Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24285/15.9T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PEDRO LIMA GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
MORTE
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
DESCENDENTE
REGIME APLICÁVEL
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / LOCAÇÃO / ARRENDAMENTO DE PRÉDIOS URBANOS / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS DO ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS.
Doutrina:
- Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, 2009, p. 139.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º E 1111.º.
REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU): - ARTIGO 85.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 4.
Sumário :
I - O contrato de arrendamento para habitação celebrado em 1965 transmitiu-se, por morte do primitivo arrendatário ocorrida em 1977, à sua cônjuge – arts. 1111.º do CC, na redacção vigente à data do óbito.

II - A transmissão, por morte da arrendatária em 2001, do arrendamento à sua filha, a ré, regula-se pelo RAU então em vigor – art. 12.º do CC.

III - O art. 85.º, n.os. 1, al. d), e 4, do RAU permitia a transmissão do arrendamento, por morte do arrendatário, aos descendentes que vivessem há mais de um ano com o cônjuge falecido.

IV - A verificação da previsão referida em III, determina que se considere transmitido para a ré o direito de arrendamento e se julgue improcedente a ação de reivindicação.

Decisão Texto Integral:                          


I Relatório

1. AA e BB intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC, pedindo que se reconheça e condene a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o imóvel, condenando-se ainda a Ré a entregá-lo livre e desocupado de pessoas e bens, bem como se condene a Ré a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia de €286,00 por cada mês de ocupação desde a citação e até efetiva restituição.

Alegam, em síntese, que: são os legítimos donos e proprietários do imóvel urbano sito em ..., tendo-o adquirido por sucessão de seus pais;

 A Ré vem ocupando tal imóvel, recusando-se a entregá-lo aos Autores, ofendendo dessa forma o seu direito de propriedade.

2. Citada, a Ré contestou, excecionando que ocupa legitimamente o local, pois aquele imóvel foi arrendado pelo pai dos autores ao pai da ré; que após o falecimento deste, o arrendamento transmitiu-se para a sua mãe e, com o óbito desta, para si, mantendo-se o referido contrato de arrendamento em vigor desde então e até ao momento atual, tendo sempre sido pagas as rendas.

Invoca a exceção do abuso do direito dos Autores, pois que aqueles sempre conheceram a relação contratual que legitima a ocupação da Ré do imóvel, sempre tendo recebido as respetivas rendas.

Deduziu reconvenção “por mera cautela de patrocínio”, pedindo a condenação dos Autores a pagarem-lhe a quantia de €5.000,00, a título de obras efetuadas no local.

Pedem também a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização em valor a fixar pelo tribunal por terem falseado uma realidade que bem conhecem e omitirem factos essenciais para a descoberta da verdade.

3. Os Autores responderam à contestação/reconvenção, impugnando os factos ali alegados, afirmando nunca terem conhecido e/ou reconhecido a Ré como arrendatária, pois que, até pela distância a que residem (em ... e no ...) apenas agora tomaram conhecimento do arrendamento ao pai da Ré e transmissão do mesmo à sua mãe, transmissão que apenas opera em um grau.

4. Foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador do processo, que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.

5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença final, que decidiu:

“Julgo a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, por também parcialmente provadas e, consequentemente, decido:
A-Condenar a ré, CC, a reconhecer que os autores AA e BB, são donos e legítimos proprietários do imóvel urbano sito em ..., com a área total de 328 metros e coberta 121,925 metros, composto por casa de rés-do-chão e logradouro, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 1836/20021031 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 6190;

B- Condenar a ré a entregar aos autores o imóvel acima identificado livre e devoluto de pessoas e bens;

C- Condenar a mesma ré a pagar aos autores, a título de indemnização, a quantia de 39,41€ (trinta e nove euros e quarenta e um cêntimos) mensais, contados desde a citação e até à efectiva restituição do imóvel livre de pessoas e bens;

D- Condenar os autores/reconvindos AA e BB, a pagar à ré/reconvinda CC, a quantia de 3.700,00€ (três mil e setecentos euros), a título de benfeitorias;

E- Absolvendo autores e ré dos demais contra si peticionado.”

6. Não se conformando com a decisão, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

7. O Tribunal da Relação do Porto veio a julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

“em julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando-se em consequência improcedentes os pedidos formulados sob as alíneas c) e d) da p.i, absolvendo-se a ré dos pedidos de entrega do imóvel ora reivindicado aos autores, bem como da condenação em pedido de indemnização.

Fica ainda prejudicada a condenação dos AA/reconvindos no pedido reconvencional, uma vez que aquele foi formulado subsidiariamente para o caso da procedência total da acção principal, circunstância que deixou de subsistir com a revogação parcial da sentença.”

8. Inconformados com tal decisão, os Autores vieram interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. No entender dos ora recorrentes afigura-se incorreta a decisão do Tribunal da Relação do Porto na aplicação do Direito ao caso concreto.

2ª. Estamos na presença de um problema de aplicação de leis no tempo, o que impõe alguma reflexão prévia sobre as sucessivas leis que foram sucedendo no tempo relativas ao arrendamento (sucessão por morte), com efeitos nos contratos dos autos, tendo presente o princípio geral contido no artigo nº. 12 do Código Civil e bem assim as normas de cariz transitório contidas nas sucessivas "leis novas" que foram entretanto em vigor, regulando esta matéria.

3ª. Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em Julho de 1965, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57º., nº. 1.

4ª. O contrato dos presentes autos foi celebrado antes da vigência do RAU, logo prevê o nº. 1 do art. 28º. do NRAU que a estes contratos aplicam-se as disposições dos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU, ou seja, a estes contratos também se aplicam os artigos 57º. e 58º. do NRAU.

5ª. O art. 57º. do NRAU, com efeito, estabeleceu um regime transitório, quanto à transmissão por morte no arrendamento para habitação, aplicável aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL nº. 321-B/90, de 15 de outubro, como comprova o artigo o art. 27º. do NRAU, que estabelece:

"As normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo Decreto‑Lei nº.321-B/90, de 15 de outubro, bem como aos contratos para fins não habitacionais celebrados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº. 257/95, de 30 de setembro."

6ª. Um regime transitório semelhante foi também fixado para os contratos celebrados na vigência do RAU (art. 26.°, nº.s 1 e 2, do NRAU). O art. 57º., nº. 1, do NRAU sofreu, entretanto, alteração, decorrente da Lei nº. 31/2012, de 14 de agosto, nomeadamente no sentido de que a transmissão por morte no arrendamento para a habitação pode ser feita a "pessoa que com ele ("primitivo arrendatário") vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano".

7ª. O regime transitório, fixado no NRAU, continua a manter-se em vigor enquanto subsistirem os contratos de arrendamento para habitação celebrados antes ou durante a vigência do RAU, aplicando-se aos contratos de arrendamento para habitação posteriores o regime previsto no art. 1106º. do CC, consagrado pelo NRAU.

8ª. Tendo o contrato de arrendamento para a habitação dos autos sido celebrado em Julho de 1965, é aplicável o regime transitório do NRAU, nomeadamente o disposto no art. 57º., nº. 1.

9ª. O artigo 57º., nº. 1, alínea a) do NRAU dispõe, no que ora releva, e sob a epígrafe, "Transmissão por morte no arrendamento para habitação":

"1 - O arrendamento para habitação no arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado."

10ª. Este preceito, porém, não é aplicável ao caso dos presentes autos, porquanto a norma apenas se aplica às situações em que está em causa a "morte do primitivo arrendatário”.

11ª. Conforme refere Pinto Furtado "[f]alava-se de primitivo arrendatário  para exprimir que, em função das sobrevivências enumeradas nas alineas [do artigo 85°do RAU], a não caducidade só operava, em princípio, em um grau, isto ti, para o arrendatário (por direto arrendamento ou cessão a posição contratual) primeiro falecido."

12ª. Estamos perante regime transitório que difere amplamente quer daquele que o RAU previa quer do que foi consagrado pelo NRAU para os novos contratos.

13ª. Com efeito, e por um lado, os afins em linha recta ascendente e os conviventes em economia comum deixaram de ser beneficiários da transmissão por morte do arrendamento habitacional, sucedendo o mesmo com os descendentes que não sejam filhos (netos, por exemplo). Por outro lado, os membros da união de facto surgem agora colocados em primeiro lugar na ordem de transmissão, logo a seguir ao cônjuge, sendo que os ascendentes passaram a preferir aos filhos. Finalmente, quanto aos filhos e aos enteados fixou-se um limite etário que constitui um dos requisitos do direito à transmissão (alínea d), permitindo-se apenas a transmissão para os filhos e enteados maiores com idade inferior a 26 anos se frequentarem o 11º. ou 12º. ano de escolaridade, ou se tiverem uma "deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%" (alínea e).

14ª. 0s filhos e os enteados do primitivo arrendatário ocupam agora o último lugar na hierarquia dos beneficiários da transmissão por morte do direito do arrendatário, e não têm direito à transmissão caso sejam maiores e não se encontrem a estudar no 11º., 12º. anos ou ensino superior, nem tenham deficiência comprovada superior a 60%.

15ª. Efetivamente, para que o direito ao arrendamento se lhes transmita, a lei exige a verificação de uma de várias condições alternativas: tratar-se de filho ou enteado, com menos de um ano de idade à data do falecimento do arrendatário [1ª. parte da alínea d)]; menor de idade que conviva com o arrendatário há mais de um ano [2ª. parte da alínea d)]; com idade inferior a 26 anos que conviva com o arrendatário há mais de um ano e frequente o 11.° ou 12º. ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior [parte final da alínea d) do nº.1]; com idade igual ou superior a 18 anos que conviva há mais de um ano com o arrendatário e seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (1) [alínea e) do nº. 1].

16ª. Por conseguinte, a conclusão a retirar é que não assiste à ré/ora recorrida o direito à transmissão do arrendamento por a sua falecida mãe não deter na relação jurídica arrendatícia a posição de primitivo arrendatário, já que o arrendamento lhe foi transmitido por morte do anterior arrendatário, seu marido.

17ª. A intenção do legislador é nítida no que toca ao regime atual do direito de transmissão mortis causa, com o artigo 57° N.R.A.U. pretende que os contratos antigos acabem por caducar, em contrapartida revitaliza o regime do arrendamento pelo artigo 1106°.

18ª. Por todo o exposto deverá ser condenada a ré/ ora recorrida CC, a reconhecer que os autores/ora recorrentes AA e BB, são donos e legítimos proprietários do imóvel urbano em apreço, deverá também ser condenada a ré/ora recorrida a entregar aos autores/ora recorrentes o imóvel acima identificado livre e devoluto de pessoas e bens e condenar ainda a mesma ré/ora recorrida a pagar aos autores/ora recorrentes, a título de indemnização, a quantia de 39,41€ (trinta e nove euros e quarenta e um cêntimos) mensais, contados desde a citação e até à efectiva restituição do imóvel livre de pessoas e bens, como foi decidido e bem pelo Tribunal da primeira instância.

E concluem que deve dar-se provimento ao recurso, “revogando-se a decisão recorrida proferida pelo Tribunal da Relação do Porto por violação das disposições legais supra identificadas por desconformidade com decisões anteriores, sendo mantida a Douta Sentença do Tribunal de primeira instância.”

9. A Recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. Os Recorrentes intentaram acção declarativa contra a Recorrida com vista ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um imóvel sito na Rua ..., e condenação da Recorrida à entrega do prédio livre de pessoas e ao pagamento da quantia de €286,00 (duzentos e oitenta e seis euros) por cada mês de ocupação.

2ª. A Recorrida contestou, excepcionando a transmissão do arrendamento para si, por óbito de sua mãe, invocando ainda abuso de direito dos Recorrentes, deduzindo pedido reconvencional no valor de € 5.000,00 (cinco mil euros) e pedindo a condenação dos AA. em litigância de má-fé.

3ª. O Tribunal de primeira instância veio a julgar a acção e a reconvenção parcialmente procedentes.

4ª. Inconformada, a R. interpôs recurso para a Relação, fazendo impugnação da matéria de facto, com base em erro de julgamento, pretendendo a modificação quanto à matéria de facto.

5ª. O Tribunal da Relação do Porto veio a manter a matéria de facto, mas, alterando a aplicação dos factos ao direito, absolveu a Recorrida do pedido de entrega do imóvel e da condenação no pedido de indemnização.

6ª. Inconformados, os AA. interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria de Direito, que se cinge à existência de erro na interpretação e aplicação das convocadas normas jurídicas relativas ao arrendamento, que desembocarão no reconhecimento, ou não, da existência de um contrato de arrendamento a favor da R., o qual será apto a tornar improcedente a acção de reivindicação intentada pelos AA.

7ª. O diferendo centra-se, agora, na aplicabilidade ao caso da norma constante do art. 85° do RAU.

8ª. O art. 85° do RAU prescrevia que o arrendamento para fins habitacionais não caducava por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver, nomeadamente, descendente que com ele convivesse há mais de um ano.

9ª. Sabido é que a lei só se aplica aos factos que se operarem após a sua entrada em vigor e a sua retroactividade está sujeita aos limites constantes do art. 12°, nº. 2 do C.Civil.

10ª. No caso, o que está em causa é um conflito de leis que, à primeira vista, poderá mandar que se aplique, ora o RAU, ora o NRAU.

11ª. O facto que deu origem à transmissão da posição de arrendatário da mãe da R. para esta ocorreu antes da entrada em vigor do NRAU, isto é, em 2001.

12ª. O NRAU é, portanto, um diploma legal que só entrou em vigor no ano de 2006 e que passa, desde esse momento, a regular o conteúdo dos contratos de arrendamento.

13ª. No momento em que falece a mãe da R. - 2011 - estava ainda em vigor o RAU, que previa que a transmissão da posição de arrendatário pela cessão da posição contratual ao descendente que, independentemente da idade, vivesse com o primitivo arrendatário há mais de um ano.

14ª. A situação jurídica de arrendatária consolidou-se na esfera jurídica da ora Recorrida ainda ao abrigo do RAU.

15ª. Reforça-se que o que está em causa, na transmissão da posição de arrendatário não é o conteúdo da relação jurídica que se vai manter ao longo do tempo, mas um facto isolado, que opera uma mudança dos sujeitos da relação contratual, mas nada mais.

16ª. É que o conteúdo do contrato vai manter-se e vai ser regulado pelas leis novas e leis antigas, conforme as suas disposições.

17ª. Mas o facto jurídico, a transmissão da posição de arrendatário, que se verifica e se esgota no momento em que ocorre, ainda que os seus efeitos venham a reflectir-se também no futuro, vai ser regulado pela lei em vigor no momento em que ele se dá.

18ª. Isto é o mesmo que dizer que desde 2001, data da morte da sua mãe, é a R. a arrendatária dos AA., independentemente de estes terem reconhecido essa qualidade, ou não, porquanto, ao abrigo da lei aplicável no momento em que faleceu a primitiva arrendatária, havia lugar à transmissão da posição.

19ª. E a posição de arrendatária consolidou-se na esfera jurídica da Recorrida ainda em 2001, evento que fixa, ao abrigo do RAU, a transferência da qualidade de arrendatária para a esfera jurídica da Recorrida.

20ª. O momento que estabiliza a posição da R. é o momento da cessão na posição de arrendatária, que se esgotou com o decesso da sua mãe.

21ª. A continuidade dos actos subsequentes correspondentes à manutenção do contrato de arrendamento (o pagamento das rendas, a ocupação do arrendado...), podem estar à mercê das alterações legislativas.

22ª. Donde, e conforme se lê no Aresto do Tribunal da Relação do Porto ("entendemos que o NRAU não tem aplicação na situação em apreço, em que a morte da "transmissária" ocorre em data anterior à sua vigência, impondo-se outrossim a aplicação da lei vigente nessa data, sendo a ocorrência do evento morte que determina, nessa altura, a caducidade ou não do contrato de arrendamento em vigor") à cessão da posição contratual aplica-se o RAU, mas ao contrato de arrendamento, de natureza continuada, aplica-se o NRAU.

23ª. Enfim, o arrendamento não caducou com a morte da primitiva arrendatária, antes se transmitiu à Recorrida

Sem conceder,

24ª. O Supremo Tribunal de Justiça entendeu, no Ac. de 17.10.2013, proferido no Processo Nº. 1267/10.1TBCBR.C1.S1 que «a figura do abuso do direito está na lei para tornar mais ético o nosso ordenamento jurídico, com vista a impedir a conjugação de forças antijurídicas que, por vezes, a imposição fria e rígida da lei possa levar a cabo, em confronto com o ideal de justiça que sempre deve andar indissoluvelmente ligado à aplicação do direito e dentro da máxima "perde o direito quem deve abusa" e em oposição ao velho adágio romano "qui suo jure utitur neminem laedit».

25ª. Abuso do direito que encontra consagração legal no art. 334º do Ccivil e pode consubstanciar-se em vários comportamentos, nomeadamente num venire contra factum proprium, exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pela pessoa que o exerce.

26ª. Baseia-se num facto apto a gerar confiança, convencendo uma pessoa normal, que depois é contradito sem que tal fosse de esperar.

27ª. São pressupostos do venire contra factum proprium:
a) O comportamento anterior dos AA. susceptível de servir de base a uma situação objectiva de confiança - os AA. deixaram que a R. se mantivesse a habitar o arrendado, pagando as rendas e realizando obras de conservação durante catorze anos.
b) A imputabilidade das condutas aos AA. - a manutenção do contrato de arrendamento após o decesso da mãe da Recorrida (o facto gerador de confiança) e depois a propositura da acção (o venire) são imputáveis aos Recorrentes.
c) A boa fé da R. - a R. agiu, durante 14 anos, de boa fé, sempre pagou as rendas, fez obras no arrendado e comunicou-se com os Recorrentes por carta.
d) O animus de confiança - a R. orientou a sua vida, as suas acções (traduzidas no dito pagamento de rendas, na habitação do locado, na realização de obras) com base na circunstância de os Recorrentes nunca durante catorze anos se terem manifestado contra a manutenção do contrato de arrendamento.
e) O nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o investimento que a Recorrida nela fez; se os AA. não tivessem agido com intenção de permitir que a R. se mantivesse na posição de arrendatária, nunca esta teria procedido a obras no arrendado, a título de exemplo. Simplesmente, a R. confiou que o facto de os AA. receberem as rendas e nunca se terem oposto à manutenção do contrato de arrendamento, legitimava uma verdadeira relação contratual, comportando-se, por isso, conforme os ditames da boa fé na execução dos contratos.

28ª. O Tribunal da Relação do Porto deu como assente que foi celebrado pelos pais da R. um contrato de arrendamento sobre o imóvel em causa e que em 2001 faleceu a mãe da Recorrida, com quem esta residia, adquirindo a R. a qualidade de arrendatária, por aplicação do RAU.

29ª. Deu o Tribunal da Relação também como assente que a R. fez vários depósitos de renda na conta do ..., em conta titulada por DD, pagos mesmo após o decesso da sua mãe.

30ª. Manteve ainda como provada a realização de obras no imóvel pela Recorrida, no valor de €5.100,00 (cinco mil e cem euros).

31ª. Atento o decurso do tempo - catorze anos -, o recebimento das rendas, a realização de obras, os AA. sabiam que a R. habitava o local, e não podiam desconhecer essa circunstância.

32ª. Factualidade que justifica que a R. podia, fundadamente, confiar que, tanto tempo depois do falecimento da sua mãe, mantendo-se em vigor o contrato de arrendamento, os AA. não viriam intentar acção sustentando-se na não existência de contrato de arrendamento entre as partes, pela circunstância de a R. não ter sucedido à sua mãe na relação negocial.

33ª. É inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelos Recorrentes, porque trai a confiança que eles mesmos geraram na Recorrida pelo comportamento que durante catorze longos anos assumiram.

34ª. Ainda que os AA. não reconhecessem à R. a condição de arrendatária - o que só por mera hipótese e muito remota se admite - a verdade é que desde o decesso da primitiva arrendatária até ao momento em que a acção foi instaurada volveram catorze anos.

35ª. Não podem os Recorrentes pretender que a Recorrida desocupe o arrendado e, sem observância dos requisitos que a lei impõe para a denúncia do contrato de arrendamento, fazer cessar o contrato pela razão de haver uma via aparentemente mais simplista para conseguir o mesmo efeito jurídico.

36ª. Os AA. usam de forma abusiva do direito que a lei lhes confere, sendo possível subsumir a sua conduta à figura jurídica do abuso do direito - cfr. art. 334º do C.Civil.

37ª. O princípio da confiança é um princípio ético basilar no nosso ordenamento jurídico, que os Recorrentes não estão a saber respeitar, não merecendo, por isso, protecção jurídica.

38ª. 0 Ac. do STJ, de 02.07.2015, no Processo Nº. 5024/12.2TTLSB.L1.S1 prescreve que "o erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto/ de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro”.

39ª. O Tribunal da Relação decidiu no sentido de considerar que a Recorrida sucedeu à sua mãe no contrato de arrendamento celebrado entre esta e os Recorrentes, pela aplicação ao caso do regime previsto no RAU.

40ª. Forçoso é concluir que não há erro de julgamento, porquanto entendeu a Relação do Porto que "II - Tendo sido provada a existência de um contrato de arrendamento tendo por objecto o prédio reivindicado, celebrado entre o pai dos AA e o pai da Ré, que se transmitiu em 1977 para o cônjuge sobrevivo, a questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu para a ré, na qualidade de filha que no caso em apreço, sempre habitou o mesmo, com a mãe, ou caducou, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário. III - Quando faleceu a arrendatária, cônjuge do primitivo arrendatário, vigorava o RAU aprovado pelo DL 321-8/90 de 15.10, encontrando-se em vigor o art. 85 nº. 3 deste diploma que admitia uma transmissão em dois graus, em que o direito ao arrendamento, que por morte do primitivo arrendamento já se transmitira ao respectivo cônjuge, pode transmitir-se ainda, por morte deste, aos parentes ou afins em linha recta do primitivo arrendatário com menos de um ano ou que vivessem pelo menos há um ano com o cônjuge falecido, sendo esta a norma aplicável e não o regime dos artigos 57º e ss do NRAU aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro."

41ª.O que, conjugadamente com tudo o que nas presentes contra-alegações, não merece à Recorrida qualquer reparo, como também não deve merecer ao Supremo Tribunal de Justiça.

E conclui pela improcedência do recurso.

10. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se ocorreu a transmissão do arrendamento para a Ré ou se o contrato de arrendamento caducou.

III. Fundamentação.

1. As instâncias deram como provada a seguinte factualidade:

1.1. Mostra-se inscrito e descrito na respectiva conservatória de registo predial o direito de propriedade dos autores AA e BB, sobre o imóvel urbano sito em ..., com a área total de 328 metros e coberta 121,925 metros, composto por casa de rés-do-chão e logradouro, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 1836/20021031 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 6190 (docs. de fls. 34 a 37, que se dão por reproduzidos);

1.2. Tal imóvel veio à titularidade dos autores, irmãos entre si, por o haverem herdado de seu pai, EE, que, por sua vez, o havia adquirido em 12.09.1945 (docs. juntos com a petição inicial);

1.3. Pelo menos desde o ano de 2001 que a ré CC se arroga inquilina/arrendatária do imóvel acima referido, contactando os autores no sentido de averiguar se estariam interessados em vender-lhe o imóvel;

1.4. Os autores residem em ... e no ..., respectivamente, e a ré recusa entregar-lhes o imóvel;

1.5. Por contrato de arrendamento para habitação celebrado em Julho de 1965, o pai dos aqui autores, EE casado com FF, deu de arrendamento a ... casado com GG e pai da aqui ré, mediante o pagamento de uma renda mensal de 1.300$00 (€ 6,48), o imóvel identificado nos autos (doc. de fls. 62 a 68);

1.6. Por falecimento em 11.02.1977 do pai da aqui ré, o arrendamento transmitiu-se à sua esposa, GG, mãe da aqui ré;

1.7. A mãe da ré, por sua vez, veio a falecer em 24.03.2001;

1.8. Após o óbito da sua mãe, a ré, pretendendo manter-se a residir no imóvel, pois ali sempre viveu juntamente com seus pais, contactou um tal Sérgio Rodrigues, que ali se deslocava a receber as rendas, que a informou de que a autora residia em ..., remetendo-lhe então a ré a missiva já acima referida;

1.9. Foram estabelecidos vários contactos entre a autora e a ré por intermédio de advogados, mas não foi possível obter consenso quanto ao valor, pelo que a compra e venda nunca se concretizou;

1.10. A ré continuou a pagar o valor das rendas relativas ao imóvel, na quantia de 39,41 euros mensais;

1.11. A ré efectuou no imóvel as obras referidas a fls. 297 e 298, num total de 5.100,00 euros;

1.12. A ré vinha depositando por transferência bancária o valor da “renda” e, em Julho de 2016, tal valor veio devolvido para a sua conta, com indicação de “dvl DD”, tendo sido posteriormente informada de que tal conta bancária havia sido encerrada/cancelada.

 

2. Factos não provados:

“No essencial, não resultaram provados quaisquer outros factos, considerando não provados os restantes factos alegados pelas partes nos seus articulado ou provados apenas como acima constam.

Nomeadamente, não resultou provado que:

- O pai dos autores tenha, em data desconhecida, cedido o imóvel em causa a um amigo, fruto da relação de amizade existente entre ambos;

- Que os autores sempre tenham reconhecido a ré como arrendatária do imóvel;

- Que os autores sempre tenham conhecido a situação contratual relativa ao mesmo imóvel.”

3. A transmissão do arrendamento

Os Autores intentaram ação de reivindicação, alegando que são proprietário do prédio que identificam e que a Ré ocupa o imóvel sem qualquer título que legitime essa ocupação, pelo que reclamam que o imóvel volte à sua posse.

A Ré defende-se alegando que é arrendatária do imóvel, porquanto o contrato de arrendamento se transmitiu por morte da sua mãe, que ocorreu em 24 de março de 2001, e que o arrendamento já se havia transmitido para a sua mãe por óbito do seu pai (ocorrido em 11 de fevereiro de 1977, primitivo arrendatário.

O Tribunal de 1ª instância entendeu que era aplicável o artigo 57º do NRAU (aprovado pela Lei nº6/2006, de 27 de fevereiro) e que a transmissão do arrendamento para habitação por morte do arrendatário “só se processa, em princípio, por uma vez e a favor do cônjuge do primitivo arrendatário, da pessoa que com o primitivo arrendatário vivesse em união de facto, ou do filho ou enteado do primitivo arrendatário que se encontre nas situações previstas nas alíneas d) ou e) do nº1 do art. 57º. Em todas as outras hipóteses não subsumíveis na previsão desta norma, é o interesse do senhorio que prevalece, caducando o contrato de arrendamento”, tendo concluído pela procedência da ação e determinado a restituição do imóvel aos Autores.

Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto julgado procedente o recurso, afirmando que o arrendamento se havia transmitido à Ré, porquanto, atenta a data da morte da mãe da Ré, era aplicável o artigo 85º do RAU, aprovado pelo Decreto – Lei nº321-B/90, de 15 de outubro.

Os Autores insurgiram-se contra esta decisão, alegando que, no caso dos autos, era aplicável o NRAU, não podendo ocorrer duas transmissões do arrendamento, sendo que a mãe da Ré não era a primitiva arrendatária.

Vejamos.

O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence (nº1 do artigo 1311º do Código Civil).

Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (nº2 do artigo 1311º do Código Civil).

No caso presente, não se questiona o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio em causa; contudo, a Ré alega que tem título legítimo para ocupar o prédio dos Autores, por o contrato de arrendamento não ter caducado pela morte de sua mãe mas que o contrato de arrendamento se transmitiu porquanto sempre residiu com a sua mãe.

Também, no caso dos autos, não se questiona que o contrato de arrendamento foi celebrado, verbalmente, em julho de 1965, entre o pai dos Autores e o pai da Ré e que este faleceu no dia 11/02/1977, pelo que o direito ao arrendamento se transmitiu ao seu cônjuge, a mãe da Ré, GG, por força do que dispunha o nº1 do artigo 1111º do Código Civil, na redação então em vigor aquando da ocorrência do óbito.

A divergência entre as partes e que se manifestou também nas decisões judiciais, prende-se com a questão de saber se é aplicável a disposição do RAU (artigo 85º) ou do NRAU (artigo 57º).

Assim:

Nos termos do disposto no artigo 85º:

1 –O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente que com ele convivesse há mais de um ano;
c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);
e) Pessoa que com ele viva há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens.

2. Caso ao arrendatário não sobrevivam pessoas na situação prevista nas alíneas b), c) e d) do nº1, ou estas não pretendam a transmissão, é equiparada ao cônjuge pessoa que com ele vivesse em união de facto nos termos da presente lei.

3. Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso.

4. A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.

Posteriormente, o RAU veio a ser revogado, e o NRAU dispunha no seu artigo 57º que:
1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11º ou o 12º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.
2. Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3. O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5. Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com a idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6. Salvo no caso previsto na alínea e) do nº1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11º ou o 12º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.

Ora, do confronto entre estas duas disposições legais resultam diversas soluções encontradas pelo legislador.
 Qual dos regimes é aplicável?
O nº1 do artigo 59º do NRAU refere que este diploma se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
Por sua vez, o nº1 do artigo 26º, normas transitórias, refere-se que os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº321-B/90, de 15 de outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes.
À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57º e 58º (nº2 do artigo 26º).
Por outro lado, o artigo 27º prevê que as normas do presente capítulo aplicam-se aos contratos de arrendamento para habitação celebrados antes da entrada em vigor do RAU.

Para a resolução desta questão importa ter presente o disposto no artigo 12º do Código Civil:
1.A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

De tudo o que se refere, e tendo presente o disposto no artigo 12º do Código Civil, o regime da transmissão do arrendamento para habitação, não obstante o contrato de arrendamento ter sido celebrado em 1965, é o regime vigente à data do facto potencialmente idóneo a determiná-la, isto é, no caso presente, a data do óbito da mãe da Ré (24 de março de 2001), então arrendatária (a quem havia sido transmitido o arrendamento por morte do pai da Ré, primitivo arrendatário), e em plena vigência do RAU.

Como referem, com clareza, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, “nas acções intentadas após o início da vigência do NRAU, em princípio, é aplicável o novo regime do arrendamento urbano, ainda que os factos em discussão tenham ocorrido no domínio da lei antiga. O que importa é que esses factos subsistam e que possam produzir o efeito pretendido na vigência da nova lei. Se os factos ocorreram no domínio da lei antiga e aí produziram já plenos efeitos, é-lhes aplicável a lei então vigente, como sucede, por exemplo, com a transmissão do direito ao arrendamento por morte do arrendatário, ocorrida na vigência do RAU”.
(in Arrendamento Urbano, 2009, pág.139)

                  Ora, no caso dos presentes autos, a mãe da Ré faleceu no dia 24 de março de 2001, em plena vigência do regime do RAU, sendo possível, nos termos do disposto no artigo 85º do RAU, a transmissão do arrendamento mesmo que o arrendatário não fosse o primitivo arrendatário (como se referiu, o primitivo arrendatário era o falecido pai da Ré), podendo o direito ao arrendamento transmitir-se, por morte do arrendatário, aos parentes ou afins em linha reta do cônjuge sobrevivo com menos de um ano ou que vivessem pelo menos há mais de um ano com o cônjuge falecido.

A Ré é filha do primitivo arrendatário e do cônjuge sobrevivo a quem havia sido transferido o direito ao arrendamento, vivendo no locado desde sempre (“sempre ali viveu juntamente com seus pais” – facto provado), pelo que o direito ao arrendamento se transmitiu para a Ré, que passou a ter um título que legitima a ocupação do prédio.

  Deste modo, não merece censura a decisão do Tribunal da Relação do Porto que aplicou ao caso presente o regime previsto no RAU.

 Por outro lado, nenhuma questão é suscitada pelos Autores no que concerne à  necessária comunicação que a Ré tinha o dever de efetuar nos termos do disposto no artigo 89º do RAU.

                  Por todo o exposto, o recurso terá de improceder.

                 
IV. Decisão
Posto o que precede, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.


As custas ficarão a cargo dos Recorrentes.

Lisboa,19 de junho de 2019

(Processado e integralmente revisto pelo relator, que assina e rubrica as demais folhas)

 (Pedro de Lima Gonçalves)


                 

 (Fátima Gomes)

              

 (Acácio das Neves)