Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3683
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: VENDA A DESCENDENTES
ANULAÇÃO
PROCURAÇÃO
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
DECLARAÇÃO NÃO SÉRIA
RESERVA MENTAL
NULIDADE
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: SJ200711080036837
Data do Acordão: 11/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Não obstante o vício resultar dos factos provados, transitado que seja em julgado o despacho do juiz da primeira instância que não admitiu o pedido superveniente de anulação do contrato de compra e venda de identificado prédio com fundamento na falta de consentimento de irmãos dos compradores para a venda feita pela mãe a outros dos seus filhos, não pode o Supremo Tribunal de Justiça, por virtude do caso julgado formal, apreciá-lo no recurso de revista.
2. Não verificados os factos integrantes da reserva mental, das declarações não sérias ou das declarações falseadas produzidas na escritura de compra e venda a si próprios do referido prédio com base em procuração nesse sentido emitida pela respectiva proprietária, não pode proceder o pedido de declaração de nulidade formulado pelos irmãos dos outorgantes.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

"AA" e BB, CC e DD, EE e FF, e GG e HH intentaram, no dia 24 de Março de 2000, contra II e JJ, KK e LL, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração da nulidade de identificada escritura de compra e venda e o cancelamento do registo predial e a condenação dos réus a restituírem-lhe o que embolsarem por via da contraída hipoteca acrescido de juros.
Fundaram a sua pretensão na circunstância de os primeiros autores e primeiros réus serem filhos de MM, falecida a 2 de Janeiro de 1999, ter ela sido dona de um prédio, terem-no vendido a si próprios, com base em procuração por ela passada, sob a falsa afirmação de serem os únicos filhos daquela, para não lhes ser exigida prova do consentimento dos outros interessados, e na constituição de hipoteca sobre o prédio, invocando a reserva mental, declarações falseadas e o enriquecimento sem causa.
Os réus, na contestação, pronunciaram-se no sentido de os autores não terem o direito que pretendiam fazer valer, afirmando que a menção de que os outorgantes da escritura eram os únicos filhos de MM é inócua, não ter resultado prejuízo para os autores e não haver fundamento para recusa de consentimento a que estavam vinculados.
Realizado o julgamento, foi preferida sentença no dia 7 de Dezembro de 2006, por via da qual os réus foram absolvidos do pedido, da qual os autores interpuseram recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 10 de Maio de 2007, negou-lhes provimento.
Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- os recorrentes alegaram que os recorridos agiram conforme revela a matéria matéria de facto, e estes não provaram terem obtido o seu consentimento para o negócio consigo próprios;
- o acórdão recorrido corroborou o erro de considerar não caber ao juiz a missão didáctica de suprir deficiências, ajustar os factos ao direito, mau grado a imperfeita forma como consubstanciaram os termos do pedido ao não lograrem demonstrar a reserva mental imputada aos recorridos;
- bastam os factos provados para a procedência da acção e a venda dever ser anulada.

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. Está inscrito na matriz predial sob o artigo 941º urbano, e 11 Secção H – rústico e 30 Secção G – freguesia de Terrugem – Elvas, o prédio misto denominado Herdade de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00302/200792.
2. Os autores AA, CC, EE e GG, bem como os réus II e KK, são filhos de MM, falecida no dia 2 de Novembro de 1999, no estado de viúva de NN com quem era casada ao tempo da morte dele.
3. O prédio identificado supra sob o nº 1 esteve arrendado ao pai e sogro de autores e réus, NN, durante mais de vinte anos, e autor DD explorou-o por cedência transitória do mesmo feita por MM.
4. No dia Em 22 de Maio de 1992, em escritura outorgada no Cartório Notarial de Algés, OO, PP, QQ, este por si e em representação de RR, e SS, esta na qualidade de cônjuge autorizante de PP, por um lado, e MM, por outro, declararam, os primeiros vender, e esta última comprar, por 31 000 000$, o prédio designado por Herdade de ..., freguesia de Terrugem, Elvas.
5. No dia 30 de Junho de 1992, no Cartório Notarial de Vila Viçosa, em escritura pública, MM declarou constituir seus procuradores os filhos II e KK, e conceder-lhe poderes para em seu nome, em conjunto ou separadamente, com livre e geral administração civil, regerem e gerirem todos os seus bem, e para venderem integral ou parcelarmente os prédios rústicos sitos ou denominados Herdade de ..., freguesia de Terrugem, Elvas, ajustarem tais vendas e receberem o preço ou preços, emitirem recibos, darem quitações, outorgarem e assinarem as necessárias escrituras, e darem os referidos prédios de hipoteca a quaisquer instituições bancárias, assinarem as respectivas escrituras, e ainda que os autorizava expressamente a praticar estes actos e a celebrar o correspondente negócio consigo mesmos, e que a procuração e poderes eram conferidos também no interesse dos mandatários pelo que não podia ser revogada pela mandante sem o acordo dos mandatários, nem caducava por morte, interdição ou inabilitação da mandante.
6. Após a outorga da procuração mencionada em 5, os réus II e Joaquim Fernando negociaram pessoal e directamente com o seu cunhado, o autor DD, a renúncia deste à exploração agrícola que vinha fazendo do prédio.
7. Em 6 de Julho de 1992, o autor DD declarou obrigar-se a devolver o prédio identificado em 1 completamente livre de pessoas e bens, até 31 de Agosto do mesmo ano, a MM ou a quem ela indicasse, tendo expressamente aceitado que a devolução fosse feita a II e KK, a quem foi entregue.
8. O autor DD também reconheceu nada mais ter a exigir ou reclamar de MM ou de II e KK, quer a título de indemnização, quer a título de benfeitorias, quer a qualquer outro título, ficando porém com o direito de colher, até 11 de Agosto de 1992, a seara existente nos prédios e que por si fora semeada e de aproveitar ou vender as respectivas pastagens, desde que fossem comidas até aquela data.
9. A título de compensação pelos prejuízos sofridos por deixar de explorar os prédios, o autor DD recebeu a quantia global de 1 500 000$, que lhe foi paga pelos réus II e KK, através de duas prestações de 750 000$ cada uma, a primeira em 13 de Julho de 1992 e a segunda em 2 de Setembro de 1992.
10. Em 27 de Dezembro de 1996, foi outorgada escritura pública no Cartório Notarial de Arraiolos, na qual MM, com o consentimento e aprovação de todos os interessados, fez a partilha antecipada de todos os seus bens, declarando doar uns e vender outros aos filhos ou netos ali indicados, não tendo sido pago algo em dinheiro como decorrência desta outorga.
11. As atribuições e transmissões dos bens visados com aquela escritura foram subordinadas pelos interesses pessoais de alguns dos filhos e dos respectivos cônjuges, a quem convinha que os bens fossem transmitidos directamente para os concernentes filhos.
12. No dia 20 de Novembro de 1993, TT intentou contra MM a acção judicial que correu termos, sob o nº 102/1993, no Tribunal de Portalegre, na qual pedia que a ré fosse condenada a transmitir-lhe a propriedade do prédio denominado Herdade de ..., por via do exercício de preferência, pelo preço estipulado na escritura de 31 000 000$, a qual foi julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
13. No dia 9 de Junho de 1998, entre II, KK e a Câmara Municipal de Elvas, representada pelo seu presidente, II, UU, foi outorgada escritura de permuta duma parcela de terreno com a área de 36 000 metros quadrados a desanexar do prédio denominado “Herdade de ...”, conforme documento de folhas 79 a 87, tendo os réus intervindo na referida escritura.
14. No dia 12 de Janeiro de 1999, na escritura outorgada no Cartório Notarial de Vila Viçosa, II e KK declararam, como procuradores, em representação de MM, que em nome dela, de quem eram os únicos filhos, vendiam a si próprios, em comum e partes iguais, pelo preço global de 8 900 000$, o prédio misto denominado Herdade de ..., onerado com uma hipoteca registada pela inscrição C-1 a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ....
15. No dia 25 de Junho de 1999, no Cartório Notarial do Alandroal, II e JJ e KK e LL, por um lado, e VV e XX, estes na qualidade de representantes da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ...., CRL por outro, declararam, os dois últimos que aquela Caixa abria a favor dos primeiros um crédito até ao montante de 25 000 000$, e que aqueles constituíam hipoteca sobre o prédio denominado Herdade de Santo António, sito na freguesia da Terrugem, Elvas, a favor dela, para garantia do pagamento daquela quantia.
16. No dia 29 de Fevereiro de 2000, no Cartório Notarial do Alandroal, II e JJ e KK e LL, por um lado, e VV e XX, por outro, estes últimos, na qualidade de representantes da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ..., CRL, declararam que esta, sua representada, ampliava o crédito constante da escritura mencionada sob 15 para 40 000 000$.
17. Na escritura pública de habilitação, lavrada no dia 14 de Dezembro de 2000 no Cartório Notarial de Vila Viçosa, a cabeça de casal AA declarou terem sucedido a MM, como únicos herdeiros, os seus sete filhos, os indicados sob 2 e ZZ.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorrentes têm ou não o direito de impor aos recorridos a nulidade do contrato mencionado sob II 14, o cancelamento da derivada inscrição no registo predial e a restituição do recebido pelos últimos por virtude do contrato mencionado sob II 15 e 16.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes, a resposta à referida questão complexa pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- natureza e efeitos do contratos mencionados sob II 14,15 e 16;
- têm os recorrentes direito a impor aos recorridos a anulação do contrato mencionado sob II 14 ?
- têm ou não os recorrentes o direito de impor aos recorridos a declaração da nulidade do contrato mencionado sob II 14?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso.
Numa das conclusões do recurso afirmaram os recorrentes que, mau grado a imperfeita forma como consubstanciaram os termos do pedido, ao não lograrem demonstrar a reserva mental imputada aos recorridos, ter o acórdão recorrido corroborado o erro da sentença de considerar não caber ao juiz a missão didáctica de suprir deficiências e ajustar os factos ao direito.
A referida conclusão constitui a síntese das declarações constantes do corpo das alegações do recurso no sentido de aos recorrentes ter sido recusada a correcção do erro aquando do aperfeiçoamento da petição inicial.
Os recorrentes remeteram para as alegações no recurso de apelação os termos da sua discordância relativamente à justificação do juiz do tribunal da primeira instância no despacho de indeferimento, expressando dever o juiz extrair dos factos fornecidos, com liberdade de actuação, a sua qualificação jurídica.
Acrescentaram, finalmente, poder o juiz suprir as deficiências das partes quanto ao regime jurídico a que devem ser submetidos os factos, sobrepondo-se às partes, podendo e devendo socorrer-se, em cada caso concreto, do regime jurídico que julgar adequado, sem embargo de ser diferente daquele que as partes invocaram e expuseram.
Portanto, pretendem os recorrentes submeter à apreciação deste Tribunal as questões processuais relativas ao despacho de aperfeiçoamento da petição inicial, o que suscita nesta sede do recurso de revista a problemática da possibilidade ou não dessa apreciação.
Para tanto importa atentar na dinâmica processual que envolveu a problemática suscitada pelos recorrentes, que é a seguinte:
No dia 27 de Outubro de 2000, no fim dos articulados, o juiz do tribunal da primeira instância convidou os autores a suprirem as insuficiências da exposição da matéria de facto indicada como causa de pedir, designadamente a concernente aos factos determinantes da nulidade da escritura.
No dia 10 de Novembro apresentaram os autores, ora recorrentes, nova petição inicial, nela inserindo os pedidos de declaração da anulabilidade a escritura por falta do seu
consentimento, e da hipoteca, desta por força daquela declaração, ou, caso assim se não entendesse, a declaração da nulidade da escritura por envolver a venda de bens alheios e os réus não terem legitimidade para a celebrar, e, em qualquer dos casos, o cancelamento das inscrições registais.
No dia 27 de Novembro de 2000, responderam os réus que os autores aduziam nova causa de pedir relativa à venda de bens alheios sem legitimidade para o efeito e novos pedidos concernentes à declaração da anulabilidade da escritura e da hipoteca por falta de consentimento e suscitaram a caducidade do direito de pedir a referida declaração de anulabilidade.
No dia 6 de Dezembro de 2000, os autores responderam que se tratou do desenvolvimento do pedido primitivo sem alteração da causa de pedir e não haver caducidade por virtude de os réus não se terem referido à data em que os primeiros conheceram do contrato.
No dia 20 de Fevereiro de 2003, na audiência preliminar, foi proferido despacho, no qual, depois de se expressar, por um lado, que as precisões factuais constantes da nova petição correspondiam ao convite ao aperfeiçoamento, mas que a alteração do pedido inicial o extravasava.
E, por outro, não ser admissível a alteração do pedido no momento do convite ao aperfeiçoamento, mas tão só na réplica, nos termos do nº 2 do artigo 273º do Código de Processo Civil.
E foi decidido atender a nova petição inicial apenas no que dizia respeito aos factos ali alegados, não admitir a alteração relativamente aos pedidos e que só se atendia aos anteriormente formulados.
Nem os autores, ora recorrentes, nem os réus, ora recorridos, interpuseram recurso do mencionado despacho, pelo que o mesmo, não sendo de mero expediente, admitindo recurso de agravo, produziu o efeito de caso julgado formal (artigos 156º, nº 4, 672º e 677º do Código de Processo Civil).
Assim, no que concerne ao conteúdo do mencionado despacho proferido no tribunal da primeira instância, estamos perante uma situação de caso julgado formal, que se impõe no âmbito deste processo, designadamente a este Tribunal (artigo 672º do Código de Processo Civil).
Em consequência, não pode este Tribunal, considerar, neste recurso, os referidos argumentos dos recorrentes porque não pode sindicar a legalidade ou não do despacho proferido no tribunal da primeira instância quanto ao âmbito da nova petição inicial por aqueles apresentada, designadamente no que concerne à exclusão dos novos pedidos do âmbito do litígio.

2.
Prossigamos, em tanto quanto releva no caso vertente, com a análise da natureza e efeitos dos contratos mencionados sob II 14,15 e 16, segundo a ordem aqui enunciada.
Os recorridos II e KK declararam em escritura pública, no dia 12 de Janeiro de 1999, em representação de MM, venderem a si próprios, por de 8 900 000$, o prédio denominado Herdade de ....
Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (artigo 1157º do Código Civil).
É uma situação em que uma pessoa promete e disponibiliza a outra a sua actividade jurídica de contratar com terceiros ou consigo própria, ou de praticar actos jurídicos no seu confronto.
A procuração é, por seu turno, o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos, em regra sob a forma exigida para o negócio jurídico que o procurador deva realizar (artigo 262º, n.º 1, do Código Civil).
Assume uma vertente documental distinta do próprio negócio jurídico de representação, envolve natureza unilateral não recipienda, dela dimanando o poder do representante.
Estar-se-á perante contrato consigo próprio quando uma pessoa, com poderes de representação de outra para a celebração de determinado contrato com terceiro, em vez de o celebrar com o último, celebra-o consigo mesmo, no seu exclusivo interesse.
Considerando os factos mencionados sob II 14, estamos perante um contrato de compra de venda cujo objecto mediato se consubstancia em determinado prédio rústico (artigo 874º do Código Civil).
Foi celebrado pelos referidos recorridos consigo próprios, com base em procuração irrevogável, emitida por MM, sua mãe, ou seja, em última análise com base em contrato de mandato.
No dia 25 de Junho de 1999, em escritura pública notarial, II e JJ, e KK e LL, por um lado, e os representantes da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ..., CRL, por outro, declararam abrir esta aos primeiros um crédito até ao montante de 25 000 000$, e aqueles constituírem, para a respectiva garantia, hipoteca sobre o prédio denominado Herdade de ...
Posteriormente, no dia 29 de Fevereiro de 2000, as mesmas pessoas, declararam aceitar a ampliação da mencionada abertura de crédito no montante de 15 000 000$.
Contrato de mútuo é aquele pelo qual uma das partes empresta a outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a última obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1142º do Código Civil).
Trata-se de um contrato que só se completa com a entrega pelo mutuante do respectivo objecto ao mutuário, a qual implica a transferência do respectivo direito de propriedade para o último (artigo 1144º do Código Civil).
Tendo em conta os factos constantes de II 15 e 16, trata-se de contratos coligados, um de mútuo, na modalidade de abertura de crédito, e o outro, de hipoteca, a que se reportam os artigos 362º do Código Comercial e 686º do Código Civil, respectivamente, de
natureza comercial.

3.
Continuemos com a análise da questão de saber se os recorrentes têm ou não o direito a impor aos recorridos a anulação do contrato mencionado sob II 14.
A Relação, no recurso de apelação, concluiu não poder conhecer da questão da omissão de consentimento para a alienação dos restantes filhos da vendedora que não intervieram na escritura, por virtude de o respectivo pedido não haver sido admitido por decisão do tribunal da primeira instância.
A factualidade mencionada sob II 14 revela que os recorridos II e KK declararam, em representação de MM, sua mãe, como sendo dela os seus únicos filhos, venderem a si próprios, o referido prédio rústico denominado Herdade de ....
II e KK não eram, porém, os únicos filhos de MM, pois também eram seus filhos AA, CC, EE, GG e ZZ.
Expressa a lei, em tanto quanto releva no caso vertente, por um lado, que os pais não podem vender a filhos, se os outros filhos não consentirem na venda (artigo 877º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que a venda feita com quebra do que preceitua o número anterior é anulável, e que a anulação pode ser pedida pelos filhos que não deram o consentimento no prazo de um ano contado do conhecimento da celebração do contrato (artigo 877º, nº 2, do Código Civil).
O princípio do pedido, corolário do princípio do dispositivo, é axial em processo civil, pelo que o autor e o reconvinte devem expressá-lo no confronto da parte contrária.
O pedido é, com efeito, uma das vertentes estruturais imprescindíveis da acção lato sensu, conforme decorre de várias normas, a propósitos diversos, designadamente das dos artigos 3º, nº 1, 193º, nº 2, alínea a), e 467º, nº 1, alínea e), 661º, nº 1 e 668º, nº 1, alínea e), do Código de Processo Civil.
Os recorrentes não formularam na petição inicial, nem na réplica, o pedido de anulação do contrato mencionado sob II 14 com fundamento na mencionada omissão de consentimento, nem sequer articularam esta omissão.
Formularam-no na sequência do convite ao aperfeiçoamento, no fim dos articulados, em sede de despacho pré-saneador, mas a sua admissão foi recusada por despacho transitado em julgado, que neste recurso, conforme acima se referiu, importa respeitar.
A não admissão do mencionado pedido implicou, naturalmente, a não admissão da respectiva causa de pedir, ou seja, a omissão do referido consentimento.
Não se trata apenas, ao invés do alegado pelos recorrentes, de aplicar ou ajustar o direito aos factos provados, sob a égide do disposto no artigo 664º do Código de Processo Civil, porque está em causa a falta de formulação do pedido de anulação do contrato de compra e venda e, naturalmente, de possibilidade do exercício do contraditório, designadamente por via de excepção.
Em consequência, não podem os recorrentes obter por via deste recurso, a anulação do contrato de compra e venda mencionado sob II 14 e, como sua decorrência, a anulação dos contratos referenciados sob II 15 e 16.

4.
Vejamos, agora, se os recorrentes têm ou não direito a impor aos recorridos a declaração de nulidade do contrato mencionado sob II 14.
Os recorrentes, na sequência da causa de pedir afirmada na petição inicial, integraram-na juridicamente na reserva mental, nas declarações não sérias e nas declarações falseadas.
A Relação considerou que os factos provados não revelam a reserva mental invocada pelos recorrentes.
A propósito da reserva mental, expressa a lei, por um lado, que ela ocorre quando é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário (artigo 244º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que a reserva mental não prejudica a validade da declaração se não for conhecida do destinatário e que se o for tem os efeitos da simulação (artigo 244º, nº 2, do Código Civil).
A referida divergência entre a vontade real e a vontade declarada com intenção de enganar o declaratário só releva se for do último conhecida, caso em que produz os efeitos da simulação, como que houvesse o pacto simulatório a que se reporta o nº 1 do artigo 240º do Código Civil.
Quanto às declarações não sérias, expressa a lei, por um lado, que se feitas na expectativa da falta de seriedade não ser já desconhecida, não produzirem qualquer efeito (artigo 245º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que se forem feitas em circunstâncias que induzam o declaratário a aceitar justificadamente a sua seriedade, ele tem o direito de ser indemnizado pelo prejuízo que sofrer (artigo 245º, nº 2, do Código Civil).
Nesta divergência entre a vontade real e a vontade declarada não há intenção de enganar mas ao invés a expectativa de o declaratário perceber a sua falta de seriedade, ao invés do que ocorre na reserva mental.
Mas se o declaratário acreditou, dadas as circunstâncias em que a declaração foi emitida, na sua seriedade, naturalmente por erro desculpável, se prejuízo disso lhe advier, deverá ser indemnizado pelo declarante.
Ora, no módulo contratual mencionado sob II 14, a vontade real dos recorridos II e KK, como representantes de MM em quadro de procuração irrevogável e como compradores do prédio, coincidiu com a vontade que declararam.
Tanto basta para que se conclua, tal como ocorreu nas instâncias, que não ocorrem, na espécie, os pressupostos da reserva mental ou das declarações não sérias.
As declarações falseadas que os recorrentes invocaram têm a ver com a falta de consentimento a que acima nos referimos, pelo que nada mais importa considerar a esse propósito.
Incumbia aos recorrentes a demonstração dos factos integrantes da nulidade do referido contrato de compra e venda (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Mas eles não lograram essa demonstração, ou seja, de que são titulares do direito potestativo de impor aos recorridos a declaração da nulidade do mencionado contrato de compra e veda.
Em consequência, não pode proceder essa sua pretensão nem as conexas de extinção do contrato de hipoteca e de cancelamento da inscrição registal de aquisição do direito de propriedade pelos recorridos.

5.
Finalmente a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Por virtude do caso julgado formal não pode este Tribunal conhecer da rejeição do pedido de anulação do contrato mencionado sob II 14.
Os recorridos II e KK celebraram um contrato de compra e venda consigo próprios, e um contrato de mútuo na modalidade de abertura de crédito e um contrato de hipoteca com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do ..., CRL.
À míngua do pedido respectivo formulado de modo processualmente adequado não têm os recorrentes direito a impor aos recorridos a anulação do aludido contrato de compra e venda.
Os factos provados, insusceptíveis de qualificação como reserva mental ou declaração não séria, não revelam o direito potestativo dos recorrentes de impor aos recorridos a declaração de nulidade do mencionado contrato de compra e venda.
Em consequência, inexiste fundamento para a declaração de extinção do contrato de hipoteca e a ordem de cancelamento das inscrições da titularidade dos recorridos no registo predial.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 8 de Novembro de 2007.

Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís