Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1608/15.5T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MORTE
PROGENITOR
UNIÃO DE FACTO
DESCENDENTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
SUCESSÃO POR MORTE
EQUIDADE
Data do Acordão: 03/01/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / DANOS NÃO PATRIMONIAIS – DIREITO DAS SUCESSÕES / SUCESSÃO LEGÍTIMA / CLASSES DE SUCESSÍVEIS.
Doutrina:
-Vaz Serra, RLJ, Ano 107, p. 44, 45, 140 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º E 2133.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-07-2011, PROCESSO N.º 758/09.1JABRG.G1.S1;
- DE 30-04-2013, PROCESSO N.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1, IN WWW.DGSI. PT.
Sumário :
I - Foi intuito do legislador, no art. 496.º do CC, subtrair a indemnização por "danos não patrimoniais" às regras do direito sucessório a que aludem os arts. 2133.º e ss. do CC.

II - O membro sobrevivo da união de facto recebe todos os quantitativos a atribuir a título de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da morte do membro finado.

Decisão Texto Integral:
1. RELATÓRIO.


AA, divorciado, invocando a qualidade de herdeiro de seu filho BB, instaurou a presente acção com processo comum, contra CC - Companhia de Seguros, S.A. e DD - Companhia de Seguros, S.A., peticionando a condenação das RR. a pagarem-lhe a quantia de € 306.345,00, acrescida de juros à taxa legal, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

    Alegou, em resumo, a ocorrência de um acidente de viação que vitimou mortalmente o seu filho BB, ocorrido no dia 31.07.2011, ao Km 66,00 da AE8 (sentido Norte-Sul), causado por uma viatura ligeira segurada na 1ª Ré, a qual, ao ultrapassar o motociclo conduzido pelo BB, tocou neste, provocando a sua queda, vindo ainda aquele a ser atropelado por um outro veículo que seguia no mesmo sentido, cuja responsabilidade civil estava transferida para a 2ª Ré.

    Em articulados próprios ambas as RR. contestaram, imputando a culpa do acidente ao falecido.

A Ré DD excepcionou a prescrição do direito, e ambas a ilegitimidade do Autor, por o falecido ter também como herdeira a sua mãe e à data do óbito viver em união de facto com EE, cuja intervenção principal a 1ª Ré requereu.

O Autor respondeu à matéria das excepções.

Por despacho de fls. 154 e segs. foi indeferida a intervenção principal de EE, não tendo o Autor acatado o convite para fazer intervir a mãe do falecido BB.

Foi admitida a intervenção principal do Centro Nacional de Pensões.

O conhecimento da excepção de prescrição foi relegado para final.

Em sede de audiência prévia, foi determinado cindir o julgamento em duas fases: na primeira, para apreciar a existência ou não de uma união de facto entre a vítima e EE; no caso de improcedência desta, numa segunda fase proceder-se-ia ao julgamento das demais questões objecto do litígio.

Na sequência daquele despacho, foi fixado como constituindo o objecto do litígio:

Saber se à data do acidente do filho do Autor, BB, vivia em união de facto com EE.

Procedeu-se a julgamento e, após, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu as RR. dos pedidos; no que tange ao pedido formulado pelo Centro Nacional de Pensões, foi a instância julgada extinta por impossibilidade superveniente.

Em síntese, considerou a sentença que:

 - Relativamente à indemnização por danos não patrimoniais (por dano próprio sofrido em consequência da morte do filho; danos não patrimoniais da própria vítima; perda do direito à vida), tendo ficado provado que o falecido residia em união de facto com EE, não tem o A. direito à indemnização, face ao princípio do chamamento sucessivo plasmado no art. 496º, nºs 2 e 3 do CCivil;

- Por falta de prova ou por não serem indemnizáveis, não há lugar a indemnização pelos danos patrimoniais peticionados.


Inconformado, apelou o Autor, sendo certo que a Relação julgou procedente a apelação e revogou a sentença para que os autos prosseguissem para julgamento.


Por seu turno, inconformadas, recorrem agora as Rés DD SA e a Companhia de CC Seguros SA. de revista, pedindo respectivamente:

- A primeira que, na procedência do recurso, seja revogado o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de … e substituído por outro que consigne não ser o Autor/recorrido titular do direito de indemnização por danos não patrimoniais pela morte da vitima, seu filho, em qualquer das suas componentes (dano morte, dano pré-morte e danos morais próprios uma vez que tal direito cabe ao membro sobrevivo da união de facto que a vítima mantinha, à data da sua morte, e tudo sempre e em qualquer caso da sentença que sob as legais consequências, e conhecendo sempre e em qualquer caso na medida em que o Ac. da RC. desprezou o segmento absolutório da sentença que absolveu a Ré DD de pagar ao A. danos de natureza patrimonial por estes pedidos, lado passivo da relação jurídico processual existia e existe outra co-Ré, e tudo sempre com as legais consequências.

- A segunda, a CC, SA pediu por seu turno que o aresto seja substituído por outro a proferir no Supremo Tribunal de justiça que determine que o A. não é titular do direito à compensação por qualquer dano de natureza não patrimonial resultante da morte da vítima, uma vez que tal direito cabe em exclusivo à pessoa com a qual à data do acidente e do óbito o mesmo vivia em União de facto.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,


Conclusões.


Da CC, SA.


1) A existência de união de facto entre a vítima e a interveniente EE, com mais de dois anos de duração à data dos factos - seja o acidente que provocou o óbito, no dia 31.7.2011, seja o próprio óbito, no dia 19.8.2011 -, não pode deixar de relevar pela circunstância de a Lei que veio estabelecer esse prazo mínimo de dois anos ter iniciado vigência menos de dois anos antes de ocorridos os factos, de acordo com a Lei n.° 23/2010, e 30 de Agosto;

2 - O Recorrido não tem direito a qualquer indemnização por danos não-patrimoniais causados pelo facto ilícito que motivou o óbito da vítima, considerando a preferência dos familiares mais próximos indicados no artigo 496.° do Código Civil;

3 - Os danos não-patrimoniais provocados por facto ilícito que cause a morte da vítima dão direito à titularidade de indemnização pelos familiares mais próximos de acordo com a hierarquização do artigo 496.° do Código Civil, o que não se confunde com as classes de herdeiros previstas no artigo 2133.° do mesmo diploma;

4 - A atribuição de indemnização por danos não-patrimoniais nos termos do artigo 496.° do Código Civil, esgota o dever de indemnizar do responsável pelos factos ilícitos geradores do dano morte, apenas quando efectuado junto das classes de familiares mais próximos existentes, conforme sua previsão, não sendo devida a quaisquer outros.

5 - Reconhecida que está a situação de união de facto entre a vítima e EE, à data do acidente, era a esta que cabia o direito à compensação por todos os danos de natureza não patrimonial resultantes da morte da vítima.

6 - O acórdão recorrido, ao invés de assim entender e em consequência, ter ordenado a continuação dos presentes autos em 1ª instância, violou o disposto no art° 496, n°s 2 e 3 do Código Civil

7 - Deve por isso ser substituído por outro a proferir no Supremo Tribunal de Justiça que determine que o A. não é titular do direito à compensação por qualquer dano de natureza não patrimonial resultante da morte da vítima, uma vez que tal direito cabe em exclusivo à pessoa com a qual, à data do acidente e do óbito o mesmo vivia em união de facto.


- Da DD - Companhia de Seguros SA.


1ª O Ac. do TR… considera, e com pleno acerto, que o "novo" nº 3 do artigo 496º do CC, introduzido pela Lei 23/2010 e em vigor desde 04/09/2010 é aplicável ao caso dos autos porque, nos termos do artigo 12º/2 do CC (aplicação das leis no tempo) quando está em causa a regulamentação de direitos, a Lei nova abrange (aplica-se) às relações jurídicas constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor, e no caso a pessoa que vivia com a vítima em união de facto à data da morte desta, desfruta da prevalência e protecção legal tal qual prevista na norma (artigo 496º do CC) que foi revista pela Lei 23/2010.

2ª Resta em discussão, no presente recurso, a natureza, o alcance, a amplitude e especial protecção que o legislador quis conferir ao membro sobrevivo de união de facto.

3ª O Ac. do TR… toma decisão errática quando sufraga entendimento no sentido de que a perda da vida da vítima, ou dano morte, bem como o dano pré-morte, ou danos morais próprios da vítima, constituindo direitos pessoais, inerentes à personalidade, são de aquisição automática por parte da própria vítima, radicam-se na esfera jurídica desta, transmitindo-se depois e de imediato aos seus herdeiros de acordo com os princípios do direito sucessório

4ª Sem prejuízo, segundo refere o Acórdão, dos direitos indemnizatórios que o legislador confere, a título de danos morais próprios, às pessoas que elege e elenca entre as ligadas por certas relações familiares ao falecido e agora também ao membro sobrevivo de uma união de facto juridicamente relevante, como manda o artigo 496º/2 e 3 do CC.

5ª Dentro deste pensamento e rota decisórias, conclui que o A. AA desfruta, como sucessor da vítima iure haereditário, do direito à indemnização pelo dano morte desta, bem como pelo dano pré-morte também desta.

6ª E dentro desta lógica, ao membro sobrevivo da união de facto que a vítima mantinha, caberão apenas e em exclusivo, os seus danos morais próprios emergentes do sofrimento, desgosto e angústia desencadeados pela morte da vitima.

7ª O Acórdão do TR… cindindo assim o direito à indemnização por danos não patrimoniais que é uno e indivisível tal qual previsto no artigo 496º/2 do CC, atribuindo ao A. Rogério por via hereditária a indemnização pela lesão do direito à vida da vítima e a indemnização pelos danos morais desta sofridos antes da morte, e atribuindo apenas ao membro sobrevivo da união de facto, por direito próprio, danos morais também próprios, faz proceder a Apelação, revoga a sentença, e ordena que os autos prossigam para julgamento.

8ª Quer antes da alteração sofrida pelo artigo 496.º do CC e introduzida pela Lei 23/2010 quer depois da alteração, a nossa Lei estabeleceu um regime particular e especial no âmbito indemnizatório nas situações em que ocorra morte da vítima, abrangendo quer o dano morte propriamente dito, quer os danos morais da vítima sofridos antes da morte, ou seja, o dano pré-morte, quer os danos morais próprios de quem possa experimentar sofrimento com a morte da vítima.

9ª As pessoas referidas no artigo 496.º do CC têm direito de indemnização, tanto pela perda do direito à vida como pelos danos morais sofridos pela vítima, como pelos danos morais sofridos por elas mesmas, atento o evento morte, e esta solução baseia-se no elemento histórico do preceito, que lhes confere aquele direito, e por direito próprio e que se aloja na sua esfera jurídico patrimonial por via de aquisição originária, porque o legislador, na norma, e no âmbito de uma opção de política legislativa de afectos (utilizando uma linguagem actual) entregou a titularidade de um tal direito à pessoa ou pessoas com maiores vínculos de afeição com a vítima, e não com base na "linhagem" tradicional sucessória e hereditária.

10ª E foi nesta rota que a Lei 23/2010, em vigor desde 04/09/2010 inovou, acrescentando à norma (artigo 496º do CC) o referido nº 3, partindo do pressuposto de que de acordo com as regras e leis da vida, vivendo/convivendo a vítima com outra pessoa em união de facto, em caso de morte, o membro sobrevivo dessa mesma união seria por certo a pessoa que lidava mais de perto com a vítima em plena comunhão de afectos, ideais e sentimentos, sendo presumível que seria a pessoa que em concreto sentiria de modo mais intenso a perda da vida da vítima.

11.ª Curiosamente, muito antes da Lei 23/2010 ter dispensado protecção indemnizatória ao membro sobrevivo de união de facto em caso de morte do outro membro falecido, ocorreram na jurisprudência ecos precursores da Lei, hoje direito constituído, e disso foi exemplo uma Sentença do Primeiro Juízo Cível da Comarca de …, de 15/07/96, publicada na Revista sub iudice - Causas - 3 - Jul/Set. 1996 – pág. 71 que decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 496º/2 do CC por violação do artigo 13º da Constituição da República, na parte em que não admitia que a pessoa que vivesse em união de facto com uma vítima de acidente de que resultou a sua morte tivesse direito a receber indemnização por danos não patrimoniais, mais curioso ainda foi/é o facto de Cunha Gonçalves, há já cerca de 70 anos, e na vigência ainda do Código Napoleónico, de modo visionário, no Tratado de Direito Civil - Volume 12 - Pág. 548, ter sufragado opinião no sentido de que a "concubina podia sofrer dano moral pela morte do seu amante, designadamente se tivesse dele filhos menores, acrescentando que esse dano, deveria ser avaliado, como o seria o da mulher legítima", sendo de notar ainda que o Código Civil de Macau que entrou em vigor aos 01/11/99, no artigo 4899/2 consagrou, por morte da vítima, o direito indemnizatório por danos não patrimoniais, em conjunto ao cônjuge não separado de facto e aos filhos ou outras descendentes e na falta destes, ao unido de facto e aos pais ou outros descendentes e por último aos irmãos ou sobrinhos que o representem, e neste ponto também França Pitão na obra União de Facto no Direito Português que remonta a 2001 ter opinado no sentido de que no caso de união de facto o companheiro sobrevivo da pessoa que falece é quem mais sofre com a morte desta, por ser quem lidava mais de perto com a vitima, criticando o facto do direito constituído e da jurisprudência fecharem os olhos a esta realidade da vida, denegando equiparação da pessoa unida de facto ao cônjuge sobrevivo.

12ª Tornando à temática - sobre se o dano morte em todas as suas variáveis constitui uma perda cuja reparação se transmite aos herdeiros da vítima, ou se se integra e nasce mediata e directamente na esfera jurídico patrimonial das pessoas escolhidas e elencadas no artigo 496º do CC - quer a Doutrina quer a Jurisprudência são unânimes, mormente a partir do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ de 17/03/1971 (BMJ 205-150, no reconhecimento de que em caso de morte verifica-se um dano não patrimonial único e que se desenvolve num tríplice sub-plano (Perda do direito à vida ou Dano Morte; Dano sofrido pela vítima antes de morrer ou dano pré-morte e dano sofrido pelos familiares da vítima fruto da morte desta).

13ª Quanto à questão de saber se esse direito indemnizatório de cariz não patrimonial e "in totum" cabe aos herdeiros da vítima por via sucessória ou aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem que vem alinhada no artigo 496º/2 (e actualmente 3) do CC, todas as razões válidas convergem no sentido desta última orientação, porque na Segunda Revisão Ministerial dos diversos anteprojetos - e como muito bem explicita Antunes Varela - e parafraseando o que deixou dito: "Todas as normas seleccionadas pela 1ª Revisão foram como que passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de toda a legislação codificada, a (TT\ posição da Lei perante a indemnização da morte da vítima, sofreu uma alteração radical. No artigo 498º saído dessa Revisão (correspondente ao artigo 496º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte) não se alude mais à hipótese da morte instantânea, e não se chamam sequer os herdeiros a recolher indemnização colada à herança da vítima".

14ª Há uma nota capital e que é decisiva para captar o verdadeiro senso da norma, porque o Código Civil de 1966, no artigo 496º/2, elegeu o cônjuge sobrevivo como beneficiário da indemnização do dano morte da vítima, ao lado dos filhos ou outros descendentes, sendo que à data (1966) aquele estava ainda longe de vir a ter a qualidade de herdeiro legal do seu cônjuge entretanto falecido, a qual, veio a ser-lhe apenas atribuída e reconhecida com a reforma sucessória de 1977, ou seja, mais de 10 anos volvidos após a vigência do nº 2 do artigo 496º do CC é que o cônjuge sobrevivo passou a ser herdeiro legal do seu cônjuge entretanto falecido.

15ª Acresce que a personalidade jurídica adquire-se com o nascimento completo e com a vida (artigo 66º do CC), constitui pressuposto da capacidade jurídica que torna possível a titularidade das relações jurídicas e gozo de direitos (artigo 679º do CC), mas cessa com a morte (artigo 689.º do CC), e cessando a personalidade jurídica cessa inevitavelmente a capacidade jurídica e é anacrónico dizer-se que a indemnização por dano morte possa radicar-se na esfera jurídico patrimonial do falecido pela simples razão de que esta desaparece com a morte que a dissipa por completo e por isso motivando a morte o surgimento de um direito indemnizatório (é indiscutível) este tenha de radicar-se directamente e "ope legis" na esfera jurídica daquelas pessoas que estando ligadas ao falecido por um vínculo especial de parentesco, foram eleitas pelo legislador como dignas de protecção legal no pressuposto de que a morte do seu familiar constitua para elas uma fonte de danosidade.

16ª Nos termos do artigo 496º do CC o direito à indemnização por danos não patrimoniais ali previsto por morte da vítima jamais pode integrar a herança do falecido, tratando-se antes de um direito indemnizatório próprio atribuível às pessoas de eleição, escolhidas pelo legislador e inseridas na norma, sendo assim estas as únicas titulares originárias desse mesmo direito, e porque contempladas pelo legislador, e reitera-se, por estarem colocadas num círculo restrito onde é suposto terem proliferado durante a convivência com a vítima enquanto viva foi, fortes vínculos de afeição, sentimento, carinho, e ternura, próprios de laços de convivência muito estreitos, merecedores, por isso mesmo, de compensação quando são cerceados e feridos de morte.

17ª O artigo 496º do CC elenca de forma inequívoca quem são os titulares do direito à indemnização, ou seja, as pessoas cujos danos devem ser tomados em linha de conta, no caso de morte o direito indemnizatório é unitário e corresponde aos “danos não patrimoniais”, incluindo o dano pela lesão do direito à vida, os danos sofridos pela vítima antes de morrer e os sofridos pelos familiares por causa da morte, e cabe não aos herdeiros por via sucessória mas aos familiares por direito próprio e de acordo e pela ordem já referida e prevista no artigo 496º/2 e 3 do CC; e tem sido este o entendimento predominantemente sufragado pelos Tribunais Superiores, mormente pelo STJ e sustentado pela doutrina maioritária.

18ª Se o legislador tivesse tido a intenção de no artigo 496º do CC atribuir a titularidade do direito ali previsto a pessoas diversas das que ali vêm indicadas, e se tivesse pretendido uma atribuição do direito segundo as regras do direito sucessório, teria dado outra redacção completamente distinta ao preceito, e neste teria certamente remetido no capitulo da atribuição e titularidade do direito ali previsto, para as correspondentes normas e regras da sucessão legítima, não criando um regime autónomo e próprio como o fez e como claramente decorre da redacção que foi dada ao citado artigo 496º do CC.

19ª E, neste aspecto, a interpretação de dada norma no sentido da pesquisa da vontade do legislador, não deve, de regra, cingir-se à letra da Lei (artigo 9º/l do CC), mas o certo é que não pode o intérprete nunca, contentar-se com um pensamento legislativo que não tenha na letra da Lei um mínimo de correspondência verbal (artigo 9º/2 do CC) impondo-se-lhe que deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º/3 do CC); e, neste sentido, a redacção do artigo 496º/2 e 3 do CC é de tal forma clara que não permite nem faculta entendimento e interpretação favorável à aplicabilidade e à chamada à colação, no seio da norma, das regras do direito sucessório do artigo 2.142º do CC.

20ª Bem pelo contrário, já que, e no âmbito interpretativo do pensamento do legislador subjacente à norma, se olharmos para a letra desta verificamos que não foi ao acaso que no artigo 496º/2 do CC o legislador disse que por morte da vítima o direito à indemnização por danos não patrimoniais CABE - foi assim que verbalmente se expressou - tendo utilizado o vocábulo CABE, e tendo desprezado o vocábulo ou a expressão TRANSMITE-SE - sendo certo que o poderia não ter feito - e vale então por concluir que desta forma o entendimento mais razoável de acordo com a própria letra da Lei e demais princípios atrás expostos e sobretudo o trajecto histórico do preceito, será o de que o direito de indemnização por morte se constitui na esfera jurídica das pessoas referidos na norma e como direito novo, porque, a elas, e só a elas, é que CABE.

21ª Concluindo, de acordo com o pensamento doutrinal maioritário e com a orientação jurisprudencial predominante, tem vindo a ser entendido e decidido que no caso de morte da vítima toda a indemnização correspondente aos danos não patrimoniais (dano morte ou perda do direito à vida, dano moral sofrido pela vítima antes da morte e danos morais dos familiares desta) cabe não aos herdeiros por via sucessória mas antes aos familiares por direito próprio de acordo e com a ordem prevista no artigo 4969/2 do CC (no âmbito jurisprudencial.

22ª O Acórdão recorrido fez incorrecta interpretação e aplicação do que vem estatuído no artigo 496º/2 e 3 do CC, sendo que a correcta interpretação e aplicação deste normativo induz à concessão da Revista com revogação do Acórdão proferido pelo TR…, porquanto ao A. AA não cabe o direito à indemnização por danos não patrimoniais emergentes da morte da vítima, seu filho, cabendo antes um tal direito in totum ao membro sobrevivo da união de facto que subsistia à data do óbito entre a vítima e a EE.

23ª A sentença da 1ª instância absolveu a Ré DD de todos os danos patrimoniais que foram peticionados pelo A. Rogério; este na Apelação não questionou este juízo e segmento absolutório, e o Acórdão do TR… que julgou procedente a Apelação e revogou a Sentença para que os autos pudessem prosseguir para julgamento, deveria pelo menos na decisão ter salvaguardado aquele segmento absolutório da sentença que, salvo melhor opinião, subsiste intangível, e de igual modo também não se percebe que tenha condenado apenas a recorrida DD em custas quando na relação jurídico processual passiva existem duas co-Rés / Recorridas, pelo que, o Acórdão enferma da nulidade prevista no artigo 615º/1 alínea d) do CPC, pelo facto de não se ter pronunciado sobre questões que devia apreciar, nulidade que urge suprir nos correspondentes termos legais.

Contra-alegou o Autor pugnando pela confirmação do decidido.

Foram dispensados os vistos.

Cabe decidir,


+


    2. FUNDAMENTOS.


   O Tribunal deu como provados os seguintes,

    

     2.1. Factos.


 2.1.1. No dia 31.07.2011, pelas 23.40h, na AE nº8, no sentido Norte-Sul, ao Km 66, ocorreu um acidente de viação envolvendo os veículos ligeiros de passageiros com as matrículas ...-...-FV, ...-FC-... e ...-BH-....

2.1.2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, o veículo ...-...-FV era conduzido por FF, sua proprietária, o veículo ...-FC-... era conduzido por GG, seu proprietário, e o motociclo por BB, seu proprietário.

2.1.3 BB veio a falecer no dia 09.08.2011, no estado de solteiro, em consequência das lesões sofridas no acidente referido em 1.

2.1.4. No dia 18.08.2011, foram habilitados como únicos e universais herdeiros de BB, o Autor, seu pai, e HH, sua mãe.

2.1.5. No inventário que correu termos sob o nº 694/ 2013, no Cartório Notarial de II, por óbito de BB, foram interessados no mesmo, o aqui Autor, HH e EE, na qualidade de cessionária do quinhão hereditário por parte da mãe de BB.

2.1.6. BB vivia desde 2008 com EE como se marido e mulher fossem.

2.1.7. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo …-…-FV, à data referida em 1, encontrava-se transferida para a Ré CC - Companhia de Seguros SA, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 3…/13…7.

2.1.8. A responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo ...-FC-..., à data referida em 1, encontrava-se transferida para a Ré DD - Companhia de Seguros SA, por contrato de seguro titulado pela apólice nº 75…6.


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    2.2. O Direito.


    Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.

   Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

   

     2.2.1. A União de Facto; lei aplicável.  

            Suas decorrências para o caso em análise.

    

O Autor AA, pai e herdeiro de BB intentou a presente acção contra as Rés CC - Companhia de Seguros, S.A. e DD - Companhia de Seguros, S.A., peticionando a condenação das RR. a pagarem-lhe a quantia de € 306.345,00, acrescida de juros à taxa legal, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.

De momento estão em causa apenas os “danos não patrimoniais”. Estes reportam-se aos danos que o Autor alega ter sofrido pela morte do filho, vítima que foi de um acidente de viação ocorrido a 31-7-2011, ao Km 66,00 da AE 8 causado por uma viatura segurada na 1ª Ré, a qual alegadamente ao ultrapassar o motociclo conduzido pelo BB tocou neste, provocando a sua queda, vindo ainda a ser atropelado por um outro veículo que seguia no mesmo sentido (norte-sul e cuja responsabilidade estava segurada pela 2ª Ré a DD, SA.

Lê-se no artigo 496º do Código Civil que “1 – Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 – Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

(Redacção dada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto.)

3 – Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

(Redacção dada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto.)”.

4 – O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.

(Redacção dada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto.)”

Interessa-nos muito especialmente analisar o disposto no nº 3 do normativo em análise aditado pela Lei 23/2010 de 30 de Agosto. No seguimento da revisão da união de facto veio o Diploma supracitado introduzir aquele normativo que estabelece o primado da indemnização por danos não patrimoniais às pessoas afectivamente mais próximas do acidentado morto, sendo inequívoco que, vivendo em união de facto, a indemnização cabe em conjunto à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes. Ora da conjugação dos nsº 3 e 4 verifica-se que este caso que analisamos se integra nessa previsão. O falecido BB vivia em união de facto com EE desde 2008 até à data da sua morte ocorrida a 9 de Maio de 2011. Ora perante este quadro factual, dúvidas não restam que, in casu, o membro sobrevivo da união de facto recebe todos os quantitativos a atribuir a título de indemnização por danos não patrimoniais, a começar pelo que prova ter sofrido com a morte do companheiro, como bem entendeu a 1ª instância. É que, ao contrário do que a Relação sustenta, antolha-se-nos que foi intuito do legislador no artigo 496º do Código Civil, subtrair a indemnização por “danos não patrimoniais” às regras do direito sucessório a que aludem os artigos 2133º do Código Civil. Como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela que “no caso de a lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer os sofridos pela vítima quer pelos familiares mais próximos cabe, não aos herdeiros por via sucessória mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do artigo 496º. É a solução que seguimos nesta medida não coincidente com Vaz Serra[1]. Este último sustentava que falecida a vítima a indemnização pelos danos sofridos transmitir-se-ia aos herdeiros daquela mesmos que a morte tivesse sido instantânea. No entanto já 2ª revisão ministerial o artigo 496º dali saído, para além de não aludir à morte instantânea, no seu nº 2 passou a referir-se que a morte da vítima cabe em conjunto ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos e outros descendentes; na falta destes aos pais ou outros ascendentes e por último aos irmãos de sobrinhos que os representem. A atribuição de indemnização ao membro sobrevivo da união de facto insere-se no entendimento que vingou nesta matéria e ao qual temos vindo a comentar,

A superioridade da posição das RR. supra-referidas está bem patente neste caso; a compensação por danos morais caberá naturalmente à/s pessoa/s que o Legislador entendeu mais ligadas ao falecido por laços afectivos. Claro que este sistema não é necessariamente infalível no elencar dos beneficiários da indemnização, podendo haver outras pessoas que tenham sofrido com a morte da vítima um dano não patrimonial ainda superior… No entanto o Código entendeu, por critérios de segurança, fazer prevalecer no elencar dos beneficiários a segurança jurídica à equidade; esta por seu turno é chamada a intervir activamente quando fixados os titulares do direito se tratar de os ressarcir, devendo ser ponderada a culpa dos intervenientes da ocorrência a gravidade do dano e outros factores que confluindo no caso imponham um ajustamento do quantum indemnizatório[2]. Por uma questão de clareza deverão ser enumeradas separadamente na decisão as parcelas integrantes do montante indemnizatório global. Tal sucedeu no caso vertente, sendo certo que improcedendo a indemnização por danos patrimoniais, o Autor não teria direito a ser ressarcido por danos não patrimoniais já que, de harmonia com o preceituado no artigo 496º nsº 2 e 3. do Código Civil tal ressarcimento cabe à companheira Maria Sara que com o falecido vivia more uxorio.

Concluímos assim que não há possibilidade de cindir a indemnização por danos não patrimoniais, cabendo esta, por força do estatuído no artigo 496º nº 2 do Código Civil, à Ana Sara, o que dita a procedência da revista.

Não cabe nesta revista a pronúncia por danos patrimoniais.


Poderá assim entender-se à guisa de sumário e conclusões o seguinte:

1) Foi intuito do Legislador no artigo 496º do Código Civil, subtrair a indemnização por “danos não patrimoniais” às regras do direito sucessório a que aludem os artigos 2133º ss do Código Civil.

2) O membro sobrevivo da união de facto recebe todos os quantitativos a atribuir a título de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da morte do membro finado.



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3. DECISÃO.


Pelo exposto acorda-se em conceder a revista pelo que revogando o acórdão da Relação de ... em crise determina-se que fique a prevalecer o decidido em 1ª instância.


Custas pelo Autor.


Lisboa, 01 de Meço de 2018


Távora Victor (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira

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[1] Cfr. RLJ Ano 107, 140 ss e 109 pags. 44-45

[2] Cfr. Acs. deste STJ de 13-VII-2011, (P. 758/09.1JABRG.G1.S1) in Bases da DGS1; 30-4-2013 (P. 1380/13.3T2AVR.C1.S1).