Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P058
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: ACLARAÇÃO DE ACÓRDÃO
RECURSO
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
ACTA DE JULGAMENTO
CONTESTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
SEQUESTRO
HOMICÍDIO TENTADO
CONCURSO REAL DE INFRACÇÕES
VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
PENA DE MULTA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
Nº do Documento: SJ200502170000585
Data do Acordão: 02/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1 - Não é recorrível a decisão que indeferir o requerimento de rectificações, esclarecimento ou reforma (art. 670.º, n.º 2 do CPC, aplicável por força do art. 4.º do CPP).
2 - A decisão sobre a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional de acórdão da Relação cabe ao Relator e é tomada por despacho (art. 414.º do CPP e 76.º, n.º 4 da LOFTC) e se o recurso foi interposto condicionalmente, não tem que ser apreciado se a não se verificou a respectiva condição.

3 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional e, mais recentemente, a do Supremo Tribunal de Justiça vão no sentido de que não pode deixar de ser conhecido um recurso, por deficiência das conclusões da motivação, sem que ao recorrente seja concedida a possibilidade de corrigir tal deficiência; o mesmo não se aplicando, no entanto, ao próprio texto da motivação que é, por um lado, imodificável e, por outro, o limite à correcção das conclusões. Não resulta assim, desta jurisprudência, nem da lei, um "direito" do recorrente a ser convidado a corrigir as conclusões da motivação.

4 - Estando fixada jurisprudência (Ac. n.º 5/02, DR, IS-A, de 17-07-02) no sentido de que "a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer", se declarações orais em audiência foram gravadas e transcritas mas não inseridas na acta, em nada é afectado o valor da sequência de actos que integram a audiência, nem fica prejudicada a possibilidade de impugnar em recurso a matéria de facto fixada pela 1.ª Instância, pelo que a irregularidade não pode "afectar o valor do acto praticado" (n.º 2 do art. 123.º)

5 - Sendo o interesse em agir a necessidade concreta de recorrer à intervenção judicial, à acção, ao processo, não pode recorrer o arguido da não inclusão na acta das transcrições dos depoimentos, pois sempre poderá recorrer quanto à questão de facto, dada a existência de gravações e subsequente transcrição.

6 - O art. 362.º do CPP não impõe a transcrição na acta de audiência dos depoimentos orais e da conjugação dos art.ºs 363.º, 364.º e n.º 3 do art. 412.º resulta um sistema de documentação que não exige aquela transcrição. A documentação das declarações orais em audiência é efectuada através da súmula (art. 389.º), ou através da gravação áudio magnética, seguida de transcrição (art. 412.º, n.º 3), transcrição que não faria qualquer sentido na tese contrária.

7 - Só devem ser objecto da discussão os factos da contestação que se relacionem directamente com a conduta em apreciação.

8 - O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão (n.° 2 do art. 374.º do CPP) e o exame crítico da prova, exige, como o fez o tribunal colectivo, a indicação dos meios de prova que serviram para formar a sua convicção, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

9 - Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença as funções de:

- Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e da comunidade jurídica em geral;

- Permitir, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz;

- Constituir um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere), e, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.
10 - Os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.

11 - Assim, o julgamento em 2.ª Instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas a admitidas alegações escritas).

12 - Não é exacto que constitua uma regra de experiência comum inelutável que a depressão e o estado emocional de que sofria o arguido quando disparou contra ex-namorada, importe a sua inimputabilidade ou a sua imputabilidade diminuída.

13 - O Tribunal começa por decidir qual q medida concreta da pena que prisão que vai aplicar e só que esta não for superior a 3 anos é que tem de encarar a possibilidade de suspender a sua execução e não o contrário. E compreende-se que a Lei reserve a aplicabilidade daquela pena de substituição para os casos cuja gravidade não ultrapasse determinado patamar, escolhendo a medida concreta da pena a infligir como índice dessa gravidade. Essa técnica foi usada na substituição da pena curta de prisão por multa na substituição por prisão por dias livres e na substituição pelo regime de semidetenção.

14 - Com o crime de sequestro visa-se fundamentalmente proteger a liberdade individual, mais propriamente a liberdade física, o direito de se não ser aprisionado, encarcerado ou de qualquer modo fisicamente confinado por determinado período temporal, que relevantemente afecte a liberdade individual de locomoção a certo e determinado espaço.
15 - A intenção criminosa integra matéria de facto da exclusiva competência dos tribunais de instância.

16 - Sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de sequestro (liberdade ambulatória das pessoas, a capacidade de cada homem se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, como se viu acima) e de homicídio (a vida humana) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível deve entender-se que a conduta do agente que sequestra uma pessoa e depois a vem a (tentar) matar comete, efectivamente, em concurso real, um crime de sequestro e um crime (tentado) de homicídio.
17 - A distinção a fazer, e que tem sido feita elo STJ, reside em determinar se o sequestro se limita ao essencial, ao estritamente necessário para cometer o "crime fim", caso em que se entende que ocorre a consumpção.

18 - Estando provado que, devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão nervosa e que após os factos o arguido foi sujeito a tratamento psiquiátrico, foi medicado e está controlado, mas estando não provado que tenha tido apenas uma conduta negligente, causada pelo estado de doença e de perturbação e que a depressão nervosa porque o arguido passou limitou-lhe a liberdade de agir e a capacidade psicológica, entendida esta no sentido de que não podia avaliar a ilicitude ou as consequências dos seus actos, não está estabelecido que tenha agido em desespero.

19 - As situações a que se referem as diversas alíneas do n.° 2 do art. 72.º do C. Penal (atenuação especial da pena) não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.

20 - Sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta proteja de forma adequada e suficiente os bens jurídicos e assegure a reintegração do agente na sociedade. Se o arguido se introduziu ilegalmente no domicilio da ofendida detendo ilegalmente uma arma com a qual a veio a tentar mater nesse local, não é adequada a opção pela de multa quanto aos crimes de violação de domicílio e detenção ilegal de arma.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.1.

O arguido VHMF, com os sinais nos autos, foi julgado, pelo Tribunal Colectivo de Ílhavo (proc. comum n°723/01), autor de 1 crime de homicídio tentado dos art.ºs 131°,22° e 23° do C. Penal na pena de 3 anos de prisão; de 1 crime de sequestro do art. 158°, n° 1 do C. Penal na pena de 14 meses de prisão; 1 crime de detenção de arma ilegal do art. 6°,n° l da Lei n° 22/97, de 27/6 na pena de 8 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão.

1.2.

Inconformado recorreu para a Relação de Coimbra (proc. n.°808/04) que, por acórdão de 2.6.04, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

2.1.

O arguido, notificado do acórdão recorrido (fls. 400 a 432), requereu a aclaração dessa decisão (fls. 451 a 456) e na mesma peça recorreu para o Tribunal Constitucional, mas tão só cautelarmente, para a hipótese de vir a ser entendido que não era admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

A Relação entendeu nada haver a aclarar (acórdão de fls. 463).

Veio depois o arguido (fls. 468 e ss), dirigindo-se ao Tribunal da Relação, a arguir a nulidade do acórdão que conheceu do pedido de aclaração, por omissão de pronúncia.

Na mesma peça veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça de ambos os acórdãos (admitido a fls. 523), apresentando a respectiva motivação em que concluiu longamente:

A. O presente recurso é admissível, uma vez que os Acórdãos recorrido são susceptíveis de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça.

B. As normas das alíneas e) e 1) do artigo 400°, n.° 1 do Código de Processo Penal são inconstitucionais por violarem o direito ao recurso consagrado pelo artigo 32° n.°. 1 da Constituição da República Portuguesa, se permitirem e forem aplicadas em qualquer das seguintes interpretação:

a. na interpretação segundo a qual, perante uma situação de TM conforme, em caso de concurso de infracções apenas devem ser atendidas, para aferir da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, as penas abstractamente aplicáveis aos singulares crimes em concurso e não a pena abstracta correspondente ao cúmulo jurídico; e

b. na interpretação segundo a qual, em caso de recurso interposto apenas pelo arguido, a pena aplicável, para esses efeitos, corresponde à pena concretamente aplicada.

C. O douto Acórdão que recaiu sobre os requerimentos formulados pelo Recorrente após o douto Acórdão que manteve a decisão do Tribunal de Circulo de Aveiro padece de nulidade por omissão de pronúncia, sobre os esclarecimentos e correcções pedidos e sobre a requerida admissão de recurso para o Tribunal Constitucional.

D. O douto Acórdão que, negando provimento ao recurso da decisão final da primeira Instância, confirmou integralmente tal decisão e condenou o Recorrente em 10 UCs de custas, contém vários erros e lapsos manifestos e diversas obscuridades ou ambiguidades que não permitem a sua cabal compreensão pelos destinatários - desde logo, pelo Recorrente -, fazendo-o padecer da nulidade prevista nas alíneas a) - por referência ao n° 2 do artigo 374° - e c) do artigo 379° do Código de Processo Penal, implicando os vícios de que enferma insuficiência ou, mesmo, parcial falta de fundamentação, e omissão de pronúncia.

E. Nunca foi pretendido pelo Recorrente que a acta contivesse o resumo da reprodução áudio magnética, mas sim a sua transcrição integral.

F. O Recorrente fica sem saber se a douta opinião dos Venerandos Senhores Juízes Desembargadores a quo acerca do nosso processo penal vigente é a de que ele informa, neste particular, de nítidas características medievais e ditatoriais., dúvida que, persistindo, naturalmente o prejudica também na escolha dos termos do recurso ou recursos a interpor do douto Acórdão em causa.

G. Quanto à decisão contida, referida, aflorada nos parágrafos 2° e 3° de página 22 do dou to Acórdão, fica o Recorrente sem se perceber qual a decisão de que ali se tratar, se a mesma estará completa, se faltará alguma frase ou, talvez mesmo, alguma pagina, que o esclareça.

H. O Recorrente também não consegue entender a que alegações os Venerandos Senhores Juízes Desembargadores se referem.

O afirmado a páginas 22, parágrafo 5.º, e a páginas 33, parágrafos 3.º e 4.º, do Acórdão recorrido parece significar que o recurso foi julgado improcedente, quanto ao ali referido, porque na conclusão K da sua motivação de recurso o Recorrente não teria cumprido os normativos impostos pelo art. 412°, n°s 3 e 4 do Código de Processo Penal e porque a conclusão GG seria deficiente, porque estaria insuficientemente fundamentada a ilação, ali extraída pelo Recorrente, de que, pela interpretação dos artigos 50° e 70° do Código Penal seguida no douto Acórdão da primeira instância, se mostrava violado o princípio da presunção de inocência.

J. Assim sendo, e tendo o Recurso sido julgado improcedente por essas razões (ou, pelo menos, nessas partes, também por essas razões) sem precedência de convite ao Recorrente para aperfeiçoar o seu Recurso ou as Conclusões da respectiva Motivação, o douto Acórdão mostra-se viciado de nulidade, violando o disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, e também a que decorre dos artigos 414°, n° 2, e 420° do Código de Processo Penal (na interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa que deles deve ser feita), normativos aqui aplicáveis nos termos do artigo 4° do Código de Processo Penal, por integração analógica e por maioria de razão.

K. As normas do artigo 690.º do Código de Processo Civil e dos artigos 414°, n° 2, e 420.º do Código de Processo Penal, são aplicáveis não apenas aos casos de não admissão ou de rejeição de recursos, mas também aos casos de julgamento do recurso, impedindo que um recurso possa ser julgado improcedente por falta, deficiência, obscuridade ou complexidade das respectivas conclusões ou por omissão nelas de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite a para suprir tal falta ou tais vícios.

L. O regime legal do julgamento dos recursos em processo penal, maxime o que resulta das normas conjugadas dos artigos 412°, 414°, 417°, n.° 3 e n.° 4, 418°, 419°, 420°, 421°, 423°, 424° e 425 do Código de P Penal e, bem assim, todas e cada uma dessas mesmas normas, sofreriam de manifesta, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, e do direito ao recurso, consagrado no respectivo artigo 32° n.° 1, na acepção de que, face à nossa lei processual, um recurso penal pode ser julgado improcedente por falta, deficiência ou complexidade das respectivas conclusões ou por omissão de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal falta ou reparar tais vícios.

M. As declarações prestadas oralmente em audiência não poderiam deixar de estar documentadas na acta de audiência de discussão e julgamento, porque o tribunal dispôs efectiva mente dos meios técnicos a tanto necessários e porque as mesmas foram efectivamente registadas em suporte áudio magnético.

N. Tal falta prejudica seriamente a defesa do ora Recorrente, nomeadamente prejudicando o seu direito ao recurso, e constitui nulidade da acta, por violação do disposto nos artigos 363° e 364° n.°s 1 e 3 e dos artigos 99° n.° 3 e 362° do Código de Processo Penal, e ainda por consubstanciar caso de falsidade da mesma, atento o valor que à acta é conferido pelo artigo 169° do mesmo diploma legal.

O. A interpretação do disposto nos artigos citados, maxime nos artigos 363° e 364° n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, no sentido de tal documentação ser apenas necessária após a interposição do recurso, coloca tais normas em clara violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, ferindo consequentemente tais normas de manifesta inconstitucionalidade.

P. Do mesmo modo, e pelas mesmas razões - violação do direito ao recurso consagrado na norma antes indicada da Constituição da República Portuguesa -, são tais normas inconstitucionais na interpretação que delas é feita no Acórdão agora sob recurso, de que tal documentação não é necessária quando a prova estiver gravada e se mostrar transcrita, ainda que tal transcrição não conste da acta de julgamento (como, no caso em apreço, efectiva mente não consta).

Q. A acta de julgamento é a sua nulidade, atento o valor probatório da mesma, implica a nulidade do próprio julgamento e, por consequência, a nulidade da douta sentença final, sendo fundamento de" recurso, nos termos do artigo 410° n.° 3 do Código de Processo Penal.

R. Os factos alegados pelo ora Recorrente na sua Contestação e que se deixaram transcritos em 4.3 da Motivação precedente, demonstrativos do seu arrependimento, de que aquando dos factos pensava em se suicidar, de que havia comprado arma para tal, de que nunca anteriormente tinha agredido fisicamente a ofendida, de que agiu da forma por que o fez devido ao seu estado psicológico, alterado, doente e descontrolado, são factos relevantes para a decisão, nomeadamente, para a determinação da medida da pena, não podendo ser desqualificados como meramente instrumentais.

S. O arrependimento é relevante para efeitos de determinação em concreto da medida da pena, como resulta das normas gerais do artigo 71° n.° 1 e n.° 2, alínea e) do Código Penal, e é, ainda, relevante para efeitos de atenuação especial da pena, nos termos da alínea c), do n.° 2, do artigo 72° do Código Penal, exactamente quando, como já se disse e resulta evidente e foi julgado provado neste caso, se verifica a reparação integral pelo agente dos danos causados.

T. Não se referindo sequer a tais factos, o douto Acórdão da primeira instância padece de nulidade, nos termos das normas das alíneas a) e c) do artigo 379° do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 97.º, n.° 4, e no artigo 374°, n.° 2, desse diploma, e no artigo 205°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.

U. O artigo 374°, n.° 2 do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do disposto no n.° 1 do artigo 205° da Constituição República Portuguesa, em qualquer uma das seguintes interpretações:

a. na interpretação que permita que na sentença não constem como factos prova dos ou não provados, factos relevantes para a decisão da causa que tenham sido alegados defesa na contestação;

b. na interpretação que permita que se dispense a referência a tais factos reputando os mesmos de meramente instrumentais;

c. na interpretação segundo a qual o dever de fundamentação fica satisfeito com a indicação sumária das conclusões contidas na contestação;

d. na interpretação que se basta, para cumprimento dessa exigência legal de fundamentação expressa na norma em causa, com ‘a não enumeração na sentença de factos que estejam em contradição com os factos provados; e

e. na interpretação segundo a qual ‘interessa e basta a indicação dos meios de prova, analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em certeza humana, à factualidade";

V. Não só as normas dos artigos 374° n° 2 e 379° n° 1 alínea c) do Código de Processo Penal, (mas ainda todo o próprio regime processual penal dos recursos, maxime, a norma do n° 1 do artigo 410.º e a do n° 5 do artigo 423° do mesmo diploma, ficam feridos de inconstitucionalidade por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32° n° 1 da Constituição, quando restritivamente interpretadas no sentido de que o verdadeiro julgamento é o efectuado na primeira instância, onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a pertinência", ou seja, no sentido de que o julgamento do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não é um julgamento verdadeiro e de que nele não vigoram, ou quando a ele não se aplicam, "inteiramente" as regras ou princípios da imediação e da oralidade.

W. Uma depressão nervosa, causada pela ruptura de uma relação sentimental, que afecta o arguido de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer emocional, e que agrava a debilidade psíquica do arguido, limita sempre, necessariamente, a capacidade de agir da pessoa doente, por ela afectada.

X. Considerando o senso comum, as regras da experiência e os conhecimentos actualmente adquiridos sobre a matéria, parece, ser insanavelmente contraditório, dar-se como assente que o arguido padecia de depressão, causada por ruptura, que o afectava de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer emocional - que tinha uma debilidade psíquica, agravada por depressão - e ao mesmo tempo julgar não provado que tal depressão nervosa lhe tivesse limitado a liberdade de agir.

Y. Considerando a causa da depressão, o rompimento da relação com a namorada, o facto de a depressão o afectar de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer emocional, o facto de o crime de homicídio na forma tentada ter como vitima a namorada, o facto de o arguido dizer à vitima: "se não és minha não és de mais ninguém!", parece resultar certo dos autos que a depressão nervosa limitou a liberdade de agir do Arguido, ao afectá-lo de forma profunda, quer psicológica, quer emocionalmente.

Z. Verifica-se, por isso, os vícios referidos nas alíneas b) e c) do no n.° 2 do artigo 4100 do Código de Processo Penal, constando do texto da decisão recorrida sobre a mesma questão posições antagónicas e inconciliáveis e elementos suficientes para impor, quanto àquele facto - de que a depressão nervosa limitou a liberdade de agir do Arguido - resposta diversa da sufragada pela primeira instância e confirmada pela Relação.

AA. O Acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do n° 1 do artigo 379° do Código de Processo Penal, por isso e na medida em que não apreciou nem decidiu as questões colocadas pelo Recorrente no sentido de que deveriam ter sido dados como provados, pela douta decisão da primeira instância, os factos que ele enunciou nas diferentes alíneas (a. a e.) da conclusão K. da Motivação de Recurso

BB. Não se verificam os elementos subjectivos do tipo de crime Sequestro, por isso que se não verificou o dolo específico exigido pelo tipo subjectivo, ainda que na forma de dolo eventual, já que o ora Recorrente não quis e nem sequer representou a possibilidade de privar a ofendida da sua liberdade de movimento, a não ser com o objectivo de a matar.

CC. Não se verifica, in casu, concurso real entre os crimes de sequestro e de homicídio.

DD. A conduta e a punição devem ser enquadradas apenas na previsão legal do homicídio privilegiado, previsto e punido nos termos dos artigos 133°, 22° e 23°, do Código Penal.

EE. O arguido actuou em estado de desespero por se encontrar sob a influência de um estado de cólera ou de irritação causado por depressão que o afectou de forma profunda sob o ponto de vista psicológico e emocional, verificando-se nexo de causalidade entre o estado de alma do arguido e a acção deste, já que a depressão influenciou de forma decisiva a acção do arguido.

FF. È sabido e geralmente aceite que quem se encontra numa situação de desespero não é inteiramente livre e responsável, já que age sob o domínio do circunstancialismo angustiante em que está envolvido, havendo um natural obscurecimento da inteligência e um enfraquecimento da vontade.

GG. A culpa do agente deve, deste modo, ter-se por consideravelmente diminuída, por a sua acção ter sido manifestamente influenciada, e de forma determinante, pelo seu estado de doença.

HH. O arguido praticou actos demonstrativos do seu arrependimento sincero, razão por que entende que a pena que lhe deve ser aplicada deve ser especialmente atenuada, nos ter mos do artigo 72° do Código Penal, disposição que a decisão recorrida viola

II. Ainda que o tribunal ad quem entender verificado o concurso real entre os crimes de sequestro e de homicídio, entender não se tratar de homicídio privilegiado na forma tentada e entender não dever a pena ser especialmente atenuada, sempre o disposto no art. 71.º Código Penal impunha a aplicação ao Recorrente de pena menos severa, não superior a 2 anos de prisão, e não privativa de liberdade.

JJ. Quanto ao Sequestro e quanto à Detenção de Arma, entende o Recorrente que o tribunal deveria ter começado logo por aplicar ao arguido pena de multa em lugar de pena de prisão, o que se impunha, desde logo face ao disposto no artigo 70° do Código Pena norma que o Tribunal a quo claramente desatendeu.

KK. Considerando a ausência de antecedentes criminais e as condições pessoais do arguido, e o facto de os crimes perpetrados aparecerem como acto isolado na vida do arguido, mostra-se favorecido o juízo de prognose de rápida ressocialização, tanto mais que o arguido já terá tratado de debelar a sua depressão através de acompanhamento médico e medicamentoso - como foi provado na primeira instância -, pelo que se poderá concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade.

LL. O valor, que ilumina o instituto da suspensão da pena, da socialização em liberdade, não deve neste caso ser afastado pelas necessidades de reprovação e prevenção do crime, que (no dizer do acórdão da primeira instância) sofrem de atenuação devido ao pequeno desvalor do resultado, à falta de antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade de pessoa sensível e normalmente pacífica, à inserção social, familiar e profissional do arguido, à sua idade, ao facto de ao tempo o arguido estar sobre o efeito de uma depressão, à reparação dos danos da ofendida, existindo motivo para se pensar que se tratou de um acto tresloucado e isolado na vida do arguido e que por certo jamais esquecerá.

MM. As decisões recorridas não fundamentam a opção concreta, para os crimes de Sequestro e de Detenção de Arma, da preferência pela pena privativa de liberdade, o que sempre seria causa da nulidade do Acórdão da primeira instância, por falta de fundamentação para a escolha da pena de prisão naqueles dois casos e por omissão de pronúncia, nos termos das alíneas a) e c), do n.° ‘1, do artigo 379° do Código de Processo Penal, já antes citado a outro propósito.

NN. Além disso, se o Tribunal tivesse seguido o entendimento que ao Recorrente parece mais correcto e tivesse condenado o arguido em penas de multas (ou numa pena unitária de multa) pelos dois referidos crimes, de Sequestro e de Detenção de Arma, e mesmo aceitando como boa a medida da pena que decidiu aplicar ao Homicídio (o que só por cautela de patrocínio se faz), deveria ter aplicado a este último crime pena suspensa, por se não verificarem quaisquer razões que fizessem prevalecer a preferência por pena privativa de liberdade.

OO. Ainda sem prescindir e por outro lado, admitindo aqui (obviamente sem conceder) a possibilidade de se ter efectivamente verificado concurso real entre os três crimes, e designadamente entre os de Sequestro e de Homicídio, sempre se dirá que, no modo de ver do Recorrente, o disposto no artigo 70.º do Código Penal aplica-se logo no inicio do processo de escolha e de medida da pena, devendo o critério imposto por tal norma, da preferência obrigatória às penas não privativas da liberdade, estar na mente dos julgadores mesmo antes de eles definirem a medida da pena e condicionar também essa mesma definição.

PP. Os Senhores Juízes da primeira instância deveriam ter optado por não condenar o arguido em pena única superior a 3 anos, precisamente para poderem suspender a execução da mesma; ou, dito de outro modo, para lhe poderem aplicar uma pena de prisão sus pensa, uma pena não privativa de liberdade, em detrimento de uma pena que viesse a privar o arguido dessa mesma liberdade.

QQ. Não o tendo feito, o Tribunal esqueceu que a PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO é uma verdadeira pena, uma noutra pena, a par da pena de multa, da pena de prisão (efectiva) e das demais previstas no código; uma pena autónoma; e não apenas uma segunda espécie do género pena de prisão.

RR. O critério imposto pelo artigo 700 do Código Penal encontra fundamento também no principio da presunção de inocência. A par, naturalmente, da sua fundamentação no carácter fragmentário e de ultima ratio de todo o Direito Penal e na justificação das penas e da aplicação da própria lei penal em função da sua necessidade.

SS. A interpretação dos artigos 50° e 70° do Código Penal seguida no douto Acórdão, no sentido de que a decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta, coloca tais normas em violação das garantias de defesa e do princípio da presunção de inocência, consagradas nos n.°s 1 e 2, do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, ferindo por isso tais normas de clara inconstitucionalidade.

Termos em que, como nos demais de direito, se pede a Vossas Excelências se dignem julgar procedente este recurso, revogando a douta decisão recorrida e proferindo decisão que condene o recorrente em pena não privativa de liberdade, ou, tal não sendo possível, face aos vícios apontados, declarando tal douta decisão nula e ordenando novo julgamento.

2.2.

Respondeu o Ministério Público junto da Relação:

1 - Tendo em conta a forma extensa e algo confusa como foram elaboradas as conclusões sustentam o presente recurso, torna-se difícil entender os limites respectivos e quais são, afinal, em concreto, os pontos de discordância do recorrente com os Acórdãos impugnados.

2 - Uma observação, porém, é desde logo que atentas as molduras punitivas dos ilícitos por que foi condenado o recorrente e tendo em conta o disposto nas alíneas e) e f) do n.°1, do art.° 400.°, do Código de Processo Penal, o doutamente decidido na Relação de Coimbra só é passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça na parte respeitante ao crime de homicídio tentado. E, quanto à alegação de pretensa inconstitucionalidade desse artigo, permitimo-nos chamar à colação o douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 345/92, de 1992.10.28, publicado no Diário da República, II série de 16/3/92, onde expressamente se decidiu a constitucionalidade das normas que impedem a recorribilidade das decisões da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Veja-se, também, o não menos douto Acórdão do mesmo Tribunal de 1993.03.17, no Diário da República, II série de 02.06.1993.

3 - Decidiu a Relação de Coimbra todas as questões que lhe competia decidir. Quanto às referências ao recurso para o Tribunal Constitucional, diremos apenas que não estavam, nem estão ainda, esgotadas as vias de recurso ordinário.

4 - Quanto à alegada não transcrição em acta do teor das declarações e depoimentos oralmente prestados na audiência de julgamento, não assiste o mínimo de razão ao recorrente. Na verdade e como bem se aponta no douto Acórdão ora impugnado a fls. 417, citando aliás abundante Jurisprudência, não está no espírito do art. 369.° do Código de Processo Penal a sistemática redução a escrito da prova oralmente produzida em audiência já que isso contrariaria, além do mais, o princípio da oralidade. E tornaria impraticável todo o sistema de julgamentos.

Que não foi essa a intenção do legislador, como também se refere no douto Acórdão sob censura, a fls. 418, está patente na norma do n°4 do art.° 41 2.° do Código de Processo Penal. Aliás, nem se vê em que termos possa ser prejudicado o direito de recurso por essa transcrição não imediata se, em todos os casos em que houve registo de prova, tem o recorrente à sua inteira disposição a possibilidade de aceder aos suportes de gravação dessa prova, logo que o requeira.

5 - Também e consoante bem decidiu a Relação a fls. 418 a 421, o dever de fundamentação da convicção, até pela expressão "tanto quanto possível completa " utilizada no n.° 2 do art.° 374.°, do Código de Processo Penal, esgota-se pela indicação sucinta dos meios de prova apreciados e da forma como e porque foram apreciados e os motivos da sua aceitação ou não, em termos de permitir a cabal apreciação da justeza dos raciocínios lógico-dedutivos expressos. Não se exigindo a transformação da parte da fundamentação da sentença numa espécie de depoimentos escritos. Mas tão só a explicação em termos tão completos quanto possível da forma com foi organizado o processo lógico que conduziu, em termos de resultado, à factualidade considerada provada e não provada.

Com efeito e como lapidarmente se decidiu no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1999.11.17 in CJSTJ,VII;III, 200: " A fundamentação da sentença quanto à matéria de facto basta-se com uma exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e com a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas de for ma a permitir verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum".

E não vai ao acervo dos factos provados e não provados a totalidade da argumentação utilizada em sede da contestação apresentada mas apenas os elementos factuais essenciais a uma boa decisão da causa.

6 - Como bem se demonstra no douto Acórdão de fls. 421 a 422, não se verificava no douto Acórdão sindicado por ele qualquer dos vícios nos termos do art. 410.°, n.°2, do Código de Processo Penal, designadamente o invocado vício de contradição nos termos da alínea b) do aludido n°2.

E, os factos considerados provados em primeira e segunda instâncias, integram em plena suficiência os crimes por que foi condenado o recorrente. Ao que parece, confunde o recorrente na sua motivação o vício da alínea a), do art. 410.°, n.° 2 citado, com uma diferente convicção da suficiência da prova apreciada em julgamento. No entanto, como doutamente se entendeu no Acórdão desta Relação de 1999.09.29 in www.trc.pt " A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, decisão que resulta da convicção do julgador e das regras da experiência. ".

7 - As penas parcelares e unitária impostas ao recorrente são justas e equilibradas e, na sua fixação tomaram as instâncias em devida conta todas as circunstâncias atendíveis.

8 - Quanto ao douto Acórdão de fls. 463, como ali bem se decidiu, no requerimento sobre que recaiu não vinha apontado qualquer erro, lapso ou obscuridade susceptível de correcção à luz do disposto no art.° 669.° do Código de Processo Civil.

9 - Nestes termos e porque nenhuma censura merecem os doutos Acórdãos recorridos se, como se espera, vierem a ser integralmente confirmados, será feita a costumada justiça.

2.3.

Recebidos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos, e realizada a audiência. O Ministério Público pronunciou-se detalhadamente sobre as questões suscitadas pelo recurso, começando por acompanhar a posição assumida pelo Ministério Público na Relação quanto às questões de constitucionalidade e a nulidade da aclaração, e citou designadamente os Acs. n.ºs 390/04 e 140/04 do Tribunal Constitucional. Referiu, a propósito do recurso interposto para o Tribunal Constitucional que não estavam esgotados os recursos ordinários.

Quanto à transcrição integral para a acata dos depoimentos, criticou a posição assumida pelo recorrente, lembrando que o legislador de 1998 efectivou o duplo grau de jurisdição em matéria de facto com a documentação, mas que nunca esteve presente a ideia de sistemática transcrição das gravações áudio magnéticas, até por razões de celeridade e oralidade a que o CPP é particularmente apegado. A seu ver o n.º 4 do art. 412.º, disposição com que deve ser conjugado o teor dos art.ºs 363.º e 364.º, é clara no sentido de que não há transcrição das gravações em acta.

Entende que o dever de fundamentação da decisão foi cumprido mesmo quanto ao exame crítico da prova, pois permite compreender o itinerário lógico do Tribunal, afirmando as suas imparcialidade e independência, sendo que o exame crítico impõe só a necessidade de compreender as razões pelas quais aceitaram as provas e não uma repetição da prova.

Finalmente referiu o Ministério Público que não se vislumbra qualquer vício do art. 410.º do CPP que o Supremo devesse conhecer, pelo que lhe escapa a censura da matéria de facto, como tribunal de revista que é.

A defesa retomou a sua motivação de recurso.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

3.1.

E conhecendo.

No seu recurso, de acordo com a sua motivação (cfr. fls. 481) e respectivas conclusões, suscita o recorrente as seguintes questões:

- Nulidade do acórdão de aclaração e requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional;

- Omissão do convite para aperfeiçoamento do recurso e das suas conclusões;

- Não documentação em acta das declarações prestadas na audiência de julgamento;

- Nulidades do acórdão recorrido falta de fundamentação e omissão de pronúncia;

- Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

- Constitucionalidade da interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal;

- Verificação dos elementos subjectivos do tipo de crime sequestro

- Concurso real entre o sequestro e o homicídio;

- Da subsunção da conduta ao crime de homicídio privilegiado;

- Atenuação especial da pena;

- Espécie da pena.

- Medida concreta da pena.

Como se relatou, o recorrente termina as conclusões da sua motivação com a seguinte síntese «termos em que, como nos demais de direito, se pede a Vossas Excelências se dignem julgar procedente este recurso, revogando a douta decisão recorrida e proferindo decisão que condene o recorrente em pena não privativa de liberdade, ou, tal não sendo possível, face aos vícios apontados, declarando tal douta decisão nula e ordenando novo julgamento.»

Mas, como é óbvio, a ordem pretendida não é a que resulta da precedência lógica das questões e a que está obrigado este Tribunal. A nulidade da decisão e um eventual novo julgamento precedem necessariamente o conhecimento do mérito da pena aplicada.

3.2.

Antes de entrar na apreciação destas questões, vejamos qual a matéria de facto que foi dada como provada:

1 a) Em Dezembro de 1999, a ofendida, ASMD travou conhecimento com o arguido, através da Internet, tendo ambos acabado por encetar uma relação de namoro, que durou cerca de um ano, relacionamento esse que terminou em Fevereiro de 2001.

Apesar disso, mantiveram o contacto via Internet, mas arguido nunca aceitou pacificamente a ruptura no relacionamento, continuando a enviar-lhe cartas, mensagens, a fazer-lhe telefonemas e, a partir de determinada altura, passou a dirigir-lhe palavras ofensivas e a ameaçar suicidar-se.

A pretexto de terem uma última conversa acerca do seu relacionamento, combinaram um encontro, em casa da ofendida, no dia 8 de Setembro de 201, pelas 15.00 horas. Assim, no referido dia, cerca das 14.30 horas, arguido dirigiu-se à residência de ASMD, sita na R. Padre Américo, n.º 66, Gafanha da Nazaré, Ílhavo.

Uma vez ali, e depois de a ASMD lhe ter aberto a porta, o VHMF sugeriu-lhe que se dirigissem ao quarto para lhe mostrar algo no computador, ao que esta acedeu.

Já no interior do quarto, começaram a conversar acerca do relacionamento que existira entre ambos, tendo o arguido afirmado que tinha conhecimento de que ela teria um novo namorado e insistido para lhe dizer quem era.

A ASMD recusou-se a dizer algo sobre o assunto e, perante isto, o arguido acabou por confessar que acedera ao mail dela, facto esse que a aborreceu (uma vez que essa situação já sucedera antes) e que a levou a pedir-lhe que abandonasse a sua casa.

b) Aí, o arguido saiu, dirigiu-se ao carro em que se fazia transportar e retirou do porta lutas uma pistola marca "Star", cromada, com platinas pretas em plástico, sem número, com o comprimento do cano de 6,9 centímetros, e carregador com as inscrições "Cal Bmm - FT" e "made in Italy", arma e munições que tinham o calibre 6,35m, a qual o arguido havia adquirido em Agosto, em local e circunstâncias não apuradas, não se encontrando a mesma manifestada, registada ou licenciada.

O arguido sabia que a arma que adquirira carecia de ser manifestada e registada, o que não aconteceu, sabendo ainda que não era titular de licença de utilização da mesma ou de qualquer outra. Agiu deliberada e conscientemente, bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

c) Quando a ofendida reentrou na sua residência, o VHMF seguiu-a, dirigiram-se de novo ao quarto e, de imediato, o arguido trancou a porta e guardou a chave. Mal se apercebeu disso, a ASMD pediu-lhe a chave e manifestou a intenção de sair dali mas, como o arguido não acedeu, calculou que este pretendesse continuar a conversar e decidiu, então, arrumar o quarto.

A ASMD esteve sem poder sair do quarto cerca de 15 minutos, uma vez que o arguido não lhe entregava a chave nem lhe abria a porta do quarto, colocando-se em frente da mesma sempre que esta se aproximava.

O quarto em questão tem uma janela virada para a rua, situada a 1,5 m de altura, contados a partir do solo, que na altura se encontrava fechada, mas a ASMD não esboçou sequer sair por ali, por saber que o arguido a impediria do fazer.

O VHMF bem sabia que, ao impedir a ASMD de sair do quarto a privava da sua liberdade de movimento, o que quis.

Agiu deliberada e conscientemente bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

d) O arguido continuou a insistir para que a ofendida o informasse acerca da identidade do seu novo namorado e, a dada altura, disse-lhe:" Se não és minha não és de mais ninguém" e, posto isto, retirou a arma que havia guardado no bolso das calças e, a uma distância não superior a 1,5 m, apontou em direcção à cabeça da ASMD enquanto repetia que ela seria apenas dele, pedindo-lhe para retomarem o namoro.

Num primeiro momento a ASMD pensou tratar-se de uma pistola de fulminantes que o arguido possuía, pelo que, continuou a arrumar o quarto.

Durante esse período de tempo, pelo menos uma vez, o arguido encostou o cano da arma à cabeça da sua ex-namorada.

Perante esse comportamento do VHMF, acrescido do facto de se encontrar num espaço fechado, a ofendida começou a sentir-se enervada, e decidiu aproximar-se do arguido por trás, na tentativa de lhe retirar a arma das mãos.

Após alguma luta entre ambos pela posse da arma, a ASMD vislumbrou as munições (pois que estas ficaram encravadas e o arguido desencravou-as), apercebendo-se nessa altura a arma era verdadeira.

O arguido, perante a insistência da ofendida em lhe retirar a arma tentou, por diversas vezes, virar a arma de frente para ela acabando por a empurrar, o que fez com que caísse de joelhos à sua frente.

Nessa altura o arguido, de frente para a ASMD, a menos de 1 metro de distância entre ambos, disparou um tiro na direcção da cabeça da mesma, que lhe provocou perfuração na região fronto-parietal esquerda, ficando de imediato a sangrar, não tendo a bala ficado alojada nessa região ou em qualquer outra do seu corpo.

Após ter efectuado o primeiro disparo, não tendo o arguido logrado atingir o seu objectivo, quase de imediato, encostou a arma à cabeça da ASMD, na zona onde estava ferida, mas, no momento em que ia efectuar o segundo disparo esta reagiu, desviando a arma com um movimento rápido do braço, vindo a bala a atingir o tecto do quarto, após o que o arguido abandonou a casa.

Dos factos descritos resultou para a ofendida um período de 15 dias de doença, todos sem incapacidade para o trabalho, e uma cicatriz de cor acastanhada localizada na zona descrita.

O arguido agiu com a intenção de tirar a vida a ASMD e persistiu nessa intenção mesmo perante o insucesso da primeira tentativa, tendo disparado duas vezes, a segunda já com a ofendida ferida, só não tendo conseguido atingir os seus objectivos por motivos alheios à sua vontade.

Agiu deliberada e conscientemente, bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

e) Devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão nervosa;

f) O arguido apresentou-se voluntariamente no posto policial algum tempo após os factos.

g) Tem 25 anos, está integrado socialmente, tem o apoio dos pais, não tem antecedentes criminais, tem um curso superior, trabalha para a "Copipronto", auferindo um salário de 492,50 euros, sendo um funcionário exemplar. É pessoa sensível e normalmente pacífica.

h) Após os factos o arguido foi sujeito a tratamento psiquiátrico, foi medicado e está controlado.

i) O arguido indemnizou a ofendida de todos os danos que, em consequência do descrito, lhe advieram.

Factos não provados:

I. O arguido costumava usar uma arma de fulminantes para assustar pássaros.

II. O arguido após o segundo disparo efectuado, tentou ainda recarregar a arma, o que não conseguiu por dificuldades de manuseamento da mesma, o que o levou, pouco depois, a abandonar a casa.

O arguido tentou carregar a arma uma terceira vez.

III. O arguido nunca representou a possibilidade de matar a ofendida, mas apenas de a assustar; nunca teve intenção de disparar sobre ela e muito menos de a atingir mortalmente, tendo apenas tido uma conduta negligente, causada pelo estado de doença e de perturbação.

IV. Nunca pretendeu prender ou deter a assistente contra a sua vontade ao trancar a porta do quarto, só queria falar com ela sem ser perturbado, e por tal ser prática habitual quando se encontrava no quarto da ofendida;

V. A depressão nervosa porque o arguido passou limitou-lhe a liberdade de agir e a capacidade psicológica, entendida esta no sentido de que não podia avaliar a ilicitude ou as consequências dos seus actos.

VI. Actualmente o arguido tem um relacionamento amoroso estável com outra pessoa.

3.3.

Nulidade do acórdão de aclaração e requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional

Sustenta o recorrente que o acórdão que recaiu sobre os requerimentos por si formulados após o acórdão que manteve a decisão do Tribunal de Circulo de Aveiro padece de nulidade por omissão de pronúncia, sobre os esclarecimentos e correcções pedidos e sobre a requerida admissão de recurso para o Tribunal Constitucional (conclusão C).

Sucede, porém, que, de acordo com o disposto no art. 670.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal, por força do art. 4.º do CPP, da decisão que indeferir o requerimento de rectificações, esclarecimento ou reforma não cabe recurso.

Sendo assim, como é, não há que conhecer da impugnação do acórdão da Relação que indeferiu o pedido de aclaração do arguido, por não ser a mesma admissível, pelo que é, nessa parte, rejeitado o recurso do arguido.

Por outro lado, não tinha a Relação que se pronunciar em conferência, sob a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que a decisão sobre a admissão de recurso cabe ao Relator e é tomada por despacho (art. 414.º do CPP e 76.º, n.º 4 da LOFTC).

Em todo o caso, o recorrente interpôs tal recurso condicionalmente, sendo certo que se não verificou a condição de que fez depender a efectivação da sua vontade de recorrer para o Tribunal Constitucional. E sendo assim, não haveria que apreciar o requerimento de interposição de recurso, por não se ter o mesmo "perfeccionado" nos termos queridos pelo requerente.

3.4.

Omissão do convite para aperfeiçoamento do recurso e das suas conclusões.

O recorrente sustenta que o constante de pág. 22, § 5.º, e pág. 33, §s 3.º e 4.º do Acórdão recorrido parece significar que o recurso foi naquela parte julgado improcedente, porque na conclusão K não teria cumprido o disposto no art. 412°, n°s 3 e 4 do CPP e porque a conclusão GG seria deficiente por estar insuficientemente fundamentada a ilação, ali extraída pelo Recorrente, de que, pela interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal seguida no Acórdão da 1.ª instância, se mostrava violado o princípio da presunção de inocência (conclusão I).

Tendo o recurso sido julgado improcedente por essas razões (ou, pelo menos, nessas partes, também por essas razões) sem precedência de convite para aperfeiçoamento do seu recurso ou das conclusões, o acórdão será nulo por violação do art. 690.º do CPC e dos art.ºs 414°, n° 2, e 420° do CPP (conclusão J), normas aplicáveis também aos casos de julgamento do recurso, impedindo que um recurso possa ser julgado improcedente por falta, deficiência, obscuridade ou complexidade das respectivas conclusões ou por omissão nelas de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite a para suprir tal falta ou tais vícios (conclusão K).

O regime legal dos recursos em processo penal (normas conjugadas dos art.ºs 412°, 414°, 417°, n.° 3 e n.° 4, 418°, 419°, 420°, 421°, 423°, 424° e 425 do CPP) violaria o do direito de acesso ao direito e aos tribunais (art. 20° da Constituição), e do direito ao recurso (art. 32° n.° 1), na acepção de que um recurso penal pode ser julgado improcedente por falta, deficiência ou complexidade das respectivas conclusões ou por omissão de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal falta ou reparar tais vícios (conclusão L).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional e, mais recentemente, a deste Supremo Tribunal de Justiça vão no sentido de que não pode deixar de ser conhecido um recurso, por deficiência das conclusões da motivação, sem que ao recorrente seja concedida a possibilidade de corrigir tal deficiência. O mesmo não se aplicando, no entanto, ao próprio texto da motivação que é, por um lado, imodificável e, por outro, o limite à correcção das conclusões.

Isso mesmo se pode ver das seguintes declarações com força obrigatória geral oriundas do Tribunal Constitucional:

- Acórdão n.º 337/2000, DR-IA, 21.07.2000 - inconstitucionalidade da norma constante dos art.ºs 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do CPP (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência;
- Acórdão n.º 320/2002, DR-IA, 07.10.2001 - inconstitucionalidade da norma do art. 412.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas al.s a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.

Não resulta assim, desta jurisprudência, nem da lei, um "direito" do recorrente a ser convidado a corrigir as conclusões da motivação, como parece pretender o recorrente, e que teria sido violado pela decisão recorrida.

Parte o recorrente para a sua crítica do seguinte trecho do acórdão recorrido: «através das muitas prolixas conclusões, que eventualmente mereceriam solução de aperfeiçoamento, questiona o recorrente diversas nulidades, que começaremos por analisar.

Mas, como se vê de tal trecho e da análise que se lhe segue, a Relação não deixou, apesar da prolixidade das conclusões (que se mantém neste recurso), de conhecer todas as questões que foram suscitadas no recurso. O que vale por dizer que não deixou de ser apreciada qualquer pretensão com base na mencionada prolixidade, não sendo assim atingido o núcleo protegido do direito constitucional ao recurso.

3.5.

Não documentação em acta das declarações prestadas na audiência de julgamento.

Refere o recorrente que as declarações orais em audiência tinham de estar documentadas na acta de audiência, porque foram efectivamente registadas em suporte áudio magnético (conclusão M), prejudicando essa falta seriamente a defesa do recorrente, o seu direito ao recurso, o que constitui nulidade da acta, em violação do dos art.ºs 363° e 364° n.°s 1 e 3, 99°, n.° 3 e 362° do CPP, e é caso de falsidade da mesma, atento o valor que lhe é conferido pelo art. 169° do CPP (conclusão N).

A interpretação dos art.ºs 363° e 364° n.s 1 e 3 do CPP, no sentido de tal documentação ser apenas necessária após a interposição do recurso, violaria o direito ao recurso - art. 32° n.° 1 da Constituição (conclusões O e P).

A nulidade da acta de julgamento, atento o seu valor probatório, implica a nulidade do próprio julgamento e, por consequência, a nulidade da douta sentença final, sendo fundamento de recurso - art. 410.° n.º 3 do CPP (conclusão Q).

Sobre tal questão escreve-se na decisão recorrida:

«Vemos que o recorrente se insurge, em primeiro lugar, pela falta transcrição na acta dos depoimentos prestados durante a de julgamento.

Pela acta respectiva, verifica-se que a prova produzida foi gravada, mostrando-se transcrita.

Seria, pois, de ser feita constar da acta?

Entende-se não.

Com efeito, temos que verificar que a exigência inserta no art.363.º do Cod. Proc. Penal (diploma a que nos reportaremos sempre que se não faça menção de origem) se destina a prevenir a correspondência entre a que é produzida e a que resulta do julgamento; não está no espírito da norma a sistemática redução a escrito das declarações, o que significaria a preterição do princípio da oralidade e seria fonte de delongas processuais que o Código quis evitar. (Ac. STJ de 20/11/90, Proc. n.º 40958/3ª, bem como no mesmo sentido, Ac. Rel. Lisboa, de 18/2/92, CJ.XVII, T.I, pág.179, Ac. do Trib. Constitucional de 5/5/93, STJ, de 1/7/93, BMJ 429-625, de 24/4/94, de 18/10/95, como outros mencionados no Cod. Proc. Penal, de Maia Gonçalves l3.ª ed., em anotação ao art.363°)-

Aliás, só uma interpretação extremamente literal de tal normativo, poderia conduzir à solução preconizada pelo recorrente.

Mas há que ponderar que o aí estabelecido está conforme o constante do artigo anterior, onde se menciona o que deve constar da acta da audiência de julgamento.

E tenha-se em consideração outro argumento, coadjuvante, para se poder aperceber a intenção do legislador: no art. 412°, n° 4 estatui a obrigação de fazer referência aos suportes técnicos, que não são manifestamente, por não revestirem tal carácter, as declarações constantes da acta da audiência de julgamento.

Veja-se, ainda, que, no sentido de garantia de defesa do arguido é muito mais fiável a transcrição, do que a reprodução em acta, por resumo, do que foi referido.

A eventual inconstitucionalidade carece totalmente de fundamento, até porque aquilo a que a lei obriga facilita muito mais a defesa do arguido, do que o sistema de transcrição em acta, só por resumo.»

Deve começar-se por notar que está fixada jurisprudência por este Supremo Tribunal de Justiça (ac. n.º 5/02, DR, IS-A, de 17-07-02) no sentido de que "a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer".

Ora, não tendo sido arguida nos termos previstos no art. 123.º do CPP, tal irregularidade fica sanada e dela, não podendo o tribunal dela conhecer (n.º 1), a não ser que a mesma possa "afectar o valor do acto praticado" (n.º 2). E se as declarações orais em audiência foram gravadas e transcritas, em nada é afectado o valor da sequência de actos que integram a audiência, nem fica prejudicada a possibilidade de impugnar em recurso a matéria de facto fixada pela 1.ª Instância.

Isso mesmo decidiu este Supremo Tribunal de Justiça, mesmo no caso em que tais transcrição e gravação não tivera lugar e ficara impedida a análise em recurso das divergências relativamente à decisão sobre pontos concretos da matéria de facto, pois que o direito de recorrer ou a amplitude do exercício desse direito está na disponibilidade dos interessados (como também o está a arguição das irregularidades que considerem praticadas), não se podendo dizer afectado, decisivamente e com reflexos objectivos na regularidade processual, o valor do acto, já que os interessados têm de respeitar as condições fixadas para o exercício dos seus direitos processuais, não podendo invocar eventuais consequências desfavoráveis que resultem de omissões próprias (cfr. o Ac. de 26-11-03, Acs STJ XI, 3, 236)

Não tendo sido arguida tempestivamente tal irregularidade, afastada ficava, pois, a possibilidade de o recorrente suscitar tal questão perante a Relação.

Depois, importa notar que o CPP, ao lado da legitimidade do recorrente, alinha como condição para o conhecimento do recurso, o seu interesse em agir (art. 401.º, n.º 2: "Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir").

Não nos diz aquele diploma legal o que se deve entender por "interesse em agir", mas de tal já se ocuparam a Jurisprudência e a Doutrina.

Dentro desse entendimento, que se acompanha, para que o recorrente tenha interesse em agir é necessário que vise qualquer efeito útil que não possa alcançar sem lançar mão do recurso.

«(2) O interesse processual ou interesse em agir é definido, em termos de processo civil, como a necessidade do processo para o demandante em virtude de o seu direito estar carecido de tutela judicial. Há um interesse do demandante não já no objecto do processo (legitimidade) mas no próprio processo. (3) Em termos de recurso em processo penal tem interesse em agir quem tiver necessidade deste meio de impugnação para defender um seu direito» (Ac. do STJ de 7.12.99, proc. n.º 1081/99, Acs STJ VII, 3, 229).

«O interesse em agir é a necessidade concreta de recorrer à intervenção judicial, à acção, ao processo» (Acs. do STJ de 29-03-2000, Acs STJ VIII, 1, 234, de 9-1-02, Acs STJ X, 1, 160, de 20-3-02, proc. n.º 468/02-3 e de 11-10-01, proc. nº 2130/01-5)

«(1) Como flui explicitamente da lei (art.º 401.º, do CPP), dois dos requisitos de que depende a admissão de um recurso penal são a "legitimidade" e o "interesse em agir" de quem lança mão de tal expediente. (2) A "legitimidade" consubstancia-se na posição de um sujeito processual face a determinada decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar através de um dos recursos tipificados na lei. Ou seja: diz-se parte legítima aquela que pode, segundo o Código, recorrer de uma determinada decisão judicial. Trata-se, portanto, aqui, de uma posição subjectiva perante o processo, que é avaliada "a priori". (3) Outra coisa diferente é o "interesse em agir", que consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via se logra obtê-la. Portanto, o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada "a posteriori" (Ac. do STJ de 18-10-00, proc. n.º 2116/00-3)

«Enquanto pressuposto processual, o interesse em agir (também conhecido por interesse processual) consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção. O recorrente tem interesse processual quando a situação de carência em que se encontra necessita da intervenção dos tribunais» (Ac. dos STJ de 16-05-2002, proc. n.º 1672/02-5, subscrito pelos aqui Relator e 1.º adjunto

No mesmo sentido se pronunciaram igualmente Simas Santos e Leal Henriques (Código de Processo Penal Anotado, 2.º volume, 2000, 682): «Não basta ter legitimidade para se recorrer de qualquer decisão; necessário se torna também possuir interesse em agir, (...) que se reconduz ao interesse em recorrer ao processo, porque o direito do requerente está necessitado de tutela; não se trata, porém, de uma necessidade estrita nem sequer de um interesse vago, mas de qualquer coisa intermédia: um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária; à jurisprudência é deixada a função de avaliar a existência ou inexistência de interesse em agir, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao intérprete que terá que verificar a medida em que o acto ou procedimento são impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo; a necessidade deste requisito é imposta pela consideração de que o tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa actividade, e de que é injusto que, sem mais, possa solicitar tutela jurisdicional» (no mesmo sentido o Ac. do STJ de 03-10-2002, proc. n.º 1532/02-5, em que o aqui Relator foi 2.º adjunto).

Ora, como se pondera na decisão recorrida, não resultou da não documentação em acta das declarações orais prestadas em audiência, pois que foram as mesmas gravadas e transcritas, pelo que com igual ou maior fiabilidade podia o recorrente impugnar a matéria de facto em toda a extensão.

E sendo assim falece-lhe interesse em agir na impugnação dessas questão, pois que da sua solução a seu favor nenhum efeito útil retiraria, que já não estivesse assegurado pela gravação e transcrição.

O que significa que não deverá ser conhecido o recurso neste domínio.

Mas mesmo que assim não fosse, ainda assim não lhe assistia razão à luz da reforma de 1998 do Código de Processo Penal.

Dispõe o art. 362.º do CPP que (n.º 1) a acta da audiência contém:

(a) O lugar, a data e a hora de abertura e de encerramento da audiência e das sessões que a compuseram;

(b) O nome dos juízes, dos jurados e do representante do Ministério Público;

(c) A identificação do arguido, do defensor, do assistente, das partes civis e dos respectivos advogados;

(d) A identificação das testemunhas, dos peritos, dos consultores técnicos e dos intérpretes e a indicação de todas as provas produzidas ou examinadas em audiência;

(e) A decisão de exclusão ou restrição da publicidade, nos termos do artigo 321.º;

(f) Os requerimentos, decisões e quaisquer outras indicações que, por força da lei, dela devam constar; e

(g) A assinatura do presidente e do funcionário de justiça que a lavrar.

E esclarece o art. 363.º, como princípio geral da documentação de declarações orais (de acordo com a respectiva epígrafe), que as declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.

Por sua vez, o art. 364.º dispõe que as declarações prestadas oralmente em audiência que decorrer perante tribunal singular são documentadas na acta, salvo se, até ao início das declarações do arguido previstas no art. 343.º, o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente ou partes civis, no tocante ao pedido de indemnização civil (n.º 2) declararem unanimemente para a acta que prescindem da documentação (n.º 1). Quando a audiência se realizar na ausência do arguido, as declarações prestadas oralmente são sempre documentadas (n.º 3). Não estando à disposição do tribunal meios técnicos idóneos à reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resultar das declarações prestadas (n.º 4).

Finalmente o art. 412.º prescreve que no recurso em que se impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, as especificações ordenadas pelo n.º 3 devem ser feitas por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. E o art. 389.º prevê que no processo sumário a documentação dos actos de audiência, se requerida, será efectuada por súmula, enquanto que, para o processo abreviado, se prevê a possibilidade de documentação dos actos de audiência, sem especificar os meios.

Da conjugação deste complexo de normas resulta um sistema de documentação que não se revê na tese do recorrente, como se decidiu no acórdão recorrido.

Com efeito, a documentação das declarações orais em audiência é efectuada através da súmula (art. 389.º), ou através da gravação áudio magnética, seguida de transcrição (art. 412.º, n.º 3), transcrição que não faria qualquer sentido na tese do recorrente.

Concepção que é reforçada pela conteúdo atribuído pelo art. 389.º do CPP à acta e que não contempla necessariamente a documentação (que abrange só a documentação por súmula).

Isso mesmo vem decidindo, sem discrepâncias, este Supremo Tribunal de Justiça.

Tem entendido, entendimento que se mantém, que a documentação na acta, a que se refere o art. 363.º do CPP, é a própria gravação das declarações prestadas oralmente. A transcrição é coisa diversa e vem regulada no art. 412.º, n.º 4 do referido diploma, para a hipótese de recurso em matéria de facto (neste sentido o Ac. do STJ de 23-10-2002, proc. n.º 1209/02-3, no mesmo sentido, salientando que nenhuma inconstitucionalidade se perfila, o Ac. do STJ de 10-10-02, proc. n.º 1777/02-5).

E que, tenha o julgamento decorrido ou não perante o tribunal colectivo, as declarações prestadas em audiência deverão, em princípio, obrigatoriamente, ser objecto de gravação magnetofónica sempre que existir a aparelhagem respectiva, constituindo as respectivas cassetes gravadas com genuinidade devidamente assegurada pela supervisão do tribunal, prolongamento da acta, ou, se se preferir, acta em sentido amplo (neste sentido o Ac. de 8-11-01, proc. n.º 3019/01-5).

Pretende também o recorrente que a interpretação designadamente dos art.ºs 363° e 364° n.s 1 e 3 do CPP, no sentido de tal documentação das declarações orais ser apenas necessária após a interposição do recurso, viola o direito ao recurso - art. 32° n.° 1 da Constituição (conclusão O), como se decidiu o acórdão recorrido que tal documentação não é necessária quando a prova estiver gravada e se mostrar transcrita, ainda que tal transcrição não conste da acta de julgamento (conclusão P).

Compulsado o texto da motivação verifica-se que só lhe são dedicados dois parágrafos de fls 482 (§s 5º e 6º) de conteúdo idêntico às conclusões que se citaram e que também não explicam de todo as razões que subjazem ao entendimento do recorrente.

Embora se tenha abordado a questão da documentação da acta em jeito de reforço, pois que se afirmou o não conhecimento dela, por razões processuais, sempre se dirá sinteticamente que nenhuma razão assiste ao recorrente.

Com efeito, como resulta do que foi dito, nenhuma ofensa é feita ao direito ao recurso em matéria de facto, pela interpretação acolhida pela Relação e que garante aquele direito com total amplitude.

3.6.

Falta de fundamentação e omissão de pronúncia.

O conteúdo das conclusões E e F, na formulação que lhes deu o recorrente, não coloca qualquer questão que este Supremo Tribunal de Justiça deva conhecer ou que possa conhecer, sendo certo que não é um Tribunal de opinião.

Quanto à conclusão G, não compreende este Supremo Tribunal de Justiça como é que não entendeu o recorrente que a Relação se refere à decisão da 1.ª Instância e face à clareza dos dois parágrafos (apesar do evidente lapsus calammi do "demasiado" empregue) e não vê como os possa explicar melhor, sendo certo que tal não configurar igualmente uma questão de que deva o Supremo Tribunal de Justiça ocupar-se. Aliás, nenhumas dúvidas evidencia o recorrente na conclusão V

Finalmente as alegações a que reporta o recorrente na conclusão H, matéria também irrelevante para este recurso, serão certamente as alegações orais na audiência de recurso, as únicas que a Relação ouviu.

Sustenta o recorrente que os factos alegados na sua contestação (4.3 da motivação) demonstrativos do seu arrependimento, de que aquando dos factos pensava em se suicidar, de que havia comprado arma para tal, de que nunca anteriormente tinha agredido fisicamente a ofendida, de que agiu da forma por que o fez devido ao seu estado psicológico, alterado, doente e descontrolado, são factos relevantes para a decisão, nomeadamente, para a determinação da medida da pena, não podendo ser desqualificados como meramente instrumentais (conclusão R). O arrependimento que é relevante para determinação da pena concreta e para efeitos de atenuação especial da pena, quando se verifica a reparação integral pelo agente dos danos causados (conclusão S).

Assim, não se referindo a tais factos, o acórdão da 1.º instância seria nulo - als. a) e c) do art. 379° do CPP, por violação do art.ºs 97.º, n.° 4 e 374°, n.° 2, e art. 205°, n.° 1 da Constituição (conclusão T).

Escreveu-se a propósito na decisão recorrida:

«Quanto à referida no n°4 das conclusões, a única coisa que se oferece referir é que se tratam de factos meramente instrumentais, nada tendo a ver com a essência dos tipos legais de crime por que o recorrente foi condenado.

O ter adquirido a arma para se suicidar não tem qualquer relevância, pois todos esses vectores são despiciendos, enquadrando-se, eventualmente, no estado psicológico em que o recorrente se encontrava.

A sua perturbação psicológica está dada como provada.

O que a lei exige é que na sentença se faça uma indicação sumária das conclusões contidas na contestação.

Não haverá que enumerar todos os factos contidos nessa peça processual, mostrando-se como suficiente o que já se mencionou supra no respeitante aos factos não provados que não haja quaisquer outros que estejam em contradição com os enumerados supra como provados.

Remete-nos, mais uma vez, tal questão para a fundamentação da sentença.

Interessa e basta, quanto a nós, a indicação dos meios de prova, analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em certeza humana, à factualidade.»

Importa reter que este Supremo Tribunal já entendeu que a «lei não impõe que a sentença indique o conteúdo da contestação» (Ac. de 21-6-89, proc. n.º 40076) e que «face ao disposto no art. 374º, nº 1, al. d) do CPP o tribunal não precisa de quase reproduzir o texto da contestação, pois do relatório da sentença deve constar tão somente a indicação sumária das conclusões contidas na contestação, quando apresentada» (Ac. de 11-2-93, Acs STJ 1,191), como fez a 1.ª Instância no caso vertente.

Como se vê da matéria de facto provada e não provada, as Instâncias averiguaram os factos relevantes para a discussão da causa, como o impõe o n.º 4 do art. 339.º do CPP, ao fixar o objecto da discussão em audiência.

Com efeito, conheceram da depressão invocada pelo arguido, dos seus reflexos na sua capacidade intelectual e volitiva, dos seus motivos e das circunstâncias relevantes da sua conduta.

Neste contexto, a circunstância de ter eventualmente comprado a arma para se suicidar mostra-se irrelevante, tanto mais que tal projecto de suicídio não foi efectivamente relacionado pelo arguido com o quadro de facto da sua conduta, e toda a sua actuação não visou nunca a destruição da sua vida, mas sim a de outrem.

Daí que não se possa dizer que o Tribunal deixou de investigar os factos que lhe cumpria apurar à luz do normativo indicado, sendo certo que falha que o recorrente pretendeu denunciar relevaria de carência de investigação e não de fundamentação.

Com efeito, a fundamentação retoma toda a factualidade investigada e a relevante para o caso.

E só devem ser objecto da discussão os factos da contestação que se relacionem directamente com a conduta em apreciação (Acs. de 30/06/1994, proc. n.º 46726, de 23-3-95, proc. n.º 47518, de 7-12-00, proc. n.º 3100/00-5)

Depois, deve notar-se que este Tribunal já decidiu que o facto de a decisão não conter no relatório o resumo da matéria da contestação em obediência ao disposto no art. 374º nº 1 al. d) do CPP, não constitui nulidade mas mera irregularidade que nem influi na decisão da causa se, como no caso, a decisão, no seu texto, revela que na audiência se atendeu à matéria da contestação [art.s 379º, a) e 118º e segs do CPP] (Ac. de 31-1-90, proc. n.º 40356, AJ n.º 6, no mesmo sentido os Acs. de 19/12/1991, proc. n.º 42031 e de 16/06/1999, 28/99).

Invoca o recorrente, a este propósito, a inconstitucionalidade de diversas interpretações do art. 374.º do CPP, que seriam inconstitucionais, mas não indica qual delas foi aplicada pela decisão recorrida, sendo certo que, como se viu, a questão em causa não era de fundamentação mas sim de objecto da discussão e de investigação.

As inconstitucionalidades indicadas apresentam, pois, como uma forma mais "sofisticada" de impugnar a decisão tomada pela Relação, naquele âmbito, mas no domínio do direito ordinário.

Assim, não há que conhecer delas.

Pretende o recorrente que é inconstitucional o art. 374.º do CPP na interpretação segundo a qual interessa e basta a indicação dos meios de prova, analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em certeza humana, à factualidade" (conclusão U).

Teve este Supremo Tribunal de Justiça ocasião de lembrar que, se o recorrente invoca a questão da nulidade da decisão por falta de fundamentação suficiente, mas se dispensa de demonstrar essa afirmação, não pode desencadear a pretendida crítica pelo Supremo Tribunal de Justiça que não tem que (nem pode) desencadear uma qualquer expedição tendente a testar todas as modalidades possíveis de incumprimento daquele dever de fundamentação (cfr. ac. de 15/11/2001, proc. n.º 3258/01-5, do mesmo Relator).

Mas importa reter que o exame crítico das provas cabia, em primeiro lugar, à 1.ª Instância, que o fez, como também o fez a Relação no espaço que lhe cabia como tribunal de apelação.
Como melhor se verá, o dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão (n.° 2 do art. 374.º do CPP) e o exame crítico da prova, exige, como o fez o tribunal colectivo, a indicação dos meios de prova que serviram para formar a sua convicção, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.

Ora, a Relação sindicou suficientemente o processo, fundamentou a decisão sobre a improcedência do recurso em matéria de facto acolhendo na íntegra, a fundamentação do acórdão do tribunal colectivo que se apresenta como suficientemente.

O que vale por dizer que as Instâncias cumpriam suficientemente esse encargo, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permitem afirmar que o mesmo não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias.
Improcede, assim também, a arguição de nulidade do acórdão recorrido quanto a esse ponto constante da conclusão AA da sua motivação.

O art. 205.º da Constituição dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (n.º 1). E deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei". A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.

A fundamentação das decisões judiciais continua, pois, dependente da lei a que é atribuído o encargo de definir, com maior ou menor latitude, o âmbito do dever de fundamentação, sem que isso signifique total discricionariedade legislativa, "uma vez que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como as razões de direito que justificam a decisão" (V. Moreira e G. Canotilho, CRP Anotada, 2.ª Edição, 798-9)

Foi devolvido ao legislador o seu "preenchimento", a delimitação do seu âmbito e extensão em termos prudentes evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Limitou-se a consagrar o aludido princípio "em termos genéricos", deixando a sua concretização ao legislador ordinário. (cfr. o ac. nº 310/94 do T. Constitucional - DR IIS de 29.8.94), sem que isso signifique, como se viu, que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional.

Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença diversas funções:

- Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e da comunidade jurídica em geral;

- Permite, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz;

- Constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (cfr. citado Ac. 680/98).

E a norma, que desenhou o dever de fundamentação no processo penal, cumpre todas estas funções, como vêem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a constitucionalidade desta norma, nos seguintes acórdãos:
- nºs 680/98 e 636/99: é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
- nº 102/99: não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, quando interpretado no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em co-autoria, praticaram os factos delituosos, o tribunal não tem que fazer uma fundamentação formalmente distinta para cada um deles
- nº 258/2001: não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP, quando interpretada em termos de não determinar a indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente
- nº 382/98: não são inconstitucionais as normas do n.º 2 do art. 374.º (art.ºs 361º, 368º, nº 2), enquanto neste complexo normativo se não prevê a prévia quesitação de factos alegados pela acusação e pela defesa resultantes da discussão da causa e, consequentemente, a sua reclamação.

Assim, impõe-se a conclusão de que o Ac. do Tribunal Constitucional nº 680/98 de 2 de Dezembro (D.R. IIS de 5.11.99) que se refere a situação paralela à dos presentes autos, segue, no entanto, em direcção diversa à pretendida pelo recorrente.

Com efeito, decidiu-se aí «julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no nº 1 do artigo 205º da Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no nº 1 do artigo 32º, também da Constituição».

Ou seja, o T. Constitucional entendeu que foi exactamente a falta explicitação do processo de formação da convicção do tribunal é determinou a inconstitucionalidade da interpretação então apreciada, elemento que o recorrente sustenta insuficiente.
A fundamentação desenvolvida no caso permite o exame do processo lógico ou racional subjacente à decisão de facto. E o exame crítico dos meios de prova, designadamente da sua razão de ciência e credibilidade, explicitam o processo de formação da convicção, assim se garantindo que se não tratou de uma ponderação arbitrária das provas ao atribuir ao seu conteúdo uma especial força na formação da convicção do Tribunal. Com efeito, foram explicitados os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como foi efectuado o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, pelo que não só não se verifica qualquer nulidade, como não foi feita qualquer interpretação do n.º 2 do art. 374.º em violação da Constituição.

Suscita, depois, o recorrente a seguinte questão de constitucionalidade, a partir de uma afirmação do acórdão recorrido:

As normas dos art.ºs 374° n° 2 e 379° n° 1 al. c) do CPP (mas ainda todo o próprio regime dos recursos - n° 1 do art. 410.º e n° 5 do art. 423 do CPP) são inconstitucionais por violação do direito ao recurso (art. 32° n° 1 da CRP), quando restritivamente interpretadas no sentido de que o verdadeiro julgamento é o efectuado na primeira instância, onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a pertinência", ou seja, no sentido de que o julgamento do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não é um julgamento verdadeiro e de que nele não vigoram, ou quando a ele não se aplicam, "inteiramente" as regras ou princípios da imediação e da oralidade (conclusão V).

Deve-se começar por notar que o segmento final desta conclusão da motivação do recorrente (a partir de "ou seja") é abusiva, na medida que o segmento inicial que retoma uma proposição do acórdão recorrido, mas distorce-o num sentido que não contido (explicita ou implicitamente) na expressão usada.

O que a decisão recorrida disse (e quis dizer) é que o julgamento é efectuado na 1.ª Instância: esse é o verdadeiro julgamento da causa, em que imperam os princípios da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas e as testemunhas, o arguido e o ofendido são ouvidos em pessoa.

O recurso para a Relação, mesmo em matéria de facto, não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada (ou todas as questões abordadas na decisão da 1.ª Instância) é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente (ou tornaria a decidir as questões suscitadas).

Antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada.

O Tribunal Superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito).

Assim, o julgamento em 2.ª Instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas a admitidas alegações escritas).

Este o entendimento presente na afirmação do acórdão recorrido que constitui um dado adquirido no estádio actual de evolução do processo penal, entre nós, e que não enferma de nenhum pecado constitucional.

Como vem resulta do seu teor nessa parte:

«Como já expôs o Supremo Tribunal de Justiça, a fundamentação da sentença não tem de ser uma espécie de "assentada" em que o tribunal reproduza os depoimentos dos testemunhos ouvidos, ainda que de forma sintética. O exame crítico das provas deve ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (STJ 11-10-2000, Proc. n.° 2253/00-3).

O objectivo do segmento final da norma do art°. 374.º n.° 2, do CPP, em que se estatui, o dever de indicação e exame crítico das provas, é o da explicitação e reforço do indiscutivelmente importante dever de fundamentação da decisão de facto. Pretende-se que, de uma forma sucinta, seja tanto quanto possível transparente e explícito o processo lógico-racional que levou a convicção do Tribunal, formado com base no principio da livre apreciação da prova (art° 127° do CPP) em ordem a facilitar o autocontrole da decisão pelo julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.

Esse dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, a referência específica a cada um dos elementos de prova produzidos e o respectivo exame crítico.

Trata-se apenas da indicação e exame crítico das provas "que serviram para formar a convicção do tribunal" e não de provas que, insignificativas num ou noutro sentido, não tiveram relevância para essa convicção (STJ: 1-10-2000, Proc.n.°2437/00-3).

Ou como refere Marques Ferreira (Jornadas de Direito Processual) "a obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do CPP de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores da convicção à semelhança do que tradicionalmente vem sucedendo".

De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle um determinado sistema processual, e no que concerne ao nosso processo penal vigente este informa, neste particular, de nítidas características medievais e ditatoriais...

Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova(thema probanduin) mas os elementos que em razão das regras da experiência comum ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência."

Aliás, verifica-se que a Lei n°59/98, de 25 de Agosto, veio introduzir ao normativo em causa a exigência do exame critico das provas, de onde se pode retirar que não é suficiente neste momento o referir-se aquilo em que o tribunal se baseou, mas torna-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.

No caso presente diremos que a fundamentação é demasiado, na medida m que o pode ser com a constante invocação de inconstitucionalidade, minuciosa, no respeitante aos vectores que levaram à convicção formada.

Aliás, temos sempre de lembrar que o verdadeiro julgamento é efectuado na lª instância, onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a pertinência.»

3.9.

Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Invoca o recorrente os vícios das als. b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP (conclusão Z), pois que a depressão nervosa, causada pela ruptura sentimental, que o afectou profundamente e agravou a sua debilidade psíquica do arguido, limitou necessariamente a sua capacidade de agir (conclusão W), como o indicam as regras da experiência e os conhecimentos adquiridos pelo que é insanavelmente contraditório, dar-se como assente que o arguido padecia daquela depressão e que tinha uma debilidade psíquica, agravada por depressão, e ao mesmo tempo julgar não provado que tal depressão nervosa lhe tivesse limitado a liberdade de agir (conclusões X e Y). Mas não se refere ao erro notório na apreciação da prova, salvo na invocação a respectiva alínea.

É entendimento uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça que os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP não podem ser invocados como fundamentos de recurso para si interposto, designadamente quando já o foram perante a Relação (como foi o caso), pois que se reduzem a questão de facto que, face à alteração operada em 1998 no Código de Processo Penal, já não integra a "revista alargada, salvo quando se trata de recurso de decisão final do tribunal de júri.

De todo o modo, pode este Tribunal dele conhecer oficiosamente, quando esteja inquinada a base de facto de que deve partir o tribunal de revista, como é jurisprudência fixada.

Nessa óptica, importa relembrar o que a Relação decidiu a este propósito.

«É bem verdade poder afirmar-se que o arguido encontrava-se perante um facto consumado da ruptura do seu namoro com a ASMD (coisa que não aceitava) e perante a falta de vontade por esta manifestada de retomar tal relacionamento. Estava ainda convencido de que a ASMD teria outro namorado. A agravar a situação, o arguido ficou com uma depressão nervosa devido a tal ruptura o que o afectou de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer emocional.

Porém, tal quadro factual não permite concluir ter o arguido agido em estado de desespero nos termos supostos pela lei, e muito menos que no caso, concreto tal quadro motive qualquer exigibilidade diminuída de um comportamento diferente.

A situação do arguido inscreve-se antes numa debilidade psíquica motivada pelo seu ciúme (a toda a luz injustificado, até porque o namoro havia findado já há largos meses) e raiva por a ofendida não pretender "retomar" com ele, agravada por uma depressão.

É que o arguido demonstrou até agir com alguma tranquilidade (embora não com frieza de ânimo) - foi ao carro buscar a arma, fechou a porta do quarto, com o que preveniu uma eventual fuga da ofendida, apontou a arma face à ofendida no sítio pretendido, depois de ter, por assim dizer, colocado a vítima na posição que mais o favorecia, disparou, vendo que a ofendida já sangrava, voltou a colocar a arma apontada ao mesmo sítio, voltou a disparar, só então do por finda a sua tarefa, face à não produção do resultado querido por motivos absolutamente alheios à sua vontade.

Este seu comportamento, na forma descrita, não traduz uma actuação "atabalhoada", de todo irreflectida, coso é normalmente na actuação em desespero.

Nem se prova que a depressão do arguido tosse de molde a consentir conclusão de uma exigibilidade diminuída de um comportamento diferente.

Antes, era exigível ao arguido - ainda para mais pessoa ao tempo com certa formação escolar - perante o que já se havia passado dentro do quarto da ofendida, que quando saiu para ir buscar a arma parasse nesse momento para inverter os seus impulsos, indo embora do local, pois que teve tempo de sobra para reflectir sabre os seus actos nos minutos (ainda largos) de que dispôs entre a altura em que opta por ir buscar a arma para matar a ofendida e o momento em que dispara.

De onde, a depressão nervosa, por si só (embora tenha perturbado psicologicamente o arguido), e mesmo quando conjugada com a revolta e ciúme obsessivo do arguido pelo facto de a ofendida não pretender retomar o namoro, não consentir a conclusão de que, no caso era concreto, era menos exigível ao arguido uma conduta distinta, ou de que o arguido agiu a coberto de uma diminuição sensível da culpa, tanto mais quando o arguido teve pelo menos uma hipótese de resfriar os seu ímpetos, quando veio à rua buscar a arma, momento em que poderia, e deveria, ter optado por sair do local, como lhe foi, aliás, pedido pela ofendida.

Todos os argumentos que o recorrente invoca estão especificados, diga-se que muito bem, na decisão recorrida.

Se o recorrente deles discorda, deveria fundamentar a sua não razão de ser, o que não faz.»

Ora, como refere o acórdão recorrido, não é exacto que constitua uma regra de experiência comum inelutável que a depressão e o estado emocional de que sofria o arguido importe a sua inimputabilidade ou a sua imputabilidade diminuída.

E sendo assim, como é, afastada fica, desde logo, a pretendida contradição, toda a vez que o relevo que deva ser dado ao estado emocional do arguido, o deve ser em sede da medida da pena, questão que foi apreciada e decidida pelo acórdão recorrido.

3.8.

Constitucionalidade da interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal.

Refere o recorrente que a interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal do acórdão recorrido de que a decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta, coloca tais normas em violação das garantias de defesa e do princípio da presunção de inocência, consagradas nos n.°s 1 e 2, do art. 32° da Constituição (conclusão SS).

A 1.ª Instância - defende - deveria ter optado por não condenar o arguido em pena única superior a 3 anos para poderem suspender a sua execução da mesma (conclusão PP), ao não o fazer esqueceu que a pena suspensa é uma verdadeira pena autónoma; e não apenas uma segunda espécie do género pena de prisão (conclusão QQ), sendo que o «critério imposto pelo artigo 70.º do Código Penal encontra fundamento também no princípio da presunção de inocência. A par, naturalmente, da sua fundamentação no carácter fragmentário e de ultima ratio de todo o Direito Penal e na justificação das penas e da aplicação da própria lei penal em função da sua necessidade» (conclusão RR).

Sobre tal questão discorreu o acórdão recorrido:

«Pretende, ainda, o recorrente que os art.s 50° e 70° do Cod. Penal são inconstitucionais, na interpretação segundo a qual a decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta..

Tal surge na sequência da questão já antes abordada, mas sem que possamos fazer uma referência ao também requerido pelo recorrente, que se afigura deslocado atento o invocado nesta sede.

Com efeito, vê-se que entende que os Senhores Juízes de Círculo deveriam ter optado por não condenar o Arguido numa pena única superior a 3 anos, precisamente para poderem suspender a execução da mesma (conclusão DD).

Daí se afere que o recorrente faz um raciocínio ao contrário do que comanda a lei: primeiro deve-se ver qual a pena a impor, possibilidade da suspensão da sua execução, etc., para, numa fase posterior, se observarem os critérios para a sua determinação, "moldando-os", talvez, ao objectivo final.

Se fosse assim, talvez lhe assistisse razão na invocada inconstitucionalidade.

Mas como os critérios legais são outros e se mostram observados, não se vê em que é que as suas garantias de defesa foram postergadas, já que o tribunal observou aquilo a que está vinculado.

Por outro lado, não se revela de onde se pode extrair a violação do princípio da presunção de inocência, nem o recorrente o refere, pois mesmo na motivação sustenta tal com o mesmo teor da conclusão - "aparentemente"-, ou seja, não fundamenta essa aparência e acresce que, por isso, a mesma não é uma verdadeira conclusão, como o exige o art. 412°, n° l do Cod. Proc. Penal, um resumo do expresso na motivação.

Até por falta de fundamentação tal invocação careceria de análise.»

Merece esta posição o nosso acordo.

Com efeito, dispõe o art. 50.º do C. Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (n.º1).

O que vale por dizer que o Tribunal só perante uma pena de prisão não superior a 3 anos de prisão, que entende ser de aplicar a um determinado agente pela prática de um crime concreto, é que pode e deve equacionar a suspensão da sua execução, e não antes.

E compreende-se que a Lei reserve a aplicabilidade daquela pena de substituição para os casos cuja gravidade não ultrapasse determinado patamar, escolhendo a medida concreta da pena a infligir como índice dessa gravidade.

Como já o decidiu este Tribunal (Ac. de 20/03/03, proc. n.º 504/03-5, do mesmo Relator), o legislador estabeleceu esse requisito (pena não superior a 3 anos de prisão) enquanto índice de gravidade do ilícito merecedor dessa pena de substituição. Ou seja, sabendo-se que a pena concreta traduz sempre o grau de ilicitude e culpa da conduta em apreciação, escolheu-se uma medida limite que traduzisse os limites de gravidade das condutas abrangidas.

Essa técnica não é, aliás, exemplo isolado no C. Penal. O mesmo sucede com outras penas de substituição, como sucede com os art.ºs 44.º (substituição da pena curta de prisão por multa), 45.º (substituição por prisão por dias livres), 46.º (substituição pelo regime de semidetenção).

E não se vê, nem o recorrente o demonstra, que tal solução legal viole a constituição.

Por outro lado, o art. 70.º trazido à colação pelo recorrente versa, como melhor se verá a propósito da opção pela pena de prisão nos crimes de violação de domicílio e detenção ilegal de arma, é alheio a esta problemática, pois se destina aos tipos de crimes em que a reacção criminal é, em alternativa, prisão ou multa e em que essa opção não pressupõe a determinação prévia da pena de prisão aplicável, antes antecede, nos termos do referido artigo, essa determinação que pressupõe exactamente a escolha da pena a aplicar: prisão ou multa.

3.9.

Verificação dos elementos subjectivos do crime de sequestro.

Sustenta o recorrente que não se verificam os elementos subjectivos do tipo de crime sequestro, por isso que se não verificou o dolo específico exigido pelo tipo subjectivo, ainda que na forma de dolo eventual, já que o ora Recorrente não quis e nem sequer representou a possibilidade de privar a ofendida da sua liberdade de movimento, a não ser com o objectivo de a matar (conclusão BB).

Escreve-se na decisão recorrida:

«Quanto ao elemento subjectivo do tipo legal de crime de sequestro, dúvidas não surgem de que o mesmo se encontra tipificado na matéria de facto provada sob a alínea c). Ora, teremos de considerar que no crime de sequestro, em que o valor protegido é a liberdade ambulatória, tutela-se a capacidade de cada um se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, por qualquer forma ou medida temporal, desse direito"(Ac.STJ, de 1/4187, BMJ, 366,245).

Dai que se mostre integrado tal elemento, tornando-se mera alegação, sem qualquer suporte na matéria de facto, de que tal ocorreu para, matar a ofendida. Isso está até em contradição com a matéria de facto dada como não provada, ao referir que o recorrente pretendia matar a ofendida, mas apenas de a assustar.

De qualquer modo esta esteve limitada nas suas possibilidades de movimentação, procurando disfarçar tal situação com a arrumação do quarto, até que tentou retirar a arma ao recorrente.

Que mais elementos para se poder demonstrar a existência de tal elemento?

Não pudemos descurar que estamos perante uma situação ocorrida só entre duas pessoas, em que a apreciação da prova se tem de ater aos depoimentos prestados, fundamentalmente, pelos intervenientes.

É esclarecedora a fundamentação da sentença, pelo que cai por base tal asserção.»

Está provado, além do mais, que, depois de abandonado o quarto e a casa da sua antiga namorada a pedido desta, fui buscar uma pistola ao carro e quando a ofendida reentrou na sua residência, seguiu-a, dirigiram-se de novo ao quarto e, de imediato, trancou a porta e guardou a chave. Mal se apercebeu disso, a ASMD pediu-lhe a chave e manifestou a intenção de sair dali mas, como o arguido não acedeu, calculou que este pretendesse continuar a conversar e decidiu, então, arrumar o quarto. A ASMD esteve sem poder sair do quarto cerca de 15 minutos, uma vez que o arguido não lhe entregava a chave nem lhe abria a porta do quarto, colocando-se em frente da mesma sempre que esta se aproximava. O quarto em questão tem uma janela virada para a rua, situada a 1,5 m de altura, contados a partir do solo, que na altura se encontrava fechada, mas a ASMD não esboçou sequer sair por ali, por saber que o arguido a impediria do fazer. O VHMF bem sabia que, ao impedir a ASMD de sair do quarto a privava da sua liberdade de movimento, o que quis. Agiu deliberada e conscientemente bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

E face a tal factualidade nenhuma dúvida se pode colocar quanto ao elemento subjectivo do crime de sequestro.

Na verdade, comete esse crime quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade (n.º 1 do art-158.º do C.Penal).

E tem entendido este Supremo Tribunal de Justiça que:

- O crime de sequestro protege a liberdade ambulatória das pessoas, a capacidade de cada homem se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, por qualquer forma e medida temporal (Ac. do STJ de 31-1-96, proc. nº 47609)
- O crime de sequestro visa proteger fundamentalmente a liberdade individual, sendo essa liberdade a liberdade física, o direito de não ser aprisionado, encarcerado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a determinado espaço. (Ac. do STJ de 28-5-97, proc. nº 47/97)
- O bem jurídico tutelado no crime de sequestro é a liberdade física individual ou liberdade de movimento da pessoa humana. (Acs do STJ de 26-6-96, proc. nº 48245, de 25-9-96, proc. nº 45016 e de 14-11-96, proc. nº 278/96)
- No crime de sequestro, o bem juridicamente protegido é "a liberdade individual de locomoção contra os particulares que prendem alguém", ou seja a "liberdade ambulatória". (Acs do STJ de 6-11-96, proc. nº 84/96, de 5-4-00, proc. nº 71/2000, de 3-5-00, proc. nº 155/2000, de 22-11-00, proc. nº 2942/2000, de 26-6-02, proc. nº 1891/02-3)
- 1 - Com o crime de sequestro visa-se fundamentalmente proteger a liberdade individual, mais propriamente a liberdade física, o direito de se não ser aprisionado, encarcerado ou de qualquer modo fisicamente confinado por determinado período temporal, que relevantemente afecte a liberdade individual de locomoção a certo e determinado espaço.
2 - Com esta incriminação tutela-se não apenas as privações totais de liberdade, como ainda, e também, as privações parciais. (Acs do STJ de 14-12-00, proc. nº 3224/00-5, de 25-10-00, proc. nº 929/97-3)
Como vem entendendo este Tribunal a intenção criminosa integra matéria de facto da exclusiva competência dos tribunais de instância (cfr. por todos o Ac. do STJ de 6-12-00, proc. n.º 2712/00-3). E está dado como provado pelas instâncias, como se viu, que o arguido reentrado no quarto da ofendida, de imediato, trancou a porta e guardou a chave e não acedeu aos pedidos desta que manifestou a intenção de sair, estando cerca de 15 minutos sem poder sair do quarto, pois o arguido não lhe entregava a chave nem lhe abria a porta do quarto, colocando-se em frente da mesma sempre que esta se aproximava. O arguido bem sabia que, ao impedir a ofendida de sair do quarto a privava da sua liberdade de movimento, o que quis, agindo deliberada e conscientemente bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.
Ora, repete-se, face a tal factualidade inalterável por este Supremo Tribunal de Justiça, nenhuma dúvida se suscita quanto ao falado elemento subjectivo.

3.10.

Do concurso real entre o sequestro e o homicídio

Sustenta o recorrente que não se verifica concurso real entre os crimes de sequestro e de homicídio (conclusão CC), devendo a conduta e a punição ser enquadradas apenas na previsão legal do homicídio privilegiado, previsto e punido nos termos dos art.ºs 133°, 22° e 23°, do C. Penal (conclusão DD).

Mas não lhe assiste razão.
Com efeito, são diferentes os bens jurídicos tutelados pelos art.ºs 158.º e 131.º do C. Penal. E neste diploma não existe qualquer disposição que ressalve o concurso do sequestro com o homicídio (enquanto meio de realização deste) do regime geral estatuído no art. 30.º, n.º 1: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
Logo, sendo distintos os bens jurídicos tutelados pelos tipos legais de crime de sequestro (liberdade ambulatória das pessoas, a capacidade de cada homem se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, como se viu acima) e de homicídio (a vida humana) e não se verificando, entre eles, qualquer relação de especialidade, subsidiariedade ou consumpção nem se configurando nenhum dos crimes em relação ao outro como facto posterior não punível deve entender-se, como fizeram as instâncias, que a conduta do agente que sequestra uma pessoa e depois a vem a (tentar) matar comete, efectivamente, em concurso real, um crime de sequestro e um crime (tentado) de homicídio.
A distinção a fazer, e que tem sido feita por este Supremo Tribunal de Justiça, reside em determinar se o sequestro se limita ao essencial, ao estritamente necessário para cometer o "crime fim", caso em que se entende que ocorre a consumpção.

Com efeito, se a privação de liberdade de movimentos da vítima não foi além do necessário à consumação do "crime-fim", está-se perante um concurso aparente de infracções, devidamente valorada em sede de incriminação do homicídio e respectiva punição (cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 29-11-01, proc. n.º 3434/01-5 )
Fora desta situação, funciona a regra geral acima enunciada, como tem sido entendido também em relação a outros tipos legais de crime que aparecem associados ao sequestro.

- Para as ofensas corporais - Existe concurso real entre os crimes de sequestro e de ofensas corporais graves, já que o primeiro protege a liberdade ambulatória das pessoas, a capacidade de cada homem se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, por qualquer forma e medida temporal desse direito e o segundo a integridade física das pessoas, relativamente a condutas susceptíveis de ocasionarem lesões, incapacidades ou doença. (Acs. STJ de 31-1-96, proc. n.º 47609 e de 7-7-94, proc. n.º 43852)

- Para os crimes sexuais - os crimes de violação e de sequestro incidem sobre valores eminentemente pessoais e distintos. Por isso, o crime de sequestro não pode ser consumido pela punição do crime de violação. A violência exercida para o sequestro excede o âmbito de espaço, tempo e finalidade da violência da violação. Por isso, não se pode dizer que não se verifica o crime de sequestro, por os factos cometidos apenas terem sido realizados para a consumação do crime de violação (Acs. do STJ de 13-3-97, proc. n.º 1225/96, de 14-11-96, proc. n.º 278/96, de 2-10-97, proc. n.º 607/97 e de 24-7-98, proc. n.º 362/98)
- Para o roubo - não é na mera coexistência de segmentos comuns aos ilícitos em presença que se deve radicar a adopção do concurso real ou do aparente, mas antes, na importância relativa que neles assuma a tutela que visam assegurar, que é o que constitui e integra a base justificativa determinante e decisiva da censura ético-jurídica a emitir. Assim, os crimes de roubo e de sequestro não podem, nem devem, ser encarados sob o prisma do concurso aparente ou à luz das regras da consunção, uma vez que os bens jurídicos protegidos num e noutro, são estruturalmente e profundamente diferentes. (Acs STJ de 06-11-1996, proc. n.º 84/96 , d 26-06-1997, proc. n.º 511/97, de 28-05-1997, proc. n.º 47/97, de 28-11-1996, proc. n.º 806/96, de 1-4-98, proc. n.º 1553/97, de 11-02-1999, proc. n.º 1424/98, de 25-10-20, proc. n.º10 2376/01-5 e de 10-12-2003, proc. n.º 3373/03-3)
O roubo é um crime complexo, em que se protege simultaneamente a liberdade individual, o direito de propriedade e a detenção de coisas que podem ser subtraídas. O sequestro é um crime de execução continuada, permanente, que se inicia com a privação da liberdade ambulatória e só cessa no momento em que a pessoa ofendida é restituída definitivamente à liberdade. O sequestro é consumido pelo roubo na medida em que neste se prevêem a violência e o acto de, por qualquer forma, se pôr a pessoa na impossibilidade de resistir, mas só quando o sequestro se tiver esgotado como crime-meio em relação ao roubo (crime-fim) (Acs. STJ de 08-10-1997, proc. n.º 560/97, de 14-5-97, Acs STJ V, 2, 205, de 4-3-98, proc. n.º 1411/97, de 2-7-98, proc. n.º 505/98, de 3-5-00, proc. n.º 155/2000, de 22-11-00, proc. n.º 2942/2000, de 14-12-00, proc. n.º 3224/00-5, de 2-10-03, proc. n.º 2642/03-5 e de 29-4-04, proc. n.º 1679/02-5)
- Para o furto - Acs. STJ de 14-3-02,Acs STJ, X, 1, 222, de 24-4-97, proc. n.º 1326/96 e de 17-12-1997, proc. n.º 967/97.
Ora, no caso presente, decidiu a Relação que:
«Mas será que se verifica um concurso real de tal tipo legal de crime com o de homicídio?

Sobre tal, afastada que se mostra a circunstância determinante do primeiro alegada, não se verifica a figura da consunção (Ac. STJ, de 7/l0/98, BMJ 382, 276).

Comete os crimes de sequestro e de tentativa de violação o agente que fecha a ofendida num compartimento e, usando da força, tenta com ela manter relações sexuais (AcSTJ, de 13/2/91, CJ, XVI, T.I, pag.21);

As ofensas à integridade física cometidas sobre pessoa sequestrada assumem autonomia e devem ser punidas em concurso real com o crime de sequestro (7/7/94);

O crime de violação não consome o de sequestro, apesar de este fazer parte do processo encetado pelo agente com vista à produção do resultado típico final da violação (21/6/95).

Tanto se mostra suficiente para que se possa dizer que se verifica um concurso real de infracções.»

E não merece censura essa decisão, se se atentar que o sequestro não se ficou pela limitação da possibilidade de movimentação da vítima ao estritamente necessário para cometer o homicídio (como seria se a segurasse contra a sua vontade para a poder esfaquear várias vezes), antes se prolongou por um largo período (15 minutos) que antecedeu a tentativa de homicídio, enquanto o arguido continuou a insistir para que a ofendida o informasse acerca da identidade do seu novo namorado.
Só depois é lhe disse:" Se não és minha não és de mais ninguém" e retirou a arma do bolso das calças e a 1,5 m, apontou em direcção à cabeça da ofendida enquanto repetia que ela seria apenas dele, pedindo-lhe para retomarem o namoro.
Só depois da ofendida lhe procurar retirar a arma das mãos e após alguma luta pela sua posse é que o arguido a 1 metro de distância disparou um tiro na direcção da cabeça da mesma.

Não se pode, pois, dizer-se que desde o início o arguido sequestrou a ofendida para vir a tentar matá-la. E que o sequestrou se ficou pelo estritamente necessário para cometer o falado homicídio.

O que afasta o pretendido concurso aparente de infracções.

3.11.

Da subsunção da conduta ao crime de homicídio privilegiado;

Defende o recorrente que a sua conduta deve ser punida na previsão legal do homicídio privilegiado - art.ºs 133°, 22° e 23°, do Código Penal (conclusão DD), pois que actuou em estado de desespero e sob a influência de um estado de cólera ou de irritação causado por depressão que o afectou de forma profunda sob o ponto de vista psicológico e emocional, influenciando de forma decisiva a acção do arguido (conclusão EE). Quem se encontra numa situação de desespero não é inteiramente livre e responsável, havendo um natural obscurecimento da inteligência e um enfraquecimento da vontade (conclusão FF).

Decidiu, a este propósito, a Relação que:

«Nas conclusões N a R pretende que a sua conduta deverá ser integrada dentro da figura do homicídio privilegiado, baseando-se, para tanto, em que se encontrava sob a influência de um estado de cólera ou de irritação causado por depressão que o afectou de forma profunda sob o ponto de vista psicológico e emocional.

Sobre tal já se pronunciou o acórdão recorrido em termos que merecem total concordância. Aí se mencionou que o preenchimento deste tipo, supõe, além da morte de outrém,

- a actuação do agente explicada por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral;

- a existência de um nexo causal entre esse estado de alma e a morte; e

- que tal estado de alma tenha a virtualidade de diminuir sensivelmente a culpa do agente.

Ou seja, a par da causa privilegiadora de per si (e o seu nexo causal com o resultado morte), torna-se necessário que aquela acarrete uma diminuição sensível da culpa do agente.

Tratam-se de elementos de privilegiamento que não operam automaticamente, justificando-se a menor pena numa ideia chave de menor culpa, de uma exigibilidade diminuída de um comportamento diferente, não tendo a ver com o grau de ilicitude da conduta do agente.

Por emoção entende-se, citando-se Figueiredo Dias (em "Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte 1, pág. 50/l): um forte estado de afecto emocional, provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente fiel ao direito não deixaria de ser sensível (..), ou seja, um estado psicológico afectivo anormal, que produz momentaneamente uma violenta perturbação mental do agente e que, consequentemente, afecte a sua vontade e inteligência; emoção essa que terá de ser compreensível, ou seja justificável, natural, entendível; e forte, no sentido de séria perturbação da afectividade, capaz de destruir a capacidade de reflexão e os freios inibitórios.

Na compaixão o estado de afecto está ligado à ideia de solidariedade, de repulsa ao sofrimento alheio e vontade de o combater (caso da eutanásia).

Já o desespero reflecte antes um estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, de quem esta sob influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angustia ou ânsia (Leal Henriques e Simas Santos em C. Penal Anotado, 1, pag. 132). Figueiredo Dias (obra cit.) defende estar este estado de alma ligado a angústia, a depressão, a revolta.

Finalmente, o motivo de relevante valor social. ou moral liga-se essencialmente a factos que, à luz da ordem axiologicamente subjacente a ordem jurídica, desencadeiam um efeito de menor exigibilidade.

Regressando ao caso em apreço, está fora de questão a possibilidade de arguido ter agido motivado por uma por compreensível emoção violenta, compaixão ou motivo de relevante valor social ou moral, pois que recorta-se da factualidade provada que o arguido mostrava-se perturbado pelo facto de a ofendida não pretender retomar o namoro com ele (ruptura que o arguido nunca aceitou), por um ciúme (dir-se-ia que obsessivo), pois acusava a ofendida de. ‘ter outro namorado, dizendo "que se não era dele não era de mais ninguém". Esta terá sido a motivação do arguido na prática dos factos. Tal motivação não é compaginável com os conceitos de emoção violenta, e muito menos compreensível, compaixão ou motivo de relevante valor social ou moral.

Resta-nos, pois, o estado de desespero (pelo qual, aliás, o arguido se bateu em sede de alegações). É bem verdade poder afirmar-se que o arguido encontrava-se perante um facto consumado da ruptura do seu namoro com a ASMD (coisa que não aceitava) e perante a falta de vontade por esta manifestada de retomar tal relacionamento. Estava ainda convencido de que a ASMD teria outro namorado. A agravar a situação, o arguido ficou com uma depressão nervosa devido a tal ruptura o que o afectou de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer emocional.

Porém, tal quadro factual não permite concluir ter o arguido agido em estado de desespero nos termos supostos pela lei, e muito menos que no caso, concreto tal quadro motive qualquer exigibilidade diminuída de um comportamento diferente.

A situação do arguido inscreve-se antes numa debilidade psíquica motivada pelo seu ciúme (a toda a luz injustificado, até porque o namoro havia findado já há largos meses) e raiva por a ofendida não pretender "retomar" com ele, agravada por uma depressão.

É que o arguido demonstrou até agir com alguma tranquilidade (embora não com frieza de ânimo) - foi ao carro buscar a arma, fechou a porta do quarto, com o que preveniu uma eventual fuga da ofendida, apontou a arma face à ofendida no sítio pretendido, depois de ter, por assim dizer, colocado a vítima na posição que mais o favorecia, disparou, vendo que a ofendida já sangrava, voltou a colocar a arma apontada ao mesmo sítio, voltou a disparar, só então do por finda a sua tarefa, face à não produção do resultado querido por motivos absolutamente alheios à sua vontade.

Este seu comportamento, na forma descrita, não traduz uma actuação "atabalhoada", de todo irreflectida, como é normalmente na actuação em desespero.

Nem se prova que a depressão do arguido fosse de molde a consentir conclusão de uma exigibilidade diminuída de um comportamento diferente.

Antes, era exigível ao arguido - ainda para mais pessoa ao tempo com certa formação escolar - perante o que já se havia passado dentro do quarto da ofendida, que quando saiu para ir buscar a arma parasse nesse momento para inverter os seus impulsos, indo embora do local, pois que teve tempo de sobra para reflectir sabre os seus actos nos minutos (ainda largos) de que dispôs entre a altura em que opta por ir buscar a arma para matar a ofendida e o momento em que dispara.

De onde, a depressão nervosa, por si só (embora tenha perturbado psicologicamente o arguido), e mesmo quando conjugada com a revolta e ciúme obsessivo do arguido pelo facto de a ofendida não pretender retomar o namoro, não consentir a conclusão de que, no caso era concreto, era menos exigível ao arguido uma conduta distinta, ou de que o arguido agiu a coberto de uma diminuição sensível da culpa, tanto mais quando o arguido teve pelo menos uma hipótese de resfriar os seu ímpetos, quando veio à rua buscar a arma, momento em que poderia, e deveria, ter optado por sair do local, como lhe foi, aliás, pedido pela ofendida.

Todos os argumentos que o recorrente invoca estão especificados, diga-se que muito bem, na decisão recorrida.

Se o recorrente deles discorda, deveria fundamentar a sua não razão de ser, o que não faz.»

Merece este entendimento total concordância, bastando-se nos seus próprios fundamentos.

Está provado que, devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão nervosa e que após os factos o arguido foi sujeito a tratamento psiquiátrico, foi medicado e está controlado.

Mas não está provado, embora tivesse sido investigado, que tenha tido apenas uma conduta negligente, causada pelo estado de doença e de perturbação e que a depressão nervosa porque o arguido passou limitou-lhe a liberdade de agir e a capacidade psicológica, entendida esta no sentido de que não podia avaliar a ilicitude ou as consequências dos seus actos.

Este quadro de facto não permite, assim, estabelecer o desespero de que se socorre o recorrente, sendo certo que ele se não revê na sua actuação determinada e eficaz.

Como já se escreveu no Ac. de 15.11.2001 (proc. n.º 950/01-5, com o mesmo Relator) não procede a tentativa de estabelecer como causa da actuação do agente, uma compreensível emoção violenta resultante de um caso de amor não correspondido.

É que ao que resulta da factualidade apurada, o arguido não aceitou o rompimento do namoro e procurou por todos os meios o seu reatamento, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.
Não agiu, pois, por amor não correspondido.

Amor tem a ver com diálogo, com respeito e reciprocidade, boa vontade e capacidade de esperar, de crer e de querer, num caminhar mais construtivo dos destinos daqueles que envolve.

«A grande lei das relações de Amor entre seres racionais, afectivos e corporais, será sempre a do diálogo, da alteridade, do respeito e da reciprocidade. Mediante ela, serão esbatidos ou mesmo suprimidos conflitos que, por vezes, pareciam inextricáveis e insolúveis. (...). Mediante ela, poderão cair mitos e mal-entendidos, muros de solidão e montanhas de incompreensão. Mediante ela, poderá adquirir-se uma nova forma, alargada e mais profunda, da experiência da consciência da existência (...) » (Crf. Manuel Antunes, Amor, in Polis, I, 291.).
Já no século XVI o nosso maior lírico retratava nos seus sonetos a natureza do amor, escrevendo que Amor «(...) é querer estar preso por vontade; é servir a quem nos vence, o vencedor; é ter com quem nos mata lealdade (...)»

Ora, o amor não tem a ver com sentimento de posse deslocado, com a obsessão, demonstrada pelo arguido.

3.12.

Atenuação especial da pena;

Quem se encontra numa situação de desespero não é inteiramente livre e responsável, já que age sob o domínio do circunstancialismo angustiante em que está envolvido, havendo um natural obscurecimento da inteligência e um enfraquecimento da vontade (conclusão FF). Deve ter-se por consideravelmente diminuída a culpa do agente, por a sua acção ter sido manifestamente influenciada, e de forma determinante, pelo seu estado de doença (conclusão GG). O arguido praticou actos demonstrativos do seu arrependimento sincero, pelo que lhe deve ser aplicada pena especialmente atenuada - art. 72° do C. Penal (conclusão HH).

Decidiu a Relação, quanto a esta questão:

«Mais entende o recorrente dever beneficiar de uma atenuação especial da pena, nos termos do art° 72° do Cód. Penal.

Diz-se no n° 1 do citado normativo que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

Enunciando-se no n° 2 várias circunstâncias, a titulo exemplificativo, que indiciam uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.

O que cumpre decidir, é que sendo pressuposto da atenuação especial da pena a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente e ainda da necessidade da pena, e, logo das exigências de prevenção, quando é que se pode considerar acentuada a diminuição da culpa e/ou das exigências de prevenção.

Na lição do Prof. Figueiredo Dias, in "As Consequências Jurídicas do Crime", págs. 306 e 307, a diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s) se apresente com uma gravidade tão diminuta que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura contida no tipo de facto respectivo.

E continua o Ilustre Professor, por isso, tem plena razão a nossa Jurisprudência - e a doutrina que a segue - quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade casos, para os casos "normais", lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.

Seguindo-se tal entendimento, escreveu-se no Ac. STJ de 29-4-98, na C.J., ano VI (S.T.J.), Tomo II, pag.s 198, a atenuação especial da pena deverá ter lugar quando, na imagem global do facto e de todas as circunstancias envolventes, a culpa do arguido e a necessidade da pena se apresentam especialmente diminuídos. Ou, por outras palavras, quando o caso não é o "caso normal" suposto pelo legislador, quando estatuiu os limites da moldura correspondente ao tipo de facto descrito na lei e antes reclama, manifestamente, uma pena inferior.

Desde logo, atente-se em todo o circunstancialismo envolvente à actuação do recorrente.

Bastante para se falar em grau de ilicitude elevado.

Sem olvidar que é bem elevado o dolo do arguido, a título de dolo directo.

Sendo bem vincadas as exigências de prevenção a exigirem severidade na punição. Trata-se de tipos legais de crimes que atentam contra valores fundamentais da pessoa humana, como a liberdade e o supremo - a vida.

Razões bastantes para que se afaste qualquer ideia que possa conduzir a uma atenuação especial da pena.»

Dispõe o art. 72.º do C. Penal que o Tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (n.º 1), como a da alínea c) do n.º 2, invocada pelo recorrente: ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente.

Assim se criou uma válvula de segurança para situações particulares, que foi já apresentada da seguinte forma:

"Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo "normal" de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, aí teremos mais um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena" [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 302. Cfr. no mesmo sentido, a sua intervenção na Comissão Revisora (Acta n.° 8, 78-9): ora, o que na verdade aqui ocorre é uma visão integral do facto que leva o julgador a concluir por uma especial atenuação da culpa e das exigências da prevenção].

Seguiu-se neste art. 72.º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação (cfr., neste sentido Leal-Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I, em anotação ao art. 72.º).

Assim, sem entravar a necessária liberdade do juiz, oferecem-se princípios reguladores mais sólidos e mais facilmente apreensíveis para que se verifique, em concreto, quando se deve dar relevo especial à atenuação.

As situações a que se referem as diversas alíneas do n.° 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionados com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.

E as circunstâncias invocadas pelo recorrente não produzem esse efeito.

Desde logo, não está provado que se encontrasse numa situação de desespero, não sendo inteiramente livre e responsável, tendo a sua acção sido manifestamente influenciada, e de forma determinante, pelo seu estado de doença.

É que, embora esteja provado que, devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão nervosa, está igualmente provado que o agiu deliberada e conscientemente bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei. Agiu com a intenção de tirar a vida à ASMD e persistiu nessa intenção mesmo perante o insucesso da primeira tentativa, tendo disparado duas vezes, a segunda já com a ofendida ferida, só não tendo conseguido atingir os seus objectivos por motivos alheios à sua vontade.

E não está provado que a conduta tenha sido «negligente, causada pelo estado de doença e de perturbação» e que a depressão nervosa porque o arguido passou lhe tenha limitado «a liberdade de agir e a capacidade psicológica, entendida esta no sentido de que não podia avaliar a ilicitude ou as consequências dos seus actos.»

Como não está provado que praticou actos demonstrativos do seu arrependimento sincero. Está tão só provado, nesse domínio, que o arguido está integrado socialmente, tem o apoio dos pais, não tem antecedentes criminais, tem um curso superior, trabalha auferindo um salário de 492,50 €, sendo um funcionário exemplar, sendo pessoa sensível e normalmente pacífica que indemnizou a ofendida de todos os danos e que se apresentou voluntariamente no posto policial algum tempo após os factos.

Aliás, mesmo neste recurso continua o recorrente a não aceitar ter praticado os factos pelos quais foi condenado pelas instâncias, refugiando-se num quadro de perturbação e actuação negligente.

E sendo assim, a reparação não surge no quadro de um arrependimento sincero que pressupõe a interiorização e repúdio do desvalor da conduta, ficando pela aceitação do desvalor do resultado respectivo.

Improcede, assim, o pedido de atenuação especial da pena.

3.13.

Espécie da pena quanto aos crimes de sequestro e detenção de arma

Sustenta o recorrente quanto aos crimes de sequestro e detenção de arma que lhe deveria ter sido aplicada pena de multa em lugar de pena de prisão - art. 70° do C. Penal (conclusão JJ), dada a ausência de antecedentes criminais e as suas condições pessoais e o facto de os crimes serem actos isolados na sua vida, com o juízo de prognose de rápida ressocialização, pois já debelou a sua depressão, pelo que se poderá concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade (conclusão KK). Ao não fundamentar a decisão da 1.ª instância a opção pela pena de prisão é nulo, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, nos termos das alíneas a) e c), do n.° ‘1, do art. 379° do CPP (conclusão MM).

Não se pode deixar de notar a contradição constante da conclusão que imediatamente antecede. É que se se verificou falta de fundamentação da opção pela pena de prisão, então não se verificou a falta de opção, o que afasta desde logo a omissão de pronúncia (sobre a opção).

Depois, não está aqui em causa a decisão da 1.ª Instância e o certo é que a Relação, na decisão aqui recorrida, fundamentou a opção pela pena de prisão, opção que confirmou. E considerou mesmo que a fundamentação estava contida naquela decisão se bem que não retomada num momento autónomo a propósito da opção, lembrando que a arma foi utilizada para cometer um crime e o sequestro antecedeu o homicídio tentado, demarcando o seu espaço.

Mas merecerá censura esta opção?

Prevê-se no art. 70.º do C. Penal aí que, sendo aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Essas finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1 do art. 40.º do C. Penal).

Ora, como entendeu a Relação, e resulta da matéria de facto provada, são acentuadas as exigências de prevenção geral positiva pela gravidade da conduta em causa, a insistência do arguido.
Come efeito, escreveu-se naquele aresto:
«Isto porque se entende que não haverá que optar pela pena de multa em relação aos dois tipos em que tal faculdade seria possível, dado que, nos termos do art.70° do Cod. Penal, o tribunal só deverá considerar a pena não privativa da liberdade desde que realize de forma adequada e suficiente necessidades da prevenção.

Estas já foram assinaladas supra.

As consequências da conduta do recorrente só não foram mais funestas por circunstâncias totalmente alheias à sua vontade. Os actos praticados são de uma violência e desrespeito pelos valores da pessoa humana extremos, sendo a respectiva motivação fútil.

As necessidades de prevenção são comummente conhecidas, quando nos confrontamos com a violência que grassa inerente à prática de ilícitos criminais, como nos é dado observar pelo que nos transmite a comunicação social.

Acresce que o recorrente demonstrou com a sua actuação um desvalor que não é comum a pessoas com a sua condição, a nível de habilitações literárias, bem como de idade e da sua integração social.

Não podemos também deixar de considerar que recorrente adquiriu uma arma para levar a cabo a prática dos factos, a qual era ilegal, o que bem sabia.

Dai que se não anteveja como se poderia optar pela pena de multa, com o que não se satisfaria, também, a repercussão social que tem qualquer punição.

E todos esses vectores encontram-se insertos na sentença recorrida, que os foca expressamente, embora não faça menção da sua pertinência quanto à opção pela pena detentiva.

Mas temos de ter em consideração que tal traduz o que a lei impõe quanto à fundamentação dos actos decisórios, não se revelando necessário, tornando o juiz num escriba, estar a repetir os mesmos argumentos já aduzidos.

Aliás, a redacção do normativo em questão induz a que a fundamentação expressa só é relativa à opção pela pena de multa, o que não foi o caso.»
Ele agiu com dolo directo e intenso, não para se defender, mas para matar outrem, disparando (2 tiros) com a arma em causa e tendo tido, mesmo, que desencravar a arma entre os dois tiros. E disparou contra a ofendida, quando a mesma se encontrava limitada, pela sua acção, na sua liberdade ambulatória.
Não merece, assim, censura, a opção pela pena de multa e importa notar que o recorrente não questiona a medida concreta das penas de prisão aplicadas a estes crimes.
3.14
Medida concreta da pena.

Defende o recorrente que, ainda que se entenda verificado o concurso real entre os crimes de sequestro e de homicídio não privilegiado na forma tentada sem atenuação especial, sempre o disposto no art. 71.º Código Penal impunha a aplicação de pena menos severa, não superior a 2 anos de prisão, e não privativa de liberdade (conclusão II).

Ponderou o Tribunal da Relação:

«No que respeita à medida da pena deve o julgador ter em conta o disposto no art° 7l do Cód. Penal.

Ai se diz, no seu n° 1, que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Visando-se com a aplicação da pena a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente - art.40°, n° 1 do Cod. Penal.

Sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa - art.40°,n°2 do Cod. Penal.

Decorre de tais normativos que a culpa e a prevenção são os parâmetros que importa ter em linha de conta na determinação da medida da pena.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias, que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, art.°71°, n°2 do Cod. Penal.

Enunciando-se no seu n° 2 - de modo exemplificativo - as circunstâncias que podem assumir tal função.

Fazendo valer aqui e agora esses considerandos, a respeito, não descortinamos como possa a moldura penal concreta ser fixada em moldes diferentes do efectuado na decisão recorrida.

Assim, atentas as molduras penais abstractas com quê as suas condutas são puníveis, 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão, no respeitante ao crime de homicídio, prisão de 1 mês a 3 anos - crime de sequestro - e prisão até 2 anos - crime de detenção de arma ilegal - sendo que a estes dois últimos tipos é possível a punição com pena de multa, não se vê como as penas impostas - 3 anos, 14 meses e 8 meses de prisão, respectivamente poderiam ser fixadas em limites inferiores.»

Vejamos, pois, se assiste razão ao recorrente, começando por analisar os poderes de cognição deste Tribunal em matéria de medida concreta da pena.
Mostra-se hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar»: um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, de resto coeficientes de difícil ou impossível racionalização.
De acordo com o disposto nos art.ºs 70.º a 82.º do Código Penal a escolha e a medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito. Não só o Código de Processo Penal regulou aquele procedimento, de algum modo autonomizando-o das determinação da culpabilidade (cfr. art.ºs 369.º a 371.º), como o n.º 3 do art. 71.º do Código Penal (e antes dele o n.º 3 do art. 72.º na versão originária) dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena.
Mas importa considerar os limites de controlabilidade da determinação da pena em recurso de revista, como é o caso, sendo certo que a questão já passou irrestritamente o arquivo da 2.ª Instância.

Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.
Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista (Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3.), deve entender-se que a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Neste sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63n.º m. 200, Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos e Correia Ribeiro, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág. 39).
Ao crime de homicídio simples tentado corresponde a moldura penal abstracta de 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.
Determinada a moldura penal abstracta, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
- A intensidade do dolo ou negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Agiu o arguido com dolo directo e intenso, pois agiu com a intenção de tirar a vida a ASMD e persistiu nessa intenção mesmo perante o insucesso da primeira tentativa, tendo disparado duas vezes, a segunda já com a ofendida ferida, só não tendo conseguido atingir os seus objectivos por motivos alheios à sua vontade.
Mas deve atender-se a que devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão nervosa.
É elevada a ilicitude da sua conduta, tendo ferido a ofendida na cabeça com uma arma de fogo, sendo relevante a circunstância de a ter indemnizado pelos danos sofridos.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente contesta, se situa claramente dentro da sub-moldura a que se fez referência e que dentro dela foram sopesados todos aqueles elementos de facto que se salientaram.
E a pena encontrada de 3 anos de prisão mostra-se ajustada e conforme às penas que vem este Supremo Tribunal de Justiça aplicando em casos idênticos ou próximos:

- 3 anos, suspensa por 5 anos em caso de homicídio simples, em que se perfilavam muitas circunstâncias atenuantes (Ac. de 6.11.85, BMJ 351-189);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 23.4.87, BMJ 366-305);
- 4 anos (BMJ 397-315);
- 3 anos suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples, tendo o jovem delinquente uma incapacidade parcial e tendo decorrido 8 anos decorridos (Ac. de 30.6.93, proc. n.º 44493);
- 3 anos, suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples ocorrido no meio familiar e relacionado com uma situação de toxicodependência (Ac. de 1.3.00, proc. n.º 1165/99-3, BMJ 495);
- 3 anos e 6 meses, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 17.10.91, BMJ 410-360);
- 4 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 28.11.01, proc. n.º 3127/01-3);
- 4 anos e 6 meses, (Ac. de 6.2.02, proc. n.º 4456/01-3);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 13-2-02, proc. n.º 4261/01-3)
- 5 anos, em caso de homicídio qualificado, uxoricídio (Ac. de 15.10.03, proc. n.º 2409/03-3)
- 9 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 12.11.03, proc. n.º 3257/03-3, crime sem motivo, salvo a nacionalidade da vítima)
- 4 anos e 4 anos e 6 meses - homicídio qualificado tentado (Ac. de 14.10.2004, proc. n.º 3220/04);

- 3 anos (Ac. de 14.10.2004, proc. n.º 3232/04-5)

- 5 anos e 6 meses (Ac. de 4.11.04, proc. n.º 4502/04-5, sendo extremamente graves as consequências físicas para o ofendido);

- 3 anos (Ac. de 17.2.05, proc. n.º 4324/04-5, do mesmo Relator).

Não merece, assim, censura a dosimetria penal exercida pelas instâncias.

4.

Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso.

Custa pelo recorrente com a taxa de justiça de 8 Ucs.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2005

Simas Santos (Relator)

Santos Carvalho

Costa Mortágua

Quinta Gomes