Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
135/22.9T8PNF.P1S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO ATAÍDE DAS NEVES
Descritores: CONTRATO DE PERMUTA
TERRENO
PRÉDIO RÚSTICO
FRAÇÃO AUTÓNOMA
PROPRIEDADE HORIZONTAL
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO
BEM IMÓVEL
EFEITOS
POSSE
POSSE PRECÁRIA
MANUTENÇÃO DA POSSE
ACESSÃO DA POSSE
USUCAPIÃO
HIPOTECA
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA
Sumário :
I. O acordo mediante o qual uma parte se obriga a entregar à outra, como contrapartida da aquisição de um prédio rústico, uma fração autónoma de prédio a constituir em propriedade horizontal e a edificar em área que incluía aquele prédio, configura um contrato de permuta de um bem imóvel presente (prédio rústico de que aquele casal era proprietário) por um bem imóvel futuro (apartamento a construir por aquela sociedade comercial).

II. Decorre expressamente do n.º 2 do art. 408.º do CC, que neste contrato de permuta os efeitos translativos se operam em momentos diferentes, sendo a aquisição do prédio rústico imediata e a aquisição da fracção apenas no momento da constituição da propriedade horizontal.

III. Sendo a posse, na concepção subjectiva adoptada pela maioria da jurisprudência e da doutrina, integrada por um corpus e pelo animus, e correspondendo o corpus ao exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, pressupõe a posse sempre um elemento material que consiste no domínio de facto sobre uma coisa corpórea, traduzindo-se esse domínio no exercício de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício, como tal não sendo possível que se conceba existir posse sobre uma coisa que ainda não existe fisicamente, que não é possível apreender com os sentidos, como sucede com o apartamento T4 a construir, objecto do referido contrato de permuta.

IV. A acessão na posse pressupõe a existência de duas posses contínuas, e se é possível que as posses em causa tenham natureza diferente, como decorre expressamente do n.º 2 do art. 1256.º do CC, nomeadamente porque o actual possuidor e o antecessor possuam em termos de direitos reais diferentes, ou porque as respectivas posses divergem quanto aos seus caracteres, necessariamente a posse tem de respeitar ao mesmo bem.

V. Não é possível ao detentor da posse sobre o apartamento T4 (bem futuro objecto de permuta) aceder na posse sobre o prédio rústico também dado em permuta, porque aquele e este são imóveis completamente distintos, pois aquele apartamento nada tem a ver com o prédio rústico onde o prédio de que faz parte foi edificado, sendo que aquela fracção só teve existência jurídica com a constituição da propriedade horizontal, nem fisicamente existindo antes desse momento.

VI. O princípio da indivisibilidade da hipoteca, legalmente consagrado nos termos do art. 696.º do Código Civil, implica que o credor hipotecário fica protegido das vicissitudes que possam ocorrer com a coisa hipotecada, pelo que a hipoteca produz efeitos desde a data do seu registo constitutivo, estendendo-se a hipoteca constituída sobre um prédio rústico ao edifício constituído em propriedade horizontal (e às respectivas fracções autónomas) que nele foi construído posteriormente, não se tratando de “ficcionar” a existência da fracção autónoma desde data anterior à constituição da propriedade horizontal, mas apenas de estender a protecção concedida ao credor hipotecário à nova realidade predial que passou a existir com a divisão do prédio objecto da hipoteca em fracções autónomas, mas sem que exista qualquer hiato temporal em que a hipoteca não incidisse sobre um bem corpóreo.

VII. Com o art. 696º do CC, que estatui o princípio da indivisibilidade da hipoteca, centrado na estabilidade material da garantia do crédito, quis o legislador evitar que eventuais vicissitudes a ocorrer na coisa dada em garantia pudessem sacrificar a satisfação do crédito, nomeadamente, que parte do crédito deixasse de ser garantido ou que a garantia, ao invés do seu momento inicial, se viesse a revelar curta ou insuficiente para os propósitos iniciais.

VIII. Não existe incompatibilidade, para os efeitos do art. 5º do Código do Registo Predial, entre o registo da hipoteca dado a uma instituição de crédito e efectuado por quem tinha o terreno registado a seu favor (que fora objecto de permuta por facção autónoma futura), feito por quem para o efeito tinha legitimidade, e o registo da propriedade daquela fracção autónoma, realizado após a constituição da propriedade horizontal.

Decisão Texto Integral:

AA, BB, e CC instauraram a presente acção declarativa, com processo comum, com pedido de intervenção principal provocada de DD, contra XYQ LUXCO, SARL, com sede em 47, Avenue ..., L-1855, ..., pedindo a condenação da ré,

- a) ser declarado e reconhecido que a herança aberta por óbito de EE e o 1.º autor são donos e legítimos possuidores, desde pelo menos 16/10/1996, da fracção autónoma denominada pela letra “AC”, correspondente ao terceiro andar esquerdo, frente e traseira, tipo T4, para habitação, com lugar de garagem no piso menos 3 com o n.º 11 e arrumos no piso menos 3 com o n.º 11, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309-AC;

b) Ser ordenado o registo do direito de propriedade a favor da herança aberta por óbito de EE e do 1.º autor, com efeitos retroactivos à data do início da posse, pelo menos a 16/10/1996;

c) Ser declarado nula e de nenhum efeito, no que concerne à fracção autónoma denominada pela letra “AC”, supra identificada em a), a hipoteca voluntária que incide sob o prédio n.º 1202/19990309, decorrente da AP. 3 de 1998/05/13; e,

d) Ser ordenado o cancelamento do registo da hipoteca voluntária que incide sob o prédio n.º 1202/19990309, decorrente da AP. 3 de 1998/05/13, quanto à fracção AC, libertando-a daquele ónus.

Regularmente citada, a Ré contestou, logo excepcionando a ilegitimidade activa dos autores e peticionando o indeferimento da intervenção principal provocada de DD, aceitando alguns factos e impugnando, de forma motivada, a grande parte da factualidade alegada pelos autores, concluindo pela sua absolvição da instância e, caso assim não se entenda, pela improcedência da acção.

A autora respondeu à invocada excepção.

Foi admitida a intervenção principal provocada de DD nos moldes requeridos pelos autores, tendo a interveniente sido regularmente citada.

Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, procedendo-se, de seguida, à fixação do objecto do litígio, dos factos assentes e dos temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença, que julgou a a acção parcialmente improcedente, declarando e reconhecendo que a herança aberta por óbito de EE e o 1º autor são proprietários da fracção descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309-AC, absolvendo a ré dos restantes pedidos.

APELAÇÃO

Inconformados recorrem os autores, pugnando pela prolação de acórdão que, revogando a sentença, julgue a acção totalmente procedente, concluindo as alegações nos termos seguintes:

“1. Com recurso à prova gravada, os AA. impugnam a decisão da matéria de facto do ponto 8 dos factos provados e dos pontos 2, 3, 4 e 5 dos factos não provados, por entenderem que a prova produzida impunha que todos fossem julgados provados, com a seguinte redacção:

provado que:

8. Há mais de 25 e 20 anos que os autores, por si e antecessores, estão na posse uso e fruição da aludida fracção autónoma;

8-a. Quando o prédio mãe ainda era um prédio rústico, denominado «Leiras..., descrito na mencionada conservatória sob o n.º 1006, nele cultivando milho, batatas, feijão, vinha, colhendo os respectivos frutos e retirando dele as demais utilidades que lhe são inerentes;

8-b. Depois de anexado a outros prédios rústicos e transformado em terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1053/19970708, nele efectuando terraplanagens, construindo arruamentos, infra-estruturas e edificações;

8-c. Depois de desanexado do n.º 1053/19970708 o edifício composto por nove pisos, denominado “Edifício D... ”, que passou a integrar o n.º 1202/19990309, constituindo-o no regime da propriedade horizontal;

8-d. E depois de definitivamente construída a fracção autónoma denominada pela letra AC, habitando a casa, nela confeccionando e tomando refeições, repousando e dormindo, recebendo familiares e amigos, estacionando veículos na garagem e guardando objectos nos arrumos;

2. Ou quando assim não se entenda, prevenindo a hipótese de este Venerando Tribunal ad quem entender, tal como a primeira instância, que não podem os autores provar posse anterior à autonomização jurídica da fracção autónoma identificada em 2. dos factos provados, pretendendo que a redacção do ponto 8 dos factos provados seja alterada em conformidade com a prova produzida, a saber:

8. provado que depois de definitivamente construída a fracção autónoma denominada pela letra AC, o que ocorreu em data não concretamente apurada, mas seguramente, pelo menos, no ano de 2000 e sempre antes de 31/07/2000, os autores, por si, passaram a usar e fruir da fracção autónoma identificada no anterior ponto 2”.

3. Nos artigos 12.º a 19.º da petição inicial os autores não se limitaram a alegar, sobre a fracção autónoma objecto dos autos, a sua própria posse, mas igualmente invocaram a posse dos antecessores (artigo 12.º) em conformidade com o artigo 1256.º, designadamente a posse da antepossuidora construtora, R..., Lda”;

4. Mesmo inexistindo título de constituição de propriedade horizontal, é possível a alegação e prova da posse – boa para a adquirir por usucapião – exercida por quem a invoca e pelos antecessores (designadamente a imobiliária/construtura), sobre uma determinada fracção autónoma;

5. A prova dos factos alegados na petição inicial sob os artigos 12.º a 19.º (pontos ponto 8 dos factos provados e 2, 3, 4 e 5 dos factos não provados), resultou inequívoca das declarações de parte de BB e dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos autores, FF, GG, HH, II e JJ:


6. Este acervo probatório, assente em depoimentos de pessoas que tiveram conhecimento directo dos factos que descreveram, não foi contraditado por quaisquer outros meios de prova;

7. A escritura pública de permutas e compra e venda, outorgada em 16/10/1996, junta na petição inicial como documento n.º 2, de onde emerge o 1.º autor e a autora da herança receberam, em permuta do prédio rústico denominado “Leiras...”, “o apartamento modelo T4, sito no terceiro andar do edifício que aquela tem em construção”.

8. Esta declaração negocial, assim expressa, corrobora o depoimento da testemunha JJ, quando esta afirma que as obras do lote n.º 2 do referido loteamento, ou seja, as obras de construção do Edifício D... , onde se insere a fracção autónoma dos autores, já se encontravam em execução quando o aludido prédio rústico ainda era propriedade destes (ou seja, antes da celebração da escritura de permuta);

9. Também da descrição predial n.º 1053/19970708, demonstra que só em 08/07/1997 o referido prédio rústico dos autores, anexado com outros (n.os 597/19920319; 598/19920319; 884/19951019; 1006/19961014 e 1007/19961014), deu origem a um prédio urbano, altura em que já há muito (mais de 1 anos) se encontravam obras a decorrer naquele prédio rústico;

10. Considerando os preditos meios de prova, sempre salvo melhor opinião, entendem os autores que produziram prova abundante de que:

a. Já desde data anterior a 16/10/1996, há mais de 25 e 30 anos, que os autores, por si e antecessores, estão na posse uso e fruição da aludida fracção autónoma;

b. Quando o prédio mãe ainda era um prédio rústico, denominado «Leiras...», descrito na mencionada conservatória sob o n.º 1006, nele cultivando milho, batatas, feijão, vinha, colhendo os respectivos frutos e retirando dele as demais utilidades que lhe são inerentes;

c. Depois de anexado a outros prédios rústicos e transformado em terreno para construção, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1053/19970708, nele efectuando terraplanagens, construindo arruamentos, infra-estruturas e edificações;

d. Depois de desanexado do n.º 1053/19970708 o edifício composto por nove pisos, denominado “Edifício D... ”, que passou a integrar o n.º 1202/19990309, constituindo-o no regime da propriedade horizontal;

e. E depois de definitivamente construída a fracção autónoma denominada pela letra AC, habitando a casa, nela confeccionando e tomando refeições, repousando e dormindo, recebendo familiares e amigos, estacionando veículos na garagem e guardando objectos nos arrumos;

f. Fazendo obras e benfeitorias e suportando os custos;

g. Pagando os impostos e contribuições;

h. O que, por si e antecessores, sempre a aludida herança e o 1.º autor têm feito pacificamente, à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição e interrupção, na firme convicção de que estão e sempre estiveram, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre os aludidos prédios.

11. E daí a impugnação da decisão da matéria de facto dever proceder nos termos das conclusões 1 ou 2, supra;

12. Os autores pretendem, com a presente acção, o muito justo fim de, no confronto com a ré, ver declarado o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma identificada nos autos, desde 16/10/1996, com a consequente anulação e cancelamento da hipoteca, por ter sido realizada a non domino;

13. Tratar-se de uma pretensão muito justa porque, no caso dos autos, o autor e a sua falecida esposa, deram em permuta um prédio rústico, recebendo em troca uma fracção autónoma de um prédio em construção, vendo-se agora, por actos de terceiros a que são completamente alheios (R..., Lda e a Caixa Geral de Depósitos) na contingência de perder tudo: fracção autónoma e terreno.

14. Resultado que é injusto e nefasto, atentando contra os conceitos de justiça dominantes, pois nenhum prédio existiria e nem nenhuma hipoteca teria sido constituída sobre ele se não fosse os autores, de boa fé, terem celebrado a aludida permuta;

15. Significaria tal resultado, na prática, que os autores não tivessem recebido coisa alguma em troca do terreno, tudo se passando que se fosse uma doação;

16. A solução jurídica, quanto a nós, não poderá deixar de passar pela posse e pela usucapião;

17. Nos termos do artigo 939.º CCivil, as normas relativas à compra e venda também são supletivamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, aos contratos em que se estabeleçam encargos sobre bens, como é o caso da hipoteca, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas.

18. Constituída hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da hipoteca ao edifício nele construído ocorre ipso lege, por força do disposto no artigo 691.º/1 alínea c) CCivil, mas essa hipoteca só produz efeitos em relação às fracções autónomas do edifício, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal;

19. Os proprietários da fracção autónoma e a credora hipotecária são adquirentes do mesmo autor comum (a R..., Lda) de direitos incompatíveis entre si (a hipoteca e o direito de propriedade), e, como tal, são ambos terceiros entre si para efeitos de registo, artigo 5.º/1 do Código do Registo Predial;

20. É certo que a credora hipotecária logrou obter, ipso lege, sem a prática de qualquer acto material nesse sentido, o registo da hipoteca em momento anterior ao registo da propriedade pelos autores, embora este registo se tenha fundado em título muito anterior à hipoteca (a escritura de permuta celebrada em 1996).

21. Mas também não é menos certo que os autores, por si e antecessores, estão na posse da fracção desde pelo menos a mesma data do registo da propriedade horizontal;

22. E, na verdade, acedendo à posse dos antecessores, desde pelo menos 16/10/1996, tanto mais que, a fracção autónoma foi sendo construída pela R..., Lda com a fiscalização e acompanhamento constante dos autores, que inclusive escolheram alguns dos materiais a aplicar, de uma forma mais activa na fase dos acabamentos.

23. Acresce que, decorreu com clarividência da prova, que o prédio urbano, denominado Edifício D... , onde se insere a fracção dada de permuta, se situa exactamente no local onde anteriormente existia o prédio rústico, certeza que foi manifestada por todas as testemunhas que conheciam o local muitos anos antes da construção, alguns delas desde a infância. E daí não terem qualquer dúvida que existe tal correspondência.

24. Por algumas das pessoas inquiridas foi dito até, de uma forma que para nós se revelou impressiva, que a fracção foi construída para os autores.

25. De facto, os autores comportaram-se em relação à sua fracção autónoma, ainda durante a sua construção, como se fossem donos da obra;

26. Embora juridicamente só em 31/07/2000 a aludida fracção tenha ganho autonomia, ela já tinha existência e autonomia material em momento anterior.

Note-se, a este respeito, que a testemunha JJ, gerente da R..., Lda entre os anos de 1996 e 1998, afirmou que, neste ano, o prédio onde se insere a fracção autónoma dos autores já estava muito adiantado.

E o autor BB esclareceu que foi para lá viver logo que se casou (12/08/2000) e que, em data muito anterior, já fiscalizavam os trabalhos e tinha sido ele, com a autorização do seu pai, a escolher alguns dos materiais, uma vez que já estava previsto que seria ele a ir para lá habitar.

27. Por isso, não há dúvida que era perfeitamente possível existir (como existiu) posse dos autores sobre a fracção autónoma, mesmo antes da sua autonomia jurídica, com plena convicção do exercício do direito de propriedade, que lhes advinha da celebração da escritura de permuta.

28. Em todo o caso, havendo um conflito entre registo e posse, e sendo autores e ré terceiros, a Lei consagra que prevalece esta última nos termos do artigo 5.º/2 alínea a) do Código do Registo Predial e do artigo 1268.º CCivil;

29. Em face do carácter meramente declarativo do registo e do princípio da prevalência da situação real dos bens, havendo colisão entre a presunção fundada no registo e a presunção decorrente da posse, com início em data anterior ou, pelo menos, na mesma data do registo, prevalece a presunção fundada na posse.

30. Tendo a ré hipoteca registada sobre a fracção autónoma desde a data da constituição da propriedade horizontal (31/07/2000) e estando os autores na posse da mesma fracção desde, pelo menos, a mesma data, prevalece a presunção fundada na posse sobre a fundada no registo;

31. E, consequentemente, deve a acção ser julgada totalmente procedente.

32. Porque assim não se decidiu, a douta sentença recorrida violou o artigo 5.º/2 alínea a) do Código do Registo Predial e o artigo 1268.º CCivil.

Contra-alegou a Ré, defendendo a improcedência do recurso, tendo formulado as conclusões seguintes:

I. Por via do recurso em apreço, os apelantes, visam obter uma alteração da douta sentença a quo, no sentido de lhes ser declarado o seu direito de propriedade sobre a fracção autónoma melhor identificada nos autos, com efeitos desde 16/10/1996, com a consequente a anulação e cancelamento da hipoteca que sobre a mesma subsiste a favor da ora apelada.

II. A alteração da matéria de facto provada e não provada impugnada pelos apelantes, não tem qualquer suporte probatório; não só não resulta das declarações de parte nem dos depoimentos das testemunhas inquiridas, como dos documentos juntos aos autos, resulta manifesto que a fracção autónoma em causa não tinha existência jurídica ou sequer física antes de 16/10/1996 (ano em que se iniciou a construção do edifício e que decorreu durante cerca de quatro anos, só terminando em 2000).

III. A posse é, inevitavelmente, um poder de actuação de facto sobre uma coisa que existe – cfr. artigo 1251.º CCivil – e, se o imóvel não existe, não é possível haver apossamento ou qualquer actuação material sobre a coisa; ou seja, não é possível haver corpus sobre esse bem.

IV. Resulta apenas comprovada a propriedade e posse do primeiro autor sobre o imóvel rústico denominado “Leiras...”, correspondente à descrição 1006 da CRP de ..., até, no máximo, 16/10/1996;

V. Resulta ainda dos elementos carreados para os autos, que foi a sociedade R..., Lda, proprietária do imóvel, quem efectuou todas as obras no dito prédio rústico até à conclusão das construções nele edificadas.

VI. Apenas resultou provado nos autos que autonomização jurídica da fracção autónoma sub judice ocorreu a partir da constituição da propriedade horizontal em 31/07/2000, tudo conforme o ponto 5 dos factos provados na douta sentença e, registo da constituição da propriedade horizontal, contantes da Ap. 35 da 2000/07/31 da CRP 1202/19990309.

VII. A agora pretendida actuação do ora apelante como dono de obra, não foi alegada ou resultou de qualquer meio de prova, não se bastando para tal, a visita ao local da obra ou a escolha dos materiais de acabamentos e, mesmo estes, atente-se, só ocorreram, em data não concretamente apurada, durante o ano de 2000.

VIII. A posse da fracção, conforme confessado pelo recorrente, apenas ocorre no Natal de 2020 – altura em que, juntamente com a sua mulher, passou a habitar a mesma.

IX. Nenhuma prova foi realizada da correspondência exacta entre o terreno dado em permuta e a área onde veio a ser edificado o Lote 2, correspondente ao Edifício D. ...... ..

X. O julgamento da matéria dada como provada sob o ponto 8 e não provada sob os pontos 2, 3, 4 e 5 não merece assim qualquer reparo ou censura, por estar absolutamente conforme com a prova produzida.

XI. Num contrato de permuta de um terreno por fracções autónomas de edifício a construir nesse terreno, o direito de propriedade do terreno transfere-se imediatamente para o adquirente, por efeito do contrato de permuta e, a transferência do direito de propriedade relativo às fracções autónomas do edifício a construir - bens futuros - também decorre do mesmo contrato de permuta, mas apenas produz efeitos quando estes se tornam presentes - após a construção do edifício e com a constituição do regime da propriedade horizontal – cfr. artigos 408.º/2 e 1417.º CCivil.

XII. A constituição de uma hipoteca enquadra-se nos poderes de disposição do proprietário – cfr. artigos 1305.º, 688.º/1 alínea a) e 715.º CCivil, pelo que assistia à Sociedade R..., Lda. o direito de onerar o prédio urbano adquirido em permuta – como fez.

XIII. Perante a constituição de hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da mesma ao edifício nele construído, ocorre ipso lege, por força do disposto no artigo 691.º/1 alínea c) e 696.º CCivil e,

XIV. O mesmo acontece quando é constituída a propriedade horizontal sobre o mesmo – mutatis mutandis.

XV. Trata-se da mesma hipoteca a que abrange o prédio mãe e as fracções concretamente constituídas após constituição do mesmo em propriedade horizontal, a qual, devidamente constituída e registada, goza da inoponibilidade da nulidade/anulação prevista no artigo 291.º/1 CCivil.

XVI. Não tendo os apelantes impugnado a factualidade provada vertida nos pontos 4 e 6 referente à hipoteca e o ponto 6 dos factos não provados, que considerou como não provado que os ora recorrentes desconheciam, até à data de 27/09/2021, a existência das dívidas e da garantia hipotecária, o prazo para arguir a nulidade/anulação da hipoteca sempre estaria, há muito, largamente ultrapassado – cfr. artigos 287.º/1 e 291.º/2 CCivil.

XVII. A constituição da hipoteca, atualmente registada a favor da ora apelada, não viola “qualquer dever de lisura, probidade ou de lealdade em que se analisa a má fé” - ao contrário, o peticionado pelos recorrentes é que se apresenta flagrantemente abusivo.

XVIII. Para se socorrerem da acessão na posse da antecessora R..., Lda, nos termos previstos no artigo 1256.º CCivil, os apelantes teriam sempre de a aceitar nos termos em que a mesma fora exercida pelo seu antecessor e, por conseguinte, aqui se incluindo a constituição, pela antecessora R..., Lda, da supra aludida hipoteca.

XIX. Pretendendo a putativa anulação ou declaração da nulidade de uma hipoteca, constituída pela anterior proprietária, nunca os autores, ora Recorrentes podem beneficiar da acessão na posse da antecessora proprietária; nesse sentido a jurisprudência do Ac. do STJ de 08-02-2018, supra aludido onde sumariamente se retira que: “o possuidor actual apenas poderá recorrer à acessão da posse do seu transmitente caso a usucapião não venha a funcionar contra ele”.

XX. Acresce que, não existe, no caso sub judice, uma posse homogénea, que permita conceber a junção de posses: quando estamos perante um terreno rústico que, por via de diversas anexações e desanexações, passa a urbano e do qual, por sua vez, se desanexam diversas parcelas de terrenos para construção de seis edifícios em propriedade horizontal entre os quais veio a ser constituída a fracção autónoma dos recorrentes, estamos, necessariamente, perante um bem materialmente distinto daquele sobre o qual foi exercida a posse dos autores: vide Ac. do STJ de 12-12-2014, supra citado,

XXI. Pelo que, apenas se for mantida a douta sentença nos exactos termos e com a fundamentação em que foi proferida, se obterá o correcto, esperado e justo fim para a demanda: o eventual incumprimento do contrato de permuta por parte da R..., Lda” e os danos que daí advieram para os apelantes não são, não podem ser, imputáveis à ré!

O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 627.º, 629.º/1, 631.º, 637.º, 638.º, 644.º alínea a), 645.º/1 alínea a) e 647.º/1 e 2 – este “a contrario – CPCivil.

Foi proferido Acórdão que decidiu julgar “improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida, nos segmentos impugnados”.

REVISTA EXCECIONAL

Inconformados, vieram os autores interpor recurso de revista excepcional, ao abrigo do art. 672º nº 1 al. a) e b), invocando a relevância jurídica e social das questões decidendas, concluindo assim as suas alegações:

1. Ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, vem o presente recurso de revista excepcional interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01/06/2023, que julgou improcedente o recurso e conformou a sentença da primeira instância;

2. A questão jurídica em causa nos autos é a seguinte: Perante um contrato de permuta que tem por objecto a troca de um terreno por uma fracção autónoma de edifício nele em construção, pode o adquirente do bem futuro opor ao Banco mutuante, que logrou obter o registo da hipoteca sobre o terreno em momento posterior à permuta e anterior à constituição da propriedade horizontal, os efeitos jurídicos da posse (e da acessão da posse), designadamente da usucapião e da presunção do art.º 1268.º, n.º 1 do Código Civil, com vista a obter a anulação e cancelamento da hipoteca, por ter sido realizada a non domino?

3. Esta questão jurídica reveste grande importância e complexidade, na medida em que:

a. Por mais diligente que seja o adquirente do bem futuro, a Lei e o sistema do registo Português não lhe possibilitam o registo da aquisição da fracção autónoma em momento anterior ao registo da propriedade horizontal.

b. A questão demanda aturado estudo, convocando vários institutos jurídicos, designadamente, o contrato de permuta tendo por objecto bens presentes e bens futuros, a posse, a acessão da posse e os seus efeitos, o registo e a sua função, o conceito de terceiro para efeito de registo, a hipoteca e o significado e extensão do direito de sequela em caso de constituição de propriedade horizontal e, não menos importante, o conflito entre o registo e a posse.

c. O estudo e decisão a proferir por este Supremo Tribunal de Justiça, terá utilidade muito para além dos contornos concretos da presente demanda, já que são muito comuns os contratos de permuta, especificadamente, de bens presentes por bens futuros, no âmbito da actividade de construção civil, encontrando-se enraizada na nossa economia e sociedade a celebração de contratos de permuta como o dos presentes autos que, no fundo, são formas de financiamento da actividade da construção civil;

d. A decisão recorrida refugia-se numa análise muito superficial da problemática jurídica em discussão, toda ela baseada em extensas citações de doutrina e jurisprudência que não se adequam suficientemente à causa de pedir e aos pedidos formulados na presente acção.

4. A questão jurídica em causa convoca interesses de particular relevância social, uma vez que:

a. Se encontra enraizada na nossa economia e sociedade a celebração de contratos de permuta como o dos presentes autos, em que se trocam bens imóveis presentes por bens imóveis futuros a construir;

b. Este tipo de contratos são relevantes, quer social, quer economicamente, permitindo às empresas construtoras, mesmo sem disporem de capital, adquirir imóveis para neles construírem edifícios, designadamente habitacionais (como é o caso dos autos), respondendo assim às necessidades de habitação que, ainda hoje, são constante preocupação legislativa;

c. A decisão recorrida produz um resultado prático susceptível de causar alarme social, demandando que se esclareça porque razão um direito de crédito deva ser merecedor de melhor protecção do que uma situação de facto consolidada (posse) e, não menos importante, do que a confiança e segurança jurídica habitualmente associada à celebração de negócios formais (como o contrato de permuta sobre bens imóveis);

d. Sendo grande o número de contratos de permuta que são celebrados, nos mesmos moldes e com as mesmas finalidades do contrato em causa nos autos, existe um interesse colectivo da sociedade em perceber se, afinal, existe algum tipo de defesa contra o poder do capital.

5. A decisão recorrida não é acertada, pelas seguintes razões:

a. No caso dos autos não está em causa a negligência ou incúria dos AA., mas a impossibilidade legal e objectiva de proceder ao registo de um bem imóvel futuro em momento anterior ao registo da propriedade horizontal;

b. Não está em causa nos autos o gozo (seja o direito pessoal ou o direito real), mas a posse dos AA., enquanto poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251.º do Código Civil), muito particularmente a usucapião (cujos efeitos retrotraem à data do início da posse), e o conflito entre o registo e a posse, regulado no art.º 1268.º, n.º 1 do Código Civil.

c. Não se encontra explicação para a seguinte contradição:

i. Para negar aos AA. a possibilidade do exercício da posse sobre a fracção autónoma, afirma-se que esta não tem existência e nem autonomização jurídica em data anterior à propriedade horizontal (31/07/2000);

ii. Para conferir à Ré protecção, estendem-se à fracção autónoma os efeitos do registo da hipoteca desde a data anterior à constituição da propriedade horizontal (13/05/1998).

iii. Como é que uma mesma fracção autónoma existe para uma coisa e não existe para outra?

d. Considerando o facto provado em 16, no momento em que a antecessora da Ré procede ao registo da hipoteca voluntária, tem pleno conhecimento da permuta celebrada em 16/10/1996 entre AA e falecida esposa EE e “R..., Lda, pelo que, não ignorava que o direito real de garantia que lhe estava a ser concedido pela R..., Lda” era incompatível com o direito dos AA. recebido por permuta, em data anterior, do mesmo transmitente comum (R..., Lda).

e. Não vislumbramos razão jurídica plausível para se conferir maior protecção ao alegado direito de crédito da Ré (ainda que objecto de garantia real) no confronto com a posse e direito de propriedade dos AA., atento o registo da permuta, titulado pela AP. 3 de 1996/10/21, e considerando ainda a posse dos AA. desde 31/07/2000 (data da constituição da propriedade horizontal) e, acedendo à posse da R..., Lda, desde 16/10/1996.

6. A solução jurídica que se impõe é a seguinte:

a. Que a fracção autónoma dos AA. reúne os requisitos do artigo 1415.º do Código Civil, não é questionado, tanto mais que a propriedade horizontal viria a ser constituída e registada em 31/07/2000.

b. Dispõe o art.º 1417.º, n.º 1 do Código Civil, de forma expressa, que a propriedade horizontal pode ser constituída por usucapião, o que significa que é perfeitamente viável, quer sob o ponto de vista naturalístico, quer sob o ponto de vista legal, o exercício da posse sobre uma fracção autónoma de prédio em construção em data anterior ao registo da propriedade horizontal;

c. A posse e a usucapião não estão limitadas por concepções jurídicas;

d. Não é pelo facto de uma fracção autónoma não ter ainda, formalmente, autonomia jurídica (descrição própria e autónoma na conservatória do registo predial na sequência da constituição da propriedade horizontal), que não pode ser objecto de posse – e posse boa para usucapião;

e. A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afectem o acto ou negócio gerador da posse.

f. Como tal, mesmo inexistindo título de constituição de propriedade horizontal, é possível a alegação e prova da posse – boa para a adquirir por usucapião –, exercida por quem a invoca e pelos antecessores (designadamente a imobiliária/construtura), sobre uma determinada fracção autónoma.

g. Dispondo o art.º 1420.º do Código Civil que, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício, sendo o conjunto dos dois direitos incindível, tal significa que alegar a posse sobre uma fracção autónoma, quer o regime da propriedade horizontal já esteja formalmente constituído e registado, ou não, é simultaneamente alegar a composse (na qualidade de condómino) sobre as partes comuns do prédio;

h. Visando o instituto da acessão facilitar o funcionamento da usucapião, não faz sentido exigir para ela mais requisitos do que os colocados à própria usucapião, retirando-lhe o seu alcance e utilidade prática, na medida em que essencial e absolutamente indispensável é tão somente que haja transmissão da posse, designadamente, por tradição;

i. Por meio da acessão, o possuidor deixa de ficar limitado ao seu tempo de posse, podendo juntar à sua – quer dizer, ao seu tempo de posse – a posse do seu antecessor, bastando que haja transmissão da posse, designadamente por tradição;

j. A circunstância de os AA. só terem registado a sua aquisição em 01/02/2008 apenas poderia relevar no aspecto do lapso de tempo necessário para adquirirem o direito de propriedade por usucapião (art.º 1294.º do Código Civil), mas já nunca na possibilidade de acessão na posse da sua antecessora (R..., Lda);

k. No caso dos autos não está em causa a negligência ou incúria dos AA., mas a impossibilidade legal e objectiva de proceder ao registo de um bem imóvel futuro em momento anterior ao registo da propriedade horizontal;

l. Quando no douto acórdão recorrido se afirma que a impugnação da decisão da matéria de facto era, na verdade, uma questão de direito, já que ninguém colocava em causa a posse dos AA., estão estes plenamente de acordo.

m. A descrição factual constante do ponto 8 dos factos provados e dos pontos 2 a 4 dos factos não provados deturpa e não representa com fidelidade o alegado pelos AA. nos artigos 12.º a 19.º da petição inicial, dificultando a discussão jurídica sobre a acessão na posse (expressamente invocada como causa de pedir na petição inicial).

n. Por aplicação das regras dos artigos 879.º e 408.º do Código Civil, a permuta produz efeitos obrigacionais, na medida em que faz surgir a obrigação de entrega para as duas partes, e efeitos reais, uma vez que a propriedade dos bens trocados se transmite por mero efeito do contrato;

o. O disposto no art.º 408.º, n.º 2 do Código Civil, coaduna-se mal com a realidade em discussão nos autos, pois embora a fracção autónoma dada de permuta fosse um bem futuro, ela não ia ser “adquirida” pelo alienante, mas sim produzida / construída por este no prédio que recebeu em troca;

p. Por diversos motivos, poderá suceder que a propriedade horizontal nunca venha a ser constituída ou registada, designadamente, por a proprietária não o requerer, por atrasos na entidade administrativa decisora, ou outras.

q. As regras dos artigos 879.º e 408.º do Código Civil hão de ser interpretadas em conjugação com o art.º 1417.º, n.º 1 do Código Civil, ou seja, quando a permuta tenha por objecto a troca de um terreno por uma fracção autónoma de edifício a construir nesse terreno, a transferência do direito de propriedade das fracções pode também operar-se pela tradição da coisa e pela usucapião;

r. É insofismável que a fracção autónoma dada de permuta aos AA. já reunia todos os requisitos da propriedade horizontal em data anterior ao registo da propriedade horizontal, na medida em que este registo depende de um pedido expresso do proprietário perante as entidades administrativas, da aprovação destas e, ainda, da celebração de escritura pública de constituição da propriedade horizontal.

s. Citando Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 4.ª Edição, 2005, pág. 152, a propósito da proibição do “pacto comissório”, “este regime não prejudica o credor hipotecário por os actos subsequentes de alienação ou oneração lhe serem inoponíveis. Nomeadamente, no caso de transmissão, isso significa que ele pode fazer executar a coisa hipotecada no património do adquirente, sendo esta uma manifestação da sequela do direito de hipoteca”;

t. Aquilo que o direito de sequela garante ao credor é a faculdade de acompanhar o bem dado de hipoteca nas suas posteriores transmissões, podendo persegui-lo e reivindicá-lo onde quer e com quem quer que este se encontre.

u. Sendo a função primacial do registo predial a de publicitar as situações jurídicas reais, ele não tem, em regra, a função de atribuir direitos;

v. Embora a extensão da hipoteca ao edifício nele construído ocorre ipso lege, essa hipoteca, por força dos artigos 939.º e 408, n.º 2 do Código Civil, só produz efeitos em relação às fracções autónomas do edifício, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal.

7. Assim, a acção tem necessariamente de ser julgada procedente, pela seguinte ordem de razões:

a. A antecessora da Ré, em 13/05/1998, quando regista a hipoteca sobre o prédio mãe, tem plena consciência de que o autor AA e falecida esposa EE celebraram com a sociedade comercial “R..., Lda”, um contrato de permuta mediante o qual aqueles cederam um prédio rústico (apto para construção) e receberam em troca um apartamento modelo T4, situado no terceiro andar do edifício que aquela tinha em construção no predito prédio rústico dado de permuta.

b. Os autores, por si, estão na posse da fracção autónoma (e das partes comuns do prédio) desde data anterior ao registo da propriedade horizontal ou, na pior das hipóteses, desde a data do registo da propriedade horizontal.

c. Não obstante, por si e antecessores, acedendo à posse da R..., Lda, os AA. estão na posse da fracção autónoma (e das partes comuns do prédio) desde 16/10/1996;

d. Tendo a acção sido intentada em 12/01/2022, não há dúvida que os AA. estão na posse, uso e fruição da aludida fracção autónoma (e partes comuns) há mais de 15 e 20 anos;

e. Concretamente, desde 16/10/1996.

f. Estão, por isso, reunidos todos os requisitos da usucapião previstos nos artigos 1287.º e 1294.º, alínea a) do Código Civil.

g. Quando invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, concretamente, a 16/10/1996.

8. Sem prescindir, caso se considere que o direito de propriedade dos AA. só pode ser declarado desde 31/07/2000, data da constituição da propriedade horizontal, a solução jurídica sempre será a mesma, porquanto:

a. Se a fracção autónoma a construir consubstancia um bem futuro, uma realidade nova e distinta, que se autonomiza e adquire existência jurídica com a propriedade horizontal (tal como defendido no douto acórdão recorrido), insusceptível, por isso, de posse por parte dos AA. em momento anterior, o mesmo sucede em relação à hipoteca.

b. Nos termos do art.º 939.º do Código Civil, as normas relativas à compra e venda também são supletivamente aplicáveis, com as necessárias adaptações, aos contratos em que se estabeleçam encargos sobre bens, como é o caso da hipoteca;

c. Por força do art.º 939.º do Código Civil, à hipoteca é também aplicável o disposto no art.º 408.º, n.º 2 do Código Civil;

d. Constituída hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da hipoteca ao edifício nele construído só produz efeitos em relação às fracções autónomas, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal;

e. Tendo o registo da hipoteca sobre o terreno destinado a construção sido efectuado em 13/05/1998, os seus efeitos, em relação ao terreno verificam-se a partir do registo, mas o mesmo não sucede em relação às fracções autónomas, já que estas, enquanto unidades prediais novas e independentes, só adquirem existência jurídica e autonomia a partir do momento da constituição da propriedade horizontal;

f. Como bens futuros que são, os efeitos da hipoteca só se produzem em relação a estas a partir de 31/07/2000, data do registo da constituição da propriedade horizontal.

g. Estando reunidos todos os requisitos da usucapião previstos nos artigos 1287.º e 1294.º, alínea a) do Código Civil, e retrotraindo os seus efeitos a 31/07/2000, forçoso é concluir que, relativamente à fracção autónoma dos autores, a hipoteca foi constituída a non domino, uma vez que, nesta data, já eram os AA. os proprietários e não a R..., Lda”.

9. Ainda sem prescindir:

a. Havendo um conflito entre registo e posse, e sendo AA. e Ré terceiros, a Lei consagra que prevalece esta última nos termos do art.º 5.º, n.º 2, al. a) do Código do Registo Predial e do art.º 1268.º do Código Civil.

b. Verificando-se que os AA. e a Ré são adquirentes do mesmo autor comum (a R..., Lda) de direitos incompatíveis entre si (a hipoteca e o direito de propriedade), e, como tal, são ambos terceiros entre si para efeitos de registo (art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial).

c. Produzindo a hipoteca registada a favor da Ré os seus efeitos apenas a partir da data da constituição da propriedade horizontal (31/07/2000) e estando os AA. na posse da mesma fracção desde pelo menos a mesma data, prevalece a presunção fundada na posse sobre a fundada no registo.

10.O douto acórdão recorrido viola os art. 1251.º, 1256.º, n.º 1, 1263.º, alínea b), 1268.º, 1287.º, 1288.º e 1294.º, alínea a) do Código Civil.

Termos em que requer a V.as Ex.as que, por via do provimento da presente revista, se dignem revogar o douto acórdão recorrido e, em consequência, proferir douto acórdão que julgue a acção totalmente procedente.

A Ré recorrida veio contra-alegar, pugnando pela improcedência da revista.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, constatando-se dupla conformidade decisória nas instâncias, tratando-se de revista excecional (art. 671º nº 3 do CPC), e verificados todos os requisitos com vistas à sua admissibilidade preliminar, foi proferido despacho a remeter os autos à Formação, nos termos e para os efeitos do art. 672º nº 3 do CPC, vindo a ser proferido Acórdão que admitiu a revista excecional, ao abrigo do art. 672º nº 1 al. a) e b) do CPC.

Cumpre, pois, decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

O OBJECTO DO RECURSO

Atendendo às conclusões do recurso de revista e ao conteúdo do acórdão da Formação que admitiu a revista, o objecto do recurso assenta na apreciação das seguintes questões:

I - Da posse dos autores sobre a fracção autónoma identificada nos autos (e das partes comuns do prédio), por si e seus antecessores, acedendo à posse da sociedade R..., Lda, desde 16/10/1996, e aquisição do direito de propriedade sobre tal imóvel por usucapião reportando-se os efeitos dessa aquisição à referida data;

II - Caso se considere que a titularidade do direito de propriedade por parte dos autores só teve início em 31/07/2000, data da constituição da propriedade horizontal, alegam os recorrentes que, sendo a fracção autónoma a construir um bem futuro, por força do art. 939.º do Código Civil, à hipoteca é também aplicável o disposto no art.º 408.º, n.º 2 do Código Civil, pelo que, constituída hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da mesma ao edifício nele construído só produz efeitos em relação às fracções autónomas, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal, prevalecendo a presunção fundada na posse sobre o registo predial da hipoteca;

III - Consideração da ré como terceira de má-fé para efeitos do disposto no art. 5.º do Código de Registo Predial.

Antes do mais, para autonomia da presente decisão, transcrevamos a matéria de facto julgada provada pelas instâncias:

1. Em .../.../2016 faleceu EE, no estado de casada no regime da comunhão de adquiridos com o 1.º autor, sucedendo-lhe como únicos herdeiros legitimários: o marido, aqui 1.º autor; os filhos: 2.º e 3.º autores; e a 4.ª autora, chamada mediante intervenção principal provocada.

2. Por escritura pública de permutas e compra e venda, outorgada em 16/10/1996, a fls. 53-verso a 56 do livro de novas para escrituras diversas n.º 29-B, do cartório notarial de Mesão Frio, em que a autora da herança e o 1.º autor figuram como terceiros outorgantes e “R..., Lda” figura como quarta outorgante, foi entre estes celebrada a seguinte permuta: “Finalmente, pelos terceiros outorgantes e quartos, estes em nome da sociedade que representam, foi declarado: “Que, entre si, permutam os seguintes bens: “a-) Os terceiros cedem à sociedade representada o prédio rústico que lhes pertence, sito no mesmo Lugar ..., denominado «Leiras..., com a área de quinhentos e vinte metros quadrados, descrito na mencionada conservatória sob o n.º 1006 e nela registado a seu favor pela inscrição G-2, omisso na matriz, tendo já sido feita a competente participação; “b) Os mesmos receberão da sociedade permutante o apartamento modelo T4, sito no terceiro andar do edifício que aquela tem em construção no lote n.º 2 do referido loteamento.”, apartamento para habitação, com lugar de garagem no piso menos 3 com o n.º 11 e arrumos no piso menos 3 com o n.º 11, descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309-AC, tudo nos moldes vertidos no documento junto com a petição inicial sob o n.º 2, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

3. Pela anexação dos n.os 597/19920319, 598/19920319, 884/19951019, 1006/19961014 (prédio da autora da herança e do 1.º autor, objecto da escritura de permuta) e 1007/19961014, surgiu então o seguinte prédio urbano, situado no Monte ou Avenida ..., freguesia de ..., do concelho de ...: - Prédio urbano, parcela de terreno para construção, com a área de 13300m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1053/19970708, omisso na matriz, tudo nos moldes vertidos no documento junto com a petição inicial sob o n.º 3, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. Por desanexação do n.º 1053/19970708, surgiu o seguinte prédio urbano, situado na aludida freguesia de ..., do concelho de ...: - Edifício composto por nove pisos, denominado “Edifício D... ”, a confrontar do Norte com lote n.º 3, do Sul com lote n.º 5, do nascente com a variante à Avenida ... e do Poente com arruamento, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309 e inscrito na matriz sob o artigo 4568 (que proveito do anterior 1463 da extinta freguesia de ...), sobre o qual foi constituída, através do registo ali aposto pela AP 3 de 13/05/1998, hipoteca voluntária a favor da Caixa Geral de Depósitos para garantia de todas as operações bancárias assumidas ou a assumir por “R..., Lda.”, tudo nos moldes vertidos no documento de fls. 17 verso e 18, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

5. Que foi constituído no regime da propriedade pela AP. 35, de 2000/07/31, tudo nos moldes vertidos no documento junto com a petição inicial sob o n.º 4, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

6. A fracção autónoma referida em 2 está descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309-AC e aí definitivamente registados a favor da autora da herança e do 1.º autor, através da AP 23 de 2008/02/01, tendo para aí transitado, pela AP 3 de 13/05/1998, o registo da hipoteca voluntária a favor da Caixa Geral de Depósitos referida no anterior ponto 4.

7. Os autores receberam uma carta datada de 27/09/2021, da autoria da mandatária da ré, com o seguinte teor: “Assunto: Dívida emergente dos contratos de empréstimo com hipoteca n.os PT .................90, PT .................90 e PT .................91 celebrados entre a sociedade R..., Lda e a Caixa Geral de Depósitos, S.A. “(…) “Incumbiu-nos a n/constituinte XYQ – Luxco Sarl, actual titular dos créditos emergentes dos contratos supra identificados, os quais beneficiam de garantia hipotecária sobre a Fracção AC do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... (...) sob o número 1202/19990309-AC, de o contactar previamente ao accionamento de V. Exa., na qualidade de actual proprietário do identificado imóvel. “Em face do incumprimento da sociedade mutuária nos contratos em epígrafe, encontra-se a mesma a ser executada pelo valor global de € 1.269.451,11 (…), onde se incluem capital acrescido de juros vincendos desde 01/10/2019 até integral pagamento, à taxa legal em vigor de 4%; valor que não se encontra pago até ao presente momento. “Mantendo-se o incumprimento não restará ao nosso constituinte outra alternativa que não seja a de accionar também V. Exa. na qualidade de actual proprietário do referido imóvel, e até ao valor deste, ao abrigo do disposto no art.º 54.º, n.º 2, do CPC. (…)”, tudo nos moldes vertidos no documento junto com a petição inicial sob o n.º 6, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

8. Depois de definitivamente construída a fracção autónoma denominada pela letra AC, o que ocorreu em data em concreto não apurada, mas seguramente, pelo menos, no ano de 2000, os autores, por si, passaram a usar e fruir da fracção autónoma identificada no anterior ponto 2.

9. Passando, desde o ano de 2000, o autor BB, com autorização dos restantes, a habitar a casa, nela confeccionando e tomando refeições, repousando e dormindo, recebendo familiares e amigos, estacionando veículos na garagem e guardando objectos nos arrumos.

10. Fazendo obras e benfeitorias e suportando os custos.

11. Pagando os impostos e contribuições.

12. O que os autores, em representação da aludida herança, têm feito à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição e na firme convicção de que estão e sempre estiveram, pelo menos desde 2000, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre a aludida fracção.

13. Durante mais de 30 anos e até data em concreto não apurada, mas nunca depois de 16/10/1996, por si e ante possuidores, o 1º autor cultivou milho, batatas, feijão, vinha, no prédio rústico denominado «Leiras..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1006, colhendo os respectivos frutos e retirando dele as demais utilidades que lhe são inerentes.

14. O que fez à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição e na firme convicção de que esteve sempre, bem como toda a gente, no exercício pleno e exclusivo do seu direito de propriedade sobre o aludido prédio rústico.

15. Os autores não foram advertidos, aquando da escritura de permuta supra identificada, da existência de qualquer ónus ou encargos sobre a fracção autónoma que lhes foi permutada, sendo que, à data dessa escritura, não havia qualquer hipoteca constituída.

16. A Caixa Geral de Depósitos não ignorava a AP. 3 de 1996/10/21, e bem assim não ignorava os factos descritos nos anteriores pontos 3 a 5, inclusive.

Sobre as questões ora em apreciação, tenhamos presentes as conclusões n.os 5 a 10 da presente revista, acima transcrita, e que naturalmente nos abstemos de aqui renovar.

I. Apreciemos, em primeiro momento, da posse dos autores sobre a fracção autónoma identificada nos autos e da por si invocada aquisição do direito de propriedade sobre a mesma por usucapião desde 16/10/1996:

A autora da herança EE e o 1.º autor acordaram em 16/10/1996 com a sociedade “R..., Lda.”, a permuta do prédio rústico do qual eram proprietários, com a área de 520 m2, descrito sob o n.º 1006, por um apartamento modelo T4, sito no 3.ºandar do edifício que aquela sociedade tinha em construção.

Não resultou provada a data da finalização da construção do referido edifício, provando-se apenas que depois de definitivamente construída a fracção autónoma denominada pela letra AC, o que ocorreu em data não concretamente apurada, mas seguramente, pelo menos, no ano de 2000, os autores, por si, passaram a usar e fruir a referida fracção autónoma.

Provou-se igualmente que o prédio no qual se situa a referida fracção AC foi constituído no regime da propriedade horizontal pela AP. 35, de 2000/07/31.

Alegam os autores que, por si e antecessores, acedendo à posse da R..., Lda, estão na posse da referida fracção autónoma (e das partes comuns do prédio) desde 16/10/1996, data da outorga da escritura de permuta acima referida.

O acordo celebrado entre o casal formado pela falecida EE e seu marido, 1.º autor, e a sociedade R..., Lda, mediante o qual esta última se obrigou a entregar àqueles, como contrapartida da aquisição de um prédio rústico, uma fração autónoma de prédio a constituir em propriedade horizontal e a edificar em área que incluía aquele prédio, configura um contrato de permuta de um bem imóvel presente (prédio rústico de que aquele casal era proprietário) por um bem imóvel futuro (apartamento a construir por aquela sociedade comercial) – nesse sentido o acórdão do STJ de 08-10-2015 (Revista n.º 6998/13.1TBBRG.S1)

De acordo com o disposto no art. 211.º do CC, “são coisas futuras as que não estão em poder do disponente, ou a que este não tem direito, ao tempo da declaração negocial.”

A jurisprudência e a doutrina distinguem as coisas objectiva, absoluta ou naturalmente futuras, que correspondem às que ainda não existem física ou juridicamente ao tempo da conclusão do negócio, e as coisas subjectiva, relativa ou convencionalmente futuras que são aquelas de que o disponente não é titular, na medida em que sejam tidas pelas partes nessa qualidade – cfr. MARTA SÁ REBELO, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 475.

No caso dos autos, o contrato de permuta teve por objecto um bem absolutamente futuro pois no momento da sua celebração, a fracção autónoma ainda não estava sequer construída (neste sentido o acórdão do STJ de 22-03-2011, Revista n.º 484/05.0TBAVV.G1.S2). Além de que, tratando-se de uma fracção autónoma, como salienta a mesma autora acima citada: (idem, pág. 476): “a não existência jurídica do objecto da compra e venda equipara-se à sua inexistência física. A fracção autónoma é coisa futura enquanto não for constituída a propriedade horizontal ainda que o edifício já esteja construído”.

Não resultou provada a data de construção do prédio, mas provou-se que o prédio no qual se situa a referida fracção AC foi constituído no regime da propriedade horizontal por facto registado em 2000/07/31, pelo que apenas nesta data o bem teve existência jurídica, sendo até esse momento um bem futuro.

Ao contrato de permuta celebrado entre as partes, sendo um contrato oneroso atípico, pelo qual se transferem direitos reais mediante uma contrapartida, aplicam-se as normas da compra e venda, nos termos do disposto no art. 939.º do CC. Assim, além do disposto no art. 408.º, n.º 2, tem aplicação o art. 880.º, n.º 1, ambos do CC.

Dispõem as referidas normas o seguinte:

Art. 408.º

(Contratos com eficácia real)

1. A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei.

2. Se a transferência respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou separação.

Art. 880.º

(Bens futuros, frutos pendentes e partes componentes ou integrantes)

1. Na venda de bens futuros, de frutos pendentes ou de partes componentes ou integrantes de uma coisa, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato.

Neste contrato de permuta, como se afirmou no acórdão de 08-10-2015 (Revista n.º 6998/13.1TBBRG.S1) acima citado, que apreciou situação similar à dos presentes autos, e decorre expressamente do referido n.º 2 do art. 408.º do CC, os efeitos translativos deste contrato operam em momentos diferentes: a aquisição do prédio rústico pela sociedade comercial R..., Lda é imediata; já a aquisição da fracção, pelo 1.º autor e sua falecida mulher, ocorre apenas no momento da constituição da propriedade horizontal (vide também os acórdãos do STJ de 03-02-2005 (Revista n.º 4380/04), de 19-03-2002 (Revista n.º 512/02), de 11-11-2004 (Revista n.º 3537/04), de 03-11-2005 (Revista n.º 3919/04), de 07-12-2005 (Agravo n.º 4764/04), de 22-03-2011 (Revista n.º 484/05.0TBAVV.G1.S2) e de 18-02-2014 (Revista n.º 22927/10.1T2SNT.L1.S1).

Não existem, assim, dúvidas, que o efeito translativo da propriedade apenas se verifica com a constituição da propriedade horizontal, sem prejuízo de não ser necessário um novo acto de transmissão da coisa, como é referido no acórdão do STJ de 19-03-2002 (Revista n.º 512/02), acima citado.

Da mesma forma, o 1.º autor e sua falecida mulher apenas adquiriram a posse da referida fracção autónoma com a constituição da propriedade horizontal, momento a partir do qual a fracção teve existência jurídica. Seja como for, essa aquisição da posse nunca poderia ser anterior ao ano 2000, momento em que foi finalizada a construção do prédio onde se localiza o apartamento. Antes dessa construção, a referida fracção não tinha qualquer existência física, pelo que o alegado pelos ora recorrentes quanto a uma alegada posse do imóvel em momento anterior à sua construção carece totalmente de sentido.

Com efeito, a posse pressupõe sempre um controlo material sobre uma coisa corpórea (cfr. Luís da Cunha Gonçalves, Da propriedade e da posse, Lisboa, Edições Ática, 1952, pág. 183; Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 64; José António de França Pitão, A posse, Lisboa, Quid Juris, 2020, págs. 7 e 8; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, Direitos Reis (1.ª Parte), Coimbra, Almedina, 2022, págs. 519 e ss.; e Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, 8.ª ed., Coimbra, Almedina, 2019, pág. 115).

A maioria da jurisprudência e da doutrina defendem que o nosso ordenamento jurídico adopta a concepção subjectiva da posse, sendo esta integrada por um corpus e pelo animus.

Sendo que “o corpus corresponde ao exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa” (acórdão do STJ de 21-10-2010, Revista n.º 120/2000.S1), ou seja, a posse pressupõe sempre um elemento material que consiste no domínio de facto sobre uma coisa corpórea, traduzindo-se esse domínio no exercício de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício – a mero título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do STJ de 20-05-2010 (Revista n.º 12411/03.5TBVNG.P1.S1), de 23-09-2010 (Revista n.º 2265/06.5TBGDM.P1.S1), de 30-03-2017 (Revista n.º 809/14.8T8SLV-B.E1.S1), de 29-01-2019 (Revista n.º 376/10.1TBLNH.L1.S1), de 21-02-2019 (Revista n.º 423/11.0TBHRT.L2.S1), de 16-11-2021 (Revista n.º 2534/17.9T8STR.E2.S1).

Na doutrina, vejam-se, a título exemplificativo, LUIS DA CUNHA GONÇALVES, cit., págs. 184 e ss.; OLIVEIRA ASCENSÃO, cit., págs. 80 e ss.; JOSÉ ANTÓNIO DE FRANÇA PITÃO, cit., págs. 11 e ss.; LUÍS MENEZES LEITÃO, cit., págs. 109 e ss.

Como se salienta no sumário do acórdão do STJ proferido em 23-10-1997 (Processo n.º 870/96), “A concreta relação material do possuidor com a coisa possuída há-de traduzir-se em ocorrências factuais directamente observáveis pelos sentidos independentemente de valorações de juriscidade estrita”.

É, assim, impossível que se conceba existir posse sobre uma coisa que ainda não existe fisicamente, que não é possível apreender com os sentidos, como sucede com o apartamento T4 a construir, que foi objecto do contrato de permuta em causa nos presentes autos.

Alegam os recorrentes que, por meio de acessão, podem juntar à sua posse, a posse do seu antecessor, em concreto, a posse exercida pela sociedade R..., Lda bastando que haja transmissão da posse, designadamente por tradição. Concluem que, por essa via, acedendo à posse da R..., Lda, estão na posse da fracção autónoma (e das partes comuns do prédio) desde 16/10/1996.

Dispõe o art. 1256.º o seguinte:

1. Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor.

2. Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito.

Como sustenta VASSALO ABREU (in “Uma relectio sobre a acessão da posse: (artigo 1256 do código civil)”,Nos 20 anos do código das sociedades comerciais: Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier”, volume II: Vária, Coimbra Editora, 2007, pág. 134), os requisitos de aplicação desta norma podem decompor-se da seguinte forma:

“a) Existência de posses ligadas entre si por um nexo de aquisição derivada diverso da sucessão por morte (1.ª parte do n° 1 do artigo 1256.'').

b) Carácter facultativo da acessão (2.ª parte do n° 1 do artigo 1256.°).

c) Acessão dentro dos limites da posse de «menor âmbito», em caso de posses de «natureza diferente» (n° 2 do artigo 1256.°)

d) Inexigibilidade de um vínculo jurídico válido entre o actual possuidor e o seu (imediato) antecessor na posse”.

No caso dos autos, não se encontra verificado desde logo o primeiro requisito respeitante à existência de posses ligadas entre si por um nexo de aquisição derivada diverso da sucessão por morte (1.ª parte do n.º 1 do artigo 1256.”).

Como sustenta o mesmo autor (idem, pág. 137): a “aquisição derivada da posse é aquela em que a posse do adquirente depende geneticamente de uma posse anterior, quer quanto à existência, quer quanto à natureza, âmbito ou conteúdo, quer quanto à extensão ou área de incidência. Por outra via, a nova posse pressupõe uma posse anterior, fundando-se ou filiando-se nela. Esta última extingue-se ou limita-se para, simultaneamente, dar lugar à nova posse, havendo entre os dois fenómenos um nexo de derivação, e não apenas cronológico, ao invés do que pode suceder na aquisição originária.”

Ou seja, a acessão pressupõe a existência de duas posses contínuas (Manuel Rodrigues, A posse: estudo de direito civil português, 2ª ed. Coimbra, 1940, pág. 290). E se é possível que as posses em causa tenham natureza diferente como decorre expressamente do n.º 2 do art. 1256.º do CC, nomeadamente, porque o actual possuidor e o antecessor possuam em termos de direitos reais diferentes, ou porque as respectivas posses divergem quanto aos seus caracteres (cfr. Abílio Vassalo Abreu, idem, pág. 131), necessariamente a posse deve respeitar ao mesmo bem.

No caso dos autos, os recorrentes pretendem adicionar a posse da sociedade R..., Lda sobre um bem distinto, ou seja, a posse sobre o prédio rústico transmitido no contrato de permuta celebrado em 1996. Sucede que esse prédio rústico e a fracção autónoma são bens distintos.

Importa salientar que, de acordo com os factos provados, não existe sequer coincidência geográfica total da localização de um e de outro bem. O prédio rústico objecto do contrato de permuta com a área de 520 m2 (n.º 1006/19961014) foi anexado a outros 4 prédios (n.ºs 597/19920319, 598/19920319, 884/19951019 e 1007/19961014) para darem origem ao prédio urbano, com a área de 13300m2, descrito sob o n.º 1053/19970708. E foi por desanexação deste último prédio que surgiu o prédio urbano descrito sob o n.º 1202/19990309, composto por um edifício de nove pisos, no qual se situa a fracção autónoma cuja posse os autores invocam.

É, assim, manifesto que nem sequer resulta dos autos que o referido edifício onde se situa o apartamento dos autores se localiza em concreto na área de 520m2 que correspondia ao prédio rústico objecto do contrato de permuta, podendo perfeitamente situar-se na área que correspondia a um ou mais dos restantes 4 prédios que foram anexados.

Em consequência do acima descrito, não podem os autores juntar à sua posse, a posse de um outro prédio que nada tem que ver com aquela fracção. A sociedade R..., Lda nunca possuiu este último imóvel, pois tal fracção só teve existência jurídica com a constituição da propriedade horizontal no ano de 2000, sendo que, antes desse ano, como já ficou dito, nem sequer tinha existência física.

Por outro lado, pretendendo os autores com a acessão da posse, invocar que a sua posse teve início em data não posterior a 16/10/1996 e dessa forma adquirirem o direito de propriedade sobre a fracção por usucapião desde essa data, anterior à constituição da hipoteca, como resulta claramente do art. 1256.º, n.º 2, do CC, “se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito”.

Assim, como se salienta no acórdão recorrido, os aqui autores “teriam sempre de aceitar os termos em que a mesma (posse) fora exercida pelo seu antecessor e, dentro daquela que tem menor âmbito, nomeadamente a constituição, pelos mesmos – os seus antecessores - da supra aludida hipoteca”.

Em conclusão, não é legalmente possível a acessão da posse nos termos pretendidos pelos recorrentes e, em consequência, a aquisição pelos autores do direito de propriedade da fracção autónoma em causa nos autos, por usucapião, reporta-se à posse com início no ano 2000 e não em data anterior.

Improcede, dessa forma, esta parte do recurso de revista.

I. Da alegada inoponibilidade da hipoteca registada sobre a fracção autónoma aos autores

Alegam ainda os autores que a solução jurídica acima indicada conduz à seguinte contradição que evidencia o erro de tal argumentação:

“i. Para negar aos AA. a possibilidade do exercício da posse sobre a fracção autónoma, afirma-se que esta não tem existência e nem autonomização jurídica em data anterior à propriedade horizontal (31/07/2000)

ii. Para conferir à Ré protecção, estendem-se à fracção autónoma os efeitos do registo da hipoteca desde a data anterior à constituição da propriedade horizontal (13/05/1998).

iii. Como é que uma mesma fracção autónoma existe para uma coisa e não existe para outra?

Concluem os recorrentes que embora a extensão da hipoteca ao edifício nele construído ocorra por mero efeito da lei, essa hipoteca, por força dos artigos 939.º e 408, n.º 2 do Código Civil, só produz efeitos em relação às fracções autónomas do edifício, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal.

Com todo o respeito, os autores e recorrentes parecem confundir conceitos e institutos jurídicos, não havendo qualquer contradição.

Vejamos:

De acordo com o disposto no art. 691.º, n.º 1, do CC: “A hipoteca abrange:

a) As coisas imóveis referidas nas alíneas c) a e) do n.º 1 do artigo 204.º;

b) As acessões naturais;

c) As benfeitorias, salvo o direito de terceiros.”

Dispõe, por sua vez, o art. 696.º do mesmo Código, que consagra o princípio da indivisibilidade da hipoteca, o seguinte: “Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.”

Em situações similares à dos presentes autos, de acordo com o referido princípio da indivisibilidade, estas normas têm sido interpretadas de forma constante pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a hipoteca constituída sobre um prédio rústico estende-se ao edifício constituído em propriedade horizontal (e às respectivas fracções autónomas) que nele foi construído posteriormente – acórdãos do STJ de 22-04-1997 (Processo n.º 119/97), de 12-02-2004 (Revista n.º 2831/03), de 12-07-2005 (Revista n.º 2012/05), de 08-10-2015 (Revista n.º 6998/13.1TBBRG.S1), e de 11-03-2021 (Revista n.º 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1), de 11-11-2004 (Revista n.º 3537/04), de 14-02-2008 (Revista n.º 4515/07), de 14-02-2008 (Revista n.º 962/07) e de 03-11-2005 (Revista n.º 3919/049)

No mesmo sentido, veja-se a nível doutrinário, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed, 1987, pág. 713), Romano Martinez e Fuzeta da Ponte (Garantias de Cumprimento, Almedina, 2.ª ed., pág. 122, nota 211), Salvador da Costa (O Concurso de Credores, Almedina, 5.ª ed., 2015, pág. 76); e Luís Menezes Leitão (Garantia das Obrigações, Almedina, 2012, 4.ª Edição, págs. 190/191).

Ao contrário do que é referido pelos recorrentes, esta interpretação encontra a sua justificação no regime da hipoteca enquanto garantia especial das obrigações. Como se defende no acórdão do STJ de 11-03-2021 (Revista n.º 2889/15.0T8OVR-A.P1.S1),“A indivisibilidade da hipoteca, ainda que apelando à estrutura do direito real (princípio da totalidade da coisa), não encontra nela a sua razão de ser, mas antes num assumido propósito do legislador de protecção do credor relativamente às consequências das vicissitudes da coisa onerada, especialmente contra a desvalorização da coisa em virtude da sua divisão, a necessidade de interpor um número indeterminado de acções, a necessidade de impugnar actos do devedor (v.g. a atribuição da permilagem às diversas fracções autónomas do imóvel constituído em propriedade horizontal) ou a necessidade de proceder a uma avaliação prévia dos bens (cf. PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed. Revista e actualizada, 1987, pg 719; OLIVEIRA ASCENSÃO /MENEZES CORDEIRO, Expurgação de Hipoteca, CJ, 5/1986, pg 42).”

Citando RUI ESTRELA DE OLIVEIRA (“A Renúncia Tácita do Credor à Indivisibilidade da Hipoteca”, 2020), afirma-se no mesmo aresto o seguinte: “Os propósitos do legislador com a norma em causa centram-se, pois, na garantia do crédito, tendo pretendido evitar-se que as eventuais vicissitudes a ocorrer na coisa dada em garantia pudessem sacrificar a satisfação do crédito, nomeadamente, que parte daquele crédito deixasse de ser garantido ou que a garantia, ao invés do seu momento inicial, se viesse a revelar curta ou insuficiente para os propósitos iniciais. Há, pois, uma relação umbilical e de dois sentidos entre o crédito e a indivisibilidade da garantia: a indivisibilidade, com a apontada instituição da estabilidade material da garantia originária, tem em vista (…) a tutela do crédito garantido na sua integralidade”. (sublinhado nosso)

Não existe qualquer contradição entre a protecção do credor hipotecário, aqui sociedade recorrida, e a posição dos autores titulares do direito de propriedade sobre a fracção autónoma. A hipoteca, enquanto direito real, incidiu sempre sobre um bem corpóreo, sobre uma coisa determinada desde a data da sua constituição. Incidindo sobre um prédio no qual veio a ser constituída a propriedade horizontal, dividido em fracções autónomas, houve uma nova realidade predial, mas não deixou de subsistir o bem inicial.

Atento o principio da indivisibilidade da hipoteca com o propósito acima referido, de modo a proteger o credor das vicissitudes a ocorrer na coisa dada em garantia que pudessem sacrificar a satisfação do crédito, a hipoteca passa a abranger automaticamente as novas fracções autónomas em que o prédio se dividiu.

Esta situação não se compara com a do 1.º autor e sua falecida mulher, os quais deixaram de ser titulares do direito real de propriedade sobre o prédio rústico que alienaram à sociedade R..., Lda com a celebração do contrato de permuta em 1996, apenas passando a ser titulares de um direito de propriedade da fracção autónoma com a constituição da propriedade horizontal que teve lugar em 2000, como acima vimos. Entre a celebração do contrato de permuta e a data de constituição da propriedade horizontal, o 1.º autor e sua falecida esposa eram apenas titulares de um direito de crédito sobre a sociedade R..., Lda nos termos do disposto no art. 880.º, n.º 1, do CC, estando aquela sociedade obrigada a exercer as diligências necessárias para que aqueles viessem a adquirir a referida fracção, segundo o que foi estipulado no contrato de permuta.

Não pode, assim, confundir-se um direito real de garantia, a hipoteca, que incidia sobre uma coisa corpórea, com um direito de natureza obrigacional de que o 1.º autor e sua esposa eram titulares, o qual vinculava apenas a sociedade R..., Lda e não a credora hipotecária ou a aqui sociedade recorrida que àquela sucedeu, além de tal direito de crédito respeitar a um bem futuro que ainda não tinha existência física ou jurídica.

Também carece totalmente de sentido a alegação dos recorrentes de que à hipoteca seja aplicável o disposto no art.º 408.º, n.º 2, do Código Civil para que, segundo os autores, constituída hipoteca sobre terreno destinado a construção, a extensão da mesma ao edifício nele construído só produza efeitos em relação às fracções autónomas, enquanto unidades prediais independentes, quando se opera a sua individualização e autonomização jurídica através da constituição do regime da propriedade horizontal.

Tal como acima já foi referido, a constituição da hipoteca através do seu registo teve por objecto um prédio existente naquela data e não qualquer bem futuro que ainda não existisse física ou juridicamente. O princípio da indivisibilidade da hipoteca legalmente consagrado nos termos acima expostos implica que o credor hipotecário fica protegido das vicissitudes que possam ocorrer com a coisa hipotecada, pelo que a hipoteca produz efeitos desde a data do seu registo constitutivo. Não se trata de “ficcionar” a existência da fracção autónoma desde data anterior à constituição da propriedade horizontal. Trata-se apenas de estender a protecção concedida ao credor hipotecário à nova realidade predial que passou a existir com a divisão do prédio objecto da hipoteca em fracções autónomas, mas sem que exista qualquer hiato temporal em que a hipoteca não incidisse sobre um bem corpóreo.

III – Da consideração da Ré (adquirente do crédito garantido pela hipoteca) como terceira de má-fé, para efeitos do disposto no art. 5.º do Código de Registo Predial.

Os Autores recorrentes sustentam ainda que não está em causa nos autos a sua negligência ou incúria, mas a impossibilidade legal e objectiva de proceder ao registo de um bem imóvel futuro em momento anterior ao registo da propriedade horizontal.

Fazem ainda apelo ao regime consagrado no art. 5.º do Código de Registo Predial (CRP), alegando, no fundo, que a ré, aqui recorrida, é terceira de má-fé para efeitos de registo predial, uma vez que a antecessora da ré, a CGD, que procedeu ao registo da hipoteca voluntária, tinha pleno conhecimento da permuta celebrada em 16/10/1996, pelo que não ignorava que o direito real de garantia que lhe estava a ser concedido pela R..., Lda” era incompatível com o direito dos autores recebido por permuta, em data anterior, do mesmo transmitente comum (R..., Lda).

Em primeiro lugar, surge de imediato a dificuldade (se não a impossibilidade) legal de proceder ao registo de um bem imóvel futuro em momento anterior ao registo da propriedade horizontal, desde logo porque o registo predial se destina, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art. 1.º do Código de Registo Predial), dependendo o registo, como tal e antes de mais, da existência de um prédio, tal pressupondo a sua existência física e jurídica.

[Diga-se, num parêntesis, que é defensável a efectivação de registo predial da aquisição de bem futuro, neste sentido se pronunciando J. A, Mouta Guerreiro no artigo “O contrato de permuta: sua formalização e registo” disponível em < https://repositorio.upt.pt/entities/publication/efd03257-f010-4686-8df1-3873a51786bd >], nos termos seguintes:

Caracterização sumária do contrato de permuta, Possibilidade da permuta de bens presentes por bens futuros e da correspondente titulação, havendo necessidade da definição desses bens. quando se trata de “andares” futuros, há a possibilidade, embora não exista a indispensabilidade, de constituição simultânea da propriedade horizontal, bem como a de ser titulada a permuta nos casos em que a contraprestação fica condicionada a uma ulterior “escolha” de tais andares. quanto ao registo ele é igualmente possível quando esses andares futuros estão individualizados com a constituição da propriedade horizontal, mas também, não estando esta constituída, se forem determináveis e apesar de nem sequer sobre eles poder incidir um direito real: o sistema registral admite a inscrição de direitos meramente obrigacionais, referenciando -se, então, as partes dos prédios em causa no extrato da inscrição”.]

Fechado este parêntesis, afigura-se-nos que tal questão nem se deverá colocar no caso que nos ocupa, uma vez que o bem futuro a adquirir, como acima se disse, não estava suficientemente determinado no contrato de permuta, sendo certo também que a dita permuta e futura aquisição da fracção autónoma sempre teria de ser registada, só assim tendo eficácia real, a fim de o respectivo registo poder beneficiar de prioridade em relação a outros registos.

Assim, como já foi amplamente referido, a fracção autónoma que foi objecto do contrato de permuta indicado nos factos provados apenas teve, in casu, existência jurídica com a constituição da propriedade horizontal, pelo que só a partir desse momento é que poderiam ser praticados factos sujeitos a registo predial.

Quanto ao art. 5.º do CRP, dispõe o respectivo n.º 1, “que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo.”. Nos termos do n.º 4 do mesmo preceito: “Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”

Esta última norma consagrou o conceito de terceiro decorrente do AUJ nº 3/99 de 18/05, publicado no Diário da República I série A, de 10-07-1999 que uniformizou a jurisprudência no sentido de que “terceiros para efeito do art. 5º do Cód. de Registo Civil, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.

Ora, sobre a mesma questão que está em causa nestes autos, o STJ pronunciou-se no acórdão do STJ de 08-10-2015 (Revista n.º 6998/13.1TBBRG.S1), já acima citado, no qual também estava em causa um contrato de permuta de bens presentes por bens futuros, mediante o qual uma sociedade comercial obrigou-se perante os autores dessa acção a entregar-lhes, como contrapartida da aquisição de uma parcela de terreno, cinco fracções de prédio a constituir em propriedade horizontal e a edificar nesta mesma parcela. Também na situação apreciada por esse acórdão, a referida sociedade comercial constituiu uma hipoteca a favor de um Banco, que tinha por objeto a parcela de terreno adquirida com a celebração do contrato de permuta, destinando-se a hipoteca a garantir o financiamento da construção do prédio no qual se incluíam as referidas fracções objecto da permuta.

Também nessa acção, tal como nos presentes autos, foi alegado que o credor hipotecário era terceiro de má-fé pois ao constituir a hipoteca incidente sobre um terreno para construir, sabia que havia um contrato de permuta em que os ali autores cederam o terreno a uma firma terceira em troca de receberem cinco frações prediais a implantar no terreno.

Defendeu-se no referido aresto que o referido credor hipotecário não era terceiro nem estava de má fé. Pois quando recebeu como beneficiário a hipoteca sobre o terreno para construção, este pertencia à sociedade para o qual foi transmitida a propriedade daquele terreno, ou pelo menos estava registado em nome da mesma e como tal se presumia, pelo que essa sociedade tinha plena legitimidade para dar aquele imóvel em hipoteca. Ao invés, o direito dos autores nessa acção sobre as frações era, então, futuro, pelo que, só com a constituição da propriedade horizontal é que as referidas frações passaram para a sua propriedade.

Também no caso dos autos, de acordo com os factos provados, quando foi constituída a hipoteca a favor da CGD, através de registo datado de 13/05/1998, de quem a ora recorrida veio a adquirir o crédito hipotecário, essa hipoteca tinha por objecto o prédio urbano no qual veio a ser constituída a propriedade horizontal que deu origem à fracção autónoma reivindicada pelos autores, prédio esse cujo direito de propriedade estava registado a favor da sociedade R..., Lda. Esta sociedade tinha, assim, plena legitimidade para dar o bem em hipoteca a uma instituição de crédito pois nessa data (1998) o direito do aqui 1.º autor e sua falecida mulher era apenas um direito de crédito sobre um bem futuro nos termos já acima expostos.

Tal como se defendeu no referido acórdão do STJ de 08-10-2015, o direito de propriedade adquirido pelos aqui recorrentes sobre a fracção autónoma não constitui um direito formalmente incompatível com o direito de hipoteca da ré recorrida, pois ambos os direitos reais podem coexistir.

Se é verdade que a existência da hipoteca impediu que os recorrentes viessem a registar a sua aquisição da fracção habitacional livre de ónus ou encargos, como decorria do contrato de permuta, tal terá resultado do incumprimento contratual da sociedade R..., Lda, o que, num ângulo formal ou registral, não torna a dita aquisição incompatível com a existência da hipoteca, sendo uma clara consequência do direito de sequela inerente aos direitos reais, que atribui ao sujeito activo a faculdade de acompanhar a coisa nas suas transmissões, assistindo-lhe a prerrogativa de fazer valer o seu direito sobre a mesma, podendo persegui-la e reivindicá-la onde quer que esta se encontre, desde a sua constituição até ao momento da sua extinção.

No mesmo sentido, e em casos em que estava igualmente em causa um contrato de permuta de bens presentes por bens futuros (fracções autónomas), discutindo-se a oponibilidade da hipoteca constituída em data anterior à data em que operou a transferência para os permutantes da propriedade das fracções (com a constituição da propriedade horizontal), se pronunciaram diversos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, designadamente o Acórdão de11-11-2004 (Revista n.º 3537/04), que afirmou ser “de permuta e sobre coisa futura o contrato que teve por objecto a cedência pelos autores aos primeiros réus de um terreno para construção e, como contrapartida, a transferência destes para aqueles da propriedade de uma fracção autónoma de um prédio que iria ser construído, como efectivamente o foi”. E que “Por essa razão, a transferência da propriedade da fracção autónoma apenas operou com o estabelecimento da propriedade horizontal sobre o prédio respectivo (art.ºs 939, 408 n.º 2, 880 e 895 do CC)”, sendo “tal contrato absolutamente ineficaz em relação a um terceiro a favor de quem foi constituída uma hipoteca sobre o prédio antes da sua construção, devidamente inscrita no registo predial, cuja validade e eficácia erga omnes não pode ser questionada.”

Ainda o Acórdão de 03-11-2005 (Revista n.º 3919/04), segundo o qual “O contrato de permuta acima referido não bule com o direito de terceiro a favor de quem foi constituída posteriormente uma hipoteca - devidamente inscrita no registo predial - sobre um dos lotes de terreno que resultaram da demolição dos prédios cedidos, lote esse no qual foi construído pela co-executada um prédio em regime de propriedade horizontal, com várias fracções distintas e autónomas, entre as quais as cedidas aos embargantes. A sobredita hipoteca transferiu-se, pois, para a nova realidade predial, tal como ela existe agora, e acompanhou a transmissão das fracções que os embargantes adquiriram

Por fim o Acórdão de 14-02-2008 (Revista n.º 4515/07), que assevera que “A hipoteca constituída sobre um prédio rústico adquirido por permuta estende-se ao edifício constituído em propriedade horizontal (e às respectivas fracções autónomas) que nele foi construído posteriormente (art. 691.º, al. c), do CC). Tal hipoteca, porque registada anteriormente ao registo das aquisições das fracções autónomas pelos permutantes, prevalece sobre este registo posterior, não sendo esta conclusão prejudicada pelo facto de a aquisição do prédio rústico por permuta ter sido também ela registada e num momento anterior em que o foi a hipoteca em apreço”.

Na verdade, a CGD ou a aqui ré recorrida não foram parte no referido contrato de permuta, nem se encontram obrigadas nos termos desse contrato de acordo com a regra geral prevista no art. 406º nº 2 do CC.1

Seguindo a argumentação do referido acórdão do STJ de 08-10-2015, também somos a concluir, atenta a factualidade provada, que a aqui ré recorrida ou sua antecessora CGD não procederam de má-fé.

De facto, é nosso entendimento que a CGD, sabendo da existência do contrato de permuta em que os recorrentes cederam um terreno em troca de uma fracção autónoma no prédio a construir, em nada violou qualquer dever de lisura, probidade ou de lealdade em que se consubstancia e analisa a má fé, quando outorgou o contrato de mútuo com hipoteca e passou a ser beneficiária desta garantia, tanto quanto certo é que a hipoteca visou garantir a operação de financiamento que aquela concedeu à sociedade R..., Lda, e que se destinou precisamente a financiar a construção que compreendia a edificação das fracções prediais, uma das quais consistia no pagamento que os recorrentes tinham direito pela permuta.

Com efeito, embora os autores refiram que a CGD tinha conhecimento do contrato de permuta quando outorgou com a R..., Lda o contrato de mútuo para financiamento do processo construtivo, o que ficou demonstrado, daí não se pode retirar-se a sua actuação de má-fé, pois que o financiamento bancário para a actividade da construção civil, com hipoteca subjacente, constitui um mecanismo ou procedimento comum nas actuais sociedades modernas que integramos, sem o qual o sector industrial da construção não poderia concretizar-se, o que muito abalaria a evolução da economia em geral, sabendo-se, como se sabe, que aquele sector é um pilar ou um verdadeiro “motor” ou “alavanca” da economia em geral, gerando o crescimento de outros sectores que dele dependem, bastando pensar nas matérias primas o alimentam, o sector das águas e da electricidade, das máquinas industriais usadas no fenómeno construtivo, e nas actividades industriais pós-construção, como a dos eletrodomésticos e outras, assim como postos de trabalho da mais diversa índole, criando a riqueza de que as sociedades dependem.

Sendo que da transmissão dos créditos que a CGD fez à Ré, ficando esta beneficiária e titular da garantia da hipoteca aos mesmos subjacente, sendo também um fenómeno das sociedades industriais desenvolvidas, como pretendemos que seja a nossa, em que diversos projectos negociais envolventes de investimentos imobiliários cada vez mais se verificam são transmitidos entre grupos e organizações empresariais, não pode também retirar-se a actuação de má fé da demandada ora recorrida, pela simples circunstância de, face ao incumprimento do contrato de mútuo bancário por parte da sociedade financiada, não ter deixadoo a entidade que adquiriu do banco mutuante os créditos garantidos pela hipoteca, de continuar a beneficiar de tal garantia.

Impondo-se-nos reconhecer que no momento em que a sociedade R..., Lda deu de hipoteca à CGD o terreno para construção de que era proprietária (hipoteca cujo registo constitutivo data de 13/05/1998), tinha a mesma inteira legitimidade para o fazer, tendo em vista, repetindo, o financiamento da construção do prédio habitacional de que veio a fazer parte a fracção dos autores, ficando-lhe a caber o direito de onerar o prédio urbano que naquele veio a ser edificado, que veio a ser registado sob o regime de propriedade horizontal, momento este em que, aí sim, surge uma nova realidade predial, para esta se transferindo aquele direito real de garantia, integrando cada uma das suas fracções essa mesma garantia.

Ora, tendo a aquisição da fracção autónoma ocorrido para os ora recorrentes apenas no momento da constituição da propriedade horizontal, sendo até esse momento apenas titulares de um direito de crédito sobre a sua contraente na permuta, não podendo aquela aquisição, porque não registada, ser reportada à data dessa mesma permuta (1996), jamais se poderá afirmar que o objecto daquela hipoteca era pertença daqueles quando a hipoteca foi constituída, pois que este era então, efectivamente e tão só da sociedade hipotecária.

Por último, diga-se que, ante os factos apurados, não se revela que a Ré possa ser configurada como terceira de má fé para efeitos de registo, desde logo porque, como adquirente, por transmissão da CGD, dos créditos garantidos pela hipoteca, não assumiu qualquer conduta em si ilustrativa do propósito ou sequer consciência de, com essa aquisição, causar prejuízos aos Autores.

Importará ter presente que a hipoteca nunca foi por si impeditiva de a sociedade R..., Lda cumprir cabalmente o contrato celebrado com a credora hipotecária (a CGD), o que por sua vez permitiria o integral cumprimento por aquela do contrato de permuta celebrado com os Autores, mediante a entrega aos mesmos da fracção habitacional permutada, livre de ónus e encargos.

Com efeito, visando aquela hipoteca o financiamento de vários blocos de apartamentos, com a venda de outras fracções poderiam advir réditos bastantes para o pagamento do mútuo em causa, o que extinguiria a hipoteca e permitiria, com o respectivo cancelamento do registo da hipoteca, o pleno cumprimento do contrato de permuta, naqueles termos outorgado.

Tal não sucedeu porque a sociedade R..., Lda, beneficiária da hipoteca, não reembolsou a entidade bancária mutuante, a CGD, no prazo para o efeito combinado, sendo certo que tal incumprimento em nada pode prejudicar a Ré, que adquiriu àquela entidade bancária os créditos emergentes do contrato de mútuo financiador da construção garantido pela hipoteca, registada em momento anterior ao direito de propriedade dos autores.

Não podendo ser a Ré ser obrigada a reparar os eventuais danos advenientes para os Autores do incumprimento da sociedade R..., Lda.

Aliás, diga-se que, analisada a petição inicial, pese embora invoquem a ma fé da CGD (nos artigos 27º a 30º da petição inicial2), em momento algum os autores ora recorrentes invocam a má fé da Ré, pretendendo evidenciá-la tão só através da sua posição de transmissária dos créditos da CGD (inerentes ao mútuo bancário) garantidos pela hipoteca, o que não basta para demonstrar a censurabilidade da sua conduta e inerente má-fé, pois que esta sempre implicaria que da sua parte existisse a consciência de, com essa aquisição, criar prejuízo aos Autores.

Diga-se, pois, concluindo, que da aquisição pela Ré à CGD dos créditos garantidos por hipoteca (criada como garantia do financiamento dado por aquela entidade bancária à sociedade R..., Lda, para a construção dos blocos de prédios, de que a fracção habitacional dos autores veio a fazer parte após a constituição e registo da propriedade horizontal) não pode extrair-se, sem algo mais que nem foi alegado, que a Ré tenha violado qualquer dever de lisura, probidade ou lealdade.

Assim, pese embora a inconsistência prática entre o direito da Ré e o direito dos autores, aquele de garantia do seu crédito com o registo da hipoteca a que sucedera à CGD, e este de propriedade sobre a fracção habitacional de que são proprietários, em que o transmitente é a mesma pessoa, o certo é que ambos os direitos reais são formalmente compatíveis, podendo coexistir de forma coerente e integrada, como existem.

Regressando ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, nº 3/99 de 18/05, acima referido, “terceiros para efeito do art. 5º do Cód. de Registo Civil, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.

Da hipoteca efectuada sobre o terreno para construção em causa quando o mesmo pertencia à sociedade R..., Lda” ou, pelo menos, estava registado e como tal se presumia, resulta a inequívoca legitimidade daquela para constituir tal hipoteca, hipoteca esta que veio a ser transmitida à ré, sem que esta, por tal transmissão, ante a factualidade apurada, possa ser de alguma forma censurada.

Por seu turno, sendo o direito dos autores sobre a fracção em causa, à data da hipoteca, um bem futuro, só passando a integrar a herança (aberta por óbito de EE e do 1º autor) com a constituição da propriedade horizontal, não se revela este direito de propriedade incompatível, como dito, com o direito de hipoteca da ré.

Falámos de inconsistência prática entre tais direito, desde logo porque, como resulta dos autos, o registo da hipoteca impediu o registo da aquisição do direito de propriedade da fracção pelos Autores, livre de ónus ou encargos, mas esta realidade, que não é impeditiva do exercício, embora contrastante, de um e outro direito, encontra a sua única causa no eventual incumprimento do contrato de mútuo bancário por parte da sociedade R..., Lda” para com a CGD, que transmitiu o crédito garantido à Ré, o que não torna aquela aquisição incompatível com a existência da hipoteca.

Concluindo, como o fez o Acórdão recorrido, tendo a escritura de permuta sido outorgada em 16.10.1996, vindo a ser constituída sobre o prédio urbano hipoteca voluntária a favor da CGD, registada a 13.5.1998, para garantia de todas as operações bancárias assumidas ou a assumir por “R..., Lda”, e vindo o prédio a ser constituído no regime da propriedade pela AP. 35, de 2000/07/31, a fracção autónoma em causa está registada a favor dos autores, através da AP 23 de 2008/02/01, tendo para aí transitado, pela AP 3 de 13/05/1998, o registo da hipoteca voluntária a favor da CGD posteriormente transmitida à Ré, de onde fica afastada qualquer dúvida que, em face do texto legal, a apontada incompatibilidade de direitos (real de garantia da Ré e real de gozo dos Autores), deve privilegiar o direito primeiramente registado, no caso o direito real de hipoteca de que a Ré é titular, que incide sobre a fracção de que os Autores são proprietários, devendo, pois, manter-se intocável.

De onde concluir que a Ré e os autores não são terceiros adquirentes para os efeitos do art. 5º do CRP, uma vez que os respectivos direitos são entre si compatíveis, embora contrastantes.

Improcede, assim, totalmente, a presente revista.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 14 de Março de 2024

Nuno Ataíde das Neves (relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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1. Art. 406º

  O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes e ou nos casos admitidos na lei.

  Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e nos termos especialmente previstos na lei.

2. 27.º E, por este conjunto de razões, não tinha a “R..., Lda.” legitimidade para sobre ela constituir hipoteca a favor da Caixa Geral de Depósitos, por ser a autora da herança e o 1.º A. os seus legítimos proprietários e possuidores;

  28.º Por seu turno, a Caixa Geral de Depósitos não ignorava os factos supra alegados nos artigos 5.º a 9.º, uma vez que estes emergiam com clareza do registo do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1053/19970708 e, subsequentemente, do descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1202/19990309;

  29.º Designadamente, a Caixa Geral de Depósitos não ignorava a AP. 3 de 1996/10/21, que tem por objecto a escritura pública de permuta supra descrita no artigo 5.º, cuja reprodução consta de todos os prédios: o descrito no n.º 1006/19961014, o descrito no n.º 1053/19970708 e, finalmente, o n.º 1202/19990309; - Cfr. docs. 3, 4 e 5;

  30.º Sabia a Caixa Geral de Depósitos, por essa razão, que a hipoteca voluntária que se mostra registada sob o prédio n.º 1202/19990309 pela AP. 3 de 1998/05/13, não podia incidir sobre a fracção AC, por esta ter advindo à posse e propriedade da autora da herança e o 1.º A. pela supra aludida permuta, celebrada 16/10/1996;