Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9802/15.2T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
PODERES DE COGNIÇÃO
Data do Acordão: 02/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
Não afecta o respeito pela necessária substanciação do pedido, decidir-se com base em responsabilidade civil por facto ilícito a factualidade idêntica que, na decisão judicial recorrida, se subsumira a um dos casos típicos de responsabilidade pelo risco, inexistindo assim nulidade da decisão, seja com base no artº 615º nº1 al.d) 2ª parte, seja com base no art.º 615.º n.º1 al.e), ambos do CPCiv.
Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça


                  

No recurso de revista interposto, na presente acção com processo declarativo comum, que os Autores e Recorridos AA, BB e CC adrede intentaram contra MEO – Serviços de Comunicações e Multimédia, S. A., e Companhia de Seguros T., S.A., foi publicado o acórdão em audiência neste Supremo Tribunal de Justiça, negando a revista.

Em 1.ª instância havia proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os pedidos, fundados em responsabilidade civil extracontratual, e, em consequência:

a) Condenou a R. MEO – Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A., a pagar aos AA. a quantia de € 70 000 (setenta mil euros), a título e indemnização pelo dano morte.

b) Condenou a R. MEO a pagar ao A. AA a quantia de € 25 000 (vinte e cinco mil euros), a título e indemnização por danos não patrimoniais próprios.

c) Condenou a R. MEO a pagar a cada um dos AA. CC e BB a quantia de € 20 000 (vinte mil euros), a título e indemnização por danos não patrimoniais próprios.

d) Condenou a R. MEO a pagar juros de mora, à taxa legal em cada momento vigente, desde a presente data até integral pagamento, sobre as quantias mencionada em a), b) e c).

e) Condenou a R. MEO a pagar aos AA. AA e BB a quantia de € 75 000 (setenta e cinco mil euros), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento.

Absolve a R. Meo do mais peticionado e ainda absolveu a R. Companhia de Seguros T., S.A., do pedido.

Recorrida a sentença de apelação, por parte da Ré Meo, no Tribunal da Relação foi o recurso julgado, por maioria, integralmente improcedente.

O voto de vencido entendeu que, do contrato de prestação de serviços celebrado entre a PT Comunicações, S.A., e a A..., S.A., era esta última, enquanto prestadora de serviço, que era civilmente responsável por qualquer dano emergente da má execução dos trabalhos por ela realizados, “a terceiros em geral” – em consequência, entendeu o voto que a Ré Meo deveria ter sido absolvida do pedido.


No acórdão, sufragando-se a fundamentação do voto de vencido, no sentido de não caber considerar a relação comitente-comissário, afirmando-se a autonomia do prestador de serviços, entendeu-se porém como segue:

Face às obrigações da concessão, os danos ocorridos por motivo de deficiente funcionamento e segurança da rede de telecomunicações, só podem ser imputados à conduta da Recorrente, por falta de vigilância e manutenção da competente infra-estrutura, permitindo que existisse contacto directo e passagem de corrente eléctrica entre as linhas de distribuição de electricidade e as linhas de telecomunicações.

Para mais, é de afirmar recair sobre a Recorrente uma presunção de culpa que não logrou ilidir, com a demonstração de que “nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, nos termos do art.º 493.º n.º1 do CCiv.

Nesta citada norma, o legislador estabelece situações de inversão do ónus da prova, no sentido de que, se continua a existir uma responsabilidade por culpa do agente, a culpa se presume.

Responsabiliza-se assim quem tem a vigilância da coisa móvel ou imóvel, no caso a vigilância do traçado da rede de telecomunicações da PT, obstaculizando a electrificação das massas metálicas desse traçado, mais a mais aquelas partes da rede que podem ser facilmente acessíveis às pessoas e, dessa forma, causa de danos – a norma estabelece a presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou animais.

Por outro lado, o dano morte ocorrido na pessoa da mulher e mãe dos Autores constitui prejuízo que se evitaria plausivelmente caso o dever de vigilância tivesse sido observado; trata-se de um dano que poderia ser típica e eficientemente sustado pelo acatamento do dever, já que a obrigação de indemnizar só se exclui quando se demonstra que o sujeito desenvolveu a diligência exigível, segundo as condições do tráfico jurídico, para evitar o dano (assim, Carneiro da Frada, R.O.A., 65.º ano, II, pg. 407, cit. in Ac.R.G. 7/2/2019 Col.I/313). 

Neste contexto, da conjugação das previsões legais citadas com os factos provados, não pode deixar de se concluir que incumbia à Recorrente exercer vigilância sobre a infraestrutura de telecomunicações, por forma a impedir a ostensiva passagem de corrente eléctrica para os cabos de aço que sustentavam o traçado da PT, impedindo a electrificação das massas metálicas (cabos de aço, fixações metálicas, etc.) desse traçado, acessíveis a qualquer pessoa.

E mais cumpre acrescentar que, à luz da norma do art.º 493.º n.º1 do CCiv, incumbia à Recorrente, sobre quem incidiam os citados deveres, o ónus de prova de os ter cumprido, ou de que, ainda que o não tivesse feito, sempre os danos se teriam produzido, designadamente por uma eventual causa fortuita ou de força maior, que os factos não evidenciam (antes a corrente eléctrica em contacto tendo decorrido do não respeito da distância mínima entre as linhas eléctricas e de telecomunicações e da degradação dessas linhas).

Neste mesmo sentido, veja-se o Ac.S.T.J. 20/11/2014, p.º n.º 155/11.9TCFUN.L1.S1, rel. Abrantes Geraldes.


Suscita agora o Recorrente as nulidades do acórdão, com base nas normas do art.º 615.º n.º1 al.d) 2.ª parte e al.e) 2.ª parte do CPCiv (excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso do peticionado), resumindo a respectiva alegação nas seguintes conclusões:

A. O Acórdão que ora se coloca em crise, embora elaborado com reconhecido mérito e labor, revela-se ferido de nulidade uma vez que, bem decidindo quanto à questão a classificação jurídica do contrato entre a MEO e a A..., S.A, vem a decidir, de forma surpreendente, pela condenação da Ré por factos que não constam do processo, nem nunca foram alegados pelos Autores, nem alvo de contraditório pela Ré, condenando a Ré por factualidade e enquadramento jurídico que nunca anteriormente no presente processo havia sido considerado, nem pelas partes nem pelas instâncias judiciais anteriores.

B. Cumpre relevar que, o próprio STJ, bem como todas as instâncias anteriores decidiram corretamente que a responsabilidade pela intervenção de provocou o acidente em causa nos presentes autos foi da A..., S.A, responsabilidade civil aquiliana, direta, totalmente assente e transitada em julgado, no entanto, de forma totalmente sustentada, porquanto com base em factos que não constam sequer do processo, vem o Acordão em crise condenar a Ré por uma responsabilidade pelo Risco decorrente de factos não presentes nem alegados no processo.

C. Não só não consta da matéria de facto provada que a Ré era a concessionária do serviço público de telecomunicações à data dos factos, como tal qualidade e a eventual responsabilidade pelo risco da infraestrutura em causa nunca foi sequer invocada pelos Autores ou alvo de contraditório pela Ré.

D. Muito menos foi tal questão em alguma altura colocada à consideração das diversas instâncias judiciais, nem a própria imputação de responsabilidade pelo risco sindicada junto do STJ.

E. Ao que se junta o facto de o STJ decidir pela imputação da totalidade dos danos invocados pelos Autores à ora Recorrente por via da responsabilidade pelo risco, quando no mesmo Acordão, de forma clara, resulta existir uma responsabilidade civil direta de um outro Réu, a A..., S.A, que de forma clara e inequívoca foi considerada pelas diversas instâncias judiciais como a única entidade com responsabilidade pelo acidente ocorrido.

F. Concorda-se assim plenamente com a interpretação expendida pelo Acordão quanto à questão que lhe fora colocada à consideração no Recurso apresentado do Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo no entanto inequívoco que o ponto 3 da decisão do Acordão do STJ se encontra ferido de Nulidade, por excesso de pronuncia e condenação em objeto diferente do pedido.

G. Donde, e em necessária conclusão, deve ser considerado Nulo Acordão recorridos em conformidade com o exposto, devendo proceder a apelação da MEO, e ser revogada a Sentença de 4 de julho de 2018, sendo a ora Recorrente absolvida dos pedidos contra si deduzidos no âmbito da presente ação.

Conhecendo:


Na presente acção, invocaram os Autores, ora Recorridos, serem, respectivamente, viúvo e filhos de DD, que faleceu a .../.../2009, na sequência de uma descarga eléctrica proveniente de um cabo de aço fixo ao solo (“espia”), que servia de sustentação a um poste de apoio do traçado da PT – Comunicações S.A., e no qual a falecida se apoiou.

Foi pedida a condenação solidária da ora Recorrente e da sua prestadora de serviços (bem como da seguradora desta última), a ora Recorrente, enquanto “empresa responsável pelo desenvolvimento, gestão e exploração das infra-estruturas de telecomunicações e das infra-estruturas de transporte e difusão de sinal de telecomunicações de difusão, à qual pertencia o poste e a espia”.

A seguradora veio a ser absolvida do pedido; quanto à prestadora de serviços, a instância foi julgada extinta, por decisão judicial transitada em julgado.

Quer em 1.ª instância, quer na Relação, por maioria, as decisões extraíram a responsabilidade da ora Recorrente da norma relativa à responsabilidade do comitente, do art.º 500.º n.º1 do CPCiv.

A decisão proferida neste S.T.J., em audiência, sublinhou que, face às obrigações da concessão, os danos ocorridos por motivo de deficiente funcionamento e segurança da rede de telecomunicações, só podiam ser imputados à conduta da Recorrente, por falta de vigilância e manutenção da competente infra-estrutura, permitindo que existisse contacto directo e passagem de corrente eléctrica entre as linhas de distribuição de electricidade e as linhas de telecomunicações.

Recaía sobre a Recorrente uma presunção de culpa que não logrou ilidir, com a demonstração de que “nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, nos termos do art.º 493.º n.º1 do CCiv.


É certo que a decisão é nula quando se mostre viciada por excesso de pronúncia (artº 615º nº1 al.d) 2ª parte), isto é, “sempre que o tribunal utiliza, como fundamento da decisão, matéria não alegada ou condena ou absolve num pedido não formulado, bem como quando conhece de matéria alegada ou pedido formulado em condições em que está impedido de o fazer” (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pg. 222).

Por outro lado, se o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis, condena em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, o caso inclui-se na previsão do art.º 615.º n.º1 al. e) do CPCiv (Teixeira de Sousa, op. cit., pg. 223).

De outro ângulo, é às partes que “cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (art.º 5.º n.º1 do CPCiv) – todavia, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art.º 5.º n.º3 do CPCiv).

É da conjugação dos factos assim alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada que resulta a conhecida teoria da substanciação, pela qual a causa de pedir se define em função da noção complexiva que resulta da conjugação dos factos alegados com a qualificação jurídica que lhes é dada, relação essa da qual o tribunal se não pode afastar (cf. A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I-207).

Se se pede a condenação com base em responsabilidade civil contratual do demandado, não pode decidir-se com base no enriquecimento sem causa; se se pedem as rendas devidas pelo locatário, não pode oficiosamente decretar-se o despejo; se se pede a devolução do sinal em dobro, não pode decretar-se a execução específica do bem.

Neste sentido, o que vinha alegado no petitório era simplesmente a responsabilidade da Ré concessionária - o que foi decidido nas instâncias, foi a imputação à Ré e Recorrente Meo da responsabilidade à luz da norma do art.º 500.º n.º1 do CCiv: responsabilidade do comitente, enquanto expressão de responsabilidade pelo risco.

Mas a responsabilidade civil da Ré/Recorrente foi afirmada neste S.T.J. com base em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, nos termos do art.º 493.º n.º1 do CCiv.

Entre as duas classificações jurídicas, sempre no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a causa de pedir não é o nome que a parte dá ao facto, mas o facto jurídico, tendo-se efectuado neste S.T.J. um enquadramento juscivilístico que não se afastou da substanciação, entendendo-se a solução jurídica como a mais adequada e sempre com base nos factos constantes do processo, sobre os quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar.

Neste sentido, não afecta o respeito pela necessária substanciação do pedido, decidir-se com base em responsabilidade civil por facto ilícito a factualidade idêntica que antes se subsumira a um dos casos típicos de responsabilidade pelo risco – “semelhante liberdade de subsunção jurídica vai exercer-se sobre os factos substantivamente relevantes que foram processualmente adquiridos, nos termos dos dois primeiros números do art.º 5.º do CPCiv” (Carolina Cunha, RLJ, 150.º/234).

Como se expressou Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pg. 311 e 312 (cit. in Carolina Cunha, loc. cit.), “impedir aqui o tribunal de responder em tudo ao pedido de tutela jurídica do impugnante e de o colocar numa situação igual em tudo àquela que pretendia, excepto na exacta qualificação jurídica, redundaria numa situação formalista e injusta”.

Saliente-se finalmente, em reforço do expendido, que a norma do art.º 682.º n.º1 do CPCiv estabelece que, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

O acórdão decidiu assim com respeito do princípio dispositivo e da necessária substanciação do pedido que vem a ser desse princípio decorrente.



Concluindo:

Não afecta o respeito pela necessária substanciação do pedido, decidir-se com base em responsabilidade civil por facto ilícito a factualidade idêntica que, na decisão judicial recorrida, se subsumira a um dos casos típicos de responsabilidade pelo risco, inexistindo assim nulidade da decisão, seja com base no artº 615º nº1 al.d) 2ª parte, seja com base no art.º 615.º n.º1 al.e), ambos do CPCiv.


Termos em que se indefere a invocação de nulidades.

Custas pelo Reclamante/Recorrente.


STJ, 16/2/2023


Vieira e Cunha (Relator)                                              

Ana Paula Lobo

Afonso Henrique Cabral Ferreira