Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2384/08.3TBSTS-G.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: OPOSIÇÃO DE JULGADOS
RECURSO
VENDA JUDICIAL
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIDO O OBJECTO DE RECURSO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 824.º, 830.º, N.º4, 824.º.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 14.º, N.º 1, 102.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.11.13.
Sumário : I - Para efeitos do art.º 14º nº 1 do CIRE, não existe oposição de julgados se, nas acções as questões são dissemelhantes . II Como no caso de, no acórdão fundamento, a questão ser a de saber se o produto da venda levada a efeito pelo administrador de insolvência, em cumprimento de contrato promessa deve ser entregue ao credor hipotecário, para expurgar respectiva hipoteca e, no caso do acórdão recorrido, a questão ser a de saber se na execução específica do contrato promessa o juiz pode proferir despacho de expurgação de hipoteca. III Pelo que não ser admitido o recurso para este STJ.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           

I

           AA e mulher, BB -, e substituída, em virtude de óbito na pendência da acção, pelo autor e pelos filhos CC, DD e EE, seus herdeiros ulteriormente habilitados -, moveram a presente acção ordinária, contra Massa Insolvente de FF, Lda., GG e mulher, HH e II e mulher, JJ.

            Pedindo:

A execução específica do contrato-promessa de compra e venda a que se referem no art. 20.º da petição inicial, adjudicando-se-lhes a propriedade plena, livre de ónus ou encargos das identificadas fracções autónomas, com todas as demais consequências.

Ou, para o caso de assim não ser entendido:

A declaração judicial de resolução do referido contrato-promessa de compra e venda, por incumprimento definitivo exclusivamente imputável à sociedade ré, condenando-se os réus a restituírem, em dobro, o sinal prestado pelos autores, no montante de € 1 296 874, 54;

A condenação dos réus: i) no pagamento de juros de mora calculados sobre € 648 437, 27 (sinal em singelo), à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação até integral reembolso; ii) no reconhecimento do direito de retenção dos autores sobre as referidas fracções autónomas, enquanto não for concretizado o contrato definitivo ou não for pago o dobro do sinal prestado e demais quantias peticionadas; iii) no pagamento do montante de € 1000,00, a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso, no integral cumprimento das obrigações decorrentes da sentença condenatória que vier a ser proferida.

Em resumo, alegam:

            No dia 05 de Junho de 2003, celebraram contrato-promessa de compra e venda, por meio do qual e como forma de compensação do pagamento do preço de compra e venda de bens imóveis, celebrada no mesmo dia, a 1.ª ré se obrigava a vender e os autores a comprar as fracções autónomas que identifica e que a 1.ª ré se propunha a construir nos referidos bens imóveis, mediante o preço global de € 648 437, 28, que foi declarado como pago, no acto, pelos autores, na totalidade e do qual a sociedade ré dava quitação.

           Em 18 de Junho de 2007, a sociedade ré procedeu à entrega aos autores das identificadas fracções e, apesar de interpelada para o efeito, não diligenciou pela outorga das escrituras públicas da compra e venda prometida, sendo-lhe imputável, em exclusivo, o incumprimento definitivo do contrato-promessa celebrado.

           

Por sentença de 05 de Agosto de 2008, foi declarada a insolvência da sociedade ré FF, Lda..

Em 25.11.2008, a presente acção foi apensada ao processo de insolvência com o n.º 2384/08.3TBSTS.

A ré Massa Insolvente não contestou.

Os réus pessoas singulares contestaram.

Replicaram os autores. Requereram a ampliação da causa de pedir e do pedido deduzido anteriormente em alternativa, pedindo a declaração judicial de resolução do contrato-promessa de compra e venda, por impossibilidade de cumprimento, condenando-se os réus no pagamento de uma indemnização aos autores pelo valor do imóvel de € 1 296 874, 54 ou, no mínimo, de € 648 437, 27.

Treplicaram os réus pessoas singulares.

São intervenientes principais, do lado dos réus, o Banco KK, S.A., o Banco de LL, S.A..

O processo seguiu os seus trâmites e feito o julgamento, foi proferida a seguinte sentença:

Que decidiu julgar totalmente provada e procedente a presente acção e, em consequência, reconheceu aos autores AA e BB o direito à execução específica do contrato-promessa descrito em D) dos factos assentes e, consequentemente, declarou celebrado o contrato de compra e venda das fracções descritas na alínea N) da matéria de facto assente, sendo o preço liquidado por compensação já efectuada com os imóveis descritos na alínea A) da matéria de facto assente entre os compradores, os AA. AA e BB e a vendedora, a R. Massa Insolvente de FFs, Lda..

           Requereram os autores a rectificação da sentença, o que foi deferido, tendo-se acrescentado ao segmento decisório a expressão “adjudicando-se aos autores a propriedade plena, livre de ónus ou encargos, das referidas fracções autónomas”.

Requereu o credor reclamante Banco MM, S.A., esclarecimentos, vindo o referido segmento a ser novamente rectificado, pelo que se passou a ler, na sentença da 1.ª instância:

“Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, decido julgar totalmente provada e procedente a presente acção e, em consequência, reconheço aos AA. AA e BB o direito à execução específica do contrato-promessa descrito em D) dos factos assentes e, consequentemente, declaro celebrado o contrato de compra e venda das fracções descritas na alínea N) da matéria de facto assente, adjudicando-se aos AA. a propriedade plena, livre de ónus ou encargos registados após o registo do contrato promessa em causa nos autos, das referidas fracções autónomas, sendo o preço liquidado por compensação já efectuada com os imóveis descritos na alínea A) da matéria de facto assente entre os compradores, os AA. AA e BB e a vendedora, a R. Massa Insolvente de FFs, Lda.”

           Apelaram autores e Banco MM, S.A., tendo o Tribunal da Relação proferido a seguinte decisão:

“I – Julgam parcialmente provado o recurso interposto pelos Autores AA e outros, anulando o despacho, datado de 04-02-2014 (Ref. Citius 9304208), que retificou a sentença proferida nos autos;

II - Julgam parcialmente provado o recurso interposto pelo credor recorrente, BANCO MM, S.A., e revogam a sentença recorrida na parte em que, acolhendo o requerimento de retificação dos AA, integrou na sua parte decisória a referência a que a adjudicação aos AA. da propriedade plena sobre as referidas frações autónomas, era feita livre de ónus ou encargos.

III – Alteram em conformidade a sentença recorrida, por forma a que a mesma fique a constar nos termos em que havia sido inicialmente proferida, antes das retificações introduzidas pelo despacho de 19/11/2013 (Ref. Citius 9114879) e pelo despacho de 04-02-2014 (Ref. Citius 9304208).”

Voltam a recorrer os autores.

Nas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

1. O acórdão recorrido decidiu em contradição com o acórdão de 16-03-2010, da Relação do Porto, proferido num outro apenso deste mesmo processo de insolvência, o qual já transitou em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

2. O acórdão recorrido confirmou a declaração negocial de substituição do promitente vendedor faltoso, decidida na 1.ª instância, sendo que essa declaração se traduz na adjudicação dos bens imóveis aos autores e assume, por isso, a natureza de venda judicial, por ocorrer em sede de apenso a processo de insolvência, e, nessa medida, importa a transmissão dos bens alienados livre de ónus ou encargos, face à previsão do art. 824.º do CC e do art. 831.º do CPC.

3. Decidiu o acórdão fundamento que a venda efectuada pelo Administrador de Insolvência, em cumprimento de contrato-promessa celebrado pela insolvente, é uma venda judicial, pelo que com ela caducam as hipotecas que oneravam os imóveis alienados.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

Apreciando

1 Suscita-se a questão prévia da admissibilidade do recurso.

A questão de saber se, em acção declarativa apensa a processo de insolvência, é apenas admissível recurso de revista, nos termos e com os fundamentos previstos no art. 14.º do CIRE, foi tratada – embora a propósito da verificação ulterior de créditos – no acórdão deste Supremo de 14.11.13 (Cons. Abrantes Geraldes):

Na reclamação superveniente de créditos sobre a massa insolvente, tramitada por apenso ao processo principal em que foi declarada a situação de insolvência, a admissibilidade do recurso de revista está sujeita também ao regime prescrito pelo art. 14.º, n.º 1, do CIRE”.

Reafirma-se a aplicabilidade deste regime excepcional de recurso para o STJ à presente acção, que corre por apenso ao processo principal de insolvência, a qual, tendo por objecto o cumprimento de contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis, comporta, em si mesma, desfecho que, seja na procedência de um ou mais pedidos, seja na improcedência da acção, é tendencialmente consequente no património da massa insolvente.

Justifica-se, assim, a limitação do 3.º grau de jurisdição como resposta à necessidade de celeridade processual na resolução de questões atinentes ao activo e ao passivo do devedor/insolvente, inserindo-se, nesta última hipótese, o caso dos autos.

Sob a epígrafe “Recursos”, estabelece o artigo 14.º, n.º 1, do CIRE «No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732.º- A e 732.º- B do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme

2 Alegam os recorrentes que o acórdão recorrido está em oposição com o decidido num outro acórdão da Relação do Porto, que identificam, sobre a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação.

Nesta acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis, o acórdão recorrido decidiu que, perante o pedido deduzido pelos autores («declarada a execução específica do contrato de promessa a que se referem o art. 20.º desta petição, adjudicando-se aos AA. a propriedade plena, livre de ónus ou encargos, das referidas fracções autónomas, com todas as demais consequências legais») o juiz, não podendo expurgar quaisquer hipotecas que porventura incidam sobre as fracções objecto do contrato, deve limitar-se a declarar a venda aos autores das referidas fracções, em execução específica do contrato-promessa, sem qualquer referência à existência, ou não, de ónus ou encargos, o que só teria cabimento fazer nos termos do art. 830.º, n.º 4, do CC, o qual depende de requerimento da parte, que não foi feito.

No acórdão fundamento decidiu-se “A venda efectuada pelo Administrador de Insolvência, em cumprimento de contrato-promessa celebrado pela Insolvente, é uma venda judicial pelo que com ela caducam as hipotecas que oneravam os imóveis alienados“. Entendeu-se que o cumprimento da prestação, pelo Administrador da Insolvência, de um contrato-promessa celebrado antes da insolvência, equivale a uma alienação de bens que integravam o património da massa insolvente, a qual deve ser encarada como uma venda judicial, dela decorrendo a caducidade das hipotecas que afectavam os imóveis prometidos vender, nos termos do art. 824.º do CC, sem necessidade de se proceder à sua expurgação.

A oposição de julgados, que permite recurso de revista para o STJ nos termos do apontado preceito legal, reporta-se a decisões proferidas no âmbito da mesma legislação. Mas não só. Impõe que uma e outra versem a mesma questão fundamental de direito, a mesma questão jurídica. Se o objecto jurídico daquelas for diverso, não se coloca sequer a questão da identidade de regime.

Nestes autos, a questão jurídica decidenda é a de saber se, em acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis e fora do âmbito do disposto no art. 830.º, n.º 4, do CC, o juiz pode proferir decisão de expurgação de hipotecas que onerem os imóveis objecto de tal contrato.

No acórdão fundamento, a questão jurídica a decidir, como claramente nele se definiu, foi a de saber se o produto da venda levada a efeito pelo administrador de insolvência, em cumprimento de contratos promessa de fracções celebrados pela insolvente e que se encontram oneradas com hipoteca, deve ser entregue ao credor hipotecário, de modo a expurgarem-se as referidas hipotecas.

São questões jurídicas diferentes.

Efectivamente, um e outro acórdão divergem quanto à equiparação do cumprimento da prestação pelo administrador da insolvência de um contrato-promessa anteriormente celebrado pela insolvente, como promitente- vendedora, a uma venda, a um acto de alienação de bens, entendendo o primeiro que não, que este se insere na fase de liquidação do activo, e o segundo que sim.

Porém, os problemas colocados são diversos, logo, os acórdãos em confronto decidem sobre circunstâncias diferentes. Num caso, o da condenação em objecto diverso do pedido formulado pelos autores no âmbito de uma acção de execução específica, noutro o da extinção de direitos reais de garantia na sequência de cumprimento de prestação de contrato-promessa de compra e venda de bem imóvel, pelo administrador da insolvência, nos termos do art. 102.º do CIRE.

Termos em que não se verifica a alegada contradição.

Deste modo, não existindo o fundamento para que o STJ conheça da matéria em questão, o presente recurso não pode ser recebido.

Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.

Custas pelos recorrentes.

                             Lisboa, 17 de Dezembro de 2014

Bettencourt de Faria (Relator)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos