Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3755/05.2TDPRT.P1-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: JUIZ
IMPEDIMENTOS
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
ADVOGADO
Apenso:
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA
Decisão: INDEFERIDO
Sumário :

I - Os fundamentos de dúvida sobre a imparcialidade de um juiz podem conduzir à impossibilidade de o juiz exercer a sua função num processo, a qual deve ser declarada independentemente de qualquer objecção suscitada pelos participantes processuais – impedimentos –, ou podem dar aos sujeitos processuais a possibilidade de recusarem a intervenção do juiz – suspeições.
II - O art. 43.º, n.º 1, do CPP não indica taxativamente os fundamentos de suspeição – e, na verdade, são várias as razões que podem levar a pôr em causa a capacidade de um juiz se revelar imparcial –, o que releva não é tanto o facto de o juiz conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, págs. 303/304.
III - É certo que o filho da requerente do pedido de escusa é estagiário de advocacia, tendo como patrono o advogado subscritor da motivação de recurso que deve ser apreciada pela mesma no Tribunal da Relação onde exerce funções; tal circunstancialismo não conforma qualquer perigo de a intervenção da requerente no julgamento do recurso ser encarada, pela comunidade, com desconfiança e suspeita sobre a sua imparcialidade.
IV - Desde logo, porque na base dele, não se pode estabelecer um relacionamento especial, pessoal e directo entre a requerente e os associados e colaboradores da sociedade de advogados, de modo a criar a suspeita de que a requerente não seja capaz de conservar a sua imparcialidade nos processos em que qualquer deles tenha intervenção e, por outro lado, o relacionamento do filho da requerente com a mesma sociedade, particularmente com o advogado seu patrono, não só não se reflecte, directamente, na esfera pessoal da requerente, como não implica, ainda que na perspectiva exclusiva do filho da requerente, uma qualquer forma de dependência pessoal condicionante de lhe ser atribuído o título de advogado – cf. arts. 184.º, 185.º, n.º 1, 186.º, n.ºs 4 e 5, todos do EOA..
V - Diferente seria se o próprio filho da requerente, ainda que sob orientação do patrono, exercesse funções próprias de advogado no processo em causa – cf. art. 189.º, n.º 1, al. b), do mencionado Estatuto.
VI - Uma vez que as razões em que se funda o pedido de escusa não consubstanciam um condicionalismo adequado a que a sua intervenção no julgamento do recurso do Proc. n.º …, possa ser encarada com desconfiança sobre a sua imparcialidade, de modo a que haja a necessidade de a defender de qualquer suspeita de não ser capaz de a conservar, indefere-se o pedido.



Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. A Exm.ª Juiz de Direito, auxiliar no Tribunal da Relação do Porto, AA veio apresentar pedido de escusa de intervir no processo de instrução n.º 3755/05.2TDPRT.P1, em que são assistentes BB e CC e arguida CC, que lhe foi distribuído em razão do recurso do despacho de não pronúncia, nele interposto, para o Tribunal da Relação do Porto.

Invoca, em síntese, que:

– a arguida, nesse processo, constituiu mandatários os advogados associados e colaboradores da sociedade de advogados M...V..., N...S... e Associados, entre os quais se conta o Sr. Dr. A...E...;

– o filho da requerente DD, estagiário de advocacia, presta serviços jurídicos para a referida sociedade, sendo que tem como patrono o Sr. Dr. A...E..., o qual, justamente, representa a arguida, naquele processo, tendo, inclusivamente, subscrito a resposta ao recurso que deve ser apreciado na relação.

E, em face desse circunstancialismo, entende “existir motivo sério e grave que pode gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade do ponto de vista de um cidadão médio, representativo da comunidade, e como tal correr o risco de a sua intervenção nos referidos autos de recurso ser considerada suspeita, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”.

Juntou cópias da procuração de EE a favor dos associados e colaboradores da referida sociedade de advogados, da motivação do recurso e da resposta ao mesmo.

2. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II

1. Os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e no exercício da função jurisdicional são independentes e apenas estão sujeitos à lei (artigos 202.º e 203.º da Constituição da República).

Sendo os tribunais no seu conjunto – e cada um dos juízes de per si – órgãos de soberania e pertencendo só a eles a função jurisdicional, tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais, reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam, é condição irrenunciável de toda a verdadeira jurisprudência (1) .

Através da independência dos juízes asseguram-se os fundamentos de uma actuação livre dos tribunais perante pressões que se lhes dirijam do exterior. «Isto não basta, porém, para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a “imparcialidade” dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar.» (2)

Os fundamentos de dúvida sobre a imparcialidade de um juiz podem conduzir à impossibilidade de o juiz exercer a sua função num processo, a qual deve ser declarada independentemente de qualquer objecção suscitada pelos participantes processuais – impedimentos – ou podem dar aos sujeitos processuais a possibilidade de recusarem a intervenção do juiz – suspeições.

Também o próprio juiz pode pedir ao tribunal imediatamente superior que o escuse de intervir quando se verificarem as condições indicadas nos n. os 1 e 2 do artigo 43.º do Código de Processo Penal.

2. Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a intervenção de um juiz no processo penal pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Não sendo, agora, taxativamente indicados os fundamentos de suspeição – e, na verdade, são várias as razões que podem levar a pôr em causa a capacidade de um juiz se revelar imparcial –, o que releva não é tanto o facto de o juiz conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados (3) .

O que significa que o que é decisivo não é, afinal, determinar se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade mas se existe o perigo de a sua intervenção no processo ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade.

Não importa que, na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se, em relação com o processo, poderá ser reputado imparcial, de modo a ser de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade (4).

3. Não se põe em causa que o filho da requerente seja estagiário de advocacia e tenha como patrono o Sr. Dr. A...E....

Comprova-se, por outro lado, que a arguida, no processo, constituiu seus procuradores os associados e colaboradores da “Sociedade M...V..., N...S... e Associados – Sociedade de Advogados”, contando-se, entre eles, o Sr. Dr. A...E..., e que a resposta ao recurso está assinada por dois advogados, aceitando-se que uma das assinaturas possa ser a do Sr. Dr. A...E....

4. Este circunstancialismo não conforma, a nosso ver, qualquer perigo de a intervenção da requerente no julgamento do recurso ser encarada, pela comunidade, com desconfiança e suspeita sobre a sua imparcialidade.

Desde logo, porque, na base dele, não se pode estabelecer um relacionamento especial, pessoal e directo, entre a requerente e os associados e colaboradores da mencionada sociedade de advogados, de modo a criar a suspeita de que a requerente não seja capaz de conservar a sua imparcialidade nos processos em que qualquer deles tenha intervenção.

Por outro lado, o relacionamento do filho da requerente com a mesma sociedade de advogados, particularmente com o Sr. Dr. A...E..., seu patrono, não só não se reflecte, directamente, na esfera pessoal da requerente como não implica, ainda que na perspectiva exclusiva do filho da requerente, uma qualquer forma de dependência pessoal condicionante de lhe ser atribuído o título de advogado.

Não se desconsiderando o papel fundamental que os patronos desempenham ao longo de todo o período de estágio, no cumprimento da sua função de iniciar e preparar os estagiários para o exercício pleno da advocacia, deve ter-se presente que a orientação do estágio cabe à Ordem dos Advogados e que o sistema de avaliação é assegurado pelos serviços de estágio da mesma Ordem dependendo a atribuição do título de advogado de aprovação em exame nacional de avaliação e agregação (cfr. artigos 184.º, 185.º, n.º 1, e 186.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados (5)

Por isso, o relacionamento entre o filho da requerente e o seu patrono, enquanto componente de uma formação alargada, complementar e progressiva, vocacionado para lhe transmitir a vivência da profissão de advogado (artigo 186.º, n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados), não é de molde a criar suspeitas sobre a imparcialidade da requerente nos processos em que o patrono do seu filho tenha intervenção.

Diferente seria se o próprio filho da requerente, ainda que sob orientação do patrono, exercesse funções próprias de advogado no processo em causa (artigo 189.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto da Ordem dos Advogados), nomeadamente, no âmbito da invocada prestação de serviços jurídicos para a referida sociedade de advogados. Mas esse não é o caso. Ou, pelo menos, a requerente não diz que o seja.

Concluímos, assim, que as razões em que a Exm.ª Juiz requerente funda o seu pedido de escusa não consubstanciam um circunstancialismo adequado a que a sua intervenção no julgamento do recurso, no processo de instrução n.º 3755/05.2TDPRT.P1, possa ser encarada com desconfiança sobre a sua imparcialidade, de modo a que haja a necessidade de a defender de qualquer suspeita de não ser capaz de a conservar.

III

Termos em que, se acorda em indeferir o pedido de escusa.

Não há lugar a tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 09/12/2010

Isabel Pais Martins (relatora)
Manuel Braz
Santos Carvalho
_________________

(1) Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I Volume, Coimbra Editora, Limitada, 1974, pp. 303-304.

(2) Ibidem, p. 315.

(3) Ibidem.

(4) Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1955, p. 237..

(5) Aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.).