Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1426/18.9YRLSB.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO PEREIRA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
RECUSA
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 410.º, N.º 2, ALÍNEA A).
REGIME JURÍDICO DA TRANSMISSÃO E EXECUÇÃO DE SENTENÇAS EM MATÉRIA PENAL, APROVADO PELA LEI N.º 158/2015, DE 17 DE SETEMBRO: - ARTIGOS 35.º, N.º 3 E 36.º, N.ºS 1, ALÍNEA J) E 4.
DECRETO LEGISLATIVO 38, DE 15-02-2016: - ARTIGO 13.º, N.º 1, ALÍNEA G).
Legislação Comunitária:
DECISÃO-QUADRO 2008/947/JAI DO CONSELHO, DE 27 DE NOVEMBRO DE 2008.
Sumário :
I - A questão que se suscita nestes autos prende-se essencialmente com o conjunto de normas que transpuseram para o direito interno as disposições previstas na Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27 de Novembro de 2008, respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas e mais precisamente com o disposto no art. 36.º, n.º 1, al. j), da Lei 156/2015, 17-09, o que, numa interpretação que o ilustre recorrente qualifica de meramente literal, aponta para a recusa de reconhecimento da sentença quando a duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa for inferior a 6 meses, interpretação que se segundo este recorrente faria do diploma de transposição um articulado incongruente, violaria o primado do direito comunitário e que, independentemente disso, mesmo a aceitar-se a interpretação do Tribunal recorrido, a decisão será nula porquanto, não tendo previamente dado cumprimento ao disposto no art. 36.º, n.º 4 da Lei 158/2015, de 17-09, terá incorrido no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP).
II - Segundo o art. 35.º, n.º 3, da Lei 156/2015, 17-09, a autoridade portuguesa competente não reconhece a sentença ou decisão relativa à liberdade condicional se decidir invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento a que se refere o artigo seguinte.
III - A entender-se que a norma do n.º 1 do art. 36.º do mesmo diploma legal tem natureza impositiva, aquele “se decidir” não teria qualquer sentido. Conjugando o disposto em ambas as disposições seria forçoso concluir pela natureza facultativa do disposto no art. 36.º, n.º 1.
IV - O que o legislador fez foi realizar, através do art. 35.º, a transposição do art. 8.º da Decisão-Quadro, de cujo n.º 1 consta o seguinte: "A autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, transmitida nos termos do artigo 5.º e de acordo com o procedimento previsto no artigo 6.° e toma sem demora todas as medidas necessárias à fiscalização da medida de vigilância ou da sanção alternativa, a menos que decida invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento e da fiscalização a que se refere o artigo 11.º", sem ter tido em conta a concreta solução adotada no que se refere às causas de recusa.
V - Em parte alguma do art. 36.º, n.º 4, do CP, se refere que o pedido de informações complementares se destine a evitar accionar o motivo de recusa. Pelo contrário, o n.º 4 refere que "antes de decidir não reconhecer a sentença (...) ".
VI - O n.º 4 não impõe o pedido de informações, uma vez que ele se destina a obter " (...) todas as informações complementares necessárias". Ora, se não houver necessidade de quaisquer informações complementares, tal pedido não se justifica e faz desse procedimento um ato totalmente inútil. O que o legislador pretende é, face a um fundamento de recusa, que o mesmo só seja accionado dispondo a autoridade competente de todos os elementos para que essa recusa seja inquestionável.
VII - O n.º 5 do art. 36.º ao admitir que mesmo face a uma recusa pode-se e deve-se procurar chegar a um acordo com a autoridade emitente e, com base nele, decidir fiscalizar mas sem assumir as decisões a que alude o art. 40.º n.º 2, consagra uma solução subsidiária.
VIII - Face ao considerando n.º 18 da Decisão-Quadro e no art. 11.º constata-se que a Decisão-Quadro tem o propósito de dar aos Estados a possibilidade de não reconhecer um conjunto de decisões, mas não pretendendo, nem podendo, vincular um Estado a fazê-lo de determinada forma. O Estado português optou pela decisão de recusa, em coerência com o que ocorre em outras situações, designadamente em matéria de cooperação judiciária internacional em matéria penal, o que é uma opção perfeitamente legítima.
IX - Portugal não é o único Estado da União que optou por esta solução para situações como a que está em apreço. Houve Estados que optaram pela mera possibilidade de recusa, como a Itália (art. 13.º, n.º 1, al. g) do Decreto legislativo 38, de 15-02-2016), ou a França (art. 764-25, n.º 1 do CPP, um dos artigos acrescentados a este código pela a Lei 2015-993, de 17-08, aprovada para afeitos de transposição da Decisão Quadro 2008/947).
X - Em Espanha o art. 105.º, n.º 1, al. b) da Lei 23/2014, de 20-11, determina que o juiz denegará o reconhecimento e a execução das decisões de liberdade vigiada em medida inferior a seis meses (decisões essas que, nos termos do seu art. 94.º, al. i) do mesmo diploma, abrangem a prestação de trabalho a favor da comunidade). Ou seja, num caso como o que está em apreço, a Espanha recusaria o reconhecimento da decisão.
XI - A decisão sob recurso não incorre na nulidade do art. 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, decidiu em conformidade com a letra e o espírito do art. 36.º, n.º 1 da Lei 158/2015 e não ofende o primado do direito comunitário porquanto o legislador português optou por uma solução admitida pela Decisão-Quadro 2008/947/JAI (considerando 18 e art. 11.º).
Decisão Texto Integral:                        

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1.1 – Por decisão sumária de 5 de Setembro de 2018, entendeu o Ex.mo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o reconhecimento, solicitado pelo Ministério Público junto do mesmo tribunal, da decisão proferida pelo ....° Juízo Criminal de ..., no sentido de o Requerido AA vir cumprir, em Portugal, a pena de um mês de trabalhos em benefício da comunidade, pela pática de factos subsumíveis aos tipos legais de um crime contra as finanças públicas, p. e p. pelo art.º 305.º, n.º 1 do Código Penal Espanhol e de um crime de falsificação de documento comercial, p. e p. pelo art.º 392.º, com relação com o art.º 390.º, ambos também do Código Penal Espanhol.

1.2 - De  tal decisão reclamou o Ministério Público para a conferência, tendo a reclamação sido indeferida por acórdão de 30 de outubro de 2018.

1.3 - Inconformado com a decisão vem o Ministério Público recorrer da mesma, concluindo a motivação do recurso nos termos seguintes:

“(…)

1. Por douto acórdão de 30 de Outubro de 2018, proferido nos autos acima referenciados da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, foi recusado o reconhecimento da sentença nº 533/2015, proferida pelo ..º Juízo do Tribunal Criminal de ..., Reino de ..., e que condenou o requerido, AA, com os demais sinais dos autos, a final, numa pena de um mês de trabalho a favor da comunidade.

2. O reconhecimento desta sentença havia sido requerido pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos da Lei 158/2015 de 17 de Setembro e da Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27.11.2008, actualizada pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009, instrumentos jurídicos aplicáveis ao caso, sendo que a mencionada Lei se destinou a transpor para o direito interno a Decisão-Quadro.

3. A recusa do reconhecimento da sentença teve como fundamento o facto de o artigo 36 nº 1 da Lei 158/2015 dizer expressamente que a autoridade portuguesa competente para a execução “recusa” o reconhecimento no caso de a duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa ser inferior a seis meses.

4. A letra da Lei foi vista assim como a expressão correcta do desígnio do legislador, impondo uma decisão vinculada e obrigatória, tendo-se entendido que o legislador quis efectivamente estabelecer aqui um limite mínimo da sanção, à semelhança do que ocorre noutras áreas como a extradição, o mandado de detenção e outras, dentro do qual a recusa se impõe sem mais.

5. Isto tanto mais que é sabido resultar a Lei da transposição da Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho e no art. 11 nº 1 desta consta claramente que a autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, daí que o legislador não podia ignorar que tal expressão não era vinculativa, sendo de pressupor que foi cuidadoso e ponderado, sendo a hipótese de lapso pouco compreensível.

6. Não pondo nós em causa o mencionado princípio genérico relativo à interpretação das normas, não se concorda, contudo, com a interpretação levada a caso, a qual não é, apesar de tudo, a melhor interpretação que no caso se impõe, devendo esta ser no sentido correctivo ao próprio texto da Lei.

7. Efectivamente, o diploma em causa não prima nem pelo rigor nem pela precisão, quer quando se afasta da Decisão-Quadro quer mesmo quando procura transpor directamente o seu texto.

8. Exemplificando desde já este ponto, mesmo antes de entrar na impugnação propriamente dita, diremos que basta ver o texto do próprio nº 1 do artigo 36. Aí se refere que a autoridade portuguesa competente para a execução recusa o reconhecimento da sentença, o que não corresponde à realidade pois que no art. 34 se definiu quem é competente para reconhecer (O Tribunal da Relação) e quem é competente para executar (O tribunal da condenação ou o TEP).

9. O legislador nesse ponto, apesar de o ter feito expressamente, disse mais do que pretendia, pois devia ter continuado a empregar a fórmula anterior “ a autoridade portuguesa competente”, tendo-lhe aditado “ para a execução”, o que não é o caso, importando assim fazer uma interpretação correctiva do próprio texto da Lei.

10. Regressando porém à questão de saber como interpretar o vocábulo “recusa”, se na acepção vinculativa, sendo obrigado a recusar, conforme defendeu o acórdão, ou no sentido de que “pode recusar”, conforme defendemos, diremos que, sob pena de total incongruência do sistema a interpretação possível não pode ser senão esta última.

11. Vejamos assim melhor, primeiramente a própria Lei 158/2015 e depois a Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho que aquela procurou transpor.

12. Na Lei 158/2015 a matéria específica aqui em causa encontra-se tratada nos artigos 34 e segs., tendo-se já assinalado a contradição entre este e o corpo do nº 1 do art. 36, o que obriga a fazer uma interpretação correctiva do nº 1 do art. 36, apesar da Lei expressa ali em causa.

13. No artigo 35 nº 3 também se refere que a autoridade portuguesa competente não reconhece a sentença ou decisão “se decidir” invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento a que se refere o artigo seguinte.

14. Ora, se assim é, resulta desde já claro que a autoridade portuguesa competente há-de, nos termos do artigo seguinte, ter o poder de decidir invocar, ou não invocar, um dos motivos de recusa. Não se encontrará numa situação de obrigatoriedade ou vinculação a uma decisão imposta pelo legislador, pois se refere que a autoridade poderá decidir invocar  ou não invocar um dos motivos de recusa.

15. Visto o artigo 36 (para além da correcção que se impõe no corpo do nº 1) no seu nº 3 refere-se que qualquer decisão ao abrigo da al. l) do nº 1 que diga respeito a infracções cometidas, em parte, no território do Estado português, é tomada pelas autoridades portuguesas competentes caso a caso e apenas em circunstâncias excepcionais…

16. Ora, a primeira dificuldade neste número surge então em identificar a al. l), a qual não existe, tudo indicando que se trata da al. k), atento o seu conteúdo, que era o que importava transpor.

17. Importa de novo corrigir o legislador, mesmo contra a letra expressa da Lei, e nem parece que se possa sustentar aqui a existência de lapsos ou erros, mas não também quanto ao mais.

18. Regressando ao nº 3, nele se verifica que o legislador manda aqui que a autoridade portuguesa competente para a decisão, o faça caso a caso e tenha em conta as circunstâncias específicas do mesmo.

19. Se assim é, como se verifica do texto da Lei, então é porque do número 1 não resulta uma obrigação ou vinculação à decisão de recusar sem mais, pois aqui o legislador fornece um critério mais apertado, que na lógica da interpretação em causa não seria necessário em absoluto, dado que a autoridade já estava vinculada a uma só decisão e apenas a essa, a de recusar.

20. Daí que a leitura deste número 3 também impõe a correcção do nº 1 onde consta “recusa”, que terá que ser lido como “pode recusar”.

21. No artigo 36 nº 4 também verificamos que se impõe à autoridade portuguesa competente que, antes de decidir não reconhecer o comunique à autoridade do Estado de emissão e lhe solicite as informações complementares necessárias, atento o motivo concreto que invoque e em ordem a tentar evitar accionar tal motivo.

22. Ora, assim sendo é porque assiste à autoridade portuguesa o poder de avaliar a situação e decidir conforme entender, mas sem estar vinculada ou obrigada antecipadamente a uma decisão de recusa, o que contraria a interpretação do nº 1 feita no acórdão.

23. O número 5 vai no mesmo sentido, pois que, invocando-se um motivo de recusa, pode-se e deve-se, ainda assim, procurar chegar a um acordo com a autoridade emitente e, com base nele, decidir fiscalizar mas sem assumir as decisões a que alude o art. 40 nº 2.

24. Ora, se assim é também aqui, então é porque a autoridade competente tem margem para decidir e o legislador não lhe impôs uma obrigação ou vinculação no nº 1 que ele não pode afastar. E assim sendo importa interpretar correctivamente o nº 1.

25. Resulta assim, de forma clara, do próprio artigo 36 no seu todo que o nº 1 tem que ser interpretado de forma correctiva sob pena de completa desarmonia e incongruência do sistema que ele próprio regula.

26. Impõe-se assim à mais elementar evidência que onde consta “recusa” se tem que interpretar no sentido de “pode recusar”, assim corrigindo o legislador apesar da literalidade do termo ou vocábulo, pois não existe outra leitura possível para o artigo em causa senão esta.

27. Diga-se aliás, em abono da verdade, que já assim se decidiu por exemplo no processo 1427/18.7YRLSB, também deste TRL, a propósito do reconhecimento da mesma sentença relativamente a um co-arguido do aqui requerido no que a esta interpretação que defendemos respeita, tendo-se consignado expressamente no acórdão que se crê ter-se “tratado de um lapso de tradução devendo aplicar-se correctivamente o espirito e letra da DQ que prevê que a autoridade requisitada possa recusar o reconhecimento”.

28. Passando agora à análise da Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho, fonte imediata da Lei em causa pois que procurou transpô-la para o direito interno, vejamos então o seu artigo nº 11 pois que é o que se procurou transpor para o mencionado artigo 36.

29. No corpo do nº 1 deste artigo 11 aí se dispõe expressamente que “ A autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença…se…”

30. Assim, perante a clareza e literalidade deste instrumento legislativo, que é a fonte da Lei em causa, não resta senão concluir que o legislador nacional se desviou do mesmo, mas necessariamente de forma involuntária, por qualquer causa que se desconhece, de lapso, erro ou outra.

31. De facto, vigorando o sistema da Decisão Quadro para todos os Estados membros da União Europeia, a manter-se a interpretação do acórdão, Portugal, sem qualquer salvaguarda nem aviso, criaria uma fractura no sistema de reconhecimento mútuo com repercussões graves nos outros Estados membros pois que, na prática, não reconheceria nenhuma sentença ou decisão deste tipo da que nos ocupa, gerando impunidade geral.

32. Esta consequência é inadmissível e não consta da letra nem do espírito da Decisão Quadro, que Portugal negociou e aceitou sem qualquer reserva ou contrariedade.

33. A única leitura possível da Lei e em especial do art. 36 nº 1 é esta, e não a de que Portugal se pretendeu afastar consciente e volutariamente do regime regra que consta da Decisão-Quadro pois não se colhe qualquer indício nesse sentido nem nesta nem na legislação interna portuguesa.

34. Por isso, do confronto do artº 36 nº 1 com a sua fonte, o art. 11 nº 1 da Decisão-Quadro, importa afastar o desvio corrigindo a interpretação aquilo em que o legislador falhou, por lapso ou erro notório.

35. Mas se é esta a conclusão a que chegamos com base no artigo 11 da Decisão-Quadro, esta fornece ainda outros elementos nesse mesmo sentido, o que se alcança pela análise aos considerandos que a precedem, nomeadamente os números 17, 18 e 20, dos quais resulta que os Estados membros de execução têm margem para a decisão e nunca que sejam ou devam ser obrigados à recusa do reconhecimento.

36. Assim e em resumo, também no confronto com a Decisão-Quadro, que foi a fonte escrita da Lei 158/2015, se impõe uma interpretação correctiva da literalidade do corpo do nº 1 do art. 36, ao invés do que fez o acórdão recorrido, sob pena de estar em causa toda a unidade e harmonia do sistema de reconhecimento deste tipo de sentenças e decisões.

37. Interpretação esta perfeitamente consentida no nosso sistema, pois se é certo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da Lei um mínimo de correspondência verbal, tal não é o caso na presente situação.

38. Neste caso verifica-se sim que o legislador laborou em diversos lapsos ou erros sendo que este, ao mencionar apenas o vocábulo “recusa” em vez de “pode recusar” se encontra manifesta e claramente em oposição ao próprio pensamento legislativo expresso no próprio artigo e na sua fonte próxima e imediata e com registo escrito, impondo-se assim uma interpretação correctiva a que aliás o interprete se encontra obrigado.

39. De facto, embora se lhe imponha a presunção que na fixação do sentido e alcance da Lei o legislador consagrou as soluções mais adequadas e acertadas e soube exprimir o seu pensamento, tal presunção mostra-se, neste caso, devidamente ilidida pelo confronto com o próprio artigo, o restante diploma e a sua própria fonte, também esta escrita e tudo contrariando também de forma expressa o ponto aqui em causa.

40. Por outro lado ainda, em termos constitucionais as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, com respeito embora pelos princípios fundamentais do Estado Português (artº 8º da CRP).

41. O texto da Decisão-Quadro derroga assim por si só a interpretação aqui e causa, mesmo que alegadamente limitada pela literalidade do vocábulo, e tal só não aconteceria se da Decisão-Quadro pudesse eventualmente resultar violação dos princípios fundamentais por que se rege o Estado de Direito em Portugal, o que não é o caso.

42. Tudo impõe assim uma interpretação correctiva do art. 36 nº 1 (corpo) afastando mesmo a literalidade do vocábulo “recusa”, se interpretado no sentido vinculativo de impor à autoridade competente a obrigação de recusar o reconhecimento, em vez lhe exigir uma decisão ponderada, no sentido de poder recusar tal reconhecimento conforme as circunstâncias concretas do motivo de recusa que no caso possa existir.

43. Deverá assim o acórdão recorrido ser revogado e mandado ser substituído por outro que consagre a interpretação, correcta e conforme com o sistema, de não impor uma decisão obrigatória ou vinculada à autoridade competente no sentido de recusar obrigatoriamente o reconhecimento deste tipo de sentenças.

44. Por outro lado, sucede ainda que o acórdão mostra-se ferido pelo vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, uma vez que se limitou a, sem mais, recusar o reconhecimento da sentença com base no motivo de recusa de a pena em causa (de trabalho a favor da comunidade), ser inferior a 6 meses.

45. Isto, sendo certo que, mesmo nesta circunstância, nos termos do nº 4 do art. 36, antes de decidir não reconhecer a sentença a autoridade competente do Estado Português, deveria ter comunicado à autoridade competente do Estado de emissão, solicitando-lhe informações complementares, ou um acordo no sentido de proceder apenas à fiscalização da medida mas sem assumir a responsabilidade a que se reporta o art. 40 nº 2.

46. Sem esta comunicação e apuramento desta matéria de facto, a decisão em causa não podia ser tomada, conforme resulta dos números 4 e 5 do citado artigo 36 da Lei 158/2015.

47. À semelhança aliás do que teve lugar no já citado processo 1427/18.7YRLSB no qual foi perguntado à autoridade competente do Estado de emissão (Tribunal de ...) a sua disponibilidade para fazer o mencionado acordo.

48. Em consequência deve assim, também por esta via, ser revogado o acórdão recorrido, com as legais consequências.  

(…)”.

1.4 - Subidos os autos ao STJ foram com vista ao MP, tendo o Ex.mo PGA dado o seguinte parecer:

“(…)

Relativamente ao mérito do recurso, acompanha-se a douta motivação pelo EX.mo Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa – inclusivamente na parte em que aponta a comissão do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito previsto no art.º 410.º n.º 2 a) do CPP, de que, pese do disposto no art.º 434.º do CPP, este Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer no uso dos poderes de revista alargada, por em impugnação movida a acórdão de tribunal da relação que funcionou em 1.ª instância -, sendo-se, por tudo, pela sua procedência.

(…)”.

1.5 - Respondeu o requerido nos termos que se transcrevem:

“(…)

1. Por uma questão de economia processual considera-se reproduzida toda a matéria aduzida no Recurso apresentado.

2. Quanto ao Parecer emitido pelo Ministério Público (M.P.) que acompanha a motivação produzida pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, pugnando pela improcedência do Acórdão proferido pelo Douto Tribunal da Relação a qual julgou procedente o indeferimento liminar de reconhecimento de Execução de Sentença Penal Europeia e indeferiu a Reclamação para Conferência apresentada.

3. Entende o Recorrido, em primeira linha, que existe de facto, nos termos do Art. 36.º n.º 1 alínea j) da Lei 158/2015 de 17 de setembro, a existência de fundamento de recusa do reconhecimento da sentença, uma vez que, a sançã alternativa a que foi condenado é inferior a 6 (seis) meses, conforme decisão proferida pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em 5 de setembro de 2018;

4. No que concerne à existência de um vicio de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito aplicada, mormente, prosseguindo um entendimento de que o Tribunal da Relação não interpretou corretamente as normas aplicáveis uma vez que deveria ter decidido sentido corretivo do textolegal, acompanha o Recorrido, na integra, o entendimento plasmado no acórdão ora mencionado.

5. Nesse sentido, entende o Recorrido que, muito embora possa existir uma diferença linguística entre as Decisões Quadro e a Lei Interna Nacional a verdade é que o Legislador Nacional pretendeu impor um limite mínimo razoável à possibilidade de ativação dos meios e canais de cooperação internacional em matéria criminal, conforme decorre de outros normativos penais.

6. Na mesma senda, nada opõe a que se verifique a possibilidade de solicitação de informações complementares ou de celebração de um acordo com a autoridade  competente do Estado que emitiu a decisão, no sentido de fiscalizar a medida mas tal não obsta a que, verificado o pressuposto para a recusa do reconhecimento da sentença seja assim proferida tal recusa.

7. Entende, igualmente o Recorrido, que as possibilidades conferidas nas alíneas do Art. 36.º não têm conexão direta com a recusa e poderão ter aplicação em situações em que a pena a reconhecer e consequentemente a executar se encontram fixadas para lá do limite imposto pela alínea j), n.º 1, do Art. 36.º.

8. Face a todo o exposto não existe fundamento para que o Tribunal da Relação de Lisboa aplicasse uma interpretação corretiva ao normativo legal supra anunciado dado que aplicação do fundamento constante na alínea j) do n.º 1 do Art. 36.º não obsta a que se verifique a aplicação das demais alíneas.

9. Entende, por fim, que considerando todos os elementos factuais e legais, a decisão sumária foi proferida com respeito aos requisitos legais aplicáveis, tendo, inclusivamente fundamentado os aspetos dissonantes invocados pelo Recorrente quanto à interpretação do normativo legal.

Termos em que se considera que o Recurso apresentado deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação que indeferiu a reclamação apresentada confirmando a decisão sumária proferida pelo Relator a Fls. 48 e seguintes dos autos.

(…)”.

1.6 - Colhidos os vistos foram os autos à conferência, havendo que apreciar e decidir

II - Fundamentação

2.1 - A questão que se suscita nestes autos prende-se essencialmente com o conjunto de normas que transpuseram para o direito interno as disposições previstas na Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho, de 27 de Novembro de 2008 , respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas e mais precisamente com o disposto no art.º 36.º, n.º 1, alínea j) que, numa interpretação que o ilustre recorrente qualifica de meramente literal, aponta para a recusa de reconhecimento da sentença quando a duração da medida de vigilância ou da sanção alternativa for inferior a 6 meses.

Tal interpretação literal arrastaria consigo os seguintes problemas:

A) Faria do diploma de transposição um articulado incongruente, pelas razões que oportunamente serão apreciadas;

b) Violaria o primado do direito comunitário.

c) Independentemente disso, mesmo a aceitar-se a interpretação do Tribunal recorrido, a decisão será nula porquanto, não tendo previamente dado cumprimento ao disposto no art.º 36.º n.º 4 da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, terá incorrido no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP).

Não iremos desde já abordar a temática da nulidade porquanto a sua apreciação está intimamente associada à interpretação do conjunto do diploma de transposição, a propósito das primeiras questões colocadas no recurso.

2.2 - Vejamos então se a norma do art.º 36.º, n.º 1 da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, carece de interpretação correctiva, colocando-a em linha com o que se dispõe no n-º 1 do art.º 11 da Decisão-Quadro 2008/947/JAI, segundo o qual “A autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas se:” (seguindo-se depois os diversos fundamentos de recusa).

Considera o recorrente que, quando no artigo 36.º, n.º 1 se prescreve: “A autoridade portuguesa competente para a execução recusa o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas se:” (seguem-se os motivos de recusa), o legislador, fosse por qualquer causa que se desconhece, de lapso, erro ou outra,  se expressou incorrectamente porque o que pretenderia era prever uma possibilidade mas não uma obrigação de recusa. E nesse sentido aponta diversas incongruências do diploma, a insistir-se nessa interpretação meramente literal. São elas:

2.2.1 - Segundo o artigo 35 n° 3 a autoridade portuguesa competente não reconhece a sentença ou decisão relativa à liberdade condicional se decidir invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento a que se refere o artigo seguinte (negrito e sublinhado nossos).

Ora, a entender-se que a norma do n.º 1 do art.º 36.º tem natureza impositiva, aquele se decidir não teria qualquer sentido. Conjugando o disposto em ambas as disposições seria forçoso concluir pela natureza facultativa do disposto no art.º 36.ºn.º 1.

Cremos porém que o argumento, sendo relevante não é decisivo. São diversas as alusões feitas às anomalias do trabalho de transposição das decisões quadro 2008/909/JAI e 2008/947/JAI através da Lei n.º 158/2015 e esta será mais uma delas porque o legislador teve em conta o teor da própria DQ e não a solução concreta prevista no diploma que a iria transpor.  De facto o que o legislador fez foi realizar, através do art.º 35.º, a transposição do art.º 8.º da Decisão-Quadro, de cujo n.º 1 consta o seguinte: “A autoridade competente do Estado de execução reconhece a sentença e, se for caso disso, a decisão relativa à liberdade condicional, transmitida nos termos do artigo 5.º e de acordo com o procedimento previsto no artigo 6.º e toma sem demora todas as medidas necessárias à fiscalização da medida de vigilância ou da sanção alternativa, a menos que decida invocar um dos motivos de recusa do reconhecimento e da fiscalização a que se refere o artigo 11.º” (sublinhado nosso), sem ter tido em conta a concreta solução adotada no que se refere às causas de recusa. Refira-se no entanto que mesmo assim a expressão se decidir não constitui elemento decisivo na interpretação da norma. Uma decisão de recusa, ainda que impositiva, exige uma prévia verificação dos respectivos pressupostos, pelo que só após tal fase se pode decidir pela recusa

2.2.2 - Alega-se ainda que o artigo 36 n° 4  impõe à autoridade portuguesa competente que, antes de decidir não reconhecer o comunique à autoridade do Estado de emissão e lhe solicite as informações complementares necessárias, atento o motivo concreto que invoque e em ordem a tentar evitar accionar tal motivo. O que significaria que assiste à autoridade portuguesa o poder de avaliar a situação e decidir conforme entender, mas sem estar vinculada ou obrigada antecipadamente a uma decisão de recusa.

Importa sublinhar que em parte alguma desta norma se refere que o pedido de informações complementares se destine a evitar accionar o motivo de recusa. Pelo contrário, o n.º 4 refere que “antes de decidir não reconhecer a sentença…” (sublinhado nosso). Se a intenção normativa fosse a apontada pelo ilustre recorrente a parte sublinhada não teria sentido. Por outro lado o n.º 4 não impõe o pedido de informações, uma vez que ele se destina a obter “…todas as informações complementares necessárias”. Ora, se não houver necessidade de quaisquer informações complementares, tal pedido não se justifica e faz desse procedimento um ato totalmente inútil. O que o legislador pretende é, face a um fundamento de recusa, que o mesmo só seja accionado dispondo a autoridade competente de todos os elementos para que essa recusa seja inquestionável.

2.2.3 - Acrescenta-se ainda que o número 5 do art.º 36.º vai no mesmo sentido, pois mesmo face a uma recusa pode-se e deve-se procurar chegar a um acordo com a autoridade emitente e, com base nele, decidir fiscalizar mas sem assumir as decisões a que alude o art. 40.º n° 2. É válido este argumento mas sem o alcance que o ilustre recorrente lhe pretende atribuir dado que esta é uma solução subsidiária, tendente a uma fiscalização mesmo sem reconhecimento, situação que é compatível com qualquer das interpretações que seja dada ao disposto no n.º 1. Atente-se no entanto que essa solução subsidiária não seria viável no caso dos presentes autos, pela natureza da medida imposta.

2.3 – Refere-se ainda que a interpretação correctiva do disposto no art.º  art.º 36.º n.º 1 da Lei 158/2015, é exigido constitucionalmente, face ao disposto no art.º 8.º da CRP, derrogando o texto da Decisão-Quadro a interpretação aqui e causa, o que só não aconteceria se da Decisão-Quadro pudesse eventualmente resultar violação dos princípios fundamentais por que se rege o Estado de Direito em Portugal, o que não é o caso.

Não tem porém razão o recorrente nem há razão válida para aqui invocar o primado do direito comunitário.

Uma Decisão-Quadro (ato de direito comunitário derivado, introduzida no TUE pela Tratado de Amesterdão e extinto pelo Tratado de Lisboa) tinha natureza muito semelhante à directiva porquanto definia fins a atingir pelos Estados-Membros mas permitia que estes escolhessem os meios mais apropriados para os concretizar.

Ora, consta do considerando n.º 18 da Decisão-Quadro “Quando as medidas de vigilância ou as sanções alternativas incluam a prestação de trabalho a favor da comunidade, o Estado de execução deverá estar habilitado a recusar o reconhecimento da sentença e, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional caso o trabalho a prestar possa, em condições normais, ser concluído em menos de seis meses”.

Por sua vez, o art.º 11.º (Motivos de recusa do reconhecimento e fiscalização), prescreve o seguinte:

“1.   A autoridade competente do Estado de execução pode recusar o reconhecimento da sentença, ou, se for caso disso, da decisão relativa à liberdade condicional, bem como a assunção da responsabilidade pela fiscalização das medidas de vigilância ou das sanções alternativas se:” (seguem-se os diversos fundamentos).

Constata-se pois que a DQ tem o propósito de dar aos Estados a possibilidade de não reconhecer um conjunto de decisões, mas não pretendendo, nem podendo, vincular um Estado a fazê-lo de determinada forma. O Estado português optou pela decisão de recusa, em coerência com o que ocorre em outras situações, designadamente em matéria  de cooperação judiciária internacional em matéria penal, o que é uma opção perfeitamente legítima

3.4 – Considera ainda o ilustre recorrente que, “…vigorando o sistema da Decisão Quadro para todos os Estados membros da União Europeia, a manter-se a interpretação do acórdão, Portugal, sem qualquer salvaguarda nem aviso, criaria uma fractura no sistema de reconhecimento mútuo com repercussões graves nos outros Estados membros pois que, na prática, não reconheceria nenhuma sentença ou decisão deste tipo da que nos ocupa, gerando impunidade geral”.

Todavia não se corre esse risco. Efetivamente Portugal não é o único Estado da União que optou por esta solução para situações como a que está em apreço. Houve Estados que optaram pela mera possibilidade de recusa, como a Itália (art.º 13.º, n.º 1, alínea g) do Decreto legislativo n.º 38, de 15 de fevereiro de 2016),  ou a França (art.º 764-25, n.º 1 do CPP, um dos artigos acrescentados a este código pela a Lei 2015-993, de 17 de agosto, aprovada para afeitos de transposição da DQ 2008/947). Mas já em Espanha o art.º 105-º, n.º 1 alínea b) da Lei n.º 23/2014, de 20 de novembro, determina que o juiz denegará o reconhecimento e a execução das decisões de liberdade vigiada em medida inferior a seis meses (decisões essas que, nos termos do seu art.º 94.º, alínea i) do mesmo diploma, abrangem a prestação de trabalho a favor da comunidade). Ou seja, num caso como o que está em apreço, a Espanha recusaria o reconhecimento da decisão.

Resta por isso concluir que a decisão sob recurso não incorre na nulidade do art.º 410.º, n.º 2 alínea a) do CPP (ponto 2.2.2.), decidiu em conformidade com a letra e o espírito do art.º 36.º, n.º 1 da Lei n.º 158/2015 e não ofende o primado do direito comunitário porquanto o legislador português optou por uma solução admitida pela Decisão-Quadro n.º 2008/947/JAI (considerando 18 e art.º 11.º).

            III – Decisão

           

           Em face do exposto, acordam os juízes da 5.ª secção do Supremo Tribunal de  Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.

           

            Sem custas.


Supremo Tribunal de Justiça, 4 de abril de 2019

Júlio Pereira (Relator)

Clemente Lima