Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JORGE JACOB | ||
| Descritores: | HABEAS CORPUS PRISÃO PREVENTIVA PRISÃO ILEGAL DETENÇÃO DESCONTO CONTAGEM DE PRAZO EXCECIONAL COMPLEXIDADE INDEFERIMENTO | ||
| Data do Acordão: | 12/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : |
I - Se é certo que tanto a detenção como a prisão preventiva implicam uma privação da liberdade, esse é o seu único ponto de contacto, posto que traduzem realidades processuais distintas, preordenadas a finalidades também diversas, que não se confundem nem se sobrepõem. II - A detenção prevista nos artigos 254.º, nº 1, al. a) e 257.º, nº 1, b), do Código de Processo Penal, bem como noutras disposições que a admitem, constitui sempre uma medida precária, vinculada a finalidades expressamente previstas na lei, visando essencialmente a colocação do detido à disposição da autoridade judicial, tendo natureza instrumental relativamente ao acto processual para cuja consecução é ordenada. III - O conceito de detenção não se integra na prisão preventiva, privação de liberdade necessariamente determinada por decisão judicial, traduzindo medida de coação restritiva da liberdade destinada a acautelar os perigos previstos no art.º 204.º, n.º 1, do CPP, aplicável quando as demais medidas de coação legalmente previstas sejam inadequadas ou insuficientes. IV - A prisão preventiva apenas se inicia com o despacho judicial que a determina, sendo a partir desse momento que se contam os prazos de duração máxima previstos no art. 215º do CPP. V - Aqueles prazos de duração máxima da prisão preventiva não se confundem com o período total de privação da liberdade, ainda que, constituindo uma privação de liberdade, a detenção releve, a par da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, para efeitos de cumprimento da pena de prisão, verificado que seja o condicionalismo previsto no art. 80.º, nº 1, do Código Penal. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO: AA, melhor identificado nos autos, atualmente sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem do processo nº 235/23.8TELSB, veio requerer providência de habeas corpus mediante requerimento subscrito pelo seu mandatário, que tem o seguinte teor (transcrição – itálico nosso): (…) 1. O Arguido encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos. 2. O Arguido foi detido pelas 08H30, em sua casa, no dia 3 de Dezembro de 2024. 3. Foi presente ao juiz de instrução criminal para primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 4 de Dezembro de 2024. 4. O Tribunal Central de Instrução Criminal decidiu, leu e notificou o arguido da decisão de aplicação de medida de coacção prisão preventiva, no dia 7 de Dezembro de 2024. 5. Ao processo foi atribuída especial complexidade, nos termos do artigo 215.º, n.º 1 alínea a) e n.º 3 do CPP, tendo como consequência a prorrogação da manutenção da medida de coacção preventiva até ao prazo máximo de um ano. 6. Chegados ao dia 3 de Dezembro de 2025, o mandatário e o Arguido não foram notificados do despacho de acusação ou de arquivamento do processo por parte do Ministério Público [notificação conjunta como estipula artigo 113.º, n.º 10 do CPP]. 7. Entende o arguido que o prazo máximo da medida de coacção prisão preventiva é de um ano a contar do momento em que lhe foi coarctada a liberdade: i. e., no preciso momento em que ficou privado do ius ambulandi – 08:30 do dia 3 de Dezembro de 2024. 8. Estipula a alínea c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP que a petição de habeas corpus tem, de entre outros, como fundamento a manutenção da prisão «para além dos prazos fixados pela lei ou pela decisão judicial». 9. Como supra frisado, entende o arguido que o prazo de um ano deve contar-se a partir da data [momento concreto e efectivo] em que foi privado da liberdade. Ou seja, 10. Nunca pode ser a data do despacho de decretou a prisão preventiva, sob pena de violação do sentido axiológico-constitucional do direito e do princípio da liberdade, enquanto princípio estruturante do processo penal. 11. Mesmo se existissem dúvidas quanto ao momento do início da contagem do prazo, sempre imporá convocar o Direito na sua plenitude: o princípio in dubio pro libertate , enquanto princípio geral do Direito. 12. O arguido encontra-se privado da liberdade desde as 08H30 do dia 3 de Dezembro de 2025, ficando, desde esse momento, impossibilitado de contactar com quem quer que fosse, tomar decisões básicas como escolher as suas refeições ou mudar de roupa, exercer o ius ambulandi. 13. À data de hoje, dia 03 de Dezembro de 2025, nem o arguido e nem o seu mandatário foram notificados do despacho de acusação. 14. Não têm conhecimento de que a acusação tenha sido sequer deduzida. 15. Caso a mesma tivesse sido deduzida e estando em causa a liberdade do arguido, enquanto direito e princípio geral do Direito, bem como a própria confiança judicial e processual, e por se estar perante um processo urgente, poderia e deveria o Ministério Público praticar, nos termos do artigo 103.º, n.º 2, alínea a) do CPP, os actos de natureza urgente para além do horário de expediente, tais como notificar os arguidos e/ou mesmo os seus Mandatários após esse horário. 16. Tal não aconteceu. Sendo certo que 17. Os Mandatários são, na actualidade, notificados via CITIUS. 18. Inexiste qualquer justificação para que a acusação deduzida não tivesse sido notificada no último dia em que a mesma deveria ter sido deduzida. Ou seja, face ao supra exposto 19. O Arguido encontra-se privado da sua liberdade há mais de um ano, estando, neste momento, no Estabelecimento Prisional de Caxias. Desta feita, e 20. Por todo o acima exposto, considera o Arguido que foram violados os prazos de prisão preventiva por às 08H30 do dia 3 de Dezembro de 2025 ter expirado o prazo máximo de um ano de prisão preventiva, uma vez que, mesmo decretada a 7 de Dezembro de 2024, esta consome o tempo que decorre desde o momento exacto da detenção. Pois, 21. Outra interpretação que não esta do artigo 215.º, n.ºs 1, alínea a)e n.º3 do CPP ,é susceptível de ser materialmente inconstitucional, por violação do direito à liberdade e do princípio da liberdade e do princípio da proporcionalidade da restrição daquele direito, por se mostrar excessiva a privação da liberdade, consagrados nos artigos 27.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP. 22. A aplicação da norma do artigo 215.º, n.º 3, conjugada com o artigo 1.º do CPP, no sentido normativo e interpretativo de que é lícito ao tribunal não colocar em liberdade o arguido passado um ano desde o momento em que ficou privado da liberdade por entender que o prazo da prisão preventiva não consome o tempo desde que foi detido até à respectiva decretação, ampliando o tempo de privação da liberdade, sem que tenha sido deduzida a acusação, pode consignar uma inconstitucionalidade material por violar o direito de e à liberdade, o princípio da liberdade e o princípio da proporcionalidade da proibição do excesso quanto à restrição daquele direito, por se mostrar excessiva a privação da liberdade, consagrados nos artigos 27.º, n.º 1 e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP. 23. Considera-se, assim, excedido o prazo de 1 ano a que alude o artigo 215.º, n.º 3 do CPP, aplicável ao caso concreto sob pena de violação da lei fundamental, artigos27.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 32.º, n.º 1, primeira parte, da CRP. Exm.º Senhor Colendo Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça Vem o arguido, nestes termos e nos demais de Direito, deduzir a petição de habeas corpus, requerendo a V. EXA. que: a) Seja declarada ilegal a manutenção da prisão preventiva do requerente, com a consequente concessão da providência do “Habeas Corpus”, nos termos do artigo 31.º da CRP e artigos 222.º, n.ºs 1 e 2 al. c) e 223.º do CPP; e, por este fundamento, b) Determine que o arguido seja restituído à liberdade, nos termos do artigo 223.º, n.º 4, alínea d) do CPP, em respeito pelos artigos 27.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, e 32.º, n.º 1, primeira parte da CRP. A Mma. Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 7, prestou nos autos a informação a que se reporta o n.º 1 do art. 223.º do CPP nos seguintes termos (transcrição – itálico nosso): O arguido AA apresentou petição de providência habeas corpus por prisão ilegal, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal, com os fundamentos na mesma consignados e que, em síntese, se traduzem na prisão do arguido para além do prazo legalmente permitido (artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal). Dita o artigo 222.º do sobredito diploma, que a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade de prisão por «a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial». A prisão preventiva do arguido foi ordenada pela signatária por decisão de 07-12-2024 — em respeito ao previsto nos artigos 17.º, 268.º, n.º 1, alínea b), e 194.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Aquando do primeiro interrogatório de arguido detido, que se iniciou a 04-12-2024 e terminou a 07-12-2024, o arguido estava fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas b) e c), do Decreto-lei n.º 15/93, de 22-01, e de um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.º, n.º 1 e 3, do mesmo diploma ⸺ crimes esses que permitem a aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ao abrigo do artigo 202.º do Código de Processo Penal. Foi declarada a excepcional complexidade do processo em 10-04-2025, ref. 9319483. Desde o dia 07-12-2024 que o arguido está ininterruptamente preso preventivamente à ordem dos presentes autos, tendo sido levadas a cabo diligências de reexame dos pressupostos de prisão preventiva dentro dos prazos legalmente estabelecidos. O arguido ainda não foi acusado, mas o prazo máximo de prisão preventiva até que seja proferida acusação é 07-12-2025, estando a ser respeitado o prazo do artigo 215.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. A defesa do arguido discorda desta conclusão por entender que se deve contar o período de detenção que antecedeu o decretamento da prisão preventiva, mas tal não é a interpretação que este Tribunal faz da lei, e sobretudo não é o entendimento que o Supremo Tribunal de Justiça vem expressando ⸺ a título de exemplo, como é do conhecimento de V. Exa., acórdão proferido a 05-09-2019, processo n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1-A, acórdão proferido a 19-10-2022, no processo n.º 38/19.4PESTR-F.S1, e acórdão proferido a 18-09-2025, no processo 249/22.5TELSB-M.S1, todos disponíveis in: www.dgsi.pt. Resta, destarte, concluir, que, in casu, não se verifica qualquer situação passível de ser enquadrada como prisão ilegal, devendo a presente providência de habeas corpus ser indeferida, por inexistência de fundamento legal, mantendo-se o arguido AA sujeito à medida de coacção de prisão preventiva. * Autue apenso de habeas corpus com certidão dos seguintes elementos, além do presente despacho e do requerimento que lhe deu origem, remetendo-os, pela via habitual, ao Supremo Tribunal de Justiça: i. Mandado de detenção do arguido AA, devidamente certificado. ii. Autos de primeiro interrogatório de arguidos detidos com respectivo despacho de aplicação de media de coacção; iii. Despacho de 10-04-2025, ref. 9319483, que declarou a excepcional complexidade; iv. Despachos de reexames dos pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva. Resulta da certidão geral constante dos autos a atualidade da prisão. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário do arguido, realizou-se audiência conforme previsto no artigo 223.º, n.º 2, do CPP. Finda a audiência a Secção reuniu para deliberação, como prevê o n.º 3 do mesmo artigo. II – FUNDAMENTAÇÃO: Os factos relevantes para a apreciação e decisão desta providência de habeas corpus são os enunciados na petição apresentada pelo requerente, na informação judicial prestada nos autos e na certidão com que estes foram instruídos, e ainda os termos processuais recentes, disponíveis para consulta Citius no processo principal. Dos autos resulta essencialmente e com relevo para a decisão desta providência o seguinte: 1. O ora requerente foi detido no dia 3 de Dezembro de 2024, na sequência da emissão de mandados para o efeito, por os autos indiciarem a sua responsabilidade na prática dos crimes de tráfico de estupefacientes agravado e de associação criminosa, previstos e punidos pelos artigos 21º, 24º e 28º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro. 2. Foi apresentado no Tribunal Central de Instrução Criminal – Juiz 7, para ser presente a interrogatório judicial, no dia 4 de Dezembro de 2024. 3. Esteve sob detenção até ao dia 7 de Dezembro de 2024, data em que foi proferida e lhe foi notificada a decisão que lhe impôs a medida de coacção de prisão preventiva. 4. Foi atribuída especial complexidade ao processo, nos termos previstos nos nºs 3 e 4 do CPP. 5. A presente providência de habeas corpus foi interposta por requerimento que deu entrada nos autos em 4 de Dezembro de 2025. 6. Em 5 de Dezembro de 2025 foi proferida acusação nos autos, abrangendo diversos arguidos, entre eles, o ora requerente AA. * A petição de habeas corpus é tempestiva, atenta a atualidade da privação da liberdade, tanto quanto é certo que o requerente se encontra em prisão preventiva. A legitimidade do requerente é inquestionável à luz do disposto nos artigos 31.º, n.º 2, da CRP e 222.º, n.º 2, do CPP. É pacífico na jurisprudência, como na doutrina, o entendimento de que o habeas corpus, no recorte dos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 220.º a 224.º do Código de Processo Penal, se traduz numa providência urgente e de natureza extraordinária que visa essencialmente garantir o direito à liberdade individual tutelado pelo art. 27.º da CRP, constituindo o adequado instrumento reativo contra o abuso de poder por detenção ou prisão ilegal, tendo como escopo a imediata reversão dessas situações, suposto que a ilegalidade da detenção ou da prisão se ofereça como manifesta, traduzindo ostensivo abuso de poder. A lei processual penal distingue os procedimentos de habeas corpus por detenção ilegal e por prisão ilegal. O requerente funda a sua pretensão em prisão ilegal. No que tange à prisão ilegal, o procedimento correspondente pauta-se pela livre disponibilidade (pode ser requerido pelo próprio cidadão privado da liberdade ou por qualquer outra pessoa no gozo dos seus direitos políticos), pela celeridade (é apresentado à própria autoridade à ordem da qual o preso se encontrar, que o remete de imediato ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sendo decidido pela competente Secção Criminal no prazo de oito dias) e pela simplicidade da tramitação (o seu objecto é restrito à previsão da alínea ou alíneas do n.º 2 do art. 222.º que quadrem ao caso, com exclusão de quaisquer outras questões de fundo ou de forma que extravasem aquele âmbito). O Supremo Tribunal de Justiça vem considerando uniformemente que o habeas corpus só poderá fundar-se nas circunstâncias taxativamente previstas na lei, sendo inadmissível a utilização desta providência para sindicar os motivos determinantes da prisão, questionando o mérito da decisão que a impôs, a sua pertinência de facto ou de direito, ou quaisquer outras razões que não as expressamente previstas, susceptíveis de pôr em causa a legalidade da prisão ou a sua regularidade. Para essas finalidades dispõem os interessados do recurso ordinário nos termos em que a lei o admite. No que especificamente concerne à prisão ilegal, que constitui o alicerce da pretensão do requerente, podem constituir fundamento de habeas corpus: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. O requerente sustenta a ilegalidade da prisão preventiva em que se encontra alegando que esta medida de coação se mantém para além do prazo fixado na lei, convocando assim a previsão do art. 222º, nº 2, al. c), do Código de Processo Penal. Vejamos: Entre os Direitos, Liberdades e Garantias, consagra a Constituição da República Portuguesa, no seu art. 27º, nº 1, o direito à liberdade e à segurança. Exceptua, não obstante, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes (nº 3 do mesmo artigo): a) Detenção em flagrante delito; b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão; d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; e) Sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários; h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente. Desenvolvendo os preceitos constitucionais, o Código de Processo Penal reconhece aquela diversidade de situações que admitem privação de liberdade, regulamentando as condições em que podem ter lugar. Para os efeitos postulados pela decisão do pedido de habeas corpus agora em análise importa apenas considerar, de entre as várias excepções ao direito à liberdade constitucionalmente assinaladas, a detenção e a prisão preventiva, previstas na alínea b) supra transcrita [detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos]. A situação dos autos quadra com a previsão do artigo 254º.º, nº 1, al. a) 1 e 257º, nº 1, b) 2, do CPP, tendo a detenção sido determinada por iniciativa do Ministério Público perante a evidência da prática de crime que admite prisão preventiva. A detenção prevista nos normativos apontados, bem como noutras disposições que a admitem, constitui sempre uma medida precária, vinculada a finalidades expressamente previstas na lei, visando essencialmente a colocação do detido à disposição da autoridade judicial 3, tendo, pois, natureza instrumental relativamente ao acto processual para cuja consecução é ordenada. Este conceito de detenção não se integra na prisão preventiva, privação de liberdade necessariamente determinada por decisão judicial, traduzindo medida de coação restritiva da liberdade destinada a acautelar os perigos previstos no art.º 204.º, n.º 1, do CPP 4, aplicável quando as demais medidas de coação legalmente previstas sejam inadequadas ou insuficientes. Se é certo que tanto a detenção como a prisão preventiva implicam uma privação da liberdade, esse é o seu único ponto de contacto, posto que traduzem realidades processuais distintas, preordenadas a finalidades também diversas, que não se confundem nem se sobrepõem. A prisão preventiva apenas se inicia com o despacho judicial que a determina, sendo a partir desse momento que se contam os prazos de duração máxima previstos no art. 215º do CPP. Aliás, a letra da lei oferece linear clareza quando dispõe que «a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido: (…)» Aqueles prazos de duração máxima da prisão preventiva não se confundem com o período total de privação da liberdade, razão pela qual a detenção eventualmente sofrida por um arguido não é irrelevante uma vez atingido o objectivo processual para o qual foi determinada. Constituindo uma privação de liberdade, a detenção releva, a par da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação, para efeitos de cumprimento da pena de prisão. Por força do disposto no art. 80.º, nº 1, do Código Penal, ao arguido que venha a ser condenado em pena de prisão, a detenção sofrida será descontada por inteiro no cumprimento da pena, ainda que a detenção tenha ocorrido em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, desde que o facto determinante da condenação tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual teve lugar a detenção. Transpostas estas considerações para o caso dos autos, encontrando-se o requerente AA em prisão preventiva desde o dia 7 de Dezembro de 2024, é manifesto que à data em que foi requerida a presente providência extraordinária de habeas corpus, em 4 de Dezembro de 2025, não tinha ainda decorrido o prazo máximo de um ano de prisão preventiva, aplicável por força do disposto no art. 215º, nº 3, do CPP, em função da declaração de excepcional complexidade do processo. Entretanto, em 5 de Dezembro de 2025, portanto, antes ainda de decorrido um ano sobre a data do início da prisão preventiva, foi proferida acusação nos autos, abrangendo o ora requerente AA, circunstância que determina a prorrogação do prazo de prisão preventiva para dois anos e seis meses, nos termos previstos no art. 215º, nº 3, do CPP. Consequentemente, o pedido de habeas corpus deverá ser indeferido por inequívoca falta de fundamento bastante, de acordo com a previsão do art. 223.º, n.º 4, al. a), do Código de Processo Penal. * III – DISPOSITIVO: Em conclusão, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a petição de habeas corpus por falta de fundamento bastante. Fixa-se a taxa de justiça devida em 4 (quatro) UC (art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e correspondente Tabela III). * Supremo Tribunal de Justiça, 12.12.2025 (Texto processado pelo relator com recurso a meios informáticos e revisto por todos os signatários) Relator: Jorge Miranda Jacob 1º Adjunto: Vasques Osório 2º Adjunto: Pedro Donas Botto Presidente da Secção: Helena Moniz _____________________________________
1. - Art. 254.º 1 - A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada: a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou 2. - Art. 257.º 1 - Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público: (…) b) Quando se verifique, em concreto, alguma das situações previstas no artigo 204.º, que apenas a detenção permita acautelar; ou 3. - Cfr. Parecer da PGR nº 35/99, publicado no DR, II Série, de 24 de Janeiro de 2001. 4. - Art. 204º, nº 1: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública. |