Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
586/14.2T8PNF-K1-A.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VALOR DA CAUSA
ALÇADA
PODERES DO JUIZ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - INSTÂNCIA / VALOR DA CAUSA - PROCESSOS ESPECIAIS / PRESTAÇÃO DE CONTAS.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS SUCESSÕES / LIQUIDAÇÃO DA HERANÇA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2093.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 298.º, N.º 4, E 299.º, N.º 4, 306.º, N.º 3, 629.º, N.º1, 941.º.
LEI N.º 52/2008 DE 28 DE AGOSTO - LOFTJ): - ARTIGO 31.º, N.º 3.
Sumário :
I - A admissibilidade do recurso ordinário está dependente da verificação cumulativa de dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; e (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna (art. 629.º, n.º 1, do CPC).

II - No processo de prestação de contas, o valor a considerar não pode ser aquele que lhe é atribuído no requerimento em que se abre a ação, devendo, ao invés, tal valor ser corrigido, tantas vezes quantas as necessárias, de acordo com os elementos que, a esse propósito, vão sendo conhecidos no desenvolvimento da lide; para efeitos de admissibilidade de recurso, é o valor encontrado nesse contexto processual o que tem de ser conferido, devendo observar-se que, neste tipo de processo, o valor da causa é o da receita bruta ou o da despesa apresentada, se este for superior (arts. 298.º, n.º 4, e 299.º, n.º 4, do CPC).

III - Competindo ao juiz fixar o valor da causa, é ao valor da ação, jurisdicionalmente decretado, que se há-de atender para a confirmação do valor da alçada do tribunal de que se recorre, impondo-se ao juiz que, se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa, o mesmo o fixe no despacho que ordena a sua subida (art. 306.º, n.º 3, do CPC); quer isto dizer, que o valor da alçada há-de ser encontrado, inexoravelmente, através do valor da ação fixado no momento em que é interposto o recurso, não tendo acolhimento jurídico-processual qualquer outro critério, designadamente aquele que se poderia retirar do que se projeta da contestação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA intentou a presente acção especial de prestação de contas contra BB, sendo chamados CC e DD, fundada na obrigação decorrente de exercer o cargo de cabeça de casal na herança aberta por óbito de EE e FF.


O réu, não contestando a dita obrigação após ter sido citado, veio prestar as contas.


A requerente contestou, alegando que o cabeça de casal omite rendimentos decorrentes de subsídios a que se candidatou na qualidade de administrador de bens da herança, bem como valores de rendas, pedindo a condenação daquele como litigante de má fé.


Prosseguindo o processo seguiu os seus regulares termos, na audiência de julgamento que teve lugar no dia 21/10/2015 a requerente ditou para a acta o seguinte requerimento:

Sr.ª Dr.ª eu acho pertinente juntar aos autos o que estas testemunhas disseram nos anteriores processos de prestação de contas, porque a matéria é exactamente igual e até porque elas foram ouvidas recentemente e então que fosse permitida a junção das respostas ii matéria de fato e portanto onde está escrito o que elas disseram (…).

Perante os depoimentos prestados por estas testemunhas torna-se necessário juntar cópias das anteriores respostas da matéria de facto das prestações de contas que entraram em certos pontos em contradição ao que eles disseram agora".


Após o exercício do contraditório a Sr.ª juiz do processo proferiu o seguinte despacho:

A requerente pretende que lhe seja concedido um prazo para juntar documentos dos quais alegadamente conterão a transcrição dos depoimentos prestados pelas testemunhas que acabaram de depor a fim de se aquilatar de contradições entre estes depoimentos e os depoimentos prestados num outro apenso deste processo.

O ora requerido não consubstancia propriamente a junção de documentos, primeiro porque nem sequer foram juntos, e em segundo lugar porque as transcrições de depoimentos não constituem propriamente documentos, em segundo lugar afigura-se-nos que a requerente pretende contraditar os documentos ou contraditar as testemunhas, trata-se de um incidente previsto no art. 521.° e seguintes do CPC, sendo certo que não é observada a forma aí prevista, por outro lado, nos termos do art. 413.º do CPC o Tribunal na decisão deve tomar em consideração as provas produzidas na audiência de julgamento, assim sendo, por ser inadmissível a junção de documentos, por não observar a forma da contradita de testemunhas previstas no art. 521.º do CPC indefiro o requerido".


Não se conformando com o assim decidido, desta decisão veio a requerente interpor recurso de apelação autónoma para a Relação do Porto que, por acórdão de 02.05.2016 (cfr. fls. 17 a 40), julgou a apelação improcedente e, consequentemente, confirmou a decisão recorrida.


Irresignada, desta deliberação interpôs revista excepcional a requerente AA, sob o fundamento de relevância jurídica necessária para uma melhor aplicação do direito.

As razões de rejeições tornam-se díspares, conforme o consagrado nos artigos 944.° e 945-2, 4 e 5 do Código de Processo Civil, em que nas acções de prestação de contas, o ónus da prova incide sobre a pessoa obrigada a prestar contas.


Todavia o Ex.mo Juiz Relator, considerando que à ação foi fixado o valor de € 5.000,01 por despacho transitado em julgado e a alçada da Relação é de € 30.000,00 (art.º 24.º da Lei n.º 3/99, de 13/1), não admitiu a revista interposta (cfr. despacho de fls. 152).


É contra este despacho que a requerente AA reclama.

Para a recorrente, no processo especial de prestação de contas o seu valor vai sendo actualizado à medida que vão sendo apurados os rendimentos da herança indivisa, pelo que, com a interposição do recurso, esse valor não está definido e nem transitou em julgado, aplicando-se o artigo 298.°, n.º 3 e 299.º, n.º 4 do Código Processo Civil.

Na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a acção é proposta; todavia, nos processos de liquidação ou noutros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, o valor inicialmente aceite será corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários (art.º 299.º, n.º 1 e 3, do C.P.Civil).

Quer isto dizer que, em todos os casos em que a utilidade económica que para as partes advém da acção só posteriormente à sua entrada em juízo se pode convenientemente definir o valor inicialmente proposto haverá de ser oportunamente rectificado de acordo com os novos valores trazidas ao processo.


Ao contrário do defendido pelo Tribunal, não pode um despacho num processo destes fixar em definitivo o valor da causa, muito menos, transitar em julgado esse valor, pois implicaria que o tribunal nunca poderia corrigir, como é possível e exigível, num processo deste género.

Torna-se assim claro que o valor da causa não pode manter-se no determinado pelo despacho reclamado, mas sim no da contestação em cujos valores são superiores; e só com este valor, a alçada em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça estará salvaguardada, o que faz toda a justiça, visto trata-se de acção com valores elevados.

Termina pedindo que seja admitida a revista excecional interposta.


Por decisão singular do Relator, motivando-se na circunstância jurídico-processual de, muito embora da descrição posta no n.º 4 do art.º 299.º do C.P.Civil resulte que o valor a considerar no processo de prestação de contas pode não ser aquele que lhe é atribuído no requerimento em que se abre a ação, havendo este valor de ser corrigido tantas vezes quantas as necessárias e de acordo com os elementos que, a esse propósito, vão sendo trazidos e conhecidos no desenvolvimento da lide, a verdade é que o valor da alçada há-de ser encontrado, inexoravelmente, através do valor da ação fixado no momento em que ele é interposto o recurso, foi desatendida a reclamação feita contra a inadmissibilidade da revista excecional interposta pela reclamante/recorrente.

      

Contra esta nossa decisão, assim explicitada, reclama para a conferência a requerente AA, argumentando que, como já o havia sustentado na sua reclamação, estando nós perante uma ação especial de prestação de contas, onde a utilidade económica do pedido só se define na sequência da ação e o valor inicialmente aceite pode e deve ser corrigido mediante a utilidade económica imediata que a autora pretende obter (art.º 299.º, n.º 1 e 3, do C.P.Civil, o valor da causa não pode manter-se no inicialmente determinado, mas sim no da contestação em cujos valores são superiores, a revista deve ser admitida.


Vejamos, então, se assiste razão à requerente/recorrente.



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    I. Nos termos do disposto no art.º 941.º do C.P.Civil (anterior art.º 1014.º) "a acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se".


     Cabendo ao réu prestar contas da administração dos bens da herança perante os restantes herdeiros, por ser o respectiva cabeça de casal (artigo 2093.º do Código Civil), o que é preciso saber, efectivamente, é qual o valor do saldo apurado entre as receitas e as despesas resultantes do cabeçalato exercido no inventário a que se procedeu por óbito de EE e FF, no período compreendido entre 01.01.2005 e 31.12.2012.


A 1.ª instância, por decisão datada de 05.11.2015 (cfr. fls. 82 do processo), fixando o valor da ação em € 805,00, avaliou em € 805,00 o montante da receita e em € 344,52 o da despesa e, em consequência, apurou um saldo a favor da herança aberta por óbito de FF no valor de € 460,48 (quatrocentos e sessenta euros e quarenta e oito cêntimos).


Resulta também dos autos (cfr. despacho de fls. 142 e segs.) que o valor da ação para efeitos do presente recurso de revista é de € 5.000,01, por despacho já transitado em julgado, circunstancialismo processual este que não é denegado pela reclamante/recorrente.


     II. Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à
alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a
metade da alçada desse tribunal (artigo 629.º, n.º 1, do C. P. Civil).


    Flui deste normativo legal que a admissibilidade de recurso está dependente da verificação cumulativa destes dois pressupostos jurídico-processuais:

   - O valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre;

e ainda

    - A decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou decisão que se impugna. 


    Alçada é, assim, o limite, definido em regra pelo valor da causa, dentro do qual um tribunal julga sem possibilidade de recurso ordinário.


     Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é agora de € 30.000,00 e a dos tribunais de 1.ª instância é de € 5.000,00 (artigo 31.º da Lei n.º 52/2008 de 28 de Agosto - LOFTJ), anotando-se que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção (n.º 3 deste normativo legal).


    A presente ação tem, para efeitos de recurso, o valor de € 5.000,01; e, sendo assim, porque se não verificam os pressupostos gerais da sua admissibilidade, designadamente no que se refere ao valor da causa e da sucumbência, conforme sentencia o despacho em reclamação e a reclamante neste ponto nele aquiesce, a revista não pode ser recebida.


    III. Da descrição posta no n.º 4 do art.º 299.º do C.P.Civil resulta que o valor a considerar no processo de prestação de contas pode não ser aquele que lhe é atribuído no requerimento em que se abre a ação.

    Este valor haverá de ser corrigido, tantas vezes quantas as necessárias e de acordo com os elementos que, a esse propósito, vão sendo trazidos e conhecidos no desenvolvimento da lide; e, para efeitos de admissibilidade de recurso, é o valor encontrado neste contexto processual o que tem de ser conferido, havendo sempre de observar-se que nas ações de prestação de contas, o valor é o da receita bruta ou o da despesa apresentada, se lhe for superior (n.º 4 do art.º 298.º do C.P.Civil).


    Este ditame legal foi plenamente cumprido na presente ação, havendo de atender-se, para efeitos do recurso interposto, ao valor da ação proficientemente revelado pelo Ex.mo Relator, isto é, ao valor de € 5.000,01, nos termos do despacho de fls. 142 e segs. já transitado em julgado.


    IV. Argúi a reclamante que o despacho que fixou o valor da ação em € 5.000,01 não pode transitar em julgado e fixar, em definitivo, o valor da causa; o valor da ação que deve ser considerado nesta prestação de contas é o que está proposto na contestação, cujo valor é superior, conclui.


        Este entendimento não pode proceder.

   Na verdade, competindo ao juiz fixar o valor da causa, é sempre delineado no valor da ação, jurisdicionalmente decretado, que se há-de atender para a confirmação do valor da alçada do tribunal de que se recorre, impondo-se ao juiz que, se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa, tenha de fixá-lo no despacho que ordena a sua subida (n.º 3 do art.º 306.º do C.P.Civil).

    

   Quer isto dizer que o valor da alçada há-de ser encontrado, inexoravelmente, através do valor da ação fixado no momento em que ele é interposto o recurso.

   

    Jurídico-processualmente não tem acolhimento qualquer outro ditame que se distancie deste consagrado princípio legal, designadamente aquele que se pode retirar do que se projeta da contestação, como defende a reclamante.

    Só após a sua concreta apreciação jurisdicional, transposta especificadamente para a respetiva decisão, é que podemos falar do real valor da ação, neste enquadramento legal se pautando o juízo sobre a admissibilidade do recurso interposto.


    A revista interposta pela reclamante/recorrente não pode, assim, ser assentida.


    Pelo exposto, indeferimos a reclamação deduzida pela requerente/recorrente AA.


   Custas pelo requerente/recorrente, fixando em 3 Uc´s a taxa de justiça.


Supremo Tribunal de Justiça, 22 de fevereiro de 2017.


Silva Gonçalves (Relator)

António Piçarra

Fernanda Isabel Pereira