Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2030
Nº Convencional: JSTJ00002017
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
SEGURO DE CRÉDITOS
OBJECTO NEGOCIAL
RENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RESTITUIÇÃO
PRESTAÇÕES DEVIDAS
Nº do Documento: SJ200209190020307
Data do Acordão: 09/19/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 11159/0
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR OBG / DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: DL 171/79 DE 1979/06/06.
CCOM888 ARTIGO 441.
CCIV66 ARTIGO 236 N1 ARTIGO 238.
DL 183/88 DE 1988/05/24.
Sumário : I - Seja qual for o regime jurídico do seguro-caução (que se engloba na espécie dos seguros de risco de crédito, previstos e regulamentados no DL 183/88, de 24/5), a prestação da garantia constitui um esforço do crédito do beneficiário, jamais um instrumento de exclusão da responsabilidade do devedor.
II - A função do seguro-caução é a de indemnizar o beneficiário, não a de exonerar o tomador do seguro, devedor inadimplente, das suas responsabilidades obrigacionais.
III - O mesmo sucede se o seguro caução se revestir das características de garantia autónoma à primeira solicitação (em derrogação da natureza e função normais daquele seguro, que se inspira no regime de acessoriedade, próprio da fiança); o afastamento da regra da acessoriedade da garantia não contende com a existência da responsabilidade do garantido.
IV - O seguro - caução, garantindo à locadora o recebimento da totalidade das rendas, não lhe retira, porém, o direito, legal e contratual, de exigir a devolução do veículo, findo o contrato, caso o locatário não exerça, com a devida antecedência, o direito de aquisição do veículo ou de renovação do contrato.
V - A beneficiária do seguro, estando garantida quanto ao embolso das prestações do contrato de leasing, está, portanto, legitimada para exigir da seguradora o pagamento das que, à luz do negócio jurídico principal, e respectivas vicissitudes, lhe eram devidas pela locatária.
VI - Se optar pelo cumprimento do contrato (como é seu direito), a locadora poderá cumular a pretensão de restituição do veículo dado em locação com a de pagamento de todas as rendas vencidas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A - Companhia de Locação Financeira Mobiliária, SA", pediu a condenação solidária de "B - Comércio de Automóveis, SA", e "Companhia de Seguros C, SA", a lhe pagar 1416610 escudos, e juros de mora, e, só da primeira, a lhe devolver dois veículos automóveis, o que tudo fundamentou no incumprimento de dois contratos de locação financeira realizados com a B e cobertos por seguro caução a cargo da C;
as rés contestaram e a seguradora deduziu reconvenção, pedindo, para o caso de procedência da acção, que a autora fosse condenada a indemnizá-la dos prejuízos causados pelo incumprimento das obrigações decorrentes do art. 10 e 14, das Condições Gerais da Apólice, que eram o de avisar tempestivamente a seguradora de que o tomador do seguro estava a faltar aos deveres decorrentes do contrato de locação
financeira .
No acórdão sob recurso, foi dada integral procedência à acção, do que pedem revista ambas as rés, fundamentando assim:
a C
- dos documentos juntos, resulta claramente, nos termos dos artº236 e 238º, CC, que os seguros tiveram como objecto o pagamento das rendas devidas à B pelos respectivos clientes (contratos de aluguer de longa duração) e não o das rendas dos contratos de locação financeira entre a mesma B e a autora A;
- a não ser assim, haverá de concluir pela nulidade do contrato, nos termos do art. 220, CC (1), sob pena de se fazer valer um negócio com um sentido totalmente contrário à vontade dos outorgantes;
- o acórdão recorrido é nulo, nos termos do artº668º, n.º1, d, CPC, por omissão de pronúncia sobre a questão da ampliação do âmbito do recurso, suscitada pela recorrente, ali apelada;
a ré B
- a natureza do seguro de caução directa implica uma transferência da responsabilidade para a seguradora, não se justificando, assim, a condenação solidária da recorrente;
- cobrindo a seguradora C (2ª ré) o risco de inadimplemento das rendas, vencidas e vincendas, não há razão para ordenar a restituição do veículo locado, sob pena de enriquecimento injustificado da locadora;
- toda a conduta da locadora foi no sentido de incutir na recorrente a confiança na possibilidade e estabilidade dos contratos de locação financeira a realizar com terceiros, sendo, pois, abusivo, nos termos do artº334º, CC, o pedido de restituição dos veículos.

2. Factos provados:
- a "A - Companhia Portuguesa de Locação Financeira Mobiliária, S.A." e a "B - Comércio de Automóveis, S.A.", celebraram, em 4.5.92, os acordos de fls.17 a 20 e 23 a 26, com os ns. 030790/076/002 e 030790/076/003, respectivamente, este último alterado pela adenda de fls. 29;
- mediante o 1º acordo, a A locou à B o veículo automóvel marca Lada Vaz, modelo 21091, com a matrícula AI, no valor de 1237673 escudos (antes de IVA), pela renda trimestral de 141143 escudos (antes de IVA);
- mediante o 2° acordo a A locou à B o veículo automóvel marca Lada Vaz, modelo 2108, com a matrícula AH, no valor de 980650 escudos (antes de IVA), pela renda trimestral de 111832 escudos (antes de IVA);
- a C emitiu as apólices de seguro caução directa genérico, com os n.ºs. 150104101142 e 150104101135, de fls. 30 e 32, datadas de 7 de Maio de 1992;
- a A escreveu à B, que as recebeu, as cartas datadas de 18.8.94, 23.9.94, 29.12.94, 20.2.95, 18.5.95 e 25.9.95, de fls. 36 a 59;
- a A escreveu à C, que as recebeu, as cartas datadas de 18.8.94, 23.9.94, 29.12.94, 22.2.95, 22.5.95 e 28.9.95, de fls. 60 a 79;
- a A não procedeu à resolução dos aludidos acordos;
- com data de 7 de Julho de 1994, a B comunicou à A o que consta de fls. 210 e 211;
- com data de 15 de Julho de 1994, a C comunicou à A o que consta de fls. 212;
- a B liquidou à C prémios das apólices aludidas;
- a C enviou à A a carta de 3.11 1992, que consta de fls.35;
- a B não liquidou à A as rendas trimestralmente vencidas e facturadas de 16.5.94 e 16.5.95, no valor global de 1416610 escudos, assim discriminadas:
à relativamente ao acordo 002790.373.00 (157531 escudos, as três primeiras, 158890 escudos a quarta e quinta);
à Relativamente ao acordo 003626.237.00 (124.817 escudos, as três primeiras, 125893 escudos a quarta e quinta);
- a B não devolveu à A os veículos AI e AH, referidos;
- o valor dos prémios oferecidos pela B era 1% para os acordos com prazo até 12 meses, 1,75% até 24 meses e 1,75% até 36 meses;
- na sequência das negociações entre a A e a B, vieram a ser celebrados entre as elas o protocolo de fls.141 e 142, datado de 15 de Novembro de 1991, o de fls. 143 e 144, datado de 7 de Abril de 1992 e o de fls. 145 a 148, de 1 de Novembro de 1993;
- o veículo AI foi cedido em ALD (aluguer de longa duração) pela B D;
- o veículo AH foi cedido em ALD pela B a E;
- a A sabia que os veículos e, designadamente o AI e o AH, iam ser cedidos a clientes da B através de dois acordos - um acordo através do qual dava de aluguer os veículos aos seus clientes; e um acordo pelo qual prometia vender a estes e estes prometiam comprar, os mesmos veículos, efectivando-se o acordo prometido no termo do aluguer.
3. A recorrente C não recorreu da decisão absolutória da reconvenção que deduzira, mas, em contra - alegações perante a Relação, pretendeu emendar a mão, requerendo a ampliação do âmbito do recurso àquele pedido.
Foi-lhe respondido, e bem, que deixara transitar em julgado a mencionada decisão absolutória, e que isso obstava a que se conhecesse de novo a questão, nos termos dos artºs 671º, n.º1 e 676º, n.º, CPC (2).
Agora, em nova tentativa de recuperar o efeito de um recurso deixado passar, argui a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia sobre a questão da ampliação do âmbito do recurso.
Não houve, como é óbvio, qualquer omissão.
A Relação abordou expressamente o problema e resolveu-o através da invocação do caso julgado.
O acórdão não enferma, pois, da nulidade arguida.
- Os contratos realizados entre a autora A e a ré B têm a natureza de locação financeira ou leasing, tal como definida no DL 171/79, de 6/6, então em vigor, e, por isso, aplicável, quer quanto à validade quer quanto aos efeitos dos contratos (art. 12º, CC).
Uma vez locados, os veículos, de acordo com o específico objecto social da locatária, entravam no circuito do consumo, sendo dados em aluguer de longa duração, vulgo ALD, com opção final de compra materializada, em regra, numa promessa de compra e venda.
- Os seguros - caução em causa têm como objecto o pagamento de 12 rendas trimestrais referentes aos veículos AI e AH, cobrindo, pois, o risco de incumprimento atempado da obrigação de pagamento daquelas rendas.
No acórdão recorrido, diz-se, sem margem para qualquer reparo, que aquelas rendas são as prestações inerentes ao contrato de leasing (entre autora e ré B).
A Relação recorreu ao critério de interpretação do negócio jurídico que consta dos artºs 236º, n.º1 e 238º, CC (este último porque o exercício interpretativo incide sobre um contrato formal), e, colocando-se na posição do normal declaratário, levando em conta as circunstâncias concretas e o tipo de pessoas jurídicas envolvidas, concluiu que outro não poderia ser o entendimento face aos termos das cláusulas pertinentes.
E, na verdade, se, utilizando o mesmo critério de interpretação, o intérprete quiser descortinar, nos termos da apólice do seguro - caução, e só neles, vestígios de uma comum intenção de segurar o pagamento das rendas do aluguer de longa duração (ALD), entre a B e respectivo cliente, sobre o mesmo veículo, grandes dificuldades encontrará, quer no âmbito do sentido normal da declaração quer no da correspondência entre o sentido pretendido e os termos da apólice.
Basta ler os termos dos artºs 1º e 2º, das Condições Gerais, que, sendo, embora, cláusulas contratuais gerais, não mereceram qualquer tipo de contestação por parte da segurada.
No artº1º, define-se sinistro como sendo o "incumprimento atempado pelo Tomador do Seguro da obrigação assumida perante o Beneficiário", e, no artº 2º, onde se concretiza o objecto da garantia, vem este descrito como "o pagamento da importância que (o beneficiário) devia receber do Tomador do Seguro, em caso de incumprimento por este último da obrigação garantida".
Os protocolos sucessivos (fls.141 e segs.) que a B e a C subscreveram para enquadramento dos seguros - caução seriam um poderoso elemento interpretativo (no sentido de que o objecto do seguro foi o pagamento das rendas do ALD), só que uma tal interpretação nem corresponde ao sentido normal das cláusulas da apólice, nem encontra, nelas, um mínimo de correspondência.
De modo que se deverá concluir que, entre os protocolos e o seguro - caução em causa nenhuma relação hierárquica existe, na qual os primeiros desempenhariam a função de contrato - quadro, e, portanto, baliza do sentido e limites dos acordos celebrados sob o seu império.
O sentido juridicamente relevante dos contratos, no aspecto sob discussão, é o que lhes foi atribuído no acórdão sob recurso, razão pela qual carece de todo o sentido a afirmação de que os contratos seriam nulos, por se lhes fixar um sentido não querido pelas partes.
- Seja qual for o regime jurídico do seguro-caução (que se engloba na espécie dos seguros de risco de crédito, previstos e regulamentados no DL 183/88, de 24/5), uma coisa é certa: a prestação da garantia constitui um reforço do crédito do beneficiário, jamais um instrumento de exclusão da responsabilidade do devedor.
A função do seguro-caução, é a de indemnizar o beneficiário, não a de exonerar o tomador do seguro, devedor inadimplente, das suas responsabilidades obrigacionais.
Em nenhuma regra legal, designadamente as respeitantes a seguros, e, também, em nenhuma cláusula do contrato se encontra prevista uma tal liberação do devedor.
A subrogação prevista no artº14º, das Condições Gerais da apólice, que tem suporte no art. 441º, CCom, só se compreende dentro da referida perspectiva das coisas.
E o caso não mudaria de figura se, como sustenta a recorrente, o seguro-caução em causa tivesse as características de garantia autónoma à primeira solicitação (em derrogação da natureza e função normais daquele seguro, que se inspira no regime de acessoriedade, próprio da fiança); o afastamento da regra da acessoriedade da garantia não implica com a existência da responsabilidade do garantido.
Não tem, pois, qualquer fundamento a tese da recorrente B de que o seguro-caução, por efeito da sua pretensa característica de garantia autónoma, a livrou de responsabilidades perante o beneficiário da garantia.
- O seguro - caução, garantindo à locadora o recebimento da totalidade das rendas, não lhe retirou, porém, o direito, legal e contratual, de exigir a devolução do veículo, findo o contrato, caso o locatário não exerça, com a devida antecedência, o direito de aquisição do veículo ou de renovação do contrato (art. 15º, n. 4, das Condições Gerais)
Não foi com o alcance de extinguir aquele direito de restituição que o seguro em causa foi efectuado.
A beneficiária do seguro, estando garantida quanto ao embolso das aludidas 12 prestações do contrato de leasing, estava, portanto, legitimada para exigir da seguradora o pagamento das que, à luz do negócio jurídico principal, e respectivas vicissitudes, lhe eram devidas pela B.
Optando, como optou, pelo cumprimento do contrato (como era seu direito), a locadora podia cumular, como cumulou, a pretensão de restituição do veículo dado em locação com a de pagamento de todas as rendas vencidas.
Postas assim as coisas, o êxito da acção não representa a consagração de qualquer enriquecimento injustificado por parte da autora.

- Não se descortina, por outro lado, o abuso de direito que a recorrente B vai buscar à violação da confiança que a locadora lhe teria incutido na preservação do ALD do veículo.
É que tal afirmação tem como fundamento uma factualidade que o processo desconhece, designadamente, a de que a locadora transmitira à locatária, por qualquer atitude, a ideia de que não iria pôr em causa o contrato, fosse qual fosse o comportamento contratual posterior da locatária.
Por todo o exposto, negam ambas as revistas, com custas pelas recorrentes.
Lisboa, 19 de Setembro de 2002
Quirino Soares,
Neves Ribeiro,
Araújo Barros.
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(1) Código Civil
(2) Código de Processo Civil