Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A2158
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
EFEITOS
Nº do Documento: SJ200510040021581
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 709/04
Data: 12/09/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : - O direito de retenção é um direito real de garantia que decorre directamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial nesse sentido, designadamente em acção especialmente intentada para o efeito;
- Esse direito pode ser reconhecido no processo de falência por via da reclamação do crédito e, quando não impugnados, o crédito e a invocação do direito de retenção podem, sem mais, ser aí reconhecidos para efeitos de concurso e graduação;
- O apenso de reclamação de créditos do processo de falência é não só o lugar próprio para o titular do crédito proveniente o incumprimento de contrato-promessa celebrado com o falido reclamar esse crédito e invocar o direito de retenção que a lei lhe reconheça, como será mesmo o único lugar próprio para o fazer e discutir perante a massa falida e seus credores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. - Nos autos de reclamação de créditos apensos ao processo de falência de "A - Empreendimentos Turísticos, L.da", B apresentou reclamação de créditos formulando um pedido principal, "na hipótese de execução específica do contrato-promessa de compra e venda" - cujo objecto mediato é um apartamento que a falida lhe vendeu e entregou, inacabado, e cuja escritura de venda se comprometera a realizar até 31/5/95 - e um pedido "subsidiário, no caso de não vir a obter a execução específica do contrato-promessa", reclamação que, depois, confrontada com a venda da fracção pela Liquidatária Judicial, complementou com requerimento em que pediu: "seja considerado apenas o seu pedido subsidiário, uma vez que se tornou impossível a execução específica do contrato; seja considerado o direito de retenção da Requerente na graduação do seu crédito ( 32.120.519$00, equivalente ao dobro do sinal passado), ordenando-se o seu pagamento pelo produto da venda do bem sobre o qual incide a garantia".
No despacho saneador fez-se constar que a Sra. Liquidatária não impugnara, entre outros, o crédito 1.29 - " (...) da quantia de 32.120.519$00, equivalente ao dobro da quantia entregue a título de sinal. Alega direito de retenção sobre o prédio objecto do contrato-promessa" -, crédito que, atenta a inexistência de quaisquer outras impugnações, se julgou reconhecido "desde já".
Na sentença, o mesmo crédito, "invocando direito de retenção sobre o prédio" (agora sob o n.º 23), foi relacionado entre os já reconhecidos no " despacho saneador transitado em julgado" e graduado, em atenção ao direito de retenção, imediatamente antes do crédito da C, garantido por hipoteca.

Mediante recurso da credora C, o seu crédito veio a ser colocado à frente do da referida B.

Agora, é esta última a pedir revista, visando a reposição da graduação de créditos efectuada na 1ª Instância, ao abrigo das seguintes conclusões:
- O crédito da Recorrente não foi impugnado, nem mesmo pela C;
- Estão presentes - alegados e provados - nos autos todos os pressupostos do direito de retenção, previstos nos arts. 754º e 755º C. Civil;
- O direito de retenção não tem de ser invocado em acção autónoma, pois não há preceito a exigi-lo e o processo falimentar permite conhecer da questão com todas as garantias para os demais credores;
- A impugnação da sentença de graduação, pela C, dos factos qualificativos do crédito, quando não apresentou qualquer oposição ao tempo da sua reclamação e reconhecimento, constitui abuso de direito.

A recorrida respondeu em defesa do julgado.

2. - Os elementos de facto a considerar são os que já constam do relatório desta peça.
Consideram-se, aqui, reproduzidos.

3. - Questionando-se sobre se "a credora reclamante, B, apenas com base no contrato-promessa que fez com a falida, pode gozar, em termos de reclamação de créditos, do direito de retenção, nos termos em que o foi na sentença, sendo certo que tal direito não se mostra judicialmente declarado", decidiu a Relação que «não estando judicialmente reconhecido, por decisão transitada em julgado, o direito de retenção, não pode a reclamante beneficiar da preferência a que alude o n.º 2 do art. 759º do CC.», isto por que, «a reclamação de créditos, como é óbvio, não chega para se aferir do alegado direito de retenção, já que através dela não se pode demonstrar os respectivos pressupostos com vista ao seu reconhecimento».

A questão que se coloca consiste, pois, em saber se o direito de retenção invocado pelo promitente-comprador de prédio do falido necessita de ser reconhecido fora do apenso de reclamação de créditos, em acção especialmente intentada para o efeito, designadamente por não poderem naquele ser demonstrados os respectivos pressupostos.

4. 1. - Como resulta já dos termos em que foi enunciada a questão a decidir, não está em causa o critério de graduação entre os créditos da Recorrente e da Recorrida, nomeadamente no que respeita à preferência deste sobre aquele, como previsto no art. art. 759º-2, nem propriamente saber se o crédito invocado goza da garantia do direito de retenção, mas, precisando melhor, se o direito real de garantia pode ser reconhecido no processo de falência por via da reclamação do crédito e se, quando não impugnados, o crédito e a invocação do direito de retenção podem, sem mais, ser aí reconhecidos para efeitos de concurso e graduação.

4. 2. - O direito de retenção traduz-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela - arts. 754º e 755º C. Civil.
Trata-se de um direito real de garantia - que não de gozo -, em virtude da qual o credor fica com um poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo, da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei.
Assim, desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito de garantia, válido erga omnes e atendível no concurso de credores. Com efeito, o retentor não pode opor-se à execução, singular ou universal, movida por outros credores, mas é-lhe assegurada a posição preferencial que legitima a recusa em abrir mão da coisa até ao pagamento do seu crédito, faculdade que não desaparece pela acidental circunstância de o devedor se tornar insolvente e/ou haver um processo de falência (cfr. CALVÃO DA SILVA, "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória", 339 e ss.; VAZ SERRA, "Direito de Retenção", in BMJ 65º- 103 e ss.).

4. 3. - No caso do contrato-promessa de compra e venda de imóvel, a lei (art. 755 1.f) C. Civil) concede o direito real de garantia ao beneficiário da promessa de transmissão (promitente-comprador) que obteve a transmissão da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.
Assim, o promitente-comprador credor de indemnização pelo incumprimento do contrato, nos termos previstos no art. 442, desde que tenha obtido tradição da coisa, goza, contra quem quer que seja, da faculdade de não largar mão do imóvel enquanto se não extinguir o seu crédito (A. VARELA, RLJ 124-351).

Destinado, embora, a garantir o promitente-comprador contra o incumprimento da outra parte, entende-se que o direito real de garantia se constitui e está latente a partir do momento em que tem lugar a tradição que é seu pressuposto, "manifestando a sua plena utilidade e força" quando o beneficiário dispõe do crédito por incumprimento da outra parte «sem necessidade de declaração prévia do tribunal» (ac. STJ de 24/4/02, in ITIJ, proc. n.º 02B1136). Estar-se-á, qualificando, perante uma constituição de garantia de obrigação futura determinável (Cons. SOUSA INÊS, ac. de 10/02/00, CJ/STJ VIII-I-82).
Também no acórdão deste Supremo de 25/3/99 (BMJ 485-402) se considerou que o direito nasce quando o promitente-comprador entra na posse da coisa prometida vender, no âmbito do contrato-promessa celebrado, gozando, a partir daí, da protecção jurídica relativamente aos direitos emergentes do contrato, com uma posse legítima sobre a coisa, enquanto não for pago o crédito.

4. 4. - Servem as considerações expendidas para se concluir, como no já referido acórdão de Abril de 2002, que o direito de retenção decorre directamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial nesse sentido (no mesmo sentido já decidira o ac. RL de 22/3/90 - CJ XV- -II-140).
Reconhecido o crédito pelo incumprimento do contrato-promessa, o direito de garantia que existia "em potência a partir da tradição da coisa", passa a existir "em acto", ope legis, ou seja, independentemente de reconhecimento em sentença proferida em acção contra o promitente vendedor.
Em caso de falência do promitente-vendedor, apreensão dos bens prometidos vender e sua subsequente venda no processo de falência - que o credor não pode impedir - a natureza e efeitos do direito de retenção mantêm-se, embora com a sua função de garantia, que é o que aqui importa considerar, restrita à preferência concedida sobre outros credores.

5. - A declaração de falência priva imediatamente o falido da administração e do poder de disposição dos seus bens, que passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial, que assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência, torna imediatamente exigíveis todas as obrigações do falido, sendo que ao processo de falência devem ser apensas, a requerimento do liquidatário, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido e cujo resultado possa influenciar o valor da massa (arts. 147º, 151º e 154º do CPEREF).
Declarada a falência, procede-se à apreensão de todos os bens susceptíveis de penhora e os credores do falido devem reclamar a verificação dos seus créditos, quer comuns, quer preferenciais, por meio de requerimento no qual indiquem a sua proveniência, natureza e montante, mesmo no caso de terem já o seu crédito reconhecido por decisão definitiva noutro processo (arts. 175º e 188º-1 e 3 do mesmo diploma).

A sentença falimentar constitui, assim, um título executivo especial no tocante à massa dos créditos, concedendo-lhes força executiva independentemente da sua origem e natureza.
Por ser "omnicompreensiva", a sentença declarativa de falência acarreta a apreensão de todo o património do devedor, em relação ao activo, e a avocação e conhecimento de todas as questões de natureza patrimonial, quanto ao passivo (princípio da plenitude da instância falimentar, consubstanciado nos citados preceitos). Aberta a execução universal contra o falido, concentram-se no respectivo processo todas as pretensões patrimoniais sobre este, iniciando-se um concurso que não se limita ao créditos comuns, mas se estende aos créditos preferenciais e ao direito de separação de bens (cfr. P. SOUSA MACEDO, "Manual do Direito de Falências", II, 28 e 291 e ss.).

Deste regime decorre, ao menos a nosso ver, que, o apenso de reclamação de créditos do processo de falência é não só lugar próprio para o titular de crédito proveniente de incumprimento de contrato-promessa celebrado com o falido reclamar esse crédito e invocar, se for caso disso, o direito de retenção que a lei lhe reconheça, como será mesmo o único lugar próprio para o fazer e discutir perante a massa falida e seus credores (cfr., pressupondo o afirmado, os acs. deste STJ de 1/2/95 e 9/11/00, CJ III-I-55 e VIII-III-114, respectivamente).

6. - Resta acrescentar que nem a Recorrente nem a Liquidatária Judicial impugnaram o crédito reclamado pela Recorrente, nem os pressupostos por esta alegados para o reconhecimento do direito de retenção que alegou: - a celebração do contrato-promessa, o sinal e seu montante, a entrega do apartamento e a data em que ocorreu, o prazo e cominações relativos à outorga da escritura, tudo, de resto, suportado por escritos, de autoria atribuída à falida, também não impugnados, como lhes era facultado pelo art. 192º CPEREF.
Por isso, e bem, o crédito preferencial da Recorrente, com a garantia invocada, foi logo reconhecido no despacho saneador, que ficou a valer como sentença, para ser, com os demais, graduado a final - art. 196º-4 e 6.
A Recorrida também não reagiu, de forma alguma, contra o despacho saneador que julgou verificado o crédito, a coberto da constatada falta da respectiva impugnação e respectiva cominação legal.
O decidido transitou oportunamente em julgado e a possibilidade de suscitar a questão, em recurso da decisão final, ficou também precludida.

Nesta conformidade, o acórdão recorrido e o nele decidido não podem subsistir.

7. - Termos em que, de harmonia com o que ficou exposto, se decide:

- Conceder a revista;
- Revogar o acórdão recorrido;
- Repor, quanto à graduação dos créditos a pagar pelo produto da venda da fracção autónoma prometida vender à Recorrente, o decidido na 1ª Instância, sob o ponto 6º da sentença;
- Condenar a Recorrente nas custas dos recursos (apelação e revista).

Lisboa, 4 de Outubro de 2005
Alves Velho,
Moreira Camilo,
Lopes Pinto.