Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MANUEL BRAZ | ||
| Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA ELEIÇÕES CAMPANHA ELEITORAL PRÉ-CAMPANHA ELEITORAL CÂMARA MUNICIPAL MATÉRIA DE FACTO FACTOS PROVADOS FUNDAMENTAÇÃO DOLO ILICITUDE PRINCÍPIO DA IGUALDADE | ||
| Data do Acordão: | 10/03/2013 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | ÚNICA INSTÂNCIA | ||
| Decisão: | PROCEDÊNCIA / DECRETAMENTO TOTAL | ||
| Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL - SENTENÇA. DIREITO CONTRA ORDENACIONAL - APLICAÇÃO DA COIMA PELAS AUTORIDADES ADMINISTRATIVAS - RECURSO E PROCESSO JUDICIAIS. SISTEMA ELEITORAL PORTUGUÊS | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 374.º, N.º2, 379.º, N.º 1, ALÍNEA A),. DL Nº 433/82, DE 27 DE OUTUBRO: - ARTIGO 58.º, N.º1, 62.º, N.º1. LEI ELEITORAL DOS ÓRGÃOS DAS AUTARQUIAS LOCAIS (LEOAL), APROVADA PELA LEI ORGÂNICA N° 1/2001, DE 14 DE AGOSTO: - ARTIGOS 20.º, N.º1, 40.º, 47.º, 48.º, 49.º, N.º1, 212.º. | ||
| Sumário : |
IV - Não tendo a recorrente violado o dever imposto pelo art. 40.º e não se lhe impondo o previsto no art. 49.º, n.º 1, não se preenche a contra-ordenação punível pelo art. 212.º, todos da LEOAL.
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| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
A Comissão Nacional de Eleições (CNE) proferiu em 16/06/2012 a seguinte deliberação: «Julga-se verificada a infracção ao disposto no artigo 40° e no n° 1 do artigo 49° da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica n° 1/2001, de 14 de Agosto, cometida pela AA, S.A., sendo por conseguinte autora da contra-ordenação prevista e punida no artigo 212° da mesma lei. Atendendo à matéria factual apurada e à prova produzida no processo, bem como aos critérios de determinação da coima referidos e ponderados os factores mencionados, a CNE, no uso da competência que lhe é cometida pelo n° 1 do artigo 203° da LEOAL, condena a arguida “AA, S.A.”, pela prática da contra-ordenação prevista e punida nos termos do artigo 212° da mesma lei e aplica uma admoestação nos termos seguintes: “Adverte-se a arguida “AA, S.A.”, para o estrito cumprimento, em futuros processos eleitorais, do preceituado nos artigos, 38°, 40° e 49° da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, aprovada pela Lei Orgânica n° 1/200 1, de 14 de Agosto, e dos preceitos similares no âmbito das restantes leis eleitorais, em toda a sua extensão e alcance jurídico”». AA, SA, interpôs recurso dessa deliberação para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que se declare a nulidade da decisão recorrida, por violação do disposto no artº 58º, nº 1, alínea b), do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, ou, se assim não for entendido, se decrete a sua absolvição. Essa decisão assentou nos seguintes factos tidos como provados: «1. No dia 28 de Julho de 2009, no âmbito das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2009 referentes ao município de ..., a estação de televisão AA realizou um debate com BB e CC, candidatos – publicamente anunciados – respectivamente do Partido DD e da coligação EE (...) à Câmara Municipal de ... para debater ideias e projectos para a cidade de .... 2. Para o referido debate não foi convidado o candidato da coligação FF, igualmente concorrente à Câmara Municipal de ..., tendo a sua candidatura sido divulgada publicamente desde 26 de Março de 2009. 3. O debate realizado pela AA no dia 28 de Julho de 2009, no “Jornal da Noite”, no âmbito das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2009, decorreu no período de pré-campanha eleitoral, tendo a marcação oficial das eleições sido efectuada pelo Decreto n° 16/2009, de 3 de Julho, publicado no DR, 1ª Série – nº 127, de 3 de Julho de 2009. 4. O debate realizado pela AA no dia 28 de Julho de 2009, no “Jornal da Noite”, ocorreu após a marcação da data das eleições, no período de pré-campanha, no qual já se conheciam algumas das candidaturas ao acto eleitoral em questão, entre as quais a candidatura da Coligação FF e o seu candidato GG. 5. Não se realizaram durante eleitoral em questão outros debates na AA com candidatos à Câmara Municipal de ...».
Antes de iniciada a audiência, o presidente, de acordo com o relator e a juíza conselheira adjunta, comunicou ao MP e à recorrente que o processo contém já todos os elementos necessários à decisão da causa e perguntou-lhes se se opunham à decisão do recurso em conferência, nos termos do artº 64º, nº 2, do DL nº 433/82, correspondentemente aplicável, tendo ambos respondido que não se opunham. Cumpre decidir.
Fundamentação: 1. Diz em primeiro lugar a recorrente que a decisão da CNE não contém quaisquer factos atinentes ao tipo subjectivo do ilícito imputado, em violação do disposto no artº 58º, nº 1, alínea b), do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, em consequência do que, por aplicação subsidiária do artº 41º, nº 1, do mesmo diploma, enfermaria da nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artº 374º, nº 2, ambos do CPP. O nº 1 do indicado artº 58º refere-se à «decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias», não estando nessa situação a decisão recorrida, que se limitou a proferir uma admoestação. Considerando, porém, como tem aqui de considerar-se, em face do decidido pelo Tribunal Constitucional no âmbito deste processo, que a decisão que profere a admoestação admite impugnação judicial, não pode deixar de entender-se que a esta decisão é extensível o regime do nº 1 do artº 58º. Para permitir precisamente essa impugnação. A decisão da autoridade administrativa que pronuncia uma admoestação deve, pois, «conter a descrição dos factos imputados». Independentemente de saber quais as consequências processuais que advêm de omissões relativas à descrição dos factos imputados [designadamente se deve aí ver-se, por aplicação subsidiária das normas do processo criminal, uma nulidade correspondente à nulidade de sentença prevista artº 379º, nº 1, alínea a), com referência ao artº 374º, nº 2, ambos do CPP, quando o artº 62º, nº 1, do DL nº 433/82 a coloca no plano da acusação, a inculcar a ideia de que a omissão de factos na decisão administrativa relevará em sede de apreciação do mérito da acusação], não se verifica a omissão pretendida pela recorrente. Reconhece a recorrente que, na parte intitulada de motivação da decisão sobre a matéria de facto se afirma que “em face dos elementos de prova obtidos e dos factos dados como provados no caso em apreço, entende-se que a arguida, ao actuar do modo supra descrito, agiu com dolo pois, intencionalmente, adoptou critérios jornalísticos discriminatórios, que vieram dar origem a factos tipicamente ilícitos, violando interesses de ordem pública legalmente protegidos e que consubstanciam a prática do ilícito de mera ordenação social, p.p. no artigo 212º da LEOAL”. Alega, porém, que essa “formulação conclusiva” não passa de “uma consideração de iure, não havendo na decisão recorrida “qualquer concretização prática, real e reportada ao caso concreto, daquilo que a autoridade administrativa entendeu como sendo a consciência do facto, da ilicitude do mesmo e da vontade em o concretizar”. É certo que dizer-se que o agente de um facto tipicamente previsto como infracção agiu com dolo é uma conclusão ou afirmação de direito. Mas a decisão recorrida não se limitou a expressar essa conclusão. Como se vê da passagem transcrita pela recorrente, a CNE afirmou que a arguida «intencionalmente adoptou critérios jornalísticos discriminatórios, que vieram dar origem a factos tipicamente ilícitos, violando interesses de ordem pública legalmente protegidos e que consubstanciam a prática do ilícito de mera ordenação social, p.p. no artigo 212º da LEOAL”. Afirmar que a arguida «intencionalmente adoptou critérios jornalísticos discriminatórios» equivale a dizer que actuou voluntariamente, sabendo que o comportamento adoptado era discriminatório para outras candidaturas. E ao concluir-se que esses critérios discriminatórios e intencionais deram origem a factos tipicamente ilícitos, atribui-se à recorrente o conhecimento do carácter ilícito da sua conduta. Na verdade, adoptando a arguida voluntariamente critérios discriminatórios e estando a ilicitude nesse discriminação, só pode inferir-se que estava consciente do carácter ilícito desse seu comportamento. Constam, pois, da decisão recorrida os factos que integram o tipo subjectivo de ilícito imputado, sendo irrelevante que se localizem, não entre os descritos como provados, mas na fundamentação da decisão de facto.
2. Em segundo lugar, pretende a recorrente que -o debate televisivo em causa ocorreu no período de pré-campanha, onde não há mais que mera propaganda, que pode ser feita por quem, ou não, concorra ao acto eleitoral; -sobre esse período rege o artº 40º da LEOAL; -esse preceito apenas concede aos candidatos o “direito de efectuarem livremente e nas melhores condições a sua propaganda”; -parece assim inequívoco que só aos candidatos ou partidos cabe tomar a iniciativa de concretizar tais actos de propaganda, os quais não são confundíveis com um debate televisivo; -não cabe a um órgão de comunicação social privado, como é a recorrente, tomar a iniciativa de produzir, ele próprio, actos de propaganda de partidos ou candidatos; -quando muito, e no que respeita aos órgãos de comunicação social, o artº 40º consagra, de forma mediata, um dever geral de abstenção, no sentido de repressão de comportamentos que possam prejudicar as acções de propaganda eleitoral realizadas pelas próprias candidaturas; -não se invocam nem provam quaisquer comportamentos imputáveis à recorrente que possam ser subsumidos nessa norma; -o artº 212º da LEOAL estabelece sanções apenas para os comportamentos que violem o princípio da igualdade de oportunidades das candidaturas no decurso da campanha eleitoral, previsto no artº 49º; -não se encontram na lei quaisquer sanções relativas à violação do artº 40º; -tendo o debate ocorrido durante o período de pré-campanha, e não no período de campanha eleitoral, não é aplicável ao caso o artº 49º do mesmo diploma; -não praticou, assim, a contra-ordenação imputada. Vejamos. Nos termos do artº 212º da LEOAL, «a empresa proprietária de publicação informativa que não proceder às comunicações relativas a campanha eleitoral previstas na presente lei ou que não der tratamento igualitário às diversas candidaturas é punida com coima de (…)». No caso, interessa a segunda parte. Não caracterizando a norma o exigido tratamento igualitário das diversas candidaturas, essa caracterização tem de ser procurada noutras normas. Essas normas são os artºs 40º [«Os candidatos, os partidos políticos, coligações e grupos proponentes têm direito a efectuar livremente e nas melhores condições a sua propaganda eleitoral, devendo as entidades públicas e privadas proporcionar-lhes igual tratamento».] e 49º, nº 1 [«Os órgãos de comunicação social que façam a cobertura da campanha eleitoral devem dar um tratamento jornalístico não discriminatório às diversas candidaturas. »], do referido diploma. O artº 40º insere-se no Capítulo I [Princípios Gerais] do Título IV [Propaganda eleitoral] da LEOAL. O artº 49º insere-se no Capítulo II [Campanha eleitoral] do mesmo Título. Como dispõe o artº 47º, «o período da campanha eleitoral inicia-se no 12º dia anterior e finda às 24 horas da ante véspera do dia designado para as eleições». Estão em causa as eleições autárquicas de 2009. Para a sua realização foi designado o dia 11/10/2009, pelo Decreto nº 16/2009, de 3 de Julho. O debate televisivo realizado pela arguida teve lugar em 28/07/2009, ou seja, em momento anterior ao início da campanha eleitoral, mas depois da publicação do decreto que marcou as eleições. Por isso, de harmonia com o disposto no artº 38º, está sujeito à disciplina do referido Capítulo I, que abarca os artºs 38º a 46º. Aplica-se-lhe, pois, o regime do artº 40º, sendo-lhe estranho, ao contrário do que se refere na decisão recorrida, o regime estabelecido no artº 49º. Este vigora apenas para o período de campanha eleitoral, que, naquela data, estava longe de se ter iniciado. Deste modo, o tratamento não igualitário das diversas candidaturas que configura a infracção punível pelo artº 212º é, no período de pré-campanha, fase do processo eleitoral em que o debate em análise ocorreu, aquele que couber na previsão do artº 40º. Este preceito refere-se ao direito que os candidatos, partidos políticos, coligações e grupos proponentes têm de efectuar livremente e nas melhores condições a sua propaganda eleitoral, e exige que nas acções de propaganda que desenvolvam haja tratamento igual das candidaturas por parte das entidades públicas e privadas. Para se entrar no âmbito de previsão da norma é necessário, pois, que se esteja perante uma acção de propaganda eleitoral promovida por um candidato, partido político, coligação ou grupo de proponentes. É em relação a essas acções de propaganda eleitoral que o preceito é perspectivado. Os candidatos, os partidos políticos, as coligações e os grupos de proponentes, no período de pré-campanha, têm direito a efectuar a sua propaganda eleitoral livremente e nas melhores condições, isto é, sem que lhes sejam opostos obstáculos ou dificuldades, tanto por entidades públicas como privadas, devendo umas e outras, no âmbito das acções de propaganda eleitoral que cada candidato, partido político, coligação ou grupo de proponentes entenda realizar, proporcionar-lhes tratamento igual. Neste período, a violação deste dever de tratamento igual há-de traduzir-se numa acção ou omissão de entidade pública ou privada que tenha por objecto uma acção de propaganda eleitoral desenvolvida por um candidato, partido político, coligação ou grupo de proponentes. Não foi isso que se verificou no caso. O que houve foi um debate televisivo organizado pela recorrente, órgão de comunicação social, entre dois candidatos à presidência da Câmara Municipal de .... Não uma acção de propaganda de qualquer dos candidatos convidados relativamente à qual a recorrente tenha tido uma determinada postura ou atitude. Se essa conduta da recorrente tivesse tido lugar no período de campanha eleitoral, violaria eventualmente a disposição do nº 1 do artº 49º, que, impondo um tratamento jornalístico não discriminatório das diversas candidaturas em termos gerais, tem um âmbito de aplicação mais amplo que o artº 40º, onde se impõe um tratamento jornalístico igual, mas reportado a uma acção de propaganda de um candidato, partido político, coligação ou grupo de proponentes. Diz a CNE na sua decisão que “os princípios gerais relativos à cobertura jornalística da campanha eleitoral são aplicáveis no período denominado por «pré-campanha», ou seja, desde a publicação do decreto que marque a data das eleições gerais e abrangem, não apenas a cobertura eleitoral propriamente dita, como a divulgação de mera «propaganda eleitoral»”. Os princípios gerais que são aplicáveis no período de pré-campanha, isto é, entre a data da publicação do decreto que marca as eleições até ao início da campanha eleitoral, são, nos termos já referidos do artº 38º, os enunciados no Capítulo I do Título IV – artºs 38º a 46º –, o que exclui o regime do artº 49º, privativo do período de campanha eleitoral. A postura dos órgãos de comunicação social relativamente a candidatos à eleição é perspectivada pela LEOAL de modo diverso no período de pré-campanha (artº 40º) e no período de campanha eleitoral (artº 49º), não podendo estender-se o regime desta àquela. E há lógica nessa opção legislativa. Efectivamente, porque, nos termos do artº 20º, nº 1, da LEOAL, as listas de candidatos são apresentadas perante o juiz até ao 55º dia anterior à data do acto eleitoral, durante uma boa parte do período de pré-campanha, não há ainda ou pode não haver candidaturas, podendo bem acontecer que algumas das anunciadas e que desenvolvem acções de propaganda eleitoral não venham a apresentar-se à eleição. Tem por isso sentido perspectivar, na fase de pré-campanha, o dever de tratamento igual por parte de entidades públicas e privadas apenas em relação às acções de propaganda eleitoral promovidas ou da iniciativa dos candidatos, partidos políticos, coligações e grupos de proponentes. Nem será outra a razão pela qual o artº 40º, que rege para este período, não fala de candidaturas, já o fazendo o artº 49º, nº 1, que cobre um período – o da campanha eleitoral – em que, necessariamente, já há candidaturas. Assim, não tendo a recorrente violado o dever imposto pelo artº 40º e não se lhe impondo o previsto no artº 49º, nº 1, não se preenche a contra-ordenação punível pelo artº 212º, todos da LEOAL, improcedendo a acusação. Esta solução prejudica o conhecimento das restantes questões colocadas pela recorrente.
Decisão: Em face do exposto, decidem os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no provimento do recurso, julgar a acusação improcedente e revogar a decisão recorrida. Não há lugar a custas.
Lisboa, 3 de Outubro de 2013 Manuel Braz (Relator) Isabel São Marcos
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