Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3396/16.9T8CSC-C.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PROGENITOR
MORTE
TUTOR
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
Por morte do progenitor a quem estava atribuído em exclusivo o exercício das responsabilidades parentais não ocorre a transferência automática da titularidade desse exercício quer para o progenitor sobrevivo quer para o tutor designado, havendo de proceder-se à averiguação da situação relacional e social actualizada dos envolvidos para se apurar qual das soluções (as referidas ou outras) deverá o tribunal decretar, por ser a que melhor assegura os interesses da criança.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS


ENTRE

AA

(aqui patrocinado por ..., adv.)

Progenitor /Requerido / Apelante / Recorrido

CONTRA

BB

E

CC

(aqui patrocinados por ..., adv.)

Interessados / Apelados / Recorrentes

EM QUE INTERVEM

O MINISTÉRIO PÚBLICO

Interveniente

RELATIVAMENTE À CRIANÇA

DD

(n. ...ABR2014



I – Relatório

Por sentença de 27MAI2019 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais relativamente à criança em epígrafe tendo-se atribuído em exclusivo à mãe (EE) o exercício das responsabilidades parentais (actos da vida corrente e questões de particular importância) e regulado as visitas e a prestação de alimentos do pai.

Em 27JAN2022 veio aos autos notícia de que a mãe da criança havia falecido em ...JAN2022 tendo deixado designados, por documento notarialmente autenticado, como tutores da criança FF e CC (doravante designados como Interessados).

Em 01FEV2022 veio o Progenitor requerer a ‘extinção da regulação fixada’, uma vez que em face do decesso da progenitora, lhe cabe em exclusivo o exercício das responsabilidades parentais e a notificação dos interessados para indicarem o paradeiro da criança, bem como, se por pertinente havido, a designação de data para conferência a fim de ‘agilizar a ida da criança para casa do pai’.

Por requerimento de 03FEV2022 vieram os Interessados opor-se à pretensão do Progenitor e requerer que o tribunal considerasse válida e eficaz a sua designação como tutores, mantendo no demais inalterada a regulação das responsabilidades parentais.

Também o Ministério Público promoveu o indeferimento da pretensão do Progenitor.

Foi proferida decisão que, considerando que o disposto no artigo 1904º do CCiv pressupõe que as responsabilidades parentais caibam a ambos os progenitores sendo que no caso tais responsabilidade cabiam em exclusivo à progenitora pelo que lhe competia em exclusivo a designação de tutores conforme o artigo 1928º do CCiv, considerou válida a referida designação de tutores e indeferiu o requerido pelo progenitor, declarando inexistir fundamento para que o mesmo deixe de cumprir a s suas obrigações alimentares.

Inconformado, apelou o Progenitor concluindo, em síntese, que com a morte da Progenitora radica em si a exclusividade das responsabilidades parentais uma vez que não estava inibido das mesmas, não se verificando os pressupostos para o estabelecimento de tutela.

Houve contra-alegação e promoção no sentido da improcedência do recurso.

A Relação, entendendo que a atribuição em exclusivo do exercício das responsabilidades parentais não inibe o outro progenitor dos direitos e deveres inerentes à filiação e que no caso não se vislumbra qualquer fundamento ou procedimento tendente à inibição do poder paternal, julgou «o requerido pai sobrevivo titular do poder paternal sofre o filho». No entanto, e provisoriamente, determinou que o filho «continue confiado a essas pessoas não se efectuando a entrega do filho ao progenitor sobrevivo sem que se conheça a real situação da criança e do próprio requerido pai, mantendo-se a obrigação alimentar a seu cargo como obrigação que sobre ele recai, devendo o Tribunal requerido solicitar relatórios sociais quer da situação do requerido progenitor quer das pessoas a quem a criança se encontra de facto confiada, por forma a viabilizar essa mesma entrega ao pai que deverá passar por um período inicial de convívios sem prejuízo de outras diligências tutelares que no Tribunal requerido forem eventualmente requeridas».

Agora irresignados vieram os Interessados interpor recurso de revista concluindo, em síntese, que estando o exercício das responsabilidades parentais confiado exclusivamente à mãe só a esta competia o poder de designar tutores, sendo a designação efectuada válida e eficaz.

Não houve contra-alegação ou promoção.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC.

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º, 671º e 988º, nº 2 do CPC).

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso merece conhecimento.

Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este tribunal é a de saber a quem e em que extensão deve ser atribuído o exercício das responsabilidades parentais relativamente à criança em causa.


III – Os factos

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.           


IV – O direito

Não se pode perder de vista que as normas do Código Civil reguladoras do exercício das responsabilidades parentais e das suas formas de suprimento visam construir um sistema normativo maleável, e não rígido e com automaticidade, de forma a permitir, em função da multiplicidade das concretas situações da vida real que hajam de ser juridicamente reguladas, encontrar a solução mais adequada para assegurar o seu objectivo primordial, a defesa do interesse dos filhos (artigo 1878º, nº 1, CCiv – sendo desse código todas as disposições que vierem a ser referidas sem outra indicação).

Tal corpo normativo está construído topicamente, com a afirmação de determinações de carácter geral para as situações típicas, de maior frequência e que correspondem ao que é desejável que ocorra em função da normalidade dos comportamentos, com o concomitante estabelecimento de excepções àquelas determinações genéricas, acautelando a existência de situações que se afastem da normalidade dos comportamentos.

É assim que estabelecendo que o exercício das responsabilidades parentais é conjunto (artigo 1901º, nº1) logo admite que ele possa ser atribuído apenas a um dos progenitores (artigo 1906º, nº 2). Estabelecendo que por morte de um dos progenitores o exercício das responsabilidades parentais pertence ao progenitor sobrevivo (artigo 1904º, nº 1) logo prevê que assim possa não ser no caso de ausência, incapacidade ou outro impedimento decretado pelo tribunal (artigos 1904º, nº 2, e 1903º, nº 1). Afirmando a irrenunciabilidade das responsabilidades parentais (artigo 1882º) admite-se, porém, que o seu exercício seja suspenso, limitado ou mesmo inibido (artigos 1915º, 1918º, 1919º e 1920º). Podendo o progenitor que exerce o poder parental designar tutor ao filho menor para o caso de vir a falecer ou ficar incapaz (artigo 1928º, nº 1) essa nomeação carece de confirmação pelo tribunal (artigo 1925º, nº 2).

Dessa forma em face de cada caso concreto importa antes de mais averiguar da situação fáctica actualizada, sendo com base nela que se ponderará qual a solução jurídica mais adequada para assegurar a protecção dos interesses da criança.

Em particular, e volvendo o olhar para o caso concreto, não se pode desde logo atribuir o exercício das responsabilidades parentais aos tutores designados apenas com base apenas nessa designação, nem, por outro lado, ao progenitor sobrevivo apenas com base nessa sobrevivência.

Tem-se, assim, por necessário proceder a averiguação da situação relacional e social dos envolvidos, em particular no que concerne aos aspectos alegados no requerimento do progenitor de 01FEV2022 (que ultrapassou as circunstâncias pessoais que determinaram a atribuição em exclusivo do exercício das responsabilidades parentais à progenitora, desejando e tendo condições, pessoais e familiares, para receber e integrar o seu filho) e na oposição a tal requerimento formulada pelos tutores designados (da inexistência de relacionamento social e afectivo com o progenitor, o qual, por seu turno, se desenvolveu com eles), para se apurar por qual das soluções jurídicas possíveis (entrega do menor ao pai ou aos tutores ou mesmo outra medida, como a confiança a terceira pessoa) se haverá de optar, por ser a que melhor assegura os interesses da criança.

E nessa parte se concorda com a posição adoptada na Relação de determinar a realização de fase instrutória, ficando a criança provisoriamente confiada aos tutores designados.

Mas já se não pode sufragar o entendimento da Relação na parte em que, não obstante ter reconhecido a necessidade de aquisição factual, desde já determina que a criança haverá, ainda que faseadamente, de ser entregue ao pai; bem como na parte em que determina em concreto as diligências instrutórias a serem realizadas na 1ª instância, porquanto extravasa, em nosso modo de ver, o objecto do recurso e a autonomia do juiz do tribunal de 1ª instância.

Daí que a revista mereça parcial provimento.


V – Decisão

Termos em que, concedendo parcialmente a revista, se decide:

a) Confirmar o acórdão recorrido na parte em que determina a realização de fase instrutória para aquisição da situação relacional e social actualizada dos envolvidos, determina que a criança fique provisoriamente confiada aos tutores designados e, ainda, a manutenção da obrigação alimentar;

b) Revogar o acórdão recorrido na parte em que desde já julga o Recorrido titular do poder paternal sobre a criança, determina a futura entrega da criança ao Requerido e especifica as diligências instrutórias a levar a cabo.

Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 19JAN2023

Rijo Ferreira (Relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista