Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
33/14.0T8MCN.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CICLOMOTOR
CAPACETE DE PROTEÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CULPA DO LESADO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
DANO ESTÉTICO
EQUIDADE
Data do Acordão: 05/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I. O facto do Autor não usar capacete no momento do acidente, em contravenção a norma do código de estrada, não é causal ou concorrente do acidente, não excluindo deste modo a responsabilidade do Réu que concorreu culposamente para o mesmo; mas é culposamente causal e concorrente dos danos, por si, sofridos, caindo na previsão do artigo 570º nº 1 do Código Civil.

II - Para a prova desta causalidade culposa, basta que o lesante prove que o lesado circulava sem capacete, cabendo ao lesado o ónus da prova de que os danos se teriam produzido mesmo que tivesse utilizado capacete. 

III – Uma indemnização de 60.000,00 euros é adequada para compensar os danos não patrimoniais sofridos por um jovem de 17 anos, que esteve 48 dias internado, sofreu quatro cirurgias, das quais três na zona da cabeça, padeceu de um quantum doloris de 6/7, um dano estético de 4/7, um índice de repercussão permanente nas atividades desportivas de 4/7 e DFTP (Défice Funcional Temporário Parcial) de 1984 dias.

IV - O dano patrimonial, que visa compensar a perda de ganho futuro e um maior esforço no desempenho da atividade profissional (dano biológico), deve ser estimado com recurso ao valor do ordenado mínimo,  desde o acidente até ao limite de longevidade considerado, tendo em conta que o valor dos salários mínimos nacionais ao longo desse período tem tendência a aumentar e que o lesado poderá durante a sua vida ativa subir de categoria profissional.

V. Segundo o acórdão uniformizador n.º 4/2002, os juros reportam-se à data da sentença, se esta teve em conta no cálculo do montante da indemnização a inflação verificada entre a data do evento danoso e a data da decisão que calcula o valor da indemnização, ou seja, se foi uma decisão atualizadora.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA intentou a presente ação contra BB e Fundo de Garantia Automóvel formulando pedido de condenação dos RR no pagamento da quantia global de € 110.000,00 (conforme ampliação do pedido oportunamente admitida) acrescida de juros à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento; ainda a ressarcir-lhe, no futuro, os danos que se venha a apurar serem decorrentes das lesões sofridas como causa de acidente de viação em que foi interveniente bem assim como o primeiro Réu.

Apenas o 2º réu contestou de forma válida tendo invocado, nomeadamente, a prescrição do direito do autor.

O autor respondeu à contestação da ré.

2. A Sentença julgou procedente a exceção de prescrição invocada pelo 2.º réu e declarou a ação improcedente. 

3. Desta sentença apelou o autor, tendo o Tribunal da Relação deliberado o seguinte:

«Revoga-se a sentença apelada e condena-se os RR. no pagamento solidário ao autor do montante de 39.000,00 euros, acrescidos de juros de mora a contar da data do presente acórdão e até integral pagamento.

Custas por A. e RR na proporção do decaimento».

4. FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA), notificado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, e não se conformando com o mesmo, vem intentar recurso de revista para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, terminando a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:

«1. A indemnização pelo dano decorrente da perda de capacidade de ganho deve fixar-se em somente 50.000,00€.

2. A indemnização pelos danos não patrimoniais do autor deve fixar-se em €18.500,00.

3. Assim sendo, e repercutindo-se a contribuição do réu BB para a sinistro em apenas 50% e, tendo em conta concurso do autor para o agravamento dos danos pelo não uso do capacete em 30%, o julgado recorrido deve ser alterado, no sentido de que a importância total a pagar pelo aqui recorrente seja de apenas 23.975,00€;

4. Mantendo-se o demais decidido quanto a juros de mora.

5. Ao não julgar da forma assinalada, o tribunal a quo violou os artigos 496.º, 562.º e 564.º, nº 2 todos do CC, tendo incorrido em erro de julgamento.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado provado e

procedente, nos termos acima peticionados».

5. AA, autor nestes autos, em que são Réus o Fundo de Garantia Automóvel e outros, não se conformando com o Acórdão do Tribunal da Relação, dele vem interpor recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:

«1ª Consta da assentada do depoimento de parte do Réu BB que este ia “a dar gás”, uma vez que, quer ele, quer o A., se encontravam naquele local para andar de mota, muitas vezes pondo-a de lado nas curvas, o que também o Réu admitiu estar a fazer naquele momento – no momento da colisão.

2ª O mesmo Réu BB referiu ainda que não sabe dizer onde foi especificamente o local do embate.

3º A via era em terra batida, não estava demarcada e tinha uma largura de apenas 4,30 metros.

4º Ir a “a dar gás” e a colocar a mota “de lado nas curvas”, consubstancia condução perigosa e viola dos artigos 3º, 11º, 24º e 25º, todos do Código da Estrada.

5º Alguém que afirma que vai “a dar gás” e a pôr a mota de “lado nas curvas” vai, sem margem para dúvidas, a fazer uma condução perigosa e a velocidade excessiva – mesmo não se apurando a concreta velocidade a que se seguia.

6º O Venerando Supremo Tribunal de Justiça deverá, por isso, revogar o douto Acórdão em crise e imputar a culpa, na totalidade, ao Réu BB e, consequentemente, condenar ambos os Réus.

7ª Quanto à redução em 30% na indemnização concedida ao A. pelo facto de não levar capacete, há que convir que, tendo em conta as concretas sequelas que o A. ficou a padecer, tal parece-nos excessivamente penalizador para o Autor e em desrespeito pelo preceituado no art. 570º do C. C.

8ª Há vários modelos de capacete com que é permitido circular. Os capacetes sem viseira – modelo de utilização lícita – apenas protegem a zona da cabeça, não protegem a face.

9ª Se o A. circulasse com um capacete sem viseira não poderia ser operada qualquer redução da indemnização. Assim, a redução a operar, no caso concreto, terá que o ser com consideração pelas lesões que tal capacete poderia ter minimizado e/ou evitado.

10ª Analisando o teor da perícia de avaliação de dano corporal junto aos autos, constata-se que, tomando por base as concretas sequelas e os correspondentes valores de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que lhe foram atribuídos, é constatável que só a “obst. nasal” e a “alt. oclusão dentária” são lesões na zona da cabeça.

11ª Todavia, com o uso de um capacete semelhante ao identificado supra, não se conseguiriam evitar as identificadas sequelas na zona do nariz e do maxilar. Assim sendo, como o capacete não tinha a virtualidade de impedir as concretas sequelas de que o A. ficou a padecer, havia que não ter operado qualquer redução.

12ª Os montantes indemnizatórios arbitrados pelo TR... estão, na nossa modesta opinião, substancialmente abaixo dos montantes arbitrados pelo STJ para casos similares.

A título de danos não patrimoniais o valor mínimo a arbitrar teria de ser na ordem dos 60.000 € e não os 40.000 €.

13ª Quanto à perda patrimonial futura e, bem assim, ao maior esforço que o A. vai ter de realizar nas tarefas, o Tribunal atingiu o montante de 71.442,00€; todavia se tivesse levado em consideração o salário mínimo - à presente data (665,00€) ou o já definido para 2022 que se cifrará em 705,00€ - teria atingido o valor de 111.925,80€. Defendemos, por isso, que o quantitativo a arbitrar não deverá ser inferior a 90.000€.

14ª Quanto à não condenação em juros desde a citação – tendo em conta o Ac. de U. J. nº 4/02 e o facto de a decisão, garantidamente, não ter procedido a qualquer atualização, deverá a condenação vir a ser com juros desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Termos em que, deve o douto acórdão em crise ser revogado, com as seguintes alterações:

- atribuição da responsabilidade na totalidade ao Réu BB com as legais consequências;

- Não proceder a qualquer redução pelo facto do Autor circular sem capacete ou, no limite, reduzir apenas 10%;

- Condenar os Réus na totalidade do peticionado com juros desde a citação, uma vez que não houve qualquer atualização; com o que se fará boa, sã e oportuna

JUSTIÇA!»

6. FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA), notificado das alegações de revista do autor AA, veio apresentar resposta em que sustentou que o recurso de revista interposto pelo autor deve ser julgado não provado e improcedente.

7. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes, pela sua ordem lógica:

I Recurso do autor, AA

1.1 – Responsabilidade exclusiva do réu pelo acidente

1.2. – Relevância causal para os danos da circunstância de o autor circular sem capacete;

1.3. – Montantes indemnizatórios arbitrados ao autor pelo dano da perda de capacidade de ganho e por danos não patrimoniais;

1.4. – Momento a partir do qual são devidos juros.

II Recurso do réu FGA

2.1 - Montantes indemnizatórios arbitrados ao autor pelo dano da perda de capacidade de ganho e por danos não patrimoniais.


II – Fundamentação

A – Os factos

FACTOS PROVADOS:

1. No dia 04-10-2009, cerca das 17 horas e 50 minutos, no caminho municipal que liga a ... ao campo de futebol de ..., na freguesia ..., concelho ..., ocorreu uma colisão/acidente de viação.

2. No sinistro supra referido foram intervenientes os seguintes condutores e veículos: - matrículas ..-IC-.., ciclomotor, marca ..., propriedade de CC e conduzido pelo Autor – seu filho; e, - ..-..-OV, marca ... 125, propriedade de BB e por si conduzido;

3. O evento aconteceu da seguinte forma: o A., provindo do campo de futebol do ..., desceu a rampa, com cerca de 10 metros de comprimento, que dá acesso do mesmo ao caminho público visível na fotografia junta como doc. 01;

4. Uma vez no citado caminho público – que liga ... ao lugar da ... -, o A. percorreu cerca de vinte metros, com o sentido de marcha ... – ...,

5. Colidindo, após percorrer essa distância, com o ..-..-OV.

6. Depois de embater, o A. perdeu a controlo sobre o seu veículo.

7. A viatura ..-..-OV foi imobilizar-se a mais de 5 metros do concreto local da colisão.

8. No local do acidente o A. foi assistido pelo INEM e, de seguida, transportado ao Serviço de Urgência do Hospital ..., em helicóptero;

9. Aí, após a realização de vários exames foram-lhe diagnosticados traumatismos múltiplos severos, a saber, crânio-encefálico, da face, vertebral e de membros (fraturas da escafoide do punho esquerdo, da cervical e do cotovelo direito).

10. Permaneceu internado na UCI Neurocríticos até 19/10/2009 - data em que foi transferido para a Enfermaria melhorado e em recuperação.

11. Foi operado em 12/10/2009 com vista a:

- redução e imobilização de fraturas do malar com placas e parafusos;

- redução e imobilização de fraturas da mandíbula com placas e parafusos; e, - bloqueio intermaxilar.

12. Voltou a ser operado em 02/11/2009 para correção de fraturas da face tendo sido realizada:

- redução de fratura subcondiliana direita e imobilização com placas e parafusos; - redução da fractura hemi Le Fort direito e mobilização com placas e parafusos; - bloqueio intermaxilar;

13. Teve alta em 10/11/2009, orientado para consulta externa, com boa evolução clínica dentro da gravidade da lesão.

14. O A. sofreu dores muito fortes devido às lesões e por causa dos muitos tratamentos a que foi sujeito, nos dias subsequentes ao sinistro.

15. Foi sujeito a período de internamento.

16. Teve que andar com colar cervical durante mais de 30 dias.

17. Efetuou 04 cirurgias – a 1ª ao pulso, a 2ª ao rosto, a 3ª junto à orelha direita e a 4ª ao nariz, esta última em junho de 2013.

18. Durante duas semanas só conseguia alimentar-se com a ajuda de sua mãe e através de uma palhinha.

19. Só retirou os materiais (ferros) que lhe haviam sido aplicados no pulso em 2009, sem cirurgia.

20. Durante os 60 dias em que só conseguiu movimentar-se com a ajuda de canadianas, perdeu a vontade de passear e de visitar familiares e amigos.

21. Deixou de jogar futebol, de dançar e de nadar, situação que lhe causou e continua a causar muita tristeza, dado o seu apreço pelas citadas atividades lúdicas.

22. À data do evento, o direito de propriedade sobre o veículo ..-..-OV encontrava-se inscrito a favor do 1º réu na competente conservatória de registo automóvel.

23. À data do evento o ..-..-OV não tinha qualquer contrato de seguro válido que assegurasse os respetivos riscos de circulação.

24. Como consequência direta e necessária do evento estradal em causa nos autos sofreu o autor:

- A data de consolidação médico-legal das lesões é fixável em 30.04.2015. - Período de défice funcional temporário total fixável em 48 dias.

- Período de défice funcional temporário parcial fixável de 1987 dias.

- Período de repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 80 dias.

- Período de repercussão temporária na atividade profissional total, fixável em 1954 dias.

- Quantum doloris no grau 6/7.

- Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica/dano biológico de 18 pontos.

- As sequelas descritas são em termos de repercussão permanente na atividade profissional compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

- Dano estético permanente fixável em 4/7.

- Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7.

25. Os factos descritos nos presentes autos não foram participados ao ora interveniente por quem quer que seja, nomeadamente pelo aqui Autor.

26. O acidente de viação em apreço nos presentes autos ocorreu numa faixa de rodagem com 4,30 metros de largura, sendo o seu pavimento em terra batida.

27. Os motociclos intervenientes ao cruzarem-se colidiram, sensivelmente sobre o eixo imaginário da faixa de rodagem.

28. Nenhum dos intervenientes era detentor de carta de condução que lhe permitisse conduzir aquele tipo de motociclos.

29. Nenhum dos condutores trazia capacete para a cabeça. *

FACTOS NÃO PROVADOS:

- Todavia este acabou por se imobilizar quase logo, a menos de 02 metros do concreto local da colisão.

- No momento do embate o condutor do ..-..-OV circulava a mais de 50 km/hora, desatento e a ocupar mais de um metro da via destinada a circulação de sentido contrário.

- À data do acidente o A. havia começado a trabalhar como ajudante de mecânico há cerca de um mês e meio, auferindo retribuição líquida de €450/mês.

- O A. tem informação médica que aponta no sentido de que, no futuro, poderá vir a ter que ser sujeito a mais cirurgias, a novos tratamentos e à toma de medicação com vista ao atenuar das dores que continua a sentir.

B – O Direito

    

1. Culpa exclusiva do réu no acidente

1.1. Pretende o autor impugnar, neste recurso de revista, a conclusão do Tribunal da Relação acerca da culpa do autor e do réu para a produção do acidente, que foi estimada em 50% para cada um.

Baseou-se o tribunal recorrido no facto de o local do embate ter sido, sensivelmente, a meio da faixa de rodagem, o que implica que a culpa de cada um dos condutores deva fixar-se em grau equivalente, ou seja em 50% para cada um, afirmando que:

«Nos termos do disposto no artigo 13º nº 1 do DL 114/94 de 3. 5 (Código de Estrada) redação em vigor ao tempo do sinistro “1 - A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.

Ficou provado que o embate ocorreu sensivelmente a meio da faixa de rodagem a qual com cerca de 4,30 metros de largura, (ponto 26º dos factos provados) não tendo ficado cabalmente demonstradas as circunstâncias anteriores ao sinistro, nomeadamente, em concreto qual era o local da via por onde circulavam os veículos, tão pouco ficou apurada a velocidade concreta a que seguiam os condutores respetivos.

É fora de duvida que o embate ocorreu com violação por ambos os veículos do disposto neste normativo legal sendo, portanto, a conduta ilícita<«.

Quanto à culpa, o acórdão recorrido entendeu que:

«Do exposto, resulta evidente, em contrário do decidido na sentença recorrida, que o sinistro resultou de facto ilícito que ocorreu com culpa de ambos os intervenientes que circulavam no momento em que o mesmo se verificou pelo eixo imaginário do meio da faixa de rodagem em contravenção ao citado artigo 13º nº 1 do Código de Estrada (redação em vigor ao tempo)».

Entende o recorrente que a culpa pertence exclusivamente ao réu porque este circulava com excesso de velocidade, e que tal facto resulta do depoimento de parte do Réu BB, em que este admitiu que ia “a dar gás” (conclusões n.ºs 1 a 7).

1.2. Vejamos:

Resulta da fundamentação de facto que não ficou provado que «No momento do embate o condutor do ..-..-OV circulava a mais de 50 km/hora, desatento e a ocupar mais de um metro da via destinada a circulação de sentido contrário».

Pretende o recorrente, para fundamentar a culpa exclusiva do réu, que, do depoimento de parte do réu resulta que este circulava com excesso de velocidade.

Todavia, não será de mais reafirmá-lo que, não tendo o tribunal recorrido deferido a impugnação da matéria de facto requerida pelo recorrente no recurso de apelação, não tem este Supremo a possibilidade de re-avaliar essa questão, apreciando o depoimento de parte do réu ou as regras de experiência a que recorreu o tribunal recorrido para o interpretar.

Dentro dos poderes cognitivos do Supremo, apenas se encontra a possibilidade excecional de corrigir as presunções de facto tiradas pela Relação caso estas sejam contra a lei, se baseiem em factos não provados ou sejam manifestamente destituídas de qualquer valia lógica. Ora, não estamos perante qualquer uma destas hipóteses, tendo a Relação fundamentado, de forma coerente e lógica, a negação da impugnação da matéria de facto, bem como as ilações que retirou dos factos provados e não provados, e o modo como fez o exame crítico da prova, pelo que não pode este Supremo Tribunal conhecer de matéria de livre apreciação da prova, nem pôr em causa as ilações de facto a que procedeu o tribunal recorrido para aditar um facto novo à matéria de facto.

Improcedem, pois, as conclusões 1.ª a 6.ª da alegação de recurso do Autor.

2. Do contributo causal para os danos da circunstância de o autor não usar capacete.

2.1. Resulta da matéria de facto que o Autor circulava em contravenção ao artigo 82º, nº 3, do Código de Estrada, em vigor à data do acidente, norma que obriga os condutores e passageiros de motociclos “a usar capacete de modelo oficialmente aprovado devidamente ajustado e apertado.”

A obrigatoriedade de uso de capacete é uma medida de segurança que visa a proteção física dos condutores e passageiros de veículos de duas rodas.

O objetivo desta norma, como salientou o acórdão recorrido, não é excluir a responsabilidade do lesante em caso de acidentes, mas prevenir as lesões crânio-encefálicas, responsáveis, em regra, pelas consequências mais graves para a vida e para a integridade física e psíquica dos lesados nos veículos de duas rodas.

A norma ínsita no artigo 570.º do Código Civil, aqui aplicável, regula a culpa do lesado na produção ou agravamento dos danos causados pelo acidente, determinando o n.º 1 do citado preceito que o facto culposo do lesado pode determinar uma modificação ou extinção da indemnização, reportando-se, não ao acidente em si, mas às consequências danosas que dele resultaram para o lesado.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, entendeu-se, no Acórdão de 03-04-2014 (proc. n.º 856/07.6TVPRT.P1.S1) que:

«Constituindo a finalidade primacial da imposição do uso de capacete de protecção a preservação da integridade física do respectivo obrigado, a sua falta é idónea a causar um agravamento dos inerentes danos provocado, com directa repercussão, nos termos previstos no art. 570.º, n.º 1, do CC, na redução do correspondente montante indemnizatório, filiada na concorrência de um facto culposo do lesado para o agravamento dos danos».

Prossegue o citado acórdão afirmando que:

 «Trata-se de uma norma de natureza preventiva cujo escopo é, em primeira linha, a protecção física dos condutores e passageiros de tal tipo de veículos, particularmente expostos ao risco de acidentes, pelas velocidades elevadas que logram atingir e pela estabilidade precária e ausência natural de protecção característica dos veículos de duas rodas.

Por conseguinte, o fim de tal norma não é afastar, excluir, a responsabilidade dos causadores de acidentes pelos danos por aqueles sofridos quando não façam uso de tal capacete; quando muito, além de proteger os próprios (obrigando-os a usar capacete), obstam ao agravamento da responsabilidade de terceiros.

Nesta perspectiva, o condutor e os passageiros dos motociclos são também responsáveis pela sua própria segurança e, se incumprem essa obrigação, contribuem para o resultado danoso se este ocorrer nas zonas do corpo visadas pela protecção omitida.

Por conseguinte, um dos principais deveres do condutor e passageiro de um veículo é o de velar pela sua própria segurança (utilizando os equipamentos de protecção impostos por lei), protegendo o seu corpo (no caso do capacete, a sua cabeça) e logo, não o expondo (ou reduzindo os riscos decorrentes da exposição) a lesões em caso de acidente.

Só que o não uso, quando tal uso é imposto por lei, é um facto que, por integrar uma violação normativa, se presume culposo…

E desta forma é convocado para a resolução do nosso problema o art. 570º nº1 do CC, na medida em que esse facto culposo do lesado contribuiu para a produção ou agravamento dos danos que sofreu».

Como afirma Brandão Proença (in “Anotação ao artigo 570.º do Código Civil”, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, p. 579), «Para o exame ponderativo previsto no n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, a norma exige não só uma presença de duas condutas culposas mas que tenham sido causalmente concorrentes para o evento lesivo ou para o agravamento dos danos (neste caso, e em rigor, não sendo em casa caso, o agravamento um efeito mediato da ação lesiva, o lesante apenas concorre para o dano inicial). O teste da concausalidade não se basta com uma averiguação condicionalista (X e Y causaram Z, não ocorrendo Z sem X e Y), mas exige a presença de critérios jurídicos, seja o da causalidade adequada, seja o da causalidade normativa. (…) o tribunal, na imputação das consequências indemnizatórias e para poder concluir pela concessão, redução ou exclusão da indemnização, deverá ponderar a gravidade das culpas (v.g., em função das regras legais violadas) e ter em conta os efeitos que delas decorreram, pois nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos.»

2.2. No caso presente, a conduta do lesado foi omissiva, não usou capacete de proteção, e concorreu, não para o acidente em si mesmo, mas para as suas consequências danosas, sendo o agravamento contemporâneo do evento danoso.

Só perante a prova inequívoca e segura de que as lesões sofridas nada têm a ver com a falta de capacete – isto é, de que, independentemente do uso de capacete de proteção, sempre o lesado sofreria as mesmas ou idênticas lesões – é que seria de excluir o nexo de causalidade entre o não uso de capacete e o agravamento dos danos.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos de 15-12-1998, proc. n.º 98B972 e de 15-02-2007, Revista n.º 4744/06), tem-se entendido que o ónus da prova da irrelevância causal do não uso de capacete em relação aos danos cabe ao lesado, cumprindo ao réu unicamente demonstrar que condutor do veículo de duas rodas não usava capacete.

Segundo o facto provado n.º 29 «Nenhum dos condutores trazia capacete para a cabeça». Todavia, não se provou que os danos sofridos pelo autor nada tivessem a ver com o não uso do capacete ou que de qualquer modo se verificariam, mesmo na hipótese de este trazer capacete, o que, desde logo, impede a tese do recorrente/autor, segundo a qual não devia ter lugar qualquer redução da indemnização em virtude do não uso do capacete. Tanto mais que, de facto, segundo o facto provado n.º 9, o lesado sofreu, entre outros danos, traumatismo crânio-encefálico. Acresce que, por razões pedagógicas, as decisões judiciais devem ser um incentivo à adoção das medidas de segurança impostas por lei, evitando-se que funcionem, indiretamente, como uma legitimação da negligência.

O acórdão recorrido determinou, de acordo com a equidade, a redução da indemnização em 30%, em virtude do agravamento dos danos causado pelo não uso de capacete.

Será esta redução excessiva?

Entendeu-se, no acórdão recorrido, a este propósito, que:

 «Não se apuraram, quais os concretos danos decorrentes do não uso de capacete e por isso, imputados a culpa do lesado. O critério a utilizar será a constante do artigo 494º do Código Civil que manda recorrer à equidade.

Neste mesmo sentido os Ac. Do STJ de 29-01-2008, Processo nº 07A3014 apud citado acórdão de 3.04.3014“a questão não deve ser resolvida mediante um aleatório agravamento percentual do seu grau de culpa, devendo esse facto omissivo ser considerado na fixação da indemnização, segundo o critério do art. 494.º do CC.” E o Ac do STJ de 08-10-2013 prº 1585/06.3TBPRD.P1.S1 in dgsi

No seguimento do exposto e atenta a especial incidência das lesões sofridas pelo Autor se verificar na zona da cabeça, afigura-se-nos razoável, que o valor global da indemnização que vier a ser encontrado deverá em consequência do seu comportamento omissivo e concorrente para os danos (não uso do capacete) ser reduzido em 30%, percentagem que reputamos por adequada à ratio aqui em discussão».

O acórdão recorrido decidiu esta questão de acordo com a equidade, para a qual remete o artigo 494.º do Código Civil, e justificou corretamente a decisão tomada acerca do contributo causal do não uso de capacete para o agravamento dos danos. Nada tem, pois, este Supremo a opor, dado que os argumentos do recorrente se prendem com a avaliação da prova pericial, matéria de livre apreciação do Tribunal da Relação, que não compete a este Supremo re-examinar. Por outro lado, em termos de direito, a questão em causa foi resolvida com razoabilidade e equilíbrio, respeitando as orientações da jurisprudência e os elementos circunstanciais do caso, e com base numa interpretação correta da lei,  sem qualquer resquício de arbitrariedade, nada havendo a censurar ao tribunal recorrido no juízo de ponderação feito.  

Assim sendo, improcedem as conclusões 7.ª a 11.ª da alegação de recurso do autor.

3. Do montante das indemnizações por danos não patrimoniais e pelo dano patrimonial da incapacidade de ganho

3.1. Pediu o autor uma indemnização por danos não patrimoniais de 60.000,00 euros, tendo o Tribunal da Relação arbitrado 40.000,00 euros e entendendo o recorrente FGA que devia ser atribuído um valor de 18.500,00 euros.

Quid iuris?

O Código Civil consagra, em pleno, o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 1) e o critério da fixação equitativa da indemnização correspondente (artigo 496.º, n.º 4).   

Os danos não patrimoniais, embora insuscetíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque não avaliáveis em dinheiro, podem ser, de algum modo compensados. Na verdade, a reparação dos prejuízos, precisamente porque estes são de natureza moral (e, nessa exata medida, irreparáveis) é uma reparação indireta (cf. acórdão de 19-10-2004, Revista n.º 2897/04, 6.ª Secção).

Os interesses cuja lesão desencadeia um dano não patrimonial são infungíveis (a vida, a integridade física, psíquica e sexual, a saúde, a liberdade, o bem-estar físico e psíquico, a alegria de viver, a beleza) e não podem ser reintegrados por equivalente.

A fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais não obedece a critérios matemáticos ou rígidos, baseando-se antes em juízos de equidade, necessariamente incindíveis das particularidades de cada caso concreto, mas com tendência a uma valorização crescente por estarem ligados a bens jurídicos pessoais constitucionalmente tutelados.

Como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-03-2015 (Processo n.º 1988/05.0TBOVR):

«A valorização dos danos não patrimoniais está relacionada com a dignidade da pessoa humana e com a tutela constitucional dos seus direitos fundamentais – os direitos ao livre desenvolvimento da personalidade, à integridade física, psíquica e moral, o direito à saúde, o direito ao trabalho – direitos estes que beneficiam de tutela civil, por força do art. 70.º, n.º 1 do CC, norma materialmente constitucional, que remete para o catálogo de direitos consagrados na Constituição (arts 24.º e seguintes da CRP)  e que protege um conjunto indeterminado de bens jurídicos pessoais não tipificados, os vários modos de ser físicos, psíquicos e morais da personalidade, de acordo com uma visão mais ampla e rica da pessoa».

O Código Civil não enumera os danos não patrimoniais, confiando ao tribunal o encargo de os apreciar, no quadro das várias situações concretas.

A própria noção de dano, nos acidentes de viação, sai fora das tradicionais categorias, e abrange várias sub-categorias, de forma a melhor expressar os aspetos da dignidade humana que são efetivamente lesados: por exemplo, o dano estético, o dano existencial, o dano da perda de autonomia, o dano sexual, o dano biológico, a perda da alegria de viver.

Como se também afirmou no já citado Acórdão, de 12-03-2015:

«[A]conceptualização do dano não patrimonial sofrido pela pessoa, a partir da situação concreta em que se encontra em virtude da lesão, conduz ao reconhecimento de várias sub-categorias ou especializações, dentro da categoria geral de dano não patrimonial, consoante o aspecto da vida ou da personalidade que ficou afectado: o dano existencial, como aquele que afecta toda a vida relacional da pessoa lesada com a sua família e a esfera íntima da pessoa; o dano estético, aquele que afecta o seu aspecto físico e a beleza corporal, envolvendo a avaliação personalizada da imagem em relação a si própria e perante os outros; o dano biológico, enquanto dano corporal ou à saúde traduzido na diminuição psicossomática da pessoa, compreende vários factores, suscetíveis de afectar as actividades laborais, recreativas, sociais, a vida sexual e sentimental, e assume um carácter dinâmico, na medida em que tende a agravar-se com o avançar da idade da pessoa lesada, produzindo consequências na mensuração do dano não patrimonial e/ou do dano patrimonial; o dano da perda de autonomia, que afecta a liberdade de iniciativa, a auto-realização e a auto-estima; o dano psicológico, traduzido em angústia e depressão e ligado ao dano da perda da alegria de viver, que altera a forma como a pessoa vê e sente o mundo no seu quotidiano; o dano da afirmação pessoal, que altera a forma como a pessoa se insere no mundo e se sente a si mesma perante os outros; o dano da incapacidade laboral, que, para além da perda de rendimentos, enquanto dano patrimonial futuro, retira à pessoa a sensação de utilidade e de produtividade, acarretando a perda de auto-estima e do sentido da vida; o dano da perda de esperança de vida ou de diminuição da longevidade; o dano da perda da possibilidade de gozar os anos da juventude.

A amplitude da noção de dano não patrimonial, sub-dividida em categorias relativas a diferentes e múltiplos aspectos da personalidade e da vida, ainda que possa criar sobreposições parciais entre as várias sub-espécies de danos não patrimoniais tem a virtualidade de conduzir ao significativo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efectivamente sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil delitual».

A jurisprudência adota, para a determinação do montante da compensação dos danos não patrimoniais, critérios de equidade e de justa medida, que tenham em conta a gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, e demais circunstâncias do caso, todos decorrentes da lei, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil.

A este propósito, entendemos que o conceito de dano não patrimonial, porque se reporta ao sofrimento humano – único em cada indivíduo – e não existe um “preço da dor” ou um “preço do sangue”, é um conceito altamente variável e permeável às circunstâncias do caso, em relação ao qual não é possível o estabelecimento de critérios absolutamente uniformes, sem detrimento de um esforço, que os tribunais devem fazer, de não criar disparidades grandes entre os sujeitos sinistrados para casos semelhantes, devendo tratar diferentemente o que é diferente e na medida dessa diferença, como exige o princípio da igualdade.

2. O tribunal recorrido arbitrou uma indemnização de 40.000,00 euros por danos não patrimoniais sofridos por jovem de 17 anos e que lhe demandaram 48 dias de internamento, 4 cirurgias, das quais 3 na zona da cabeça, quantum doloris de 6/7 e dano estético de 4/7, repercussão permanente nas atividades desportivas de 4/7, DFTP (Défice Funcional Temporário Parcial) de 1984 dias.

 Este valor não está acima da média, por isso, desde já se afasta a tese do FGA, que pretende que a indemnização seja diminuída para 18.5000,00 euros.

Vejamos os factos provados n.º 9 a 21: o autor padeceu de traumatismos múltiplos severos, a saber, crânio-encefálico, da face, vertebral e de membros (fraturas da escafoide do punho esquerdo, da cervical e do cotovelo direito); permaneceu internado na UCI Neurocríticos até 19/10/2009; foi operado em 12/10/2009 com vista a: - redução e imobilização de fraturas do malar com placas e parafusos; - redução e imobilização de fraturas da mandíbula com placas e parafusos; e, - bloqueio intermaxilar. Voltou a ser operado em 02/11/2009 para correção de fraturas da face tendo sido realizada: - redução de fratura subcondiliana direita e imobilização com placas e parafusos; - redução da fractura hemi Le Fort direito e mobilização com placas e parafusos; - bloqueio intermaxilar. Teve alta em 10/11/2009, orientado para consulta externa, com boa evolução clínica dentro da gravidade da lesão. O A. sofreu dores muito fortes devido às lesões e por causa dos muitos tratamentos a que foi sujeito, nos dias subsequentes ao sinistro. Foi sujeito a período de internamento. Teve que andar com colar cervical durante mais de 30 dias. Efetuou 04 cirurgias – a 1ª ao pulso, a 2ª ao rosto, a 3ª junto à orelha direita e a 4ª ao nariz, esta última em junho de 2013. Durante duas semanas só conseguia alimentar-se com a ajuda de sua mãe e através de uma palhinha. Só retirou os materiais (ferros) que lhe haviam sido aplicados no pulso em 2009, sem cirurgia. Durante os 60 dias em que só conseguiu movimentar-se com a ajuda de canadianas, perdeu a vontade de passear e de visitar familiares e amigos. Deixou de jogar futebol, de dançar e de nadar, situação que lhe causou e continua a causar muita tristeza, dado o seu apreço pelas citadas atividades lúdicas.

O Tribunal da Relação baseou a sua decisão em acórdãos datados de 2016. Todavia, tendo em conta que este Supremo Tribunal (Acórdão de 29-03-2022, proc. n.º 640/13.8TVPRT.P2.S1, relatado pela agora relatora) avaliou em 40.000 euros a indemnização por danos não patrimoniais, confirmando o Acórdão do Tribunal da Relação), num caso recente de responsabilidade médica, em que o lesado, um jovem de 21 anos, teve que ser operado duas vezes para corrigir um erro médico, teve um dano estético de grau 1 em 7 e quantum doloris de 5 em 7, Défice funcional de integridade físico-psíquica de 9 pontos, não é excessivo, no presente caso, conceder a totalidade do pedido do autor, 60.000 euros, dada a dimensão superior do dano estético (4/7), do quantum doloris (6/7), o período superior de incapacidade, e a dimensão dos danos crâneo-encefálicos, na face, vertebral e de membros, ausentes no caso anterior, bem como a repercussão permanente em atividades de lazer e desportivas avaliada em 4/7 e o DFIFP/dano biológico em 18 pontos. A idade do autor, 17 anos à data do acidente, também é de ponderar para aumentar a indemnização, pois todos as limitações verificadas nas atividades desportivas e de lazer têm um impacto especial nos jovens, neste caso, um jovem que ainda nem atingiu a maioridade.

Assim, sendo, procedem as conclusões n.º 12 e 13, arbitrando-se uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 60.000,00 euros.

3. Relativamente aos danos patrimoniais de perda de ganho ou danos patrimoniais futuros, o lesado peticionou um montante nunca inferior a 90.000, euros, e o FGA pugnou por uma redução do valor arbitrado pela Tribunal da Relação, 71.442,00 euros, para 50.000 euros

O acórdão recorrido fundamentou a decisão do seguinte modo:

«Quanto ao dano patrimonial futuro/ dano biológico, a sua avaliação deve refletir na indemnização arbitrada a perda de oportunidades profissionais futuras que decorra do grau de incapacidade fixado ao lesado, ressarcindo, não apenas as perdas salariais prováveis, mas também o dano patrimonial decorrente da inevitável perda de chance ou oportunidades profissionais por parte do lesado. A indemnização a arbitrar pelo dano biológico, visa compensar, as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas – em adição ou complemento da indemnização fixada pelas perdas salariais prováveis, decorrentes do grau de incapacidade fixado ao lesado e da maior penosidade que o exercício da atividade profissional lhe acarreta mercê de tais sequelas.

Trata-se assim de ressarcir uma provável perda de ganho futuro e um maior esforço no desempenho da atividade profissional.

A jurisprudência tem utilizado o recurso à formação de um capital que durante o tempo de vida ativa que presumivelmente resta ao lesado ou do tempo de esperança de vida, produza o rendimento de que ele ficou privado mas que, simultaneamente, se extinga decorrido esse prazo. Entendemos, neste segmento, que o calculo do índice de desvalorização sobre o rendimento do lesado pelo período de tempo de esperança de vida atinge um resultado que se entende equitativo, sendo que esse resultado a nosso ver não deve ser sujeito a qualquer redução, dada a ausência de rentabilidade financeira do dinheiro.

Desconhece-se o valor da retribuição que o Autor auferia à data do acidente, tal como a sua profissão, pelo que atende-se ao valor da retribuição mínima nacional à data dos factos que era o de 450,00 euros conforme, informação constante da pordata in https://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%ADnimo+nacional, valor este “sempre auferível nas mais simples das profissões”, como tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 21-09-2006 (pr n.º 2016/06); 02-11-2006, Revista n.º 3559/06; de 16-01-2007 (Revista n.º 4289/06); de 15-02-2007 (Revista n.º 302/07); 22-03-2007(Revista n.º 481/07); de 18-10-2007 (Revista n.º 3084/07); de 25-10-2007 (Revista n.º 3026/07);de 17-01-2008 (Revista n.º 4527/07); de 16-09-2008 (Revista n.º 939/08); de 16-10-2008 (Revista n.º 2362/08 ); de 18-12-2008 (Revista n.º 2661/08); de 18-03-2010 (14/06.7TBPRD.P1.S1); de 15-11-2011 (Revista n.º 880/03.8TCGMR.G1.S1); de 06-12-2011 (Revista n.º 6461/05.4TVLSB.L1.S1); de 19-04-2012 (Revista n.º 3046/09.0TBFIG.S1); de 02-05-2012 (Revista n.º 1011/2002.L1.S1); de 13-09-2012 (Revista n.º 3695/07.0TJVNF.P1.S1) todos apud citado acórdão de 3.04.2014 .

Situamos a esperança de vida ativa média dos portugueses nos 80 anos de idade (informação pordata). O Autor tinha à data do acidente 17 anos de idade conforme resulta do teor dos documentos clínicos juntos ao processo.

(80- 17 = 63 x 450,00 x 14 x 18%) = 71.442,00 euros

Decorre do exposto a atribuição ao dano biológico/dano futuro do Autor o montante de 71.442,00 euros».

Contesta o autor o valor do salário mínimo – 450 euros – usado para determinar o cálculo da indemnização pelo dano da perda de ganho, defendendo que o valor de referência usado deve ser não o salário à data do acidente, mas o salário mínimo à data da interposição do recurso (665,00 euros) ou o já definido para 2022 que se cifrará em 705,00 euros.

Vejamos:

O valor de referência do salário mínimo para calcular a indemnização pela perda de ganho futuro deve ser o que vigorava à data do acidente. Todavia, conforme jurisprudência deste Supremo (cfr. Acórdão de 12-05-2005 - Revista n.º 2342/03), este valor deve ser atualizado, posto que, tratando-se de danos futuros resultantes de perdas de rendimentos laborais desde o acidente até ao limite de longevidade considerado, sempre o valor dos salários mínimos nacionais sucessivamente vigentes ao longo desse período tem tendência a aumentar, devendo também aceitar-se que o lesado poderá durante a sua vida ativa subir de categoria, vindo a usufruir de rendimentos superiores ao salário mínimo nacional, mas sofrendo, ainda assim, o dano biológico do maior esforço e penalização no exercício da atividade.

Pelo que, se considera que o valor de 90.000, euros, peticionado pelo recorrente, é mais ajustado do que aquele que foi atribuído pela Relação a partir de uma fórmula que teve como padrão o valor do salário mínimo de 450 euros, vigente à data do acidente.

Assim, o total dos danos patrimoniais e não patrimoniais avalia-se em 150.000,00 euros (60.000 euros de indemnização para os danos não patrimoniais e 90.000 euros para os danos patrimoniais futuros).

Sendo a contribuição do Réu apenas de 50% para o sinistro, o resultado da aplicação desta proporção computa-se em 30.000,00 euros para a indemnização por danos não patrimoniais e 45.000 euros para a indemnização por danos patrimoniais futuros.

A estes montantes há ainda que subtrair 30% relativos ao estimado concurso do Autor para o agravamento dos danos pelo não uso do capacete, pelo que o valor da indemnização por danos não patrimoniais passa a ser de 21.000 euros e da indemnização por danos patrimoniais, descontado o valor de 30%, reduz para 31.500 euros.

Procede, pois, a conclusão n.º 13 da alegação de recurso do autor e o montante global da indemnização é assim de 52.500,00 euros.

Paralelamente improcedem totalmente as conclusões do FGA relativas ao montante indemnizatório.

4. Quanto ao momento a partir do qual são devidos juros entendeu o acórdão recorrido que os juros só seriam devidos desde a data da decisão. Pretende, contudo, o autor, que seja aplicável o Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, e que os juros se contem a partir da citação.

 

Segundo este acórdão uniformizador, os juros reportam-se à data da sentença, se esta teve em conta no cálculo do montante da indemnização a inflação verificada entre a data do evento danoso e a data da decisão que calcula o valor da indemnização, ou seja, se foi uma decisão atualizadora.

«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação» (AUJ n.º 4/2002).

Nos restantes casos, em que a sentença não faz menção ao dano da desvalorização monetária, os juros de mora devem reportar-se à data da citação.

Neste sentido, veja-se o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 14-09-2006, processo n.º 06B2634, em cujo sumário se lê o seguinte:

«1. O acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio, assenta na ideia de uma decisão actualizadora da indemnização lato sensu em razão da inflação ocorrida entre ela e o momento do evento danoso.

2. Tendo em conta a motivação do referido Acórdão, a mencionada decisão tem que ter alguma expressão no sentido da utilização, no cálculo da indemnização, do critério da diferença da esfera jurídico-patrimonial a que se reporta o n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, incluindo a menção à desvalorização do valor da moeda.

3. Os juros moratórios devem ser contados desde a prolação da sentença se nesta se expressou que o cálculo decorrente da perda de capacidade de ganho operava à luz do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil e tendo em conta a desvalorização da moeda entre a data dela e a do evento danoso em causa».

A ideia que presidiu à retroação da mora à data da citação visou combater os efeitos nefastos da inflação, daí que este princípio só se aplica quando a decisão, no cálculo da indemnização, não teve em conta o dano da desvalorização da moeda.

 

Ora, no presente caso, o acórdão recorrido afirmou ter atualizado os valores à data da decisão, pelo que, tratando-se de uma decisão atualizadora, mantém-se o mesmo critério, determinando-se o início da contagem dos juros de mora à data da decisão. 

Improcede, pois, a conclusão n.º 14.º da alegação de recurso do autor.

5. Anexa-se sumário elaborado nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

1. O facto do Autor não usar capacete no momento do acidente, em contravenção a norma do código de estrada, não é causal ou concorrente do acidente, não excluindo deste modo a responsabilidade do Réu que concorreu culposamente para o mesmo; mas é culposamente causal e concorrente dos danos, por si, sofridos, caindo na previsão do artigo 570º nº 1 do Código Civil.

2 -Para a prova desta causalidade culposa, basta que o lesante prove que o lesado circulava sem capacete, cabendo ao lesado o ónus da prova de que os danos se teriam produzido mesmo que tivesse utilizado capacete. 

3 – Uma indemnização de 60.000,00 euros é adequada para compensar os danos não patrimoniais sofridos por um jovem de 17 anos, que esteve 48 dias internado, sofreu quatro cirurgias, das quais três na zona da cabeça, padeceu de um quantum doloris de 6/7, um dano estético de 4/7, um índice de repercussão permanente nas atividades desportivas de 4/7 e DFTP (Défice Funcional Temporário Parcial) de 1984 dias.

4 - O dano patrimonial, que visa compensar a perda de ganho futuro e um maior esforço no desempenho da atividade profissional (dano biológico), deve ser estimado com recurso ao valor do ordenado mínimo,  desde o acidente até ao limite de longevidade considerado, tendo em conta que o valor dos salários mínimos nacionais ao longo desse período tem tendência a aumentar e que o lesado poderá durante a sua vida ativa subir de categoria profissional.

5. Segundo o acórdão uniformizador n.º 4/2002, os juros reportam-se à data da sentença, se esta teve em conta no cálculo do montante da indemnização a inflação verificada entre a data do evento danoso e a data da decisão que calcula o valor da indemnização, ou seja, se foi uma decisão atualizadora.

 

III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista do Fundo de Garantia Automóvel e concede-se parcialmente a revista do autor, condenando-se o Fundo de Garantia Automóvel ao pagamento de uma indemnização de 52.500,00 euros, acrescidos de juros de mora desde a data da decisão até efetivo e integral pagamento.

Custas pelos recorrentes na proporção do respetivo decaimento.

Lisboa, 11 de maio de 2022

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)