Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SOUSA GRANDÃO | ||
| Descritores: | NULIDADE DE ACÓRDÃO ERRO DE JULGAMENTO DOCUMENTO PARTICULAR PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DOS JUÍZES CONTRATO DE TRABALHO | ||
| Nº do Documento: | SJ20070502046104 | ||
| Data do Acordão: | 05/02/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I - É susceptível de integrar erro de julgamento - e não nulidade de acórdão - o facto de na apelação o recorrente ter produzido censura à decisão factual da 1.ª instância, enumerando os pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados e oferecendo a prova pretensamente abonatória dessa censura, designadamente documental, vindo a Relação a apreciar a questão da pretendida alteração da matéria de facto, rejeitando a tese do recorrente. II - Numa acção em que está em causa a qualificação jurídica do contrato que vigorou entre as partes – de trabalho ou de prestação de serviços -, encontram-se sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova pelas instâncias, dois documentos particulares. (i) o primeiro consistente numa factura de fornecimento de peças–auto emitida por um terceiro em nome do autor, (ii) o segundo representando um cartão em que o autor publicita a sua actividade profissional de mecânico e bate-chapas. III - O princípio da plenitude da assistência dos juízes, sendo um corolário dos princípios da oralidade e da livre apreciação das provas, está circunscrito aos actos produzidos na audiência final – produção de prova e decisão da matéria de facto – não se estendendo já à fase da elaboração da sentença. IV - Assim, o referido princípio não impõe que a decisão de mérito seja lavrada pelo mesmo juiz que presidiu à audiência. V - É de qualificar como de trabalho, o contrato pelo qual o autor prestava ao réu, em instalações deste, trabalho de reparação mecânica de motas e viaturas automóveis, de 2.ª a 6.ª feira, entre as 9.00h e as 20.00h, utilizando, para o efeito, ferramentas e utensílios propriedade do réu, recebendo como contrapartida € 500,00 mensais líquidos, sendo que competia ao réu estabelecer a ordem de trabalhos a efectuar, os montantes a cobrar aos clientes pelo trabalho feito pelo autor e não podendo este ausentar-se sem justificação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: 1- RELATÓRIO 1.1. AA Andorinha intentou, no Tribunal de Trabalho de Setúbal, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra BB, pedindo – com fundamento na natureza laboral sem termo da relação jurídica firmada entre as partes e no despedimento ilícito de que se diz ter sido alvo por parte do Réu – que este seja condenado a reconhecer a referida natureza do contrato, a pagar ao Autor os componentes retributivos e indemnizatórios discriminados na p.i. e, por fim, a regularizar os descontos que devia ter efectuado para a Segurança Social. O Réu sustenta, em contrapartida, que o vínculo aprazado configura um contrato de prestação de serviços, que só impediu o Autor de entrar nas suas instalações porque ele o ofendeu e que, afinal, foi o próprio Autor quem acabou por “rescindir”, por escrito, o pretenso contrato de trabalho que invoca. 1.2. Instruída e discutida a causa, a 1ª instância afirmou a natureza laboral do contrato ajuizado e a sua cessação, embora sem a decisão de despedimento reclamada pelo Autor, em consequência do que – e na procedência parcial da acção – condenou o Réu a pagar ao demandante: - a quantia de € 11.979,16, a título de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal; - a quantia de €14.970,24, a título de trabalho suplementar prestada em dias úteis e sábados; - os correspondentes juros de mora. Sob apelação do Réu, o Tribunal da Relação de Évora absolveu-o do pedido de pagamento de trabalho suplementar prestado em dias de sábado, relegou, para “execução de sentença” o apuramento das quantias devidas por trabalho suplementar prestado pelo Autor em dias úteis e confirmou, no mais, a sentença da 1ª instância. 1.3. Continuando irresignado, o Réu pede agora a presente revista, cujas alegações remata com o seguinte núcleo conclusivo: 1- o recorrente não se conforma com a integração dos factos no conceito de contrato de trabalho, considerando antes, conforme resultou da audiência de julgamento, que a relação das partes deve ser integrada no conceito do contrato de prestação de serviços, o que conduz necessariamente à absolvição integral do pedido; 2- o tribunal de 1ª instância e a Relação – esta apesar de instada para o efeito – não se pronunciaram sobre os documentos n.ºs 3 e 4 juntos com a contestação e não impugnados pelo Autor, não os valorizando para efeitos de prova aos respectivos quesitos, prova essa que demonstra ser o mesmo Autor um trabalhador por conta própria, que anunciava o seu próprio trabalhado: esta situação consubstancia uma nulidade, uma vez que não existiu decisão sobre uma questão que devia ser apreciada; 3- a sentença da 1ª instância também é nula, uma vez que o julgamento foi levado a cabo pelo M.mo Juiz Dr. ... e não pela M.ma Juíza que a subscreveu, encontrando-se violado, por isso, o princípio da plenitude da assistência dos juízes – art. 654º n.º 1 do Cod. Proc. Civil. 1.4. O Autor não apresentou contra-alegações. 1.5. A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, cujo douto Parecer não foi objecto de resposta, entende que deve ser negada a revista. 1.6. Corridos os vistos legais, cumpre decidir. 2- FACTOS 2.1. A 1ª instância deu como provada a seguinte factualidade: 1- o Réu nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de férias, subsídio de férias, subsídio de Natal, trabalho suplementar ou férias não gozadas; 2- o Réu não inscreveu o Autor como seu trabalhador perante a Segurança Social, não tendo feito, com esse fito, quaisquer descontos sobre as quantias que lhe entregou para pagamento dos seus serviços; 3- desde 20/12/93 que o Autor prestou ao Réu trabalho de reparação mecânica de motas e viaturas automóveis; 4- o que fazia nas instalações do Réu; 5- utilizando, para o efeito, as ferramentas e utensílios necessários para o desempenho da actividade de mecânica, que eram propriedade do Réu; 6- o Réu é que procedia ao pagamento das diversas despesas da oficina, nomeadamente renda, água, luz e telefone; 7- era o Réu que fornecia os materiais necessários para a reparação das viaturas; 8- era o Réu que estabelecia a ordem dos trabalhos a efectuar; 9- não podendo o Autor ausentar-se da oficina sem se justificar; 10- o Autor trabalhava de 2ª feira a sábado, entre as 9h e as 20h; 11- como contrapartida do auxílio que o Autor lhe prestava, o Réu pagava-lhe € 500,00 mensais líquidos, quantia que, por vezes, era paga em duas vezes; 12- era o Réu que estabelecia aos clientes os montantes a cobrar pelo trabalho feito pelo Autor e que efectivamente os cobrava. 2.2. A 2ª instância alterou o ponto n.º 10 supra referida, ficando do mesmo a constar a seguinte factualidade: “O Autor trabalhava, em regra de 2ª a 6ª feira, das 9h até cerca das 20h; aos sábados, o Autor aparecia também pela oficina, onde conversava com os amigos, principalmente da parte da tarde”. São estes os factos. 3- DIREITO 3.1. Face ao núcleo conclusivo das alegações produzidas pelo recorrente, verifica-se que o objecto da presente revista pressupõe a análise das seguintes questões: 1ª- nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia; 2ª- nulidade da sentença da 1ª instância por violação do princípio da plenitude da assistência dos juízes; 3ª- qualificação do vínculo estabelecido entre as partes: contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviços. 3.2. Considera o recorrente que o Tribunal da Relação omitiu pronúncia sobre a valoração probatória dos docs. n.ºs 3 e 4 juntos com a contestação, incorrendo, por isso, na nulidade decisória prevista no art.º 668º n.º 1 al. D) do Cod. Proc. Civil. A entender-se que o vício está correctamente qualificado, este Supremo Tribunal não poderia apreciá-lo, uma vez que a sua arguição não foi produzida no requerimento de interposição do recurso, como impõe o art.º 77º n.º 1 do Cod. Proc. Trabalho (aplicável aos Acórdãos da Relação por via do disposto no art.º 716º n.º 1 do Cod. Proc. Civil), vindo a integrar apenas o texto alegatório. Não cremos, porém, que a situação dos autos configure a reclamada nulidade, sendo antes susceptível de integrar um eventual erro de julgamento. Vejamos. O recorrente produziu, no recurso de apelação, uma censura à decisão factual da 1ª instância, enumerando os pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados e oferecendo a prova pretensamente abonatória dessa censura, onde incluiu os falados documentos. Por isso, a “questão” – tal como foi suscitada pelo então apelante – tinha por objecto a alteração da decisão factual. É de todo evidente que a Relação apreciou tal “questão”, vindo a rejeitar a tese do recorrente. Sucede que, ao fazê-lo, o Acórdão recorrido considerou apenas a prova testemunhal, desprezando a prova documental, sobre a qual nem sequer se pronunciou. Para essa omissão – convém dizê-lo – não terá sido alheia a divergência entre os pontos de facto enumerados nas alegações e os pontos de facto levados ao núcleo conclusivo: é que destes últimos – aos quais a Relação se cingiu – não consta o quesito 6º, sendo que a mencionada prova documental, em estrito rigor sistemático, fora oferecida em abono da alteração reclamada para a resposta a esse quesito. Em contrapartida, também poderá validamente entender-se que essa prova, atento o objecto primacial da acção – qualificação do vínculo contratual – era mais abrangente e, por isso, suficientemente adequada para provar uma eventual alteração das respostas dadas a outros quesitos. A serem entendidas assim as coisas, o que poderá dizer-se é que a Relação apenas desconsiderou um dos argumentos coligidos, sem deixar de enfrentar a questão colocada: por isso, dissemos já o vício invocado na revista só é susceptível de integrar “erro de julgamento”, cuja apreciação nesta sede não está legalmente afastada. Não obstante, a intervenção do Supremo neste domínio só seria de admitir se os documentos em apreço tivessem força probatória plena – art.s 722º n.º 2 e 729º n.º 2 do Cod. Proc. Civil. Mas não é o caso. Estamos perante dois documentos particulares: o primeiro reproduz uma factura de fornecimento de peças-auto, emitida por terceiro em nome do Autor (doc. n.º 3); o segundo representa um cartão em que o mesmo Autor publicita a sua actividade profissional de mecânico e bate-chapas (doc. n.º 4). A força probatória plena daquele primeiro documento está afastada, desde logo, porque a sua subscrição é feita por um terceiro, no caso, o fornecedor das peças – arts. 374º n.º 1 e 376º n.º 1 do Cod. Civil (a contrario) – . O segundo documento, por sua vez, só prova plenamente a materialidade da declaração, isto é, que o Autor mandou emitir cartões para publicitar a sua actividade de mecânico e bate-chapas. Porém, já não prova com a mesma plenitude – como importaria à tese do recorrente – o exercício efectivo dessa actividade por conta própria nem, tão-pouco, a incompatibilidade entre esse exercício e a subordinação do Autor, no mesmo ramo de actividade, a um contrato de trabalho com o Réu. Assim, devemos concluir que a força probatória dos dois documentos, no que respeita à sua utilidade para o desfecho da acção, estava sujeita à livre apreciação das instâncias, cujas decisões não são passíveis de censura pelo Supremo. 3.3.1. Pretende também o recorrente que a sentença proferida em 1ª instância enferma de “nulidade”, uma vez que a Ex.ma Juíza que a subscreve não interveio na audiência de discussão e julgamento. Ao colocar assim a questão, está o recorrente a significar que a sentença foi exarada por quem não tinha competência funcional para o efeito. Nesse caso, poderia estar em causa a própria “inexistência” da sentença, que é uma figura jurídica admitida pela doutrina ao lado da “nulidade” da própria decisão. Porém, essa figura integra um vício radical, que apenas se materializa quando à sentença falta um dos seus elementos essenciais: não provir de pessoa investida do poder jurisdicional; ser o acto emitido a favor de ou contra pessoa fictícia ou imaginária; não conter a sentença uma verdadeira decisão ou conter uma decisão incapaz de produzir qualquer efeito jurídico (cfr. Alberto dos Reis in “Anotado”, vol. V, pags. 213 e segs.). Não é o caso. O próprio recorrente se apressa a dizer que o vício aduzido integra violação do princípio da plenitude da assistência dos Juízes – art.º 654º do Cod. Proc. Civil. Irradicada, por isso, a figura da “inexistência” da sentença, há que dizer que o referido vício também não é susceptível de integrar qualquer nulidade decisória intrínseca, como meridianamente decorre do elenco enunciado no art.º 668º daquele citado diploma. Mas, ainda que de nulidade decisória se tratasse, sempre é certo que a sindicância do Supremo só incide sobre o Acórdão da Relação e não já sobre a sentença da 1ª instância. Por outro lado, o recorrente omitiu essa censura no recurso de apelação, vindo a produzi-la, pela primeira vez, na presente revista: daí que o Acórdão em crise guarde natural silêncio sobre a matéria. Estamos, assim, perante uma “questão nova”, cuja apreciação nos estaria verdade, a menos que o pretenso vício fosse de conhecimento oficioso. Porém, não se justifica que entremos na análise dessa cognoscibilidade, tão evidente se mostra que nenhum vício existe. É que o princípio da plenitude da assistência dos juízes, sendo mero corolário dos princípios da oralidade e da livre apreciação das provas, está circunscrito aos actos produzidos na audiência final – produção de prova e decisão da matéria de facto – não se estendendo já à fase de elaboração da sentença. É dizer que o referido princípio não impõe que a decisão de mérito seja lavrada pelo mesmo Juiz que presidiu à audiência. No caso dos autos, evidencia-se que toda a prova foi produzida perante o mesmo Juiz, justamente aquele que também veio a decidir a matéria de facto que, assim, ficou fixada. Neste contexto, é de todo irrelevante que a sentença de mérito tivesse sido exarada – como foi – por outro Magistrado. Também aqui improcede, pois, a tese do recorrente. 3.4.1. As decisões produzidas nos autos já cuidaram de enunciar exaustivamente os critérios legais de diferenciação entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços, bem como os índices que importa coligir no caso de não se comprovar directamente uma situação de subordinação jurídica por banda do prestador. Neste particular, recordaremos apenas que a diferenciação fundamental entre os dois módulos contratuais – no confronto entre o art.º 1º do “Regulamento Jurídico do Contrato Individual de Trabalho”, aprovado pelo D.L. n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969, aqui aplicável, e o art.º 1152º do Código Civil – se reporta ao resultado do trabalho prestado, como característica estruturante da prestação de serviços, em contraposição à actividade subordinada, que caracteriza o vínculo laboral. Cabe também sublinhar que os índices atendíveis, tomados de per si, assumem uma patente relatividade, impondo-se que o juízo de aproximação de cada modelo se faça no contexto global de caso concreto. Por outro lado, como o contrato dos autos é de execução continuada e não foi sequer reduzido a escrito, releva decisivamente o seu conteúdo real, decorrente da prática produzida efectivamente pelos outorgantes. 3.4.2. Toda a tese do recorrente, no sentido de que se evidencia a celebração de um contrato de prestação de serviços, pressupunha a alteração da matéria de facto afirmada pelas instâncias, como ele próprio implícitamente reconhece. Não tendo sido esse o caso, é fora de dúvida que a factualidade atendível demonstra a existência de um vínculo laboral. Com efeito, quer a modalidade de retribuição do Autor, quer a designação, pelo Réu, do local onde o mesmo devia exercer a sua actividade, para o que utilizaria bens e ferramentas fornecidas pelo demandado, apontam, desde logo, para a existência de trabalho subordinado. Ademais, o Autor estava sujeito a um horário de trabalho fixado pelo Réu – trabalhando, em regra, de 2ª a 6ª feira, entre as 1h e as 20h – sabendo-se que essa fixação consubstancia um um dos um dos índices mais relevantes de subordinação jurídico. Acresce que o Autor estava sujeito à disciplina da empresa – não podia ausentar-se do local de trabalho sem o justificar – e a sua actividade era passível de controlo externo – pois era o Réu que lhe indicava a ordem dos trabalhos a efectuar e o montante a cobrar aos clientes pelo serviço prestado. Perante a concorrência e relevância dos índices apontados, hão-de ser tidos como insignificantes, no contexto geral da relação aprazada, a falta de observância do regime de segurança social e, bem assim, a falta de remuneração de férias e de atribuição dos subsídios de férias e de Natal, como bem salienta a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta. Devemos concluir, em suma, que o Acórdão recorrido não nos merece qualquer censura. 4- DECISÃO Em face do exposto, acordam em negar a revista, confirmando o Acórdão da Relação.Custas pelo recorrente. Lisboa, 2/5/07 Sousa Grandão ( relator) Pinto Hespanhol Vasques Dinis |