Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | RELAÇÕES DE VIZINHANÇA DIREITO DE PROPRIEDADE DEVER DE PREVENÇÃO GERAL RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL | ||
Data do Acordão: | 03/29/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ RESPONSABILIDADE CIVIL - DIREITOS REAIS | ||
Doutrina: | -ALONSO PEREZ, Las relaciones de vecindad, em Anuário de Derecho Civil, tomo XXXVI, Abril-Junho de 1983, págs. 357 e segs.. -ANTUNES VARELA, Comentário ao Ac. do STJ de 26-3-80, Revista de Legislação e Jurisprudência, 114.º. -COSMAS YOCAS, em Les Troubles de Voisinage (Paris 1966). -GUY COURTIER, em “Travaux de Bâtiment et dommmages au voisinage”, pubicado na revista “Responsabilité Civile et Assurances”, Março de 2000, pág. 6. -HUBERT GROUTEL, Travaux immobiliers et troubles de voisinage, em Responsabilité Civile et Assurance, 16º ano, Julho de 2003, págs. 4 e 5. -JEAN-VICTOR BOREL, em La Semaine Juridique, nº 51-52, págs. 35 e segs.. -J. ALBERTO GONZALEZ, Restrições de Vizinhança, págs. 118 e 209. -OLIVEIRA ASCENSÃO, Revista da Ordem dos Advogados, ano 67º, págs. 7 e segs.. -MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 831, nota 669. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, 492.º, 493.º, 1346.º, 1348.º, 1350.º, 1360.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 26/03/1980, RLJ, 114º; -DE 08/07/2003, EM WWW.DGSI.PT ; -DE 28/10/2008, EM WWW.DGSI.PT ; -DE 02/06/2009, EM WWW.DGSI.PT . | ||
Sumário : | 1. Os arts. 1346º e segs. do CC não esgotam nem as restrições, nem os deveres impostos aos proprietários de prédios em relação de vizinhança. 2. Para além da responsabilidade que pode decorrer de acções ou omissões ao abrigo dos arts. 492º e 493º do CC, nas normas dos arts. 1346º e seguintes aflora um princípio geral que rege as relações de vizinhança e que pode gerar, em determinadas circunstâncias, um dever de restabelecimento do equilíbrio imobiliário perturbado pela actuação de um dos proprietários ou mesmo um dever geral de prevenção de danos, cuja violação se inscreve no art. 483º do CC. 3. Tendo o proprietário de uma moradia procedido à demolição da parede correspondente à empena que confinava com a empena da moradia contígua, ficando, por causa disso, desguarnecida durante os dois anos em que a obra de reconstrução esteve parada na laje do 1º andar, por falta de licenciamento, são-lhe imputáveis os danos derivados das infiltrações de águas pluviais e de humidades para o interior da moradia, através da referida empena que durante aquele período se manteve sem qualquer protecção. A.G. | ||
Decisão Texto Integral: | I - MARIA M. e G. intentaram contra
O. - INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS, Ldª, acção declarativa de condenação, com o processo experimental, pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de € 29.683,00, acrescida de juros vincendos à taxa de legal, desde a citação até pagamento.
Alegaram, para tanto, em síntese: - A A. e a R. são donas de duas moradias geminadas, tendo a R. procedido a obras na sua moradia de que resultaram danos na moradia da A., uma vez que ao demolirem a parede confinante deixaram desguarnecida a parede da moradia da A., o que foi causa de infiltrações decorrentes de águas pluviais durante todo o período em que a referida parede se manteve desguarnecida.
A R. contestou, alegando que iniciou a realização de obras na moradia que adquiriu e que procedeu à demolição da parede que encostava à parede da moradia dos AA., não sendo obrigada a rebocar e isolar essa parede.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido e condenar a R. a pagar-lhes a indemnização de € 18.390,95, com juros de mora desde a citação, sendo € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais.
A R. apelou tendo sido revogada a sentença.
Os AA. interpuseram recurso de revista em que concluíram:
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Matéria de facto provada (organizada de forma lógica e cronológica): 13. Nos meses de Novembro e Dezembro de 2003, a R., sem qualquer conhecimento e sem autorização dos AA., efectuou as seguintes obras: a) Arrancou parcialmente, ao nível do 1° andar do prédio em que os AA. residem, uma tela isoladora de alcatrão e alumínio e pintura que isolava a empena exterior adjacente à moradia contígua propriedade da R.; b) Colocou uma placa para construção do piso do 1° andar da moradia sem qualquer protecção ou isolamento na junção ao prédio dos AA.; c) Deixou ao nível do 1° andar do prédio dos AA. a maior parte da superfície da parede do prédio dos AA. com o tijolo à vista; d) Fez na parede do prédio dos AA. vários buracos de grande tamanho que deixaram o interior da casa dos AA. totalmente aberto ao exterior na zona dos referidos buracos; 28. A R. emitiu e enviou à A. a carta junta por cópia a fls. 87 a 88 v.°, de 16-6-05, sob o assunto “Moradia sita na Praceta J. Almada V/carta de 20-5-05”, de onde consta assinaladamente, “(...). Lamentamos todo e qualquer incómodo que V. Exªs, estejam a sofrer, contudo, e conforme é do vosso conhecimento, até à data, a Câmara Municipal de Almada, ainda não concluiu o processo de licenciamento das remodelações da moradia que adquirimos. De acordo com o último ofício da Câmara Municipal de Amada, a licença será emitida no prazo de um mês, aproximadamente, sendo os trabalhos retomados, de imediato. Desde o primeiro momento, demos conhecimento a V. Exªs. da evolução de todo o processo, tendo-nos reunido diversas vezes e o Sr. Vidinha, inclusive, participou numa reunião no Gabinete de Arquitectura. A necessidade de colaboração de parte a parte surgiu do facto de as duas moradias integrarem o mesmo processo camarário, sendo uma a fracção A e a outra a B. Foram os próprios serviços camarários que nos informaram que a apreciação do nosso projecto seria condicionada pelo vosso, uma vez que as obras de remodelação da vossa casa, são anteriores às nossas. (…) Na vossa missiva, V. Exªs fazem uma solicitação: a de procedermos imediatamente ao isolamento total da parede e estrutura que consideram danificada e o seu reboco completo e respectiva pintura. No entanto, não podemos aceder à solicitação de V. Exªs., por duas ordens de razão: 1° - Os trabalhos estão parados no terreno e não podem ser retomados sem a emissão de licença, sob pena de a obra ser embargada; 2° - Os danos que elencam não nos são imputáveis, porquanto a intervenção que foi efectuada, pelo nosso empreiteiro, resumiu-se à parede da nossa moradia e não à parede da vossa casa. Apesar das moradias serem geminadas, a união entre as casas não é feita por uma mas por duas paredes que encostam. Os trabalhos de demolição efectuados no local resumiram-se à demolição da nossa parede, não tendo tido qualquer interferência com a vossa. Se existem infiltrações, na vossa casa, tal fica a dever-se a uma causa exclusiva: aquando da realização das obras de remodelação da casa que habitam, a parede que encosta à da nossa moradia não respeitou a espessura regulamentar e não obedeceu às regras de isolamento impostas. Atendendo ao facto de as vossas obras terem sido reatadas sem projecto e sem licença camarária, não houve qualquer vistoria que apurasse se as mesmas respeitaram as leis e regulamentos em vigor. O simples facto de V. Exªs. nunca terem tido humidades ou infiltrações não significa que a parede e respectivo isolamento estivessem em consonância com as técnicas e regras do sector da construção. (...) Acresce ainda que aplicámos, no local, os necessários materiais para isolamento e resguardo da nossa moradia. 33. Em consequência e por causa do referido em 12. e 13., verificaram-se infiltrações de água nas paredes e tectos contíguos à moradia da R., nas seguintes divisões da casa: - No escritório do rés-do-chão; - Na sala de jantar no rés-do-chão; - Numa casa de banho do rés-do-chão; - Num quarto do 1° andar; - Numa casa de banho do 1° andar, anexa ao quarto; 35. A reparação do interior da casa dos AA. e a sua restituição ao estado anterior, implica a realização dos seguintes trabalhos, com os seguintes custos: a) No 1° andar: - Preparar e pintar o tecto e três paredes de um quarto - € 150,00; - Preparar e pintar o tecto da casa de banho - € 56,25; - Preparar e pintar o tecto e paredes da despensa - € 112,50; b) No rés-do-chão: - Preparar e pintar o tecto e paredes do escritório - € 112,50; - Preparar e pintar o tecto da casa de banho - € 150,00; - Preparar e pintar o tecto e paredes da sala de jantar - € 112,50; c) Na fachada: 43. A R. emitiu e enviou aos AA. a carta datada de 10-6-06, junta por cópia a fls. 98, de onde consta assinaladamente o seguinte: “ (…) Em suma, não obstante enjeitarmos toda a responsabilidade, como os trabalhos supra não importariam qualquer esforço económico para a empresa, em prol das boas relações de vizinhança, estaríamos dispostos a efectuar os trabalhos atrás descritos. A execução destes trabalhos não colide com a presença dos proprietários e do seu canídeo no imóvel. Abstemo-nos de tecer especiais comentários ao valor pretendido pelos v/representados a título de danos morais, uma vez que excede o que é judicialmente fixado para indemnização do dano morte. 44. Os AA., através dos seus mandatários, emitiram e enviaram à R., que a recebeu, a carta datada de 29-6-06, junta por cópia a fls. 91 a 97, de onde consta assinaladamente o seguinte: “Encarregaram-me os meus constituintes de contactar V. Exªs. a fim de obter a reparação dos danos causados por V. Exas. no interior e exterior da moradia em que aqueles residem. Assim, de acordo com aqueles, estará em fase de conclusão por V. Exªs. a obra exterior que permitirá repor a situação de perfeito isolamento da casa dos meus clientes, o que com agrado aqueles registam. Porém, permanece por resolver a questão dos restantes danos causados por V. Exªs. com a obra iniciada em 2003 (...). 1. Suscita o recurso de revista a questão da responsabilização do proprietário de uma moradia geminada por danos derivados da realização de obras que afectaram a moradia contígua, o que nos remete para um litígio conexo com relações de vizinhança. Na sentença da 1ª instância a R. foi condenada pelos referidos danos, com fundamento na existência dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. Já no acórdão recorrido considerou-se que, apesar de as infiltrações que afectaram a moradia dos AA. terem a sua causa próxima nas obras executadas na moradia da R., esta não devia ser responsabilizada, uma vez que se limitou a proceder à demolição da parede encostada à parede da outra moradia e não tinha o dever de zelar pela sua impermeabilização, sendo irrelevantes as demais actuações.
2. A situação em que se encontravam as duas moradias é recorrente nas áreas urbanas em que a necessidade de aproveitamento do espaço para edificação leva a que se construam edifícios em linha. O proprietário de qualquer dos edifícios confinantes goza dos poderes gerais, entre os quais se inclui o de demolição e de reconstrução de acordo com as normas urbanísticas ou as regras de direito privado que emergem dos arts. 1360º do CC. Mas na execução dessas ou de outras obras necessariamente terão de ser tomadas em consideração tanto as circunstâncias anteriormente existentes, como as consequências que previsivelmente possam afectar o edifício confinante. A situação de vizinhança e mais ainda a existência de construções confinantes implica algumas limitações ao exercício do direito de propriedade, como bem o evidenciam designadamente as normas dos arts. 1346º, 1348º ou 1350º do CC. Todavia, nenhum dos preceitos que formalmente descrevem os deveres dos proprietários regula especificamente a realização de obras que, não sendo em si mesmas directamente determinantes de danos no prédio contíguo, constituem causa mediata da ocorrência de infiltrações através da parede confinante. Uma situação como a dos autos não obtém regulação específica nos arts. 492º e 493º do CC, normas que abarcam outras realidades: o art. 492º, as situações de ruína, de vício de construção ou de incumprimento de dever legal ou contratual de conservação de imóvel; o art. 493º, os danos causados pelos próprios imóveis, a par do incumprimento do dever de vigilância, e os danos resultantes de actividades perigosas pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios, o que não inclui a actividade normal de construção civil. Porém, a apreciação da concreta situação ou, nas palavras de MENEZES CORDEIRO, a “normatividade dos factos”, cuja “ponderação dogmática pela necessidade reconhecida de redução dos problemas, passa pelo sistema”,[2] cria a convicção de que os danos que ocorrerem na moradia dos AA. são de imputar à actuação ou omissão da R., reclamando do sistema uma solução que sustente a sua responsabilização.
3. A integração jurídica de situações que, como a dos autos, se mostram merecedoras de protecção semelhante à que aflora em determinados preceitos que regulam o exercício do direito de propriedade sobre imóveis tem conduzido ao seu aprofundamento teórico. A problemática foi objecto de apreciação no Ac. do STJ, de 26-3-80 (com comentário favorável de ANTUNES VARELA na RLJ 114º) que inscreveu a responsabilização do proprietário do prédio vizinho na violação de deveres emergentes de um princípio geral que envolveria as relações de vizinhança de que os arts. 1346º e segs. do CC constituiriam afloramentos. Tratava-se de uma situação, muito próxima da sub judice, de demolição de um prédio, com a especificidade de que, até certa altura, a parede era comum ao prédio contíguo, daí se elevando paredes autónomas, mas encostadas, uma das quais sofreu danos provocados por trepidações subsequentes ao derrube da outra parede. Concluiu-se no referido aresto que, apesar de o proprietário do prédio demolido ter agido ao abrigo do seu direito de propriedade, deveria responder pelos danos causados pelo não acatamento de um dever de protecção justificado diversificadamente a partir da violação de deveres de diligência e da ponderação da relação de vizinhança.[3] A problemática foi ainda apreciada, mas sem incidência tão precisa relativamente a uma situação como a dos autos, por J. ALBERTO GONZALEZ, na monografia intitulada “Restrições de Vizinhança”, onde alude a um dever geral de prevenção cuja violação, em determinadas circunstâncias, pode sustentar a obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil (págs. 118 e 209). Para MENEZES CORDEIRO, a resposta para uma situação do género encontra apoio nas regras sobre o abuso de direito. No entender deste civilista, “um edifício contíguo a um outro traz-lhe desvantagens, mas, também, alguns benefícios”, de modo que “destruir o edifício contíguo sem tomar as precauções para proteger a casa vizinha, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé”. Argumentos resumidos que servem para fundar um direito à protecção correspondente ao “dever de tomar as precauções necessárias para que, em consequência de desaparecer o edifício contíguo, não ocorram danos no edifício subsistente” (ob. cit., pág. 831).[4] Tal é feito mediante a enunciação de um princípio geral que enformaria as disposições específicas dos arts. 1346º e segs. do CC e que, para além das concretas situações reguladas, sustentaria ainda outros vínculos submetidos ao mesmo princípio. Já segundo OLIVEIRA ASCENSÃO, as relações de vizinhança envolvem um princípio geral que, aflorando em diversas disposições reguladoras do direito de propriedade, geram para cada um dos proprietários de prédios vizinhos ou confinantes deveres de “manutenção do equilíbrio imobiliário”, implicando a necessidade de compressão e de actuação mútua no sentido da manutenção do statu quo que, por razões subjectivas ou objectivas, tenha sido modificado, causando uma forte perturbação na relação vicinal. No artigo intitulado “A previsão do equilíbrio imobiliário como princípio orientador das relações de vizinhança” (ROA, ano 67º, págs. 7 e segs.), tece pertinentes considerações que podem ser transpostas para o caso, considerando que aquele princípio releva dos arts. 1346º, e segs. do CC, sendo susceptível de “expandir a regulação jurídica a casos não previstos”. Assevera que “cada titular está vinculado, não só a abster-se da prática de actos que quebrem o equilíbrio imobiliário, como a reparar a falta de execução normal do seu direito, quando pela omissão desse exercício o equilíbrio imobiliário possa da mesma forma vir a ser quebrado” (pág. 25). Defendendo a legitimidade para assacar ao proprietário o dever de reconstituir o equilíbrio imobiliário perturbado, sustenta no referido princípio “a aplicação a outras situações em que o princípio justificativo for o mesmo “ (pág. 30), para concluir, tal como se fizera no caso que foi apreciado no citado Ac. do STJ, de 26-3-80, que “a demolição provoca uma ruptura do equilíbrio imobiliário que surte por si o efeito de impor ao titular do prédio onde se originou a reconstituição daquele equilíbrio (pág. 28, nota 30).[5]
4. Vejamos agora o caso concreto. As moradias dos AA. e da R. foram edificadas no âmbito do mesmo licenciamento camarário, há cerca de 60 anos, sendo geminadas através de uma das empenas que, durante esse período, exerceram simultaneamente a função de delimitação de cada moradia e de protecção mútua contra os efeitos das intempéries, designadamente, das chuvas. A R. executou obras na sua moradia que incluíram a demolição da parede encostada à empena da outra moradia, a qual ficou temporariamente sem outro resguardo. Num segundo momento, iniciou a reconstrução da moradia mas, por falta de licenciamento, a obra ficou parada quando se encontrava ao nível da laje do 1º andar e assim se manteve durante dois anos, até ser autorizada a reconstrução. Logo ao proceder à demolição da parede da sua moradia a R. provocou a ocorrência de danos na parede da moradia dos AA., ficando abertos buracos que deixavam ver o seu interior. Apesar de os AA. terem exigido da R. a sua reparação, esta não o fez, tendo sido aqueles a proceder à tapagem dos referidos buracos. Também houve arrancamento parcial da tela de isolamento. Em todo este processo, a R. não adoptou as cautelas que a relação de vizinhança objectivamente impunham. Nestas múltiplas actuações e omissões da R. assomam diversos aspectos a que deve atribuir-se relevo: a) A directa afectação da parede da moradia dos AA. sem o cuidado necessário na prevenção dos danos; b) A recusa na realização de obras de reparação dos danos que directamente foram provocados; c) A objectiva violação de regras de vizinhança, deixando exposta durante dois anos uma parede que até então estava naturalmente protegida pela parede da moradia demolida; d) A alteração de uma relação de equilíbrio que durante cerca de 60 anos se manteve; o arrastamento da situação durante dois anos por motivos unicamente imputáveis à R., agravando a ocorrência de infiltrações pela parede desguarnecida; e) Enfim, resumindo, a omissão de deveres de prevenção de danos que a conjugação de diversas circunstâncias - a conduta ilícita, o facto de as paredes serem e continuarem a ser contíguas ou as regras da boa fé - exigiam.
5. É verdade que a infracção às regras urbanísticas ligadas ao licenciamento, em princípio, não seria invocável pelos AA., por traduzir o não acatamento de normas que tutelam interesses de ordem pública. Porém, no caso, tal infracção foi causal da demora na reconstrução da moradia, levando a que essencialmente ao nível da laje do 1º andar, onde a obra paralisara, ocorressem infiltrações que danificaram o interior da casa dos AA. Também quanto à abertura de buracos na parede da moradia dos AA. se poderia porventura invocar que, uma vez que se substituíram à R. na execução da correspondente reparação, sanada teria ficado a situação, a exigir apenas o eventual reembolso das despesas. Porém, sem embargo dessa iniciativa dos AA., a R. não poderia ter-se desinteressado definitivamente da situação que provocara, tanto mais que, como veio a verificar-se, também houve alguma interferência daquela conduta nas infiltrações que se vieram a verificar, situação agravada pela demora na reconstrução do edifício por razões unicamente imputáveis à R. Obviamente que o facto de as paredes das empenas de ambas as moradias estarem encostadas não afectava a possibilidade de qualquer dos respectivos proprietários proceder à sua demolição, com ou sem reconstrução da respectiva empena, com as mesmas ou com outras características. Mas o programa que a própria R. traçara era claro: à demolição da empena seguir-se-ia a sua reconstrução, mantendo-se encostada à moradia dos AA. Também quanto à tela de isolamento, ainda que esta apenas tenha sido retirada da zona de confluência entre a empena da moradia dos AA. e a anterior empena da moradia da R., também aí houve uma modificação do statu quo relacionado com a protecção contra infiltrações de que a R., como interessada nesse arrancamento, não deveria alhear-se.
6. Conquanto a figura do “abuso de direito” possa estar presente em alguns conflitos de vizinhança, como aquele que foi objecto de apreciação no citado Ac. do STJ, de 28-10-08, sobre um caso de actuação que injustificadamente prejudicava a natural insolação de um dos prédios, não existe necessidade de se seguir essa via, ajustando-se às circunstâncias do caso a alternativa apresentada por OLIVEIRA ASCENSÃO, em desenvolvimento da problemática que foi correctamente integrada pelo Supremo Tribunal de Justiça no citado aresto paradigmático de 26-3-80. Traduzindo uma faceta de desenvolvimento do direito que melhor corresponde às necessidades da vida corrente, essa via segue a linha já anunciada por ANTUNES VARELA, para quem as normas dos arts. 492º, 493º, 1347º e 1348º do CC representam “afloramentos especiais de um princípio geral de recorte mais amplo” em que se funda, além do mais, “o dever de adopção das medidas destinadas a evitar o perigo criado pelo proprietário”. Sendo seguro que entre os poderes do proprietário de imóvel se incluiu o de demolição e reconstrução de acordo com as pertinentes regras urbanísticas ou das que emergem dos arts. 1360º do CC, no exercício dessas faculdades necessariamente teriam de ser tidas em consideração as concretas circunstâncias anteriormente existentes, tal como deveriam ter sido ponderadas as consequências para o proprietário do edifício confinante.[6] Assim, a matéria de facto apurada permite identificar a existência de um dever de prevenção que incidia sobre a R., relativamente às consequências que a sua conduta (demolição, reconstrução e paralisação da construção da moradia) provocou e continuou a provocar na moradia dos AA., dever esse que não é sustentado apenas num abstracto princípio de vizinhança, nem num princípio que obrigaria ao restabelecimento do equilíbrio imobiliário, emergindo da associação de múltiplos factores, numa espécie de concurso de pretensões. Também não encontra justificação a alegação da R. de que deveriam ser os AA. a realizar todas as obras de impermeabilização da sua empena, pois que, como se disse, a existência de uma mútua protecção lateral aproveitava a ambas as moradias, devendo ser o proprietário da moradia objecto de intervenção urbanística a preocupar-se pela manutenção de condições semelhantes às que anteriormente se verificavam, no período transitório, mas prolongado, da reconstrução, a fim de evitar a ocorrência de danos no edifício vizinho. Atentas as circunstâncias que rodearam quer a demolição da parede, quer a reconstrução da moradia, as relações de vizinhança estabeleciam para os dois imóveis uma situação de equilíbrio, envolvendo da parte da R. o dever de agir de modo diverso, dever esse que se integrou no respectivo direito de propriedade. Por isso, tendo sido a R. a causadora da situação determinante do risco para a moradia dos AA., sobre si recaía o dever de agir no sentido da prevenção da ocorrência de danos, repondo a situação de equilíbrio imobiliário que no seu exclusivo interesse e por sua inteira responsabilidade foi perturbado. Se o nosso sistema não prevê de forma generalizada um dever de prevenção de danos na esfera de terceiros, circunstâncias existem - e as relações de vizinhança são especialmente propícias a tal - em que esse dever se inscreve no campo de actuação, como bem o explicaram ANTUNES VARELA e OLIVEIRA ASCENSÃO nos locais citados, o qual surge também evidenciado no caso apreciado nos Acs. do STJ, de 2-6-09 (AZEVEDO RAMOS) e de 8-7-03 (AFONSO CORREIA), ambos em www.dgsi.pt.[7] Não tendo a R. agido como devia e tendo, com essa inércia, causado danos na moradia dos AA., é possível descobrir também neste processo fundamento multifacetado para a sua responsabilização, quer com a simples invocação de que tal obrigação se integrou no direito real, quer com fundamento na responsabilidade decorrente de omissão ilícita (OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., pág. 28, e J. ALBERTO GONZALEZ, ob cit., pág. 118). Nos meses de Novembro ou Dezembro de 2005, por se ter detectado que havia infiltrações provenientes da junção da placa anexa à empena da casa dos AA., estes procederam ao reboco da junção daquela placa, sendo a realização dos trabalhos fixado em € 1.960,20. Estamos na presença de danos de natureza patrimonial que somam cerca de € 3,210,00, pelos quais os AA. devem ser indemnizados. Ademais, a situação foi causa de elevados incómodos e de danos não patrimoniais que deverão ser considerados, tendo em conta que os AA. tiveram de passar a fazer as suas refeições na cozinha, deixando de poder utilizar a sala de jantar e de receber visitas e amigos. Atento o circunstancialismo, parece-nos que foram sobrevalorizados na sentença de 1ª instância, parecendo mais ajustada a quantia de € 10.000,00. Abrantes Geraldes
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva -------------------- [3] Dever que também surge na fundamentação do Ac. do STJ, de 8-7-03, www.dgsi.pt (AFONSO CORREIA), tratando-se neste caso de infiltrações causadas pela acumulação de entulhos no prédio contíguo que causaram infiltrações no prédio contíguo. Cfr. ainda o Ac. do STJ, de 2-6-09, www.dgsi.pt (FONSECA RAMOS) e o Ac. do STJ, de 28-10-08, www.dgsi.pt (SEBASTIÃO PÓVOAS), este sobre um caso de edificação de um muro que prejudicava a insolação, actuação considerada em abuso de direito. [4] Trata-se de uma solução que acaba por ser sustentada num dever geral de prevenção cuja descoberta constitui, no seu entender, um “prenúncio feliz de um activar definitivo das potencialidades contidas no Código de 1966” (ob. cit., pág. 829). |