Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
629/10.9TTBRG.P2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
Data do Acordão: 12/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª Edição, p. 516.
- Baptista Machado, ‘Tutela da Confiança’…in ‘Obra Dispersa’, I, p. 421/ss.
- Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, 1983.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pp.63-64.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, edição da 2.ª reimpressão, Volume V, Almedina, 2011, p. 323, parágrafo 34.º .
- Pires de Lima/A. Varela, ‘Código Civil’, Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, p. 299.
- Vaz Serra, BMJ n.º 85/253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 10.4.2003, C.J., TOMO II/2003, P. 197.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 4.2.2004 E DE 16.6.2004, AMBOS DA 4.ª SECÇÃO, EM WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – A inércia, omissão ou não-exercício do direito por um período prolongado, sem que possa sê-lo tardiamente se contundir com os limites impostos pela boa fé, constitui uma expressão ou modalidade especial do ‘venire contra factum proprium’, conhecida por supressio  (ou ‘verwirkung’, no alemão original).

II – À sua caracterização não basta, contudo, o mero não-exercício e o decurso do tempo, impondo-se a verificação de outros elementos circunstanciais que melhor alicercem a justificada/legítima situação de confiança da contraparte.

III – Não configura abuso do direito, na referida modalidade, sendo por isso legítimo, o exercício do direito dos AA. de reclamarem, na constância do vínculo laboral, a sua promoção na carreira e o pagamento dos diferenciais retributivos correspondentes.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                  I.

                                       Relatório

1.

AA e BB, com os sinais dos Autos, instauraram, em 7.6.2010, acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra «IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P.» e «Direcção Regional da Agricultura e Pescas do Norte», pedindo que se condene os RR. a:

A - Procederem às promoções por antiguidade decorrentes da Ordem de Serviço [abreviadamente, OS] n.º …/…, devendo o A. BB ser classificado como Técnico de Grau II – Nível 12;

B - Pagarem aos AA:

1) Os retroactivos salariais decorrentes das promoções que deveriam ter feito, pagando ao A. AA a quantia de € 11.165,08 e ao A. BB a quantia de € 7.421,28, acrescidos dos retroactivos de subsídios de Férias e de Natal;

2) As diferenças salariais decorrentes da actualização da classificação do A. BB;

3) Os juros vencidos e vincendos até integral pagamento, sobre estas quantias.

Alegaram para o efeito, em resumo útil, que foram admitidos ao serviço do ‘Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas’ [IFADAP], sendo o AA em 1990 e o BB em 1987.

 A tal Instituto Público sucedeu o ‘IFAP’, que mais tarde transitou para a ‘DRAPN’.

Os AA. trabalharam para os RR., sob as suas ordens e direcção, pertencendo aos respectivos quadros de pessoal e desempenhando actualmente funções na Divisão de Avaliação e Acompanhamento de Projectos (DAAP) de Braga, pertencente a esta última R., a ‘DRAPN’.

Mais alegaram que desde 1990 as promoções na carreira começaram a ser reguladas através de Ordens de Serviço, nomeadamente mediante a OS ..., que não foi substituída até ao presente por nenhuma outra, a qual assume a natureza de um verdadeiro Regulamento Interno da Empresa, sendo certo que a Comissão Directiva da Ré procedeu à sua revogação unilateral em 11 de Novembro de 1993, decisão esta que afirmam ilegal, por não ter o acordo dos AA.

 E aduziram por fim que esta OS n.º ... ainda se encontra em vigor, pelo que devem ser promovidos e reclassificados de acordo com a mesma, com o pagamento dos inerentes retroactivos salariais.

A fls. 46 a 49 foi a "Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte" absolvida da instância, por falta de personalidade judiciária, tendo sido determinada , em sua substituição, a intervenção principal do "Estado Português", representado pelo Ministério Público.

Contestou o R. “IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P.”, alegando que os AA. não são seus funcionários desde 2007-12-31, pelo que as decisões relativas à progressão na carreira são da responsabilidade da DRAPN, a partir daquela data e que, de todo o modo, a OS ... não pode ser qualificada como um regulamento, pelo que a sua revogação pela Comissão Directiva do ex-‘IFADAP’ é legal e eficaz.

 Mais alegou que, mesmo a manter-se em vigor a OS ..., da sua aplicação não resulta que as mudanças de grau (ao contrário das mudanças de nível) se processassem pelo decurso do tempo, mas antes como decorrência de uma alteração do conteúdo funcional concretamente exercido.

Aduziu ainda que apenas o A. BB teria uma situação ligeiramente mais favorável caso a OS ... estivesse em vigor, com as divergências a ocorrerem unicamente no que concerne ao ano de 2007.

 Por último alegou que os AA., ao proporem a acção, agiram em abuso do direito.

Contestou também o Estado Português, representado pelo Ministério Público, por excepção, alegando a prescrição dos créditos respeitantes ao período em que os AA. estiveram ao serviço do IFADAP, bem como impugnou a factualidade alegada por eles, respeitante ao período anterior a 30 de Dezembro de 2008, nomeadamente, as retribuições invocadas, concluindo que a OS ... se encontra revogada, que não pode ser considerada um regulamento interno e, por fim, que a sua execução não lhe pode ser imposta.

Os AA. apresentaram ainda articulado de resposta (cfr. fls. 232 a 237 e fls. 240 a 247).

Foi proferido despacho saneador no qual, nomeadamente, se relegou para final o conhecimento da excepção de prescrição dos créditos dos AA., tendo sido dispensada a condensação do processo.

Tramitada e discutida a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção improcedente, com absolvição dos RR. dos pedidos formulados pelos AA.

2.

Inconformados com o assim decidido, os AA. interpuseram recurso de Apelação, que o Acórdão prolatado a fls. 713-734 julgou parcialmente procedente (transcreve-se o dispositivo):

Termos em que se acorda em conceder parcial provimento à apelação e em conceder parcial provimento à ampliação do recurso, assim revogando a sentença que se substitui pelo presente Acórdão em que se condena o IFAP até 2007.06.17 e a DRAN, desde então, a proceder à aplicação aos AA. da OS ...[1], nos termos pedidos, indo os RR. condenados, sendo caso disso, nos juros vencidos até 2008.12.31, sendo devidos também os vencidos posteriormente se eles faltarem culposamente ao cumprimento de prestações pecuniárias, sendo tudo a liquidar em oportuno incidente, dada a insuficiência de factos provados, atento o disposto nos arts. 378.º, n.º 2 e 661.º, n.º 2, do C.P.C.

Custas por AA. e RR., na proporção de metade.”

Irresignado, o Estado Português, representado pelo Ministério Público, vem impugnar a deliberação sujeita, mediante a presente Revista, cuja motivação concluiu assim:

A) Em causa na presente acção está, a título principal, o direito dos AA. à promoção, direito este não sujeito ao prazo prescricional previsto no art. 38.º, n.º 1, da LCT (art. 381.º, n.º 1, do CT/2003 e art. 337.º, n.º 1, do CT/2009);

B) O abuso do direito, na modalidade da "suppressio", tem aplicação em matérias sujeitas a prescrição;

C) Não se apuraram factos dos quais resulte que as promoções de que os AA. beneficiaram não eram as devidas, quais fossem as devidas, quais as retribuições que auferiram, bem como quais as que lhes seriam devidas.

D) O douto acórdão recorrido violou as disposições dos arts. 334.º do CC e 38.º, n.º 1, da LCT (381.º, n.º 1, do CT de 2003 e 337.º, n.º 1, do CT de 2009).

Termos em que, termina, revogando o douto acórdão proferido e absolvendo o Réu/recorrente Estado Português – Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte, se fará Justiça.

O ‘IFAP, IP’, notificado da interposição da Revista pelo M.º P.º em representação da co-R. Estado Português/DRAPN, invocando a identidade dos interesses propugnados, veio, em tempo, declarar a sua adesão ao mesmo, subscrevendo integralmente as respectivas alegações – fls. 757.

Os recorridos contra-alegaram, concluindo, por sua vez, em resumo, que:

- Porque a Lei determina que os créditos salariais prescrevem passado um ano após a cessação do contrato de trabalho, é evidente que os trabalhadores, como os recorridos, que mantêm o seu contrato de trabalho na íntegra, mantêm, do mesmo modo e em absoluto, o seu direito a reclamarem os créditos salariais correspondentes, que nunca lhes foram pagos e que lhes advêm do facto de lhe não ter sido aplicada a OS ... em termos de progressão nas carreiras e correspondentes remunerações, como devia ter sido feito, acrescido dos juros, tudo nos termos peticionados.

- Como se pode verificar pelos autos, os recorridos foram prejudicados nas suas progressões na carreira pela não aplicação da OS ..., já que deveriam ter sido promovidos nos termos e prazos indicados naquela OS e de acordo com as funções desempenhadas por cada um.

- Funções essas constantes dos autos e as quais estão reconhecidas na sentença da 1.ª instância.

- A OS ... foi unilateralmente revogada, sem a concordância dos recorridos, tornando assim o acto de revogação ilegítimo e ineficaz, facto reconhecido nas Instâncias anteriores.

- A aplicação da supressio ao caso vertente violaria os prazos legais de prescrição, retirando toda a segurança aos direitos dos recorridos, nomeadamente no âmbito dos créditos salariais.

Ainda quanto à adesão ao recurso por banda do co-R. ‘IFAP’ vieram os AA./recorridos dar por inteiramente reproduzidas as alegações previamente apresentadas, porquanto as questões que integram o ‘thema decidendum’ são exactamente as mesmas para ambas as co-RR., a saber: se os AA agiram ou não com abuso do direito ao proporem a presente acção e da aplicabilidade ao caso da OS ... e suas consequências.

Concluem no sentido do improvimento do recurso, com confirmação da deliberação impugnada.

                                                  __

Porque o M.º P.º representa uma das partes, não se deu cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 87.º do C.P.T.

Observou-se o disposto no n.º 2 do art. 657.º do NCPC, entregando cópia do projecto de solução aos Exm.ºs Juízes-Adjuntos.

Cumpre ora analisar, ponderar e decidir.

3.

Objecto do recurso.

Ante as delineadas asserções conclusivas – por onde se afere e delimita, por regra, o objecto e âmbito da impugnação, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, que as não há, no caso – está concretamente em causa dilucidar e resolver se o instituto do abuso do direito, na modalidade de ‘supressio’, é susceptível de aplicação em matérias sujeitas a prescrição e, se sim, se os AA., ao deduzirem a pretensão sujeita, agiram com abuso do seu direito.

(Sobre a problemática reportada na conclusão C) do alinhamento que remata a douta motivação recursória, a fls. 748, tomar-se-á posição, oportunamente).

                                                 __

                                                                   

                                                 II.

                                            Dos Fundamentos.

A) – De Facto.

Vem estabelecida pelas Instâncias a seguinte factualidade:

1. Os AA. foram admitidos ao serviço do ‘IFADAP – Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas’ para prestarem trabalho sob a sua direcção e fiscalização, tendo o A. AA sido contratado em 1 de Junho de 1990, com a categoria profissional de Técnico do Grau IV, da Carreira Técnica, no Nível Salarial 9 da tabela anexa ao Acordo Colectivo de Trabalho Vertical do Sector Bancário;

2. Por sua vez, o A. BB foi admitido em 1 de Junho de 1987, com a categoria profissional de Empregado Administrativo, Grupo 1, no Nível Salarial 3, do mesmo ACT.

3. Em 2005, o IFADAP foi fundido com o ‘Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola’ (INGA) e, após a extinção daquele, em 2006, os AA. transitaram para o 1.º R., o ‘IFAP’.

4. Posteriormente, os AA. foram reafectados à ‘Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte (DRAPN), com efeitos a partir de 18 de Junho de 2007, decisão que foi comunicada ao 1.º R. em 14 de Junho de 2007.

5.  O 1.º A., AA, foi sendo promovido e reclassificado nos seguintes termos:

- Em 1 de Junho de 1991 foi promovido ao N 10;

- Em 1 de Janeiro de 1993 foi reclassificado como Técnico de Grau III;

- Em 1 de Janeiro de 1994 foi promovido ao N 11;

- Em 1 de Agosto de 1994 foi promovido ao N 11 B;

- Em 1 de Janeiro de 1996 foi promovido ao N 12 A;

- Em 1 de Janeiro de 1999 foi promovido ao N 12 B;

- Em 1 de Janeiro de 2000 foi reclassificado como Técnico de Grau II;

- Em 1 de Janeiro de 2001 foi promovido ao N 14;

6. O 2.º A., BB, foi sendo promovido e reclassificado nos seguintes termos: 

- Em 1 de Junho de 1988 foi promovido ao N 4;

- Em 1 de Junho de 1990 foi promovido ao N 5;

- Em 1 de Junho de 1993 foi promovido ao N 6;

- Em 1 de Agosto de 1994 foi promovido ao N 6 B;

- Em 1 de Janeiro de 1995 foi promovido ao N 6 C;

- Em 1 de Janeiro de 1997 foi promovido ao N 7 C;

- Em 1 de Janeiro de 2000 foi promovido ao N 8 B;

- Em 1 de Janeiro de 2004 foi promovido ao N 9 A;

- Em 1 de Janeiro de 2006 foi reclassificado como Técnico de Grau IV, N 9 A;

- Em 1 de Janeiro de 2008 foi promovido a N 10.

7. Em 1 de Março de 1990, o então ‘IFADAP’ emitiu a Ordem de Serviço n.º 0..., cujo teor consta do documento junto a fls. 54-62 dos presentes Autos, visando a ‘…regulamentação de várias carreiras profissionais…’, nomeadamente nivelamento salarial, condições de promoção e descrição de funções.

8. Esta OS ... não foi submetida a aprovação por parte da então Inspecção-Geral do Trabalho.

9. Em 11 de Novembro de 1993 a Ré, através de deliberação da sua Comissão Directiva, o então ‘IFADAP’ procedeu à revogação unilateral daquela Ordem de Serviço n.º ..., que não foi substituída.

10. Por comunicação de 25 de Novembro de 1993, a Comissão de Trabalhadores do ‘IFADAP’ solicitou a imediata suspensão desta deliberação, considerando então que a mesma constituía …’sem justificado fundamento, uma alteração dos direitos adquiridos pelos trabalhadores do IFADAP…’

11. Os AA. remeteram à comissão directiva do ‘IFADAP’ uma comunicação, datada de 15 de Dezembro de 1993, manifestando a sua não concordância com a revogação da O.S. n.º ..., com o fundamento de que se tratava de uma alteração unilateral dos seus contratos de trabalho e que a consideravam ineficaz.

12. Durante a vigência da O.S. n.º ..., a mudança de nível dentro de cada grau fazia-se pelo decurso do tempo, até ser atingido o último nível dentro dessa categoria.

13. A mudança de categoria, por sua vez, ocorria apenas mediante a alteração do conteúdo funcional do serviço prestado e dependia de decisão da Comissão Directiva do ‘IFADAP’, antecedida de proposta fundamentada do superior hierárquico de cada trabalhador.

14. Os AA. desempenham funções técnicas de análise e acompanhamento de candidaturas de agricultores, no âmbito do programa ‘PRODER’, procedendo o 1.º A. à análise inicial das mesmas e à emissão de pareceres dentro de um órgão colegial, enquanto que o 2.º A. analisa os pedidos de pagamento de subsídios.

                                                         __

A materialidade fixada pelo Tribunal recorrido não foi objecto de impugnação.

Não se vislumbrando qualquer das situações (ora) previstas no n.º 3 do art. 682.º do NCPC, será com base nos factos estabelecidos, vindos de elencar, que hão-de resolver-se as questões suscitadas no presente recurso.

                                                         __

                                            

B) Os factos e o seu enquadramento normativo.

Embora no requerimento de interposição do recurso se anuncie o inconformismo com o ajuizado no Acórdão sob protesto …na parte em que considerou não terem os AA. agido em abuso do direito …e na parte em que consideraram aplicável, no caso em apreço, a ordem de serviço n.º ... [OS], emitida pelo IFADAP em 1.3.1990, não vemos propriamente questionada – seja no desenvolvimento da  motivação, seja, relevantemente, no elenco conclusivo correspondente – a problemática atinente à aplicação, ou não, da OS n.º ....

B.1 – Sempre se lembra, não obstante, que a (sua admitida aplicação e a consequente) existência do direito dos AA., aqui accionado, constitui precedente lógico/pressuposto ontológico da questão axial, a do pretenso abuso do seu exercício, que se tratará na sequência.

[A solução proclamada na deliberação sub judicio, quanto a essa temática, está, aliás, em consonância com o entendimento já adrede firmado neste Supremo Tribunal e Secção, como decorre dos Arestos aí identificados.

Referimo-nos, v.g., aos Acórdãos de 4.2.2004 e de 16.6.2004, ambos da 4.ª Secção, (também) citados no texto revidendo. O primeiro, consultável no site da dgsi.pt, versou exactamente sobre a OS n.º ..., em acção igualmente protagonizada pelo IFADAP, nos termos de cujo sumário [a] ‘ordem de serviço’ emitida por uma entidade patronal com a finalidade de definir as condições gerais de progressão na estrutura salarial dos diversos grupos de pessoal, visando a ‘regulamentação de várias carreiras profissionais’, integra o conceito de regulamento interno e representa uma manifestação de vontade contratual, pelo que, tendo sido aceite pelos trabalhadores, não poderá ser alterada por determinação unilateral do empregador – arts. 7.º e 39.º da LCT.]

                                                         ___

B.2 – Do abuso do direito.

Dissentindo da solução eleita na sentença sindicada – que concluiu no sentido da procedência da deduzida excepção do abuso do direito, com o reconhecimento do carácter ilegítimo do exercício do direito dos AA. a serem promovidos de acordo com o estabelecido na O.S. n.º ... e às eventuais diferenças salariais correspectivas –, o Acórdão revidendo fundamentou o deliberado nestes termos (transcrição integral):

«Discordamos da solução encontrada pelo Tribunal a quo e, mesmo quanto à sua fundamentação doutrinal, importa fazer algumas precisões, maxime no que respeita à supressio, enquanto modalidade do abuso do direito.

Esta modalidade do abuso do direito respeita àquelas situações em que uma posição jurídica que não tenha sido exercida em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, contraria a boa fé. Surgiu no âmbito do direito comercial, no tempo da I Guerra Mundial, de grande inflação, em que se verificavam alterações elevadas no valor das mercadorias, como é típico de tais circunstâncias temporais. Visou obstar aos inconvenientes de se exercer o direito, em matéria comercial, decorridos longos períodos de tempo, onde não existiam prazos de prescrição e o cumprimento dos contratos levaria à ruína de uma das partes pela subida vertiginosa de preços. Daí que o exercício do direito em tais circunstâncias seja entendido como abuso.

No entanto, parece que a figura não terá o seu lugar de aplicação privilegiada nas matérias em que se encontra estabelecido prazo de prescrição para o exercício do direito, uma vez que esta, também a seu modo, visa prevenir o exercício tardio do direito e seus inconvenientes.

De qualquer modo, tem-se entendido que a supressio é aplicável, por regra, a todos os direitos subjectivos, desde que tenha decorrido certo período de tempo sem que tenham sido exercidos e desde que se verifiquem indícios objectivos de que tais direitos não mais irão ser exercidos, não se exigindo, porém, que o não exercente tenha agido com culpa.

Porém, o abuso do direito, na modalidade de supressio, não terá aplicação, em princípio, em matéria de direito laboral, nomeadamente em matéria de retribuições, onde existe também prazo de prescrição. De igual sorte, tratando-se de modalidade ou de figura próxima, cremos que o abuso do direito, na modalidade de ‘venire contra factum proprium’, também não terá aplicação à situação concreta dos Autos, por identidade de razão. Na verdade, e para evitar abuso do direito, já a Lei estabeleceu prazos rígidos que, por via de regra, não podem ser afastados pelas partes, estando definidos o tempo em que o direito pode ser exercido e aquele em que não o pode ser, sem que possa haver margem para outros comportamentos.

Daí que não se acompanhe o decidido pela sentença quanto a esta questão. Pois, mesmo que a figura da supressio fosse aplicável correntemente no nosso Direito e na hipótese, cremos que os RR. não podiam contar com a inacção dos AA., cujo contrato se mantém em execução e sendo certo que o prazo de prescrição dos créditos apenas terminará decorrido um ano sobre a data da cessação, cuja ocorrência se desconhece, podendo o contrato prolongar-se por muitos anos ainda.

 De resto, revogada a OS, tanto a Comissão de Trabalhadores como os AA. logo manifestaram a sua discordância, pelo que às promoções na carreira deve ser atribuído um significado que tenha presente aquelas posições.

Aliás, tendo a OS sido revogada, o que não podia acontecer por acto unilateral do R., tendo procedido às promoções que entendeu, admite-se que a posição ora assumida possa ser entendida como antijurídica.

De qualquer modo, entendendo que a figura da supressio não é, em princípio, aplicável entre nós, pelo menos em matéria de créditos laborais, ou sendo-o, não estando verificados os respectivos pressupostos, os AA. não agiram em abuso do direito quando propuseram a presente acção, pelo que a sentença deve ser revogada nesta parte.»                                          

A razão do inconformismo da recorrente com o acima ajuizado assenta essencialmente em dois pontos: discorda, por um lado, que estejam em causa meros créditos laborais comprovadamente devidos, não aceitando, por outro, que a supressio não tenha aplicação em matérias sujeitas a prazo de prescrição.

Reporta-se, para ilustrar a primeira proposição, aos termos da formulação da causa de pedir/pedido, pretendendo com isso significar que as reclamadas promoções categoriais (por antiguidade), decorrentes da OS ..., não consubstanciam um mero crédito salarial, ao contrário dos demais pedidos dos AA…

…E conclui, daí, que o direito globalmente peticionado não se confina, assim, a um mero crédito, nem o seu exercício está sujeito ao respectivo prazo prescricional previsto no art. 38.º/1 da LCT (arts. 381.º, n.º 1, do Código do Trabalho/2003 e 337.º/1 do Código do Trabalho/2009).

No mais, sustenta não haver fundamento legal para excluir a existência de abuso do direito, concretamente na convocada modalidade da supressio, nas situações em que, como a presente, os AA. aceitaram e beneficiaram de promoções e retribuições, durante mais de 17 anos, sem qualquer reacção, (deixando assim pressupor que se conformaram com o percurso profissional definido perante várias entidades empregadoras), e assumem ora a factualizada conduta contraditória.

Vejamos então.

Não se descortinando, na concreta sinalagmática contratual, qual o ‘distinguo’ substantivo da pretextada diversa natureza dos créditos – …existe antes, entre as duas desenhadas realidades, como nos parece, uma infrangível relação ontológica/causal: o reclamado crédito salarial diferencial decorre necessariamente do direito a uma outra (mais elevada/melhor remunerada) categoria, não havendo lugar, no caso, a crédito salarial, proprio sensu, sem o direito à prévia promoção categorial –, fica necessariamente postergada a hipótese da não sujeição da primeira (enquanto crédito laboral autónomo/autonomizável) ao prazo de prescrição.

Enfrentando a questão matricial, resta ora saber se o abuso do direito, na referida modalidade da supressio, tem ou não aplicação em matéria de direitos sujeitos a prescrição, ou seja, mais concretamente, se os AA., exercitando o direito reclamado, nos termos em que o fizeram, abusaram nesse exercício, sabido que o mesmo é ilegítimo – na noção legal constante do art. 334.º do Cód. Civil – …quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A vocação da figura do abuso do direito tem como objectivo primordial – funcionando como que uma ‘válvula de segurança’ do sistema – obstar à consumação de certos direitos que, embora válidos em tese, na abstracção da hipótese legal, acabam por constituir, quando concretizados, uma clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante[2].

Na síntese do ensinamento dos ilustres mestres referidos – vide nota 2 –, diremos que se configurará uma situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem. 

Na elaboração dogmática à volta do instituto do abuso do direito, o ‘venire contra factum proprium’ assume, como é consabido, uma das suas manifestações mais características, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o ‘factum proprium’, seguido, em contradição, do ‘venire’.

A sua proibição é corolário do fundamental princípio ético-jurídico da confiança, condição básica da convivência pacífica e da cooperação entre os homens – nas sábias palavras de Baptista Machado, citado no Acórdão deste Supremo Tribunal de 12.6.2012, consultável no site da dgsi.pt –, não podendo a Ordem Jurídica deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem.

A inacção, inércia ou omissão do exercício de um direito por parte do seu titular, durante um mais ou menos longo lapso de tempo, constitui um dos elementos da modalidade do abuso do direito na vertente da proibição do ‘venire contra factum proprium’, apelidada pela doutrina, na expressão original alemã, de ‘Verwirkung’ (apud Baptista Machado, ‘Tutela da Confiança’…in ‘Obra Dispersa’, I, pg. 421/ss., também referido no Acórdão da Relação do Porto de 10.4.2003, C.J., tomo II/2003, pg. 197) ou de supressio, na terminologia introduzida por Menezes Cordeiro.

Reflectindo sobre o instituto em causa (estudo da origem, evolução, consolidação dogmática e regime, a que dedica o parágrafo 34.º do Volume V do seu ‘Tratado de Direito Civil’, na edição da 2.ª reimpressão, Almedina, 2011, que acompanhamos de perto), Menezes Cordeiro sustenta que, sendo embora variável o quantum de tempo necessário para concretizar a supressio, o mesmo há-de ser sempre inferior ao da prescrição, por óbvias razões, mas equivalente ao período, decorrido o qual, segundo o sentir comum prudentemente interpretado pelo julgador, já não será de esperar o exercício do direito atingido.

Nesta abordagem, buscando a afinação do conceito à luz do vector tempo, consigna o insigne autor que …a supressio não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição.

Além disso, remata, traduzindo-se a supressio numa omissão – a que falta, por isso, a precisão do positivo factum proprium – a sua caracterização demanda a verificação de outros elementos complementares (circunstâncias colaterais, ibidem, pg. 323) que, para além do não-exercício prolongado do direito, melhor alicercem a confiança do beneficiário, a saber: uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança (baseada na conduta circunstancial do titular do direito, a contraparte convence-se, justificadamente, que o direito já não será exercido); um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente (a contraparte, convicta e movida por essa confiança, tomou medidas ou passou a actuar em conformidade, causando-lhe ora o exercício tardio do direito maiores desvantagens do que o seu exercício atempado. A omissão do titular do direito, por via desse nexo de imputação da confiança, constituiu-se assim numa situação que torna, ética e socialmente aceitável/ajustado, o seu sacrifício).

Relembrado este condicionalismo hermenêutico, melhor se acederá ora à solução que temos por consentânea.

Mais de que saber, com rigor, se a analisada modalidade (supressio) do abuso do direito tem aplicação ou não em matérias/direitos sujeitos a prescrição – …a resposta, não obstante, já resulta do sobredito –, importará analisar se o exercício do direito em causa, à luz dos dilucidados contornos circunstanciais, afronta, de modo clamoroso ou gritante, os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, na compreensão de que lhes corresponde um comportamento honesto, leal, diligente, que não frustre o fim prosseguido pelo contrato e/ou defraude os legítimos interesses ou expectativas da parte contrária.

Concretizando:

Considerou-se, na deliberação sujeita, que os RR. não poderiam contar com a inacção dos AA., cujo contrato se mantém em execução , sendo que o prazo de prescrição dos créditos apenas terminará decorrido um ano sobre a data (futura) da cessação dos respectivos vínculos.

E mais se aduziu que, uma vez revogada a falada O.S. (‘Ordem de Serviço’), tanto a Comissão de Trabalhadores como os próprios AA. manifestaram a sua discordância, não devendo deixar de atribuir-se às promoções na carreira - a que entretanto  foram os RR. procedendo por sua única/própria iniciativa - um significado que não tenha presente aquelas posições, não se mostrando, verificados, além disso, os pressupostos da invocada figura da supressio.

Tudo (re)visto e ponderado, diremos, adiantando o veredicto, que se ajuizou acertadamente.

Com efeito:

Sendo embora certo que quando os AA. accionaram os RR. haviam já transcorrido largos anos sobre a data (Novembro de 1993) em que foi unilateralmente revogada a referida O.S. n.º ..., não poderá negligenciar-se, antes de mais, que os mesmos, desde cedo, manifestaram expressamente a sua não concordância com tal revogação, invocando tratar-se de uma alteração unilateral dos seus contratos de trabalho, que consideravam ineficaz – cfr. pontos 9 a 11 da FF.

Por outro lado, a falta de reacção dos AA., nomeadamente às promoções/reclassificações de que foram sendo alvo ao longo das sucessivas alterações subjectivas do empregador, foram-no com base em critérios que não os constantes daquela O.S., à revelia, pois, do regime deles conhecido e das expectativas daí decorrentes, não significando essa postura, objectivamente, por isso e sem mais, a criação de justificada confiança da contraparte, na crença legítima de que a posição dos AA. se houvesse por inalterada/inalterável.

Mantendo-se a constância do vínculo, é razoável aceitar-se que os AA. – face às promoções/reclassificações que foram sendo unilateralmente determinadas pelo empregador – aguardassem, expectantes, a eventual aproximação/reposição ao alcance promocional/categorial para que apontava a regulamentação veiculada pela referida O.S. ..., não resultando seguro que da sua inacção/omissão pudesse/devesse, justificadamente, concluir-se o contrário.

Dir-se-á por fim – aproximando a conclusão – que não se mostra factualizado um qualquer investimento de confiança do empregador na convicção de que o direito em causa já não seria exercido, tomando, com base nesse legítima crença, quaisquer medidas ou feito opções, que, por via do exercício (improvável) do direito, tenham precipitado um resultado danoso ou prejudicial, de algum modo e/ou medida.

Concluindo:

O exercício do direito em causa cronologicamente assumirá feição tardia.

Analisando-se afinal numa plausível e fundada espera/expectativa, perfeitamente compreensível na constância do vínculo, não se mostra deslegitimado à luz do postulado axiológico‑normativo[3] plasmado no art. 334.º do Cód. Civil.

Por fim:

Como acima consignado, o Exm.º Recorrente integrou no objecto do recurso – cfr. alínea C) das ‘conclusões’ – a questão, aflorada nas alegações, de não resultar da decisão sobre a matéria de facto que as promoções de que os AA. beneficiaram não eram as devidas, quais fossem as devidas, quais as retribuições que auferiram, bem como as que lhes seriam devidas.

Essa problemática, que não integrava o ‘thema decidendum’ da Apelação – e que por isso não foi aí versada ex professo, enquanto tal – é uma decorrência da determinada aplicação aos AA. da O.S. n.º ..., como flui do plasmado na parte final da fundamentação jurídica do Aresto sub judicio, em cujo dispositivo se exarou, em consonância, que, reconhecido o direito (…nos termos pedidos), será tudo a liquidar em oportuno incidente, dada a insuficiência de factos provados, atento o disposto nos arts. 378.º, n.º 2 e 661.º, n.º 2, do C.P.C.

Assim, a temática  enunciada na referida conclusão C) ficou prejudicada, razão por que dela se não conhece.

                                                  __

Não foram violadas as disposições legais identificadas, ou outras, soçobrando o argumentário que enforma as proposições conclusivas adrede alinhadas.

                                                  __

                                                  III.

                                             DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se negar a Revista, confirmando consequentemente o Acórdão impugnado.

Custas pelos Recorrentes.

(Anexa-se sumário – art. 663.º, n.º 7, do NCPC.)

Lisboa, 11 de Dezembro de 2013

Fernandes da Silva (Relator)

Gonçalves Rocha

Leones Dantas

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[1] - Trata-se de evidente lapso de escrita. Quis-se escrever seguramente …OS ....
[2] - Cfr., por todos, Vaz Serra, BMJ n.º 85/253; Coutinho de Abreu, ‘Do Abuso do Direito’, 1983; Manuel de Andrade, ‘Teoria Geral das Obrigações’, 3.ª Edição, pgs.63-64; Antunes Varela, ‘Das Obrigações em Geral’, Vol. I, 6.ª Edição, pg. 516; Pires de Lima/A. Varela, ‘Código Civil Anotado’, Vol. I, 4.ª Edição, pg. 299.
[3] - Apud Castanheira Neves, citado no já referido Acórdão do S.T.J. de 12.6.2012.