Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
140/14.9TNLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
FACTOS CONSTITUTIVOS
OMISSÃO
NEGLIGÊNCIA CONSCIENTE
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
ÓNUS DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CASO DE FORÇA MAIOR
Data do Acordão: 01/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (MARÍTIMO)
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual, à luz do disposto no artigo 486.º do CC, a omissão negligente do dever objetivo de cuidado existe no caso de ser lícito afirmar que o agente previu, como possível, o resultado lesivo que se veio a verificar, confiando, de forma leviana, descuidadaou por imperícia, que esse resultado não ocorresse, só não tendo, por isso, adotado as providências necessárias a evitá-lo, ou seja, agindo sob a forma de negligência consciente.

 II. Outrossim, será de considerar verificada omissão negligente no caso de o agente não ter previsto a possibilidade de ocorrência de um tal resultado, quando podia ou devia prevê-la, se tivesse agido com a diligência exigível, incorrendo assim em negligência inconsciente.

 III. Em ambas essas hipóteses, incumbe ao lesado o ónus de provar os factos que consubstanciem a alegada violação negligente do dever objetivo de cuidado como factos constitutivos que são da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 342.º do CC.

IV. Centrando-se a divergência das instâncias, em sede de apreciação da alegada violação do dever objetivo de cuidado, em ilações presuntivas extraídas da factualidade provada em contraponto com os factos não provados, à luz das regras da experiência, e não em sede do quadro normativo aplicável, não cabe ao tribunal de revista sindicar tal apreciação, a menos que ocorra manifesta ilogicidade no uso desses juízos presuntivos.

V. Vedada a sindicância do tribunal de revista sobre o juízo presuntivo da Relação e afastada a hipótese de os factos provados traduzirem, por si só, a possibilidade de o agente putativo ter previsto o sinistro com a diligência devida, não se mostra lícito concluir pela ocorrência de erro de direito no sentido de que aquele omitiu comportamento culposo em violação do dever objetivo de cuidado.   

VI. Uma situação de força maior constitui, em regra, causa excludente da própria voluntariedade do facto ilícito comissivo ou omissivo, retirando ao agente qualquer domínio da vontade sobre o mesmo.

VII. Verificada a inexistência de comportamento omissivo relevante pelo facto de o mesmo não ser devido por não ter sido previsto pelo agente putativo nem este ter podido nem devendo prevê-lo, torna-se despiciendo considerar a omissão justificada em virtude de circunstâncias de força maior.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. GENERALI – Companhia de Seguros, SPA (A.) instaurou, em 16/05/2014, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade TCL – Terminal de Contentores de Leixões, S.A. (R.), operadora portuária, alegando, em síntese, o seguinte: 

 . A A. celebrou com a sociedade P........., Ld.ª, um contrato de seguro do ramo “Transportes – Mercadorias Transportadas”, tendo por objeto 127 quadros elétricos novos e por coberturas, além de outras, as da perda ou danos sofridos pelos objetos seguros durante o seu transporte, por via terrestre e marítima, de …… para ….;

. Sessenta e sete desses quadros elétricos foram acondicionados em contentor, o qual, por ordem e conta da sua segurada, foi transportado das instalações desta, em ….., para o terminal de contentores do Porto de Leixões ficando aí confiado à R., na qualidade de operadora portuária, concessionária exclusiva da atividade de parqueamento e movimentação de contentores e cargas do porto marítimo de Leixões, em 18/01/2013, para que o carregasse, no dia 20/01/2013, no navio “……..”, com destino a …….

. Tendo a R. colocado o referido contentor em cima de outros três contentores de 40 pés, a cerca de 8 metros de altura do solo, sobreveio, na madrugada de 19/01/2013, uma intempérie com chuva e ventos muito fortes, acima dos 100 km/h, como fora previsto e anunciado pelo serviço oficial da meteorologia, causando o deslizamento e queda no solo daquele contentor e danificando os quadros elétricos nele encerrados, de que resultou prejuízos no valor global de € 145.129,71.

. A R. é responsável pelo sobredito sinistro, porquanto, tendo tomado conheci-mento da previsão do tempo, manteve o contentor em cima dos outros três contentores, em vez de o colocar no solo ou de o prender ou fixar por qualquer forma, por forma defendê-lo dos riscos da intempérie, como podia e devia, de modo a evitar a queda do mesmo.

. Por tais prejuízos, a A. pagou à sua segurada P........., Ld.ª, a quantia de € 122.748,78, ficando sub-rogada nos direitos desta. 

Concluiu pedindo que a R. fosse condenada a pagar-lhe aquele valor de € 122.748,78, acrescido de juros de mora desde a citação.

2. A R. contestou, impugnando, no essencial, a factualidade alegada pela A. e sustentando que:

. Não teve qualquer relação comercial com a sociedade P........., Ld.ª, pelo que a sua atuação só poderia ser analisada à luz da responsabilidade civil extracontratual;

. A R. procedeu ao armazenamento do contentor em apreço de acordo com as normas de parqueamento de contentores previstas no art.º 10 do RETCPL, tendo o mesmo sido parqueado no Parque ... do Terminal Sul, o mais abrigado do Porto de Leixões, a cerca de 2,700 k do mar, numa zona de baixa altitude;

. Era impossível armazenar todos os contentores no solo, atento o espaço, o volume e a movimentação destes neste Porto, e em geral nos portos de mar em Portugal ou no estrangeiro.

. Os contentores têm um sistema de encaixe uns nos outros e que o seu amarramento em terra não é um procedimento viável;

. A R. cumpriu o seu dever de guarda da mercadoria, colocando aquele contentor no local e posição de acordo com as normas e práticas da atividade, desconhecendo a forma como a mercadoria foi acondicionada no seu interior e se a distribuição do peso respetiva terá tido influência no sucedido;

. Os alertas meteorológicos não são feitos de forma individual e específica para o Porto de ……., mas para toda a população e área geográfica de Portugal;

. Apesar de tais alertas genéricos, não era de prever o ocorrido, sendo que dos cerca de 6.000 contentores que se encontravam no Terminal apenas 3 se danificaram;

. Em 35 anos de existência do Porto de Leixões e apesar de, em diversas ocasiões, terem ocorrido avisos de tempestades com alerta vermelho, nunca antes ocorrera um único caso em que pela força do vento tivesse tombado ou sequer se deslocado um contentor de 12 toneladas como o aqui em referência;

. Nem mesmo depois do ocorrido voltou a suceder evento semelhante, inclusivamente durante o inverno de 2014, em que se verificou uma situação de alerta vermelho.

. A queda do contentor poderá ter-se justificado pela ocorrência de um fenómeno extremo localizado, na força específica de uma única rajada excecional, imprevisível e inevitável naquela linha diagonal e não na generalidade do Terminal Sul.

Concluiu a R. pela improcedência da ação e requereu a intervenção principal da Companhia de Seguros Fidelidade, S.A. para quem tinha transferido a responsabilidade civil para cobertura dos riscos inerentes à sua atividade.

3. Admitida tal intervenção, a Fidelidade-Companhia de Seguros, S.A., apresentou contestação a sustentar, além do mais, que, no âmbito do seguro contratado com a R., enquanto operadora portuária, se consideram excluídos, designadamente os danos causados à mercadoria por deficientes condições de armazenagem, pugnando pela sua absolvição do pedido.

4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 311-325/v.º, de 16/09/2019, a julgar a ação procedente, decidindo-se:

a) - Condenar a R. TCL – Terminal de Contentores de Leixões, S.A., a pagar à A. a peticionada quantia de € 122.748,78, acrescido de juros de mora, à taxa supletiva, desde a citação;

b) – Absolver do pedido a Interveniente principal Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., em virtude da cláusula de exclusão prevista no contrato de seguro celebrado entre aquela e a A..

5. Inconformada, a R. recorreu para o Tribunal da Relação …, em sede de impugnação de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 371-384, datado de 30/06/2020, a julgar a apelação procedente, alterando a sentença da 1.ª instância no sentido de absolver a R. do pedido e também, por consequência, a Interveniente Principal.

6. Desta feita, vem a A. pedir revista, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – A recorrida não invocou o caso de força maior como excludente da sua responsabilidade na sua contestação, mostrando-se, como tal, precludido o seu direito a fazê-lo na apelação e não podendo o acórdão conhecer, assim, de tal questão, por antes não suscitada e não invocável apenas em sede de recurso, pelo que aquele aresto, ao tomar esse conhecimento, violando o art.º 573.º do CPC, incorreu na nulidade prevista no art.º 615.º/1, al. d), do CPC, que aqui se invoca.

2.ª- Não ficaram provados nos autos factos que permitam concluir pela ocorrência no sinistro em apreço de um caso de força maior excludente da culpa e responsabilidade civil da recorrida.

3.ª - A ocorrência de mera chuva e vento forte – únicos factos provados nos autos - não integra o conceito de força maior, excludente da responsabilidade civil previsto nos artigos 483.º e 487.º do CC, pelo que o tribunal “a quo” considerar que os factos provados nos autos configuravam essa força maior fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação daqueles preceitos legais.

4.ª - A arrumação do contentor identificado nos autos em altura (facto 7) foi feita pela recorrida de acordo com critérios previstos em benefício da sua atividade portuária e o certo é que o contentor caiu de 8 metros de altura, local aonde, por ela tinha sido colocado (se estivesse no solo, não teria caído), e por causa do vento forte (facto 12).

5.º - O risco daquela arrumação deverá ser imputado à R., não podendo sequer esta, legitimamente, defender que não é dela, se, como aconteceu, foi ela quem escolheu arrumar aquele concreto contentor daquela forma, de acordo com critérios que apenas com ela se relacionavam e, ainda para mais, já depois de receber o aviso prévio em 17/01/2013 (factos 8 e 9 e comunicado n.º 01/2013 da ANPC, de 17/01/2013 em 03/10/2016) das condições meteorológicas adversas que se previam para os dias seguintes, pois que recebeu o contentor para o armazenar só em 18/01/2013 (facto 5), ocorrendo depois o evento na madrugada de 19/01/2013.      

6.ª- Como a 1.ª instância, ao contrário do acórdão recorrido, terá de concluir-se que a recorrida não adotou, como podia e devia ter adotado, por força dos artigos 483.º e 487.º do CC e do art.º 10.º do RETCPL, uma conduta ajustada a prevenir os possíveis efeitos do mau tempo, mormente, tendo aceitado guardar o concreto contentor (e não todos os outros então ao seu cuidado, como se pre-tende no acórdão recorrido), colocando-o por forma a não sofrer uma queda em altura, como sofreu, no solo ou noutro local, ou então simplesmente recu-sando temporariamente guardá-lo, até passar o mau tempo, o que tudo aquela não fez, agindo, dessa forma, com a falta de zelo e diligência que lhe eram exigíveis em face da divulgação de um alerta laranja, o segundo mais grave na escala de três, sendo razoavelmente previsível aos olhos de um operador por-tuário médio que aquelas condições de tempo muito adversas eram suscetíveis de provocar a movimentação e o arrastamento de contentores parqueados em planos mais elevados e a sua projeção no solo.

7. As Recorridas apresentaram contra-alegações em que concluíram pela confirmação do julgado.

8. Por fim, recebido o recurso, o Tribunal da Relação proferiu, em conferência, o acórdão de fls. 419-420, datado de 10/11/2020, a pronunciar-se no sentido da não verificação da nulidade fundada em excesso de pronúncia invocada pela Recorrente.


Cumpre apreciar e decidir.


II – Delimitação do objeto do recurso


Das conclusões do Recorrente, em função das quais se delimita o objeto da revista, resulta que as questões a resolver são as seguintes:

i) - A questão da invocada nulidade do acórdão recorrido com fundamento em excesso de pronúncia.

ii) - A questão do alegado erro de direito quanto aos juízos de não violação do dever de cuidado e de verificação de força maior, confinada como está ao âmbito da responsabilidade civil extracontratual.


III – Fundamentação


1. Factualidade provada


Vem dada como provada a seguinte factualidade:

1.1. A A. dedica-se à atividade seguradora.

1.2. No exercício da sua atividade comercial, a A. celebrou com a P….., Ld.ª, um contrato de seguro do ramo “Transportes – Mercadorias Transportadas”, titulado pela apólice n.º …….. e pelo certificado de seguro n.º ……., tendo por objeto seguro 127 quadros elétricos novos, e por coberturas, além de outras, as da perda ou danos sofridos pelos objetos seguros durante o seu transporte, por via terrestre e marítima, de …. para …., e regido pelas respetivas condições gerais, especiais e particulares plasmadas a fls. 23 e ss dos autos e aqui dadas por reproduzidas na íntegra.

1.3. A segurada da A. contratou o transitário ....... – Transitário Ld.ª, para organizar e proceder a todos os trâmites necessários ao transporte internacional daquela mercadoria até ao seu destino final, uma parte por via área e a outra via marítima.

1.4. A mercadoria a transportar via marítima, constituída por 67 quadros elétricos, faturada ao importador pelo valor de € 142.102,98, foi estivada no contentor ……..

1.5. Em 18/01/2013, após estivados no contentor ………, fechado e selado, foi entregue no Porto de Leixões, aos cuidados da R., por ordem do armador do navio ........, até ao seu embarque no mesmo.

1.6. A R. parqueou o referido contentor no Parque …. do Terminal Sul do Porto de Leixões, na posição de ……, tendo por critérios o destino da mercadoria, o navio de embarque e o peso do contentor.

1.7. A R. colocou o contentor em cima de outros três contentores de 40 pés, à altura aproximada de 8 metros do solo.

1.8. As previsões meteorológicas do IPMA para a madrugada do dia 19/01/2013 na região do grande Porto eram de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h.

1.9. Nos dias anteriores, esta previsão do IPMA e de alerta laranja para a madrugada do dia 19 foi divulgada pela proteção civil, serviços informativos e nos meios de comunicação social, alertando a população para os riscos do estado do tempo e a necessidade de tomar as necessárias precauções para os evitar.

1.10. Apesar dos alertas difundidos, a R. manteve o contentor …….. parqueado no mesmo local, em cima de outros três contentores de 40 pés, à altura aproximada de 8 metros do solo.

1.11. Durante a madrugada de 19/01/2013, chuva e vento forte assolaram o terminal de contentores do Porto de Leixões

1.12. Durante a madrugada do dia 19/01, o vento forte arrastou o contentor ……., determinando a sua queda no solo, a exemplo do sucedido com outro escalado para o mesmo navio, e ainda de um terceiro contentor guardado no Parque ..

1.13. O contentor da A. pesava 12 toneladas.

1.14. Em consequência da queda do contentor …….. no solo, o quadro elétrico com a ref.ª ……… exibia todos os materiais internos e elétricos desencaixados, partidos e/ou danificados, outros 46 quadros apresentavam a estrutura metálica deformada e/ou partida e componentes internos, disjuntores e dissipadores de calor em cobre deformados e quebrados, enquanto os restantes 21 quadros, sem danos aparentes, foram também considerados sem qualquer aproveitamento.

1.15. Tendo a S……, fabricante dos quadros, recusado manter a garantia aos produtos elétricos sem danos aparentes, por envolver a segurança de pessoas, recomendando a destruição da totalidade dos componentes.

1.16. A pedido da P........, Ld.ª, a S…... apresentou orçamento para a realização de testes a todos os produtos elétricos fornecidos no valor de € 595.650,00.

1.17. Em 2013, a R. trabalhava diariamente das 8h às 00h.

1.18. Nos dias 18 e 19/01/2013, a R. laborou continuamente nesse horário, ape-nas tendo interrompido as operações durante um curto período no final da manhã do dia 19.

1.19. A intensidade máxima instantânea (o pico) das rajadas de vento na ordem dos 110 a 120 km/h ocorreram no final da manhã do dia 19.

1.20. A P......... participou o sinistro à A..

1.21. Em 14/05/2013, na sequência das averiguações realizadas pela P........ a pedido da A., o perito lavrou o certificado n.º …., determinando a causa do sinistro e fixando a reparação da mercadoria no valor de € 124.101,17, tudo nos termos e com os fundamentos melhor explicitados a fls. 241/v.º e ss dos autos, e aqui dados por reproduzidos na íntegra.

1.22. Em 3.9.2013, a A. indemnizou a sua segurada em € 122.748,78, tendo por referência a avaliação dos danos na ordem de € 145.129,71.

1.23. A R. é concessionária exclusiva da atividade de movimentação de contentores no Porto de Leixões

1.24. A TCL celebrou com a Fidelidade um seguro do ramo responsabilidade civil de exploração de operadores portuários, titulado pela apólice n.º …….., compreendendo as condições gerais, especiais e particulares insertas a fls. 130 a 148 dos autos e aqui dadas por reproduzidas na íntegra.

1.25. Em 16.6.2014, na sequência das averiguações realizadas pela EE. a pedido da Interveniente Fidelidade, o perito lavrou o relatório, fixando o valor dos prejuízos em € 126.545,13, acrescentando 10% previsto na apólice, num total de €139.199,64, tudo nos termos melhor descritos no relatório de danos constante a fls. 270 e ss. dos autos, cujos termos aqui se dão por reproduzidos na íntegra.

1.26. A R. não dispõe de espaço no Terminal para armazenar todos os contentores à sua guarda no solo, além do volume de movimentação de cargas diário também não o permitir.


2. Factos dados como não provados


Vem dado como não provado que:

2.1. O contentor contendo a mercadoria da P.... foi por esta ou a seu mando, contra o pagamento duma prestação pecuniária, entregue e confiado à R..

2.2. Todos os contentores parqueados no Terminal Sul foram armazenados da mesma forma e segundo os mesmos critérios.

2.3. A queda do contentor teve origem na ocorrência de uma única rajada de força excecional naquela linha diagonal do Terminal Sul, um fenómeno extremo locali-zado.

2.4. A distribuição interior do peso das mercadorias no contentor da Autora influiu na ocorrência da sua queda no solo.


3. Do mérito do recurso


3.1. Quanto à invocada nulidade do acórdão recorrido por pretenso vício de excesso de pronúncia 


A Recorrente arguiu a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, sustentando que, ao se ter ali considerado veri-ficada uma situação de “força maior” como causa excludente da culpa imputada à R., se conheceu de questão precludida, por não ter sido oportunamente invocada pela R..

Mas não se afigura que lhe assista razão.

Com efeito, a R., na sua contestação, além de impugnar o alegado facto ilícito e culposo que lhe era imputado pela A., sustentou, sob o artigo 58.º daquele articulado, que:

   (…) a queda do contentor poderá ter-se justificado pela ocorrência de um fenómeno extremo localizado na força específica de uma única rajada excecional, imprevisível e inevitável naquela linha diagonal e não na generalidade do Ter-minal …….

Nesse contexto, apesar de não ter sido dado como provado que “aqueda do contentor teve origem na ocorrência de uma única rajada de força excecional naquela li-nha diagonal do Terminal Sul, um fenómeno extremo localizado”, ainda assim nada obstava a que o tribunal atentasse nas demais circunstâncias provadas respeitantes ao invocado ilícito imputado, a título de culpa, à R. e procedesse à respetiva qualificação jurídica, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, em ordem a ajuizar sobre a sua verificação ou exclusão, nomeadamente em sede da chamada causa excludente de força maior.

Ao proceder de tal modo, o tribunal a quo não se pronunciou sobre questão alheia aos termos do litígio tal como se apresentavam factualmente equacionados pelas partes, limitando-se a convocar, nessa base, a qualificação jurídica que teve por adequada, dentro do alcance prático-jurídico peticionado pela A. e contraposto pela R., em conformidade com os parâmetros traçados nos artigos 5.º, n.º 3, e 608.º, n.º 2, do CPC.

Termos em que improcede a invocada nulidade fundada em excesso de pronúncia.


3.2. Quanto ao invocado erro de direito sobre o mérito da causa        

  A presente ação tem por objeto uma pretensão indemnizatória com fundamento em responsabilidade civil da R., a título de culpa, alegadamente, por esta, na qualidade de operadora portuária, não ter agido com o necessário dever de cuidado no parqueamento e acondicionamento de um contentor, no Terminal Sul do Porto de Leixões dando causa a que o mesmo tivesse caído no solo, durante uma forte intempérie ocorrida na madrugada de 18 para 19 de janeiro de 2013, originando os prejuízos que aqui a A. pretende ressarcir.     

 Segundo o julgado pelas instâncias e acatado pelas partes, tal pretensão encontra-se confinada ao instituto da responsabilidade civil extracontratual, no âmbito da atividade das empresas de estiva, conforme o previsto no n.º 1 do artigo 22.º do Dec.-Lei n.º 298/93, de 28-08, no qual se preceitua que:

A empresa de estiva responde, nos termos gerais, pelos danos causados a terceiros, por acções ou omissões suas ou do seu pessoal, na realização de qualquer operação portuária a seu cargo e pelas perdas e danos provocados às mercadorias quanto estas lhe estejam confiadas para a realização de qualquer operação de movimentação de cargas ou quando se encontrem em espaço de que tenha uso exclusivo nos termos da legislação em vigor.

Da factualidade provada colhe-se que a sociedade P……., Ld.ª, segurada da A., contratou uma sociedade transitária para organizar e proceder aos trâmites necessários ao transporte internacional, por via marítima, de 67 quadros elétricos, estivados no contentor…., com 12 toneladas, o qual foi entregue, fechado e selado, em 18/01/2013, no Porto de Leixões, aos cuidados da R., na qualidade de operadora portuária, ali concessionária exclusiva, por ordem do armador do navio ........, até ao seu embarque no mesmo.

Por sua vez, a R. parqueou o referido contentor no Parque … do Terminal Sul do Porto de Leixões na posição de …….., tendo por critérios o destino da mercadoria, o navio de embarque e o peso do contentor, colocando o mesmo em cima de outros três contentores de 40 pés, a uma altura aproximada de 8 metros do solo.

É também ponto assente que a R. procedeu a tal parqueamento em consonância com o disposto no artigo 10.º, n.º 3, do Regulamento de Exploração do Terminal de Conten-tores do Porto de Leixões (RETCPL), nos termos do qual: o parqueamento de contentores será feito procurando as melhores condições de optimização do espaço e das operações. E está provado que a R. não dispunha de espaço naquele Terminal para armazenar no solo todos os contentores à sua guarda, além de o volume diário de movimentação de cargas também o não permitir (ponto 26).

Sucede que o IPMA fez previsões meteorológicas para a madrugada de 19/01/ 2013, na região do grande Porto, de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h (ponto 1.8), tendo, nos dias anteriores, essa previsão e o alerta laranja para a madrugada do dia 19 sido divulgados pela proteção civil e nos meios de comunicação social, alertando a população para os riscos do estado do tempo e para a necessidade de tomar as necessárias precauções que os evitassem (ponto 1.9).

Apesar da difusão de tais alertas, a R. manteve o contentor ……. parqueado no mesmo local, em cima dos outros três contentores de 40 pés, à altura aproximada de 8 metros do solo (ponto 1.10).

Todavia, durante a madrugada de 19/01/2013, chuva e vento forte assolaram o terminal de contentores do Porto de Leixões (ponto 1.11), tendo o vento forte arrastado o contentor ……., provocando a sua queda no solo, bem como de outro escalado para o mesmo navio e ainda de um terceiro contentor guardado no Parque … (ponto 1.12). A intensidade máxima instantânea (o pico) das rajadas de vento na ordem dos 110 a 120 km/h ocorreram no final da manhã do dia 19 (ponto 1.19).


Questão é saber se, em tais circunstâncias, incumbia à R. ter providenciado por diferente parqueamento ou acondicionamento do contentor ….. em ordem a evitar que este fosse atingido desse modo pela intempérie. 


Na 1.ª instância, no que aqui releva, foi considerado o seguinte:        

«De facto, o aludido art 10 do RETCPL queda-se por estabelecer como critérios para o parqueamento de contentores, as melhores condições de optimização de espaço e das operações, não prevendo em parte alguma a obrigatoriedade de colocação de contentores cheios e pesados no solo ou noutro lugar seguro em caso de previsão de tempestades. Tal não significa que a Ré não o devesse fazer em certas circunstâncias a avaliar ca-suisticamente, em particular, em caso de risco anunciado e de acordo com regras de bom senso. Na verdade, o critério supra estabelecido apenas acautela a gestão dos espaços do Terminal com vista à máxima rentabilização das operações portuárias, segundo critérios puramente economicistas e funcionais, mas descura por completo os interesses dos donos da mercadoria, a que se mostra alheio. Bem se compreende a argumentação explanada pela Ré de, atento o volume de movimentação de operações e de carga no Porto de Leixões, não dispor o respectivo Terminal de Contentores de espaço físico para, no seu quotidiano, colocar todos os contentores no solo, nem ser exequível amarrar todos contentores, o que possivelmente determinaria paralisações significativas nos trabalhos diários. Porém, já não se pode aceitar que, em caso de intempéries marcadas por chuvas e ventos fortes, previamente previstas pelo IMPA e difundidos pela Protecção Civil alertas laranja para a região do grande Porto, naquela madrugada, durante o período de inactividade laboral, a Ré não tenha revisto os critérios de armazenamento para acautelar os riscos de uma situação extraordinária e mantido o parqueamento antes realizado assente em critérios puramente funcionais/ organizacionais, como seja conservar um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três. Nestas circunstâncias, afigura-se, por demais evidente, não ter a Ré assumido com zelo e a diligência exigível o dever de guarda a que esta adstrita, garantindo-lhe a necessária segurança. Nem se afigura legítimo as Demandadas escudarem-se na figura do caso fortuito, porquanto face à previsão de ventos muito fortes que determinaram a divulgação de alerta laranja, o segundo mais grave na escala de três, era razoavelmente previsível aos olhos de um operador portuá-rio médio que aquelas condições climatéricas muito adversas eram susceptíveis de provocarem a movimentação e o arrastamento de contentores parqueados em planos mais elevado e a sua projecção no solo. Donde, no contexto envolvente descrito, a Ré podia ter evitado o evento, ou pelo menos tentado minimizar os seus efeitos, caso tivesse adoptado uma conduta medianamente diligente face à previsão meteorológica adversa e aos sucessivos alertas difundidos. Pelo que se impõe concluir que a conduta da Ré, caracterizada pela omissão de medidas de segurança exigíveis no contexto fáctico enunciado, é ilícita e culposa, eventualmente inconsciente, e deu azo à produção do evento, a queda do contentor, determinante da ocorrência de danos na mercadoria no seu interior.»


 Por sua vez, a Relação, embora mantendo os factos não provados constantes de 2.2. e 2.3, dissentiu de tal entendimento, com a seguinte fundamentação:   

«(…) conforme se apurou, a Ré não dispõe de espaço no Terminal para armazenar todos os contentores à sua guarda no solo, além do volume de movimentação de cargas diário também não o permitir (ponto 26 supra), o que desde logo aponta para a impossibilidade prática de adotar tal procedimento ainda que por razões de segurança.

Por sua vez, atenta a conhecida forma usual de empilhamento dos contentores nos portos de mar e no concreto Porto de Leixões (e também nos navios que os transportam), ao ar livre e expostos, por definição, às condições atmosféricas, não se nos afigura possível concluir com uma certeza mínima, no quadro dos factos apura-dos, que fosse previsível aos olhos de um operador portuário médio, face à divulga-ção de um alerta laranja – “Situação meteorológica de risco moderado a elevado”, segundo o Guia de Utilização dos Avisos Meteorológicos do IPMA – que um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três, poderia ser arrastado pelo vento e projetado ao solo, conforme se concluiu.

Tanto mais que não se provou que tenha sido divulgada qualquer particular orientação da ANPC dirigida às entidades ou operadores portuários face às previstas condições meteorológicas, e que os contentores não constituem equipamentos especialmente vulneráveis à ação dos ventos como as gruas e guindastes habitualmente utilizadas nas operações portuárias.

Acresce que também não resulta da matéria assente que concreto procedimento incumbiria à Ré e lhe seria exigível no parqueamento de contentores, e que esta tenha omitido face ao aviso meteorológico de alerta laranja, como a possibilidade que teria de colocar aquele contentor no chão e/ou noutro local mais seguro, sendo que era à A., sub-rogada no direito da sociedade lesada, que competia tal demonstração (arts. 483 e 487 do C.C.).

Finalmente, ainda que nada se tenha apurado sobre a forma de acondicionamento dos demais contentores naquele terminal – designadamente, em altura e/ou pro-ximidade de outros, localização ou peso de cada um deles – o certo é que, de acordo com a matéria assente, naquela madrugada de 19.1.2013, o vento forte que se fez sentir no Porto de Leixões “apenas” arrastou e fez cair três contentores (o da segurada da A. e outros dois – ver ponto 12 supra), e não outros que, com ele-vada probabilidade, se encontrariam ali depositados e também empilhados (nada se apurou quanto ao número total de contentores então parqueados).

Não podemos, pois, afirmar, no contexto da prova produzida, e salvo melhor opinião, que o referido contentor se encontrasse, aquando do evento, indevidamente parqueado e que a Ré pudesse adotar diversa conduta para prevenir ou minimizar os efeitos da intempérie prevista. Deste modo, e contra o sentenciado, não pode concluir-se que a Ré TCL tenha agido ilicitamente e com culpa, infringindo um dever legal de conduta, ou que tenha contribuído, com uma conduta indevida e omissiva, para o derrube do contentor em questão sob a força do vento forte que soprou na madrugada do dia 19.1.2013.

Pelo que forçoso será concluir que o desabamento desse contentor terá ficado unicamente a dever-se às condições meteorológicas especialmente severas que então ocorreram e que constituem, para todos os efeitos, um caso de força maior.

Como se afirma no Ac. do STJ de 18.12.2013 “(…) O caso de força maior como excludente da culpa e até da responsabilidade civil lato sensu, tem ínsita uma ideia de inevitabilidade, ligada a uma acção do homem ou de terceiro e, em muitos casos,a fenómenos da natureza que por serem incontroláveis e nem sequer previsíveis pela vontade do agente, não são passíveis de imputação pelas suas consequências, configurando-se como evento contra o qual nada pôde fazer por maior que tivesse sido a sua diligência. o caso fortuito se liga uma ideia de imprevisibilidadedo evento, que se tivesse sido previsto, poderia ter sido evitado (…).”

Deve, por isso, ser a Ré TCL absolvida do pedido, ficando desse modo prejudicada a apreciação da questão suscitada no recurso sobre o funcionamento da cláusula de exclusão previsto no ponto 6.1, al. f), das condições particulares do contrato de seguro firmado entre a referida Ré e a Interveniente Fidelidade.»


Por seu lado, a A./Recorrente persiste em sustentar, em síntese, que a R. agiu de forma negligente e refuta a tese de estarmos perante um caso de força maior. 

Vejamos.

Tendo em conta a diretriz constante do art.º 10.º, n.º 3, do RETCPL no sentido de o parqueamento de contentores no Terminal do Porto de Leixões ser feito por forma a conseguir as melhores condições de otimização do espaço e das operações e considerando que a R. não dispõe de espaço nesse Terminal para armazenar todos os contentores à sua guarda no solo, além de o volume diário de movimentação de cargas também o não permitir (ponto 1.26), é de ter por normal e adequado o procedimento de empilhamento de contentores que vem ali sendo praticado.

A crítica feita pela 1.ª instância no sentido de que as diretrizes de otimização do espaço e das operações portuárias constantes do art.º 10.º, n.º 3, do RETCP são puramente economicistas e funcionais, descurando por completo os interesses dos donos da mercadoria, parece desmerecer, de algum modo, o facto de se tratar não de uma situação de armaze-namento propriamente dito dos contentores, mas apenas do seu parqueamento e acondicio-namento, por curtos períodos de tempo, de forma a agilizar as operações de embarque e desembarque, com o menor custo possível para todos os interessados, condizente com o espaço portuário disponível e com o volume diário de movimentação de cargas.

Dentro de tais condicionalismos, os critérios adotados pela R., tendo em conta o destino da mercadoria, o navio de embarque e o peso do contentor, referidos no ponto 1.6 dos factos provados, parecem adequados como procedimento normal e habitual de parqueamento e acondicionamento dos contentores em trânsito, não se traduzindo, sem mais, em violação do dever objetivo de cuidado, segundo os ditames das leges artis, por parte daquela operadora portuária.  

Resta saber se a divulgação pelos serviços da proteção civil e da comunicação social das previsões meteorológicas do IPMA, incluindo o alerta laranja para a madrugada de 19/01/2013, na região do grande Porto, de chuva e vento moderado a forte com rajadas na ordem dos 70 km/h, representava um cenário que exigisse uma conduta, por parte da R., no sentido de adotar uma forma de parqueamento ou acondicionamento dos contentores diversa do habitual, ainda que com os graves inconvenientes decorrentes da carência de espaço disponível no Terminal em referência e da inerente perturbação na movimentação do volume diário das cargas ali em trânsito.

Trata-se, portanto, de aferir, em tais circunstâncias, a alegada violação do dever de cuidado da R. no parqueamento e acondicionamento do contentor … da segurada da A. e que àquela fora confiado no dia 18/01/2013.

Com efeito, impendia sobre a R. como operadora portuária, o dever de garantir a incolumidade do referido contentor no contexto daquele parqueamento, na medida em que previsse ou tivesse possibilidade de prever as ocorrências que pudessem afetar tal incolumi-dade.

Nessa perspetiva, à luz do disposto no artigo 486.º do CC, a omissão negligente desse dever de cuidado existirá no caso de ser lícito afirmar que, perante as sobreditas previsões meteorológicas, a R. previu, como possível, o resultado que se veio a verificar, confiando, de forma leviana, descuidada ou por imperícia, que esse resultado não ocorresse, só não tendo, por isso, adotado as providências necessárias a evitá-lo, ou seja, agindo sob a forma de negligência consciente[1].

Outrossim, será de considerar verificada omissão negligente no caso de a R. não ter previsto a possibilidade de ocorrência de um tal resultado, quando podia e devia prevê-la se tivesse agido com a diligência exigível, incorrendo assim em negligência inconsciente[2].

Em ambas essas hipóteses, incumbia à A. o ónus de provar os factos que consubstanciem ou indiciem a alegada violação negligente do dever de cuidado imputada à R. como factos constitutivos que são da responsabilidade civil extracontratual em apreço, nos termos do preceituado no n.º 1 do art.º 342.º do CC.

Ora dos factos provados não se extrai, com a mínima segurança, que a R. tenha sequer previsto a ocorrência do sinistro em causa, não se mostrando, para tanto, suficientes as meras previsões meteorológicas do IPMA, seguidas da sua divulgação geral, para a madru-gada do dia 19/01/2013, na região do grande Porto, de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h, para mais tendo a intempérie provocado apenas a queda de três contentores num total de alguns milhares. Mesmo, na 1.ª instância, foi admitido tratar-se de omissão “eventualmente inconsciente”.

Importará, pois, saber se, ainda assim, a R. podia ou devia ter previsto essa eventualidade. É esta ponderação que aqui está em causa e que deve ser equacionada em função do circunstancialismo apurado e à luz das regras da experiência comum.

Foi nessa linha que a 1.ª instância considerou não se poder aceitar que, em caso de intempéries marcadas por chuvas e ventos fortes, previamente previstas pelo IMPA e difundidas pela Proteção Civil com alertas laranja para a região do grande Porto, naquela madrugada, durante o período de inatividade laboral, a R. não tenha revisto os critérios de armazenamento para acautelar os riscos de uma situação extraordinária, mantendo o par-queamento antes realizado assente em critérios puramente funcionais/organizacionais, conser-vando um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três.

Porém, diversamente, a Relação considerou que as condições atmosféricas, conforme os factos apurados, não eram de molde a tornar previsível, aos olhos de um operador portuário médio, que um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três, poderia ser arrastado pelo vento e projetado ao solo, tanto mais que não se provou que tenha sido divulgada qualquer particular orientação da ANPC, dirigida às entidades ou operadores portuários face às previstas condições meteorológicas, e que os contentores não constituíam equipamentos especialmente vulneráveis à ação dos ventos como as gruas e guindastes habitualmente utilizadas nas operações portuárias.

Neste quadro, a divergência das instâncias centra-se precisamente nas ilações presuntivas extraídas da factualidade provada em contraponto com os factos não provados, à luz das regras da experiência, e não propriamente em sede do quadro normativo aplicável, não cabendo a este tribunal de revista sindicar tal apreciação, a menos que ocorra manifesta ilogicidade no uso desses juízos presuntivos (art.º 674.º, n.º 3, CPC).

Neste particular, o que se constata é que, a 1.ª instância se norteou por uma abordagem de pendor algo generalizante, sob a consideração de que a R. manteve “o par-queamento antes realizado assente em critérios puramente funcionais/organizacionais”, mas sem uma ponderação concreta do alcance das previsões meteorológicas divulgadas – “chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h” – com a viabilidade prática de a R. poder alterar a disposição e o acondicionamento dos milhares de contentores em trânsito que se encontravam parqueados no referido Terminal, limitando-se a afirmar que, no contexto envolvente descrito (sem precisar), a R. podia ter evitado o evento, ou pelo menos tentado minimizar os seus efeitos, caso tivesse adotado uma conduta medianamente diligente, sem equacionar por que modo viável o poderia ter feito, face à previsão meteorológica difundida.  

Ao invés, a Relação sopesou os aspetos mais concretos da situação envolvente,  realçando, por um lado, os condicionamentos decorrentes do espaço existente no Terminal e da forma usual de empilhamento dos contentores e, por outro, a previsão de um estado de tempo de chuva e vento moderado a forte, com rajadas na ordem dos 70 km/h - a inten-sidade máxima instantânea (o pico) das rajadas de vento na ordem dos 110 a 120 km/h, não constante daquelas previsões, só ocorreram no final da manhã do dia 19 -, daí inferindo que tais circunstâncias não faziam prever, a um operador portuário médio, que um contentor com 12 toneladas de peso a 8 metros de altura, em cima de outros três, pudesse ser arrastado e projetado para o solo, considerando ainda que só foram arrastados três contentores e não outros que, com elevada probabilidade, se encontrariam ali depositados e também empilhados.

Neste conspecto, não se afigura que essa análise presuntiva da Relação padeça de ilogicidade, muito menos manifesta, que cumpra censurar em sede de revista, nem que os factos provados, sem intermediação presuntiva, revelem, por si só, a possibilidade de a R. ter previsto a ocorrência do sinistro, usando da diligência devida. 

Significa isto que, vedada que está a sindicância deste Tribunal sobre o juízo presuntivo da Relação e afastada a hipótese de os factos provados traduzirem, por si só, a possibilidade de a R. ter previsto o sinistro com a diligência devida, não se encontra base para concluir pelo invocado erro de direito no sentido pretendido pela Recorrente de que a R. omitiu comportamento culposo em violação do dever objetivo de cuidado, ao manter o parqueamento e acondicionamento do contentor em referência perante as previsões meteoro-lógicas então difundidas.   

Termos em que não merece censura a conclusão da Relação no sentido de ter por não demonstrado que “a R. TCL tenha agido ilicitamente e com culpa, infringindo um dever legal de conduta, ou que tenha contribuído, com uma conduta indevida e omissiva, para o derrube do contentor em questão sob a força do vento forte que soprou na madrugada do dia 19.1.2013.”


Não obstante isso, a Relação teve ainda por verificada uma situação de força maior, considerando que o desabamento do contentor em referência terá ficado unicamente a dever-se às condições meteorológicas especialmente severas que então ocorreram e que constituem, para todos os efeitos, um caso de força maior, contra o que a Recorrente também se insurge.

Não se tendo dado como provado o facto constante do ponto 2.3, que se traduziria porventura em facto fortuito, ainda assim a Relação considerou que as condições meteorológicas especialmente severas ocorridas constituíam uma inevitabilidade a valorar em sede de força maior, muito embora sem precisar, nesta sede, em que temos é que tais condições não permitiriam à R. evitar o resultado ocorrido, caso o tivesse previsto.

De todo o modo, uma situação de força maior constitui, em regra, causa exclu-dente da própria voluntariedade do facto ilícito comissivo ou omissivo, retirando ao agente qualquer domínio da vontade sobre o mesmo[3].

Porém, no caso presente, a conclusão de que a R. não infringiu um dever legal de conduta nem contribuiu com uma conduta indevida e omissiva para o derribe do contentor em causa foi estribada, em primeira linha, na circunstância de não se verificar a possibilidade de aquela R. ter previsto o sinistro usando da diligência devida.

Assim, não sendo sequer imputável à R., por tais razões, um comportamento omissivo relevante, torna-se despiciendo considerar a existência de uma conduta omissiva justificada por virtude de uma situação de força maior.

Ou seja, a inexistência de comportamento omissivo relevante reside, prioritaria-mente, no facto de o mesmo não ser, desde logo, devido por não ter sido previsto pela R. nem esta ter podido nem devendo prevê-lo, e não por tê-lo omitido em virtude de circunstâncias de força maior, o que torna desnecessárias quaisquer outras considerações a este propósito.

Termos em que se impõe concluir pela negação da revista.


IV - Decisão   


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso são da responsabilidade da A./Recorrente.

                                   

Lisboa, 28 de janeiro de 2021


Manuel Tomé Soares Gomes

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching


   Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência.                                                

Lisboa, 28 de janeiro de 2021

O Juiz Relator

Manuel Tomé Soares Gomes

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[1] A este propósito, veja-se, entre outros, ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2000, p. 573.
[2] ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 573.
[3] A este propósito, veja-se, ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 10.ª Edição, 2000, p. 529.