a serem executadas letras que foram objecto de amortizações, por forma a evitar a sua condenação em ambos os processos.
Continua assim o recorrente a pugnar pela apensação dessas duas execuções, em ordem, a evitar a sua "dupla condenação", nos termos do disposto no artigo 275°, do CPC, conjugado com o postulado no artigo 30°, do mesmo diploma.
E isto porque a causa de pedir em ambos os processos seria a mesma e que, caso assim se não entendesse, sempre haveria lugar à aplicação do disposto no artigo 274°, do CPC, uma vez que a presente causa se encontraria dependente do julgamento do outro processo, tendo em consideração o motivo aqui alegado, isto é, evitar a dupla condenação do executado pela mesma dívida.
Que dizer?
É verdade que pela que 7ª Vara Cível, 1ª secção, deste mesmo Tribunal, corre termos a acção executiva com o n° 1286/03.4.TVPRT, em que é exequente "C, Lda", a sacadora, e executado o B, aceitante de quatro outras letras de câmbio».
Mas será que, ora e aqui, é legalmente possível a pretendida apensação desta acção à execução n ° 1286/03 identificada, de outro Tribunal?
A Relação entendeu - e bem - que não ocorria o circunstancialismo legal para a reclamada "apensação", não obstante o executado/recorrente ser o mesmo em ambas as acções; e isto desde logo porque eram distintos os exequentes, as causas de pedir e os pedidos.
O que logo arredaria a ocorrência da excepção dilatória de litispendência (artºs 494º, al. i), 497°, nº 1 e 498°, CPC).
Ademais não se mostravam também preenchidos os pressupostos da aventada coligação contemplados no artº 30º do CPC: a causa de pedir de cada uma delas não era a mesma e única, nem os pedidos se encontravam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, porquanto cada um deles se baseava em relações cartulares diferentes e não comportavam qualquer referência às respectivas relações subjacentes.
Na esteira do considerado pela Relação "os princípios da abstracção, da literalidade e da autonomia de cada um dos títulos de crédito (letras de câmbio) exequendos em cada uma das acções em confronto são impeditivos de que entre os respectivos pedidos exista a conexão exigida no art. 30° referenciado" (sic).
E a não verificação dos requisitos enunciados no art. 30° é, outrossim, e de per si, impeditiva da possibilidade da apensação pretendida (art. 275°, 1 "a contrario", CPC) de tais acções.
Bem andaram, pois, as instâncias ao não haverem acolhido a pretensão de que fosse decretada a suspensão da instância nos termos do artº 279°, CPC.
12. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura, pelo que improcedem as conclusões da alegação do recurso.
13. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 30 de Setembro de 2004
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Ferreira Girão