Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2197
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ABÍLIO DE VASCONCELOS
Descritores: FIDEICOMISSO
REQUISITOS
SUBSTITUIÇÃO
HERDEIRO
TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
INSTITUIÇÃO DE HERDEIRO
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200310230021972
Data do Acordão: 10/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1349/02
Data: 10/03/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I - São elementos da substituição fideicomissária a dupla liberalidade, o encargo de conservação e transmissão dos bens e a ordem sucessiva.
II - A interpretação dos testamentos deve fazer-se pelo apuramento da vontade real e contemporâneo do testador, usando, para essa averiguação, o contexto do testamento e, quando necessária, prova complementar ou extrínseca que, a esse respeito, puder reunir-se.
III - Constitui matéria de facto a determinação da vontade real do testador quando apurada através de prova complementar.
Constitui matéria de direito a determinação dessa vontade feita, apenas, com base no texto do testamento e a verificação do mínimo de correspondência entre a vontade real e o contexto do testamento.
IV - No fideicomisso de "resíduo", o herdeiro fiduciário não tem o encargo de conservar a herança, gozando da faculdade de alienar, por actos inter-vivos, os bens que a integram desde que, cumulativamente, se verifique que não tem bens próprios, com exclusão do prédio da sua residência habitual, e que obteve, para esse efeito, autorização do fideicomissário ou o seu suprimento judicial.
V - Aqueles requisitos da inexistência de bens próprios, com exclusão do prédio da residência habitual, e da autorização do fideicomissário, ou o seu suprimento judicial são elementos constitutivos do direito de alienar, cabendo a prova da sua verificação ao fiduciário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A , A intentou a presente acção, com processo ordinário, contra: 1 - B;
2 - C e mulher, D;
3 - E e mulher, F;
4 - G;
com o fundamento de que tendo falecido, em 17 de Janeiro de 1946, H que, por testamento de 13/04/1945, nomeou sua testamenteira a B, a 1ª R., nascida em 18/10/1915, solteira e sem descendentes legítimos, e onde"... institui por única herdeira de todos os seus bens, direitos e acções a sua referida testamenteira, mas se ela falecer sem descendentes legítimos, então institui como únicos herdeiros de todos os seus bens, direitos e acções, em partes iguais, as casas de caridade desta vila" a mencionada ré vendeu, por escritura pública de 16/06/1986, o prédio descrito no art. 30º da petição inicial aos 2ºs R.R. os quais, após terem desanexado desse prédio 193.200m2, que deram origem a outros dois prédios rústicos, os venderam aos 3ºs e 4ª R.R. pelas escrituras públicas, respectivamente, de 27/06/1991 e de 02/04/1992, não obstante todos os R.R. terem conhecimento de que os prédios vendidos haviam sido deixados, pelo falecido H, à B "com a condição resolutiva de reverterem em partes iguais para as casas de caridade que, legalmente constituídas, nesta vila existirem à data do seu falecimento sem descendência legítima".
Termina pedindo que sejam declaradas nulas as supra identificadas escrituras públicas e cancelados os respectivos registos na conservatória do Registo Predial de Olhão.
Todos os RR. foram citados, com excepção da D por ter falecido em momento anterior ao da prolacção do despacho a ordenar as citações.
Habilitados, por decisão transitada em julgado, como seus sucessores e para no lugar dela prosseguir a acção termos, foram o marido, o R. C, e as filhas I e J.
Estas, habilitadas, não foram citadas para os termos da acção. No entanto, a respectiva nulidade encontra-se sanada porquanto intervieram no processo e não arguiram a falta da sua citação - arts. 194º al. a) e 196º, ambos do C.P. Civil.
Os R.R. citados contestaram alegando, fundamentalmente, ser a A. parte ilegítima, inexistir fideicomisso no texto do testamento, dever considerar-se não escrita a disposição testamentária de inibição da R. B deixar de casar-se e dever ser o testamento interpretado no sentido de as casas de caridade (não a A.) serem herdeiras, apenas, do remanescente da herança do testador.
Concluem pedindo a improcedência da acção.

Os R.R. C, E e mulher deduziram, ainda, reconvenção pedindo a condenação da A. a pagar-lhes, respectivamente, as quantias de 14.500.000$00 e de 340.930.000$00, valores das benfeitorias efectuadas nos prédios que compraram.
A autora respondeu à matéria das excepções e das reconvenções.
Na 1ª instância foi proferido saneador - sentença onde se julgou a acção improcedente.
Na sequência de recurso interposto pela A. o Tribunal da Relação de Évora, através do acórdão de fls. 316 a 322, revogou aquela sentença, declarando a nulidade das referidas vendas, ordenando o cancelamento dos respectivos registos de aquisição e o prosseguimento do processo para apreciação e conhecimento dos pedidos reconvencionais.
Com excepção da R. G, Lda., os demais R.R., inconformados, recorreram de revista.

Os R.R. C, I, e J formularam, nas suas alegações as seguintes essenciais conclusões:
1 - Não há fideicomisso.
2 - A B foi instituída herdeira de todos os bens, direitos e acções do testador sem qualquer condição.
3 - Se o testador houvesse querido que a B não pudesse alienar os bens que recebia, ou que só o pudesse fazer mediante autorização de eventual fideicomisso, haveria que tê-lo expressado inequivocamente no seu testamento, e não o fez.
4 - O testador terá instituído dois herdeiros distintos, igualmente para dois momentos distintos no tempo: em primeiro lugar, a herdeira B desde logo sem qualquer condição, quanto à totalidade dos seus bens, direitos e acções; e, depois numa fase distinta, as casas de caridade de Olhão que se mostrassem então legalmente constituídas.
5 - Só quanto a este segundo herdeiro é que se verifica o estabelecimento de uma condição, qual seja a de que este herdeiro só o será se à data do falecimento da B, esta falecer sem descendentes legítimos.
6 - O testador queria impedir que, não havendo a herdeira B estirpe, pudessem os seus bens restantes entrar na esfera patrimonial de outros que não descendentes legítimos desta.
7 - A legitimidade das casas de caridade para acções qual esta, só existirá com a morte da B. Antes dessa morte, por falta de verificação da situação adversativa (... mas se ela falecer sem...), não está chegado sequer o momento temporal da segunda parte da disposição testamentária.
Então, quando ela falecer, e só então, serão herdeiras do que restar as casas de caridade de Olhão legalmente constituídas.
8 - A situação submetida a juízo não se contém dentro das previsões do art. 1781º do Codigo de Seabra.
Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido e que se julgue a acção improcedente.
Por sua vez, a R. B também formula, nas alegações, as seguintes essenciais conclusões:

1 - Do testamento não resulta que estejam preenchidos os requisitos da substituição fideicomissária.
2 - A B foi instituída herdeira de todos os bens e direitos, sem qualquer condição.
3 - O testador institui herdeiros distintos e em momentos distintos no tempo.
4 - A situação submetida a juízo não se contém nas previsões do art. 1871º do cod. de Seabra.
5 - A autora é parte ilegítima (por ostensivo lapso foi escrito "legítima") para a acção antes da morte da R.B. Não está chegado o momento temporal da segunda disposição testamentária (morte da herdeira B). Só à morte dela são herdeiras as casas de caridade, legalmente constituídas, de Olhão.
6 - Mas, sendo considerada substituição fideicomisária ou "espécie de fideicomisso condicional", então a A. não é parte legítima pois foi constituída muito após a morte do testador.

Pede a revogação do acórdão e a improcedência da acção.

Finalmente, os recorrentes E e mulher apresentam as seguintes fundamentais conclusões:

1 - A B é, nos termos do testamento, uma universal herdeira, sem qualquer limitação ou encargo e, nessa qualidade, pode dispor livremente de todos os bens móveis, imóveis e acções da herança.
2 - A autora não tem legitimidade para intentar acção porquanto não só não estava constituída à data do óbito do testador, como não é nenhuma casa de caridade.
3 - Não tendo a B falecido ainda, a A. não tem legitimidade para intentar a acção.

Termina pedindo, tal qual os demais recorrentes, a improcedência da acção.
Houve resposta da autora.
Corridos os vistos legais, cabe decidir.

A Relação considerou provados os seguintes factos:
1 - Em 17/01/1946 morreu H.
2 - Deixou testamento em que "nomeia testamenteira a Senhora Dona B, solteira, maior, doméstica.., residente na companhia dele testador..."
3 - E em que "institui por única e universal herdeira de todos os seus bens, direitos e acções a sua referida testamenteira, mas se ela faleceu sem descendentes legítimos, então institui por únicos e universais herdeiros de todos os seus bens, direitos e acções as casas de caridade desta vila (Olhão), que se achem legalmente constituídas".
4 - A Ré B nasceu em 18/10/1915, é solteira e não tem descendentes.
5 - A Ré B, testamenteira, vendeu aos R.R. C e mulher, por escritura de 16/06/86 (certidão de fls. 109 e segs.) o prédio rústico descrito na C.R.P. de Olhão sob o nº 00198/260886, que integrava a herança do testador.
6 - Desse prédio foram desanexados os descritos sob os ns. 00811/911206 e 00812/911206, tendo este último sido vendido pelas referidas R.R.aos R.R. E e mulher, em 27/06/91 (certidão de escritura de fls. 112 e segs.
7 - Por seu turno, o prédio descrito sob o nº 00811 foi vendido pelas já referidas R.R. C e mulher, por escritura de 02/04/92 (certidão de fls. 117 e segs.) à sociedade R. "G, Lda", no acto representada pelas mesmas R.R., seus únicos sócios e gerentes.
8 - A venda referida no nº 5 foi efectuada pela R. B sem autorização da A. ou o seu suprimento judicial.

Antes de entrarmos na apreciação do mérito do diferendo, adianta-se que a invocação pelos recorrentes, da ilegitimidade da A. não tem cabimento.

Com efeito, no saneador-sentença, por decisão transitada em julgado, foi a questão da legitimidade da A. apreciada, e reconhecida essa mesma legitimidade.

Logo, é impertinente trazê-la, de novo, à colação.

Vejamos, agora, a questão de mérito.
É princípio geral de direito testamentário o de que a apreciação da eficácia substancial do testamento é feita pela lei em vigor no dia da abertura da sucessão (cfr. Acs. do S.T. J. de 13/01/89 no B.M.J. nº383, pg. 569, e de 13/12/96 na Col. Jur. (Acs. do S.T.J.) Ano IV, tomo 1, pg. 82).

Assim, atenta a data da morte do testador, H, é o Código Civil de 1867, com a redacção dada pelo Dec. nº 19126, de 16/12/1930, o aplicável.
Dispõe o art. 1866º daquele Código que "A disposição testamentária pela qual algum herdeiro ou legatário é encarregado de conservar e transmitir por sua morte a um terceiro a herança ou o legado, diz-se substituição fideicomissária".
São, portanto, elementos do fideicomisso a dupla liberalidade, o encargo de conservação e transmissão dos bens e a ordem sucessiva.
A Relação, interpretando a disposição testamentária em que o testador, H, nomeou sua testamenteira a aqui R. B e a instituiu única e universal herdeira de todos os seus bens, direitos e acções, mas, se ela falecer sem descendentes legítimos, "então institui por únicas e universais herdeiras de todos os seus bens, direitos e acções, em partes iguais, as casas de caridade desta vila que se achem legalmente constituídas" julgou, e bem, não se estar perante a figura do fideicomisso porque do contexto do testamento não resulta qualquer imposição à testamenteira de conservar a herança e de a impedir de alienar entre vivos o respectivo património.

Na verdade, estatui o art. 1761º, do mesmo Código, que "Em caso de dúvida sobre a interpretação da disposição testamentária observar-se-à o que parece mais ajustado com a intenção do testador, conforme o contexto do testamento".

Isto é, como se transcreve no acórdão do S.T.J. de 16/12/86, no B.M.J. nº 362, pgs. 557, a interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação, simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca (quando necessária, dizemos nós) que, a esse respeito puder reunir-se.
E, tem-se entendido constituir matéria de facto a determinação da vontade real do testador, quando apurada através de prova complementar, constituindo, no entanto, matéria de direito a determinação dessa vontade feita apenas com base no texto do testamento, e a verificação do mínimo de correspondência entre a vontade real e o contexto do testamento porque, nestes dois últimos casos, há lugar a interpretação e a aplicação de normas substantivas (art.s 1761º do Cód. Civil de 1867 e 238º nº 1 do actual Código)- neste sentido v. os Acs. do S.T.J. de 16/12/86 supra citado, de 17/01/89 no B.M.J. nº 383, pgs. 567, e de 13/02/96 na Col. jur. (Acs. S.T. J.), Ano IV, tomo 1, pgs. 83.

In casu, o texto do testamento é tão transparente e explícito que dele, inequivocamente, resulta, tal como a Relação ajuizou, que o testador não só não impôs à testamenteira, como acima se disse, o encargo de conservar a herança, como expressou a sua vontade no sentido de lhe deixar todos os seus bens e se, à morte dela, alguns restarem passarem eles para as casas de caridade de Olhão, legalmente constituídas e existentes à data do óbito da mencionada testamenteira.
Tal disposição testamentária encaixa-se perfeitamente no quadro normativo estabelecido no art. 1871º nº 2 do Cód. Civil de 1867 segundo o qual "são havidas como fideicomissárias e, como tais válidas num grau", "as disposições que chamarem um terceiro ao que restar da herança ou do legado por morte do herdeiro ou do legatário".
Constituem estas disposições os chamados fideicomissos de "resíduo" ou de "e o quod superavit".
Nestes casos, o herdeiro tem a faculdade de alienar por actos inter-vivos os bens da herança.
É esta faculdade o traço de distinção entre o fideicomisso de resíduo e a substituição entre o fideicomisso de resíduo e a substituição fideicomissária definida no art. 1866º porque naquele não existe o encargo que nesta existe de conservação e transmissão a um terceiro da herança ou legado.

Porém, aquela faculdade de alienar não é irrestrita.
De facto, vem estabelecido no § único o aludido artigo 1871º que "A faculdade de alienar atribuída ao fiduciário por força do n. 2, só lhe é permitida depois de o fiduciário não ter bens alguns próprios, com exclusão do prédio da sua residência habitual, e depois de ter obtido para isso autorização do fideicomissário, ou o seu suprimento judicial".
Portanto, a inexistência de bens próprios, com exclusão do prédio da residência habitual, e a autorização do fideicomissário, ou o seu suprimento judicial, são requisitos da faculdade de alienação pelo fiduciário.
E a clareza do texto da lei não deixa dúvidas de que é necessário a verificação cumulativa desses dois requisitos para que o fiduciário possa alienar inter-vivos os bens da herança.
E é esta limitação da liberdade de alienar imposta ao fiduciário, tradutora de uma tendência de conservação dos bens, que faz aproximar os fideicomissos de "resíduo" dos regulares.
Por isso, como decorre do nº 2 do aludido art. 1871º, o legislador submeteu os fideicomissos de "resíduo" ao mesmo regime dos regulares.
Debruçando-nos sobre o caso aqui em apreço há que ter em conta que sendo, como se disse, a inexistência de bens próprios, com exclusão do prédio de residência habitual do fiduciário, e a autorização do fideicomissário ou o seu suprimento judicial elementos constitutivos do direito de alienar, competia à R. B, a fiduciária, a prova da sua verificação na venda do bem da herança que efectivou pela escritura de 16/06/86 (art. 342º nº 1 do Cód. Civil).
Ora, estando provado (v. item 8) do elenco dos factos provados) que essa venda foi efectuada pela B sem autorização da A. ou o seu suprimento judicial, está-se perante um acto praticado contra disposição injuntiva da lei (§ único do art. 1871º), o que o torna nulo.
Logo, correcta foi a decisão da Relação ao declarar a nulidade daquela venda e, por arrastamento, a das vendas efectuadas pelas escrituras de 27/06/91 e 02/04/92.

Termos em que se negam as revistas.
Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 23 de Outubro de 2003
Abílio Vasconcelos,
Duarte Soares,
Ferreira Girão.