Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3035
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DA PROVA
APRECIAÇÃO DA PROVA
DECISÃO
Nº do Documento: SJ200510110030357
Data do Acordão: 10/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10571
Data: 03/17/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O vício de nulidade a que se reporta o artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil só ocorre quando os fundamentos de facto e ou de direito invocados no acórdão conduzirem logicamente ao resultado oposto àquele que integra o respectivo segmento decisório.
2. O erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa pela Relação baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador excede o âmbito do recurso de revista.
3. No quadro do enriquecimento sem causa, quem pretende fazer valer em juízo, em acção ou reconvenção, o direito de crédito envolvente, é que tem o ónus de prova dos factos negativos relevadores da inexistência de causa justificativa do pagamento.
4. Por ser plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos pertinentes, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil pouco mais envolve do que a operação do juiz ou do colectivo de juízes de considerar, na sentença ou no acórdão. os factos cobertos por aqueles meios de prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I

"A"-Construções Ldª intentou, no dia 2 de Março de 2001, contra B, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a restituir-lhe 8.077.992$00 e juros contados desde a data da propositura da acção, sob o fundamento de lhe haver pago esse valor sem qualquer contrapartida ou razão justificativa.
A ré, em contestação, arguiu a ineptidão da petição inicial, a incompetência do tribunal em razão da matéria e a irregularidade do patrocínio da autora e, em impugnação, afirmou que a mencionada quantia se destinou ao pagamento de prestações relativas preço do serviço de secretariado, e pediu a condenação da autora e da sua mandatária por litigância de má fé.
A autora negou a existência das referidas excepções e manteve a posição assumida na petição inicial, e, no despacho saneador foram aquelas excepções julgadas improcedentes.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 27 de Maio de 2004, que absolveu a ré do pedido, da qual a autora apelou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 17 de Março de 2005, negou provimento ao recurso.

Interpôs a autora recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão recorrido, ao incorrer em contradição entre os fundamentos e a decisão, violou o artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil;
- não há prova documental da alegada prestação de serviços pela recorrida e incumbia-lhe o respectivo ónus, nos termos do artigo 342º do Código Civil;
- os depoimentos prestados por C, D e E e as contradições dos depoimentos de F, G e H revelam que a recorrida nunca prestou à recorrente quaisquer serviços, designadamente de secretariado ou redacção de actas;
- a inexistência de contrato de prestação de serviços e de depoimento susceptível de credibilidade justificativa do aludido recebimento impõem a condenação da recorrida no pedido;
- não podia o acórdão recorrido ter concluído pela falta de prova pela autora dos factos por si invocados, pelo menos sem o fundamentar e fazer o exame crítico das provas, incluindo as contradições;
- ao manter as respostas aos pontos 1 e 2 da base instrutória, remetendo para os termos da decisão proferida na 1ª instância, está o acórdão recorrido indevidamente fundamentado, e violou os artigos 342º do Código Civil e 659º, nº 3, do Código de Processo Civil;
- por não haver considerado os fundamentos do enriquecimento sem causa, o acórdão recorrido violou o artigo 473º do Código Civil;

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- a falta de prova dos factos negativos insertos nos quesitos 1º, 2º e 12º é o fundamento de base do artigo 342º, nº 2, do Código Civil, correctamente aplicado no acórdão recorrido;
- não está provada matéria de facto base de aplicação dos artigos 659º, nº 3, 668º, nº 1, alínea c), 698º, 713º, nº 6 e 724º, nº 1, do Código de Processo Civil;
- conforme decorre das respostas positiva ao quesito 8º e negativa aos quesitos 1º a 4º e 11º e 12º, todos os pagamentos por cheques nominativos entre 31 de Maio de 1995 e 30 de Junho de 1998 são a contrapartida de serviços de secretariado prestados pela recorrida;
- os cheques nºs 6784364482, 5644364507 e 7264589598, datados de 31 de Maio de 1995, 30 de Junho de 1995 e 31 de Janeiro de 1996, com o valor de 204.000$00 cada um, emitidos, sacados e assinados por I, co-titular do direito de gerência conjunta, são actos voluntários consubstanciadores da confissão prevista nos artigos 355º e 356º do Código Civil e 567º do Código de Processo Civil;
- os referidos cheques fundamentam a aplicação do artigo 334º do Código Civil e são causa concreta da condenação solidária, a título de litigantes de má fé, com o alcance dos artigos 456º, nº 2 a 459º do Código de Processo Civil;
- deve ser proferida decisão confirmatória do acórdão recorrido, declarar-se nula a minuta da revista e condenar-se I e a sua advogada por litigância de má fé em multa e indemnização.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. O objecto social da autora, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Seixal sob o nº 605/801114, é o de comércio de compra e venda de propriedades, construção de prédios para venda e empreitadas de construção civil, e os seus sócios eram L, este com a cota de 1.440.000$00, I com a cota de 1.440.000$ e D com a cota de 120.000$00, a sua gerência pertencia aos dois primeiros, e a forma de obrigar era a assinatura conjunta deles.
2. No dia 13 de Novembro de 1987, no Cartório Notarial de Lagos, I declarou, por escrito, na qualidade de sócio gerente da autora, que constituía seu bastante procurador o sócio-gerente L, em quem delegava poderes para por si só em nome da sociedade a obrigar em quaisquer actos ou contratos de compra, venda ou permuta de bens móveis ou imóveis, outorgando e assinando as escrituras e contratos de promessa de compra e venda e documentos particulares necessários aos mencionados fins, acordando condições e preço dos contratos, para constituir prédios da sociedade em regime de propriedade horizontal, outorgando e assinando as respectivas escrituras, para requerer quaisquer actos de registo predial respeitantes a bens móveis ou direitos prediais da sociedade, para representar a sociedade junto de quaisquer repartições públicas, nomeadamente repartições de finanças e câmaras municipais, apresentar projectos de construção, requerendo licenças de construção ou de habitação e requerendo, praticando e assinando tudo o mais que preciso fosse para os indicados fins.
3. Por escrito datado de 18 de Abril de 1995, representantes do Banco J, SA e da autora e o engenheiro K declararam acordar "em promover o acabamento de identificados prédios, em termos de poderem vir a ser habitados e utilizados, bem como a venda dos mesmos, ficando entendido que o contrato não consubstanciava qualquer tipo de sociedade ou exercício em comum de qualquer actividade, agindo cada uma das partes de per si, ainda que concertadamente".
4. "L", em nome da autora, subscreveu, juntamente com intitulado representante de M - Construção Civil Ldª, um escrito denominado "contrato de associação em participação", datado de 17 de Abril de 1995, onde se expressa, além do mais: "considerando que a A celebrou com o Banco J, SA um contrato, tendo por objecto a promoção do acabamento e a comercialização do Empreendimento ..., acordam que agirão concertadamente, mas cada um de per si, com vista à execução do contrato, em conformidade com as cláusulas seguintes, ficando entendido que a A poderá celebrar com outras sociedades contratos análogos ao presente, alargando a associação, desde que não se verifique a coincidência de prestações".
5. "L", em nome da autora, subscreveu, juntamente com intitulado representante de N - Sociedade Imobiliária Ldª, um escrito denominado "contrato de associação em participação", datado de 17 de Abril de 1995, onde se expressa, além do mais: "considerando que a A celebrou com o Banco J, SA um contrato, tendo por objecto a promoção do acabamento e a comercialização do Empreendimento ...., acordam que agirão concertadamente, mas cada uma de per si, com vista à execução do contrato, em conformidade com as cláusulas seguintes, ficando entendido que a A poderá celebrar com outras sociedades contratos análogos ao presente, alargando a associação, desde que não se verifique a coincidência de prestações."
6. "L", em nome da autora, subscreveu, juntamente com intitulado representante de O, Ldª, um escrito denominado "contrato de associação em participação", datado de 17 de Abril de 1995, onde se expressa, além do mais: "considerando que a A celebrou com o Banco J, SA um contrato, tendo por objecto a promoção do acabamento e a comercialização do Empreendimento ..., acordam que agirão concertadamente, mas cada uma de per si, com vista à execução do contrato, em conformidade com as cláusulas seguintes, ficando entendido que a A poderá celebrar com outras sociedades contratos análogos ao presente, alargando a associação, desde que não se verifique a coincidência de prestações."
7. Os escritos mencionados sob 4 a 6 foram elaborados e assinados mais de quatro anos depois de 17 de Abril de 1995, com o intuito de justificar saídas de dinheiro da autora a favor de N, Ldª, O, Ldª e da M-Construção Civil Ldª.
8. "L" entregou à ré, em nome da autora, através de 40 cheques, respeitantes a conta aberta em nome da autora no Banco J, SA, emitidos entre Maio de 1995 e Junho de 1998, assinados pelo primeiro, preenchidos por F, a quantia total de 8.077.992$00, equivalente a € 40.292,85.
9. Em Fevereiro de 1999, I declarou por escrito, na qualidade de sócio-gerente da autora, "revogo, considero nula e de nenhum efeito a partir de hoje a procuração outorgada no dia 13 de Novembro de 1987 no Cartório Notarial de Lagos.
10. Está inscrita no registo comercial, desde 25 de Maio de 1999, a designação de P como mandatário da autora, e desde 6 de Setembro de 1999 a destituição de L como seu gerente, e desde 10 de Novembro de 1999, a designação do primeiro como gerente da autora.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida deve ou não ser condenada a restituir à recorrente a quantia de € 40.292,85 acrescida de juros à taxa legal contados desde 2 de Março de 2001.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão?
- pode ou não sindicar-se no recurso de revista a decisão da matéria de facto proferida pela Relação;
- ónus de prova da inexistência de causa justificativa do pagamento realizado pela recorrente;
- infringiu ou não o acórdão recorrido o disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil?
- os factos provados comportam ou não a decisão absolutória em causa?
- ocorrem os pressupostos de condenação, no recurso de revista, de I e da advogada Q por litigância de má fé?
- síntese para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.

Sem prejuízo de a solução de uma prejudicar a solução a dar a outra ou a outras, vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela questão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Alega a recorrente ser o acórdão nulo por virtude de os seus fundamentos estarem em real oposição com a decisão, por aqueles conduziam necessariamente a uma decisão de sentido diferente, invocando o disposto no artigo 668º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

Esclareceu que a referida contradição resultava do facto de ser dado como provado o recebimento por parte da recorrida da quantia atrás referida, ter ficado assente que entre ela e a recorrente não haver sido celebrado algum contrato de prestação de serviços, ser clara inexistência de causa justificativa para o recebimento pela primeira das quantias com que se locupletou à custa da última, e impor-se a condenação daquela no pedido.
Resulta da lei que os fundamentos de facto e de direito utilizados no acórdão da Relação devem ser harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão, corolário do princípio de que o acórdão deve ser fundamentado de facto e de direito, certo que esse requisito se não verifica caso ocorra contradição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão nos quais assenta.
Todavia, o erro de interpretação dos factos e ou do direito ou na aplicação deste constitui erro de julgamento, e não o vício de nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão a que alude a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
É que o vício de nulidade a que se reporta o aludido normativo só ocorre quando os fundamentos de facto e ou de direito invocados no acórdão conduzirem logicamente ao resultado oposto àquele que integra o respectivo segmento decisório.
Na sentença proferida no tribunal da 1ª instância a ora recorrida foi absolvida do pedido essencialmente sob o fundamento de se haver provado o pagamento à mesma dessa quantia pela ora recorrente mas não se haver provado que tal pagamento não teve causa justificativa.

A Relação, no âmbito da impugnação pela recorrente da decisão da matéria de facto, quanto à resposta dada aos quesitos primeiro, segundo e quinto da base instrutória, considerou não haver fundamento para a sua alteração e, com base nisso, declarou remeter para a decisão proferida no tribunal de 1ª instância nos termos do artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil, por concordar com a absolvição da ora recorrida do pedido.
Assim, ao invés do que a recorrente afirma, a decisão da Relação no sentido de manter a sentença proferida no tribunal da 1ª instância é logicamente harmónica com os fundamentos em que a fundou.
Na realidade, porém, o que resulta neste ponto do alegado pela recorrente é a sua discordância do decidido no confronto do quadro de facto provado, o que poderá eventualmente enquadrar o erro de julgamento, mas não o vício de nulidade do acórdão por ela invocado.
Assim, como do contexto do acórdão resulta a conformidade lógica entre a parte da motivação fáctico-jurídica e a parte decisória, não se verifica, na espécie, o vício de nulidade a que alude a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

2.
Vejamos agora se este Tribunal pode ou não alterar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação, ou seja, se pode ou não sindicar o juízo da Relação sobre a apreciação da prova e a fixação da matéria de facto.
Conforme acima já se referiu, a recorrente impugnou no recurso de apelação a decisão da matéria de facto envolvida na resposta aos quesitos primeiro, segundo e quinto.
E agora, no recurso de revista, continua a pôr em causa a decisão da matéria de facto pela Relação no que concerne às respostas aos quesitos primeiro e segundo.
Baseou-se, no recurso de apelação e agora no recurso de revista, na prova testemunhal produzida em julgamento por C, D e E, e nas contradições nos depoimentos de F, G e H.
A Relação, depois de enunciar o conteúdo dos três referidos quesitos e de afirmar que a conclusão sobre a impossibilidade de verificação de determinado acontecimento constituía juízo de valor a extrair de factos alegados, concluiu no sentido de as respostas dadas se encontrarem devidamente fundamentadas e de dever ser mantida a resposta negativa aos dois primeiros.
Assim, embora sucintamente, a Relação conheceu da impugnação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância e fundamentou a decisão de improcedência a que chegou, pelo que não ocorre a nulidade a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, que pressupõe a absoluta falta de fundamentação.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, pode o Supremo Tribunal de Justiça apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação, se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Como no caso vertente ocorre essa situação, isto é, a decisão da matéria de facto em causa proferida pela Relação foi baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, não pode este Tribunal sindicá-la no recurso de revista.

3.
Atentemos agora sobre quem tinha o ónus de prova da inexistência de causa justificativa do pagamento realizado pela recorrente.
Alegou a recorrente que o acórdão recorrido, ao manter as respostas aos quesitos primeiro e segundo da base instrutória violou, além do mais, o disposto no artigo 342º do Código Civil.
Reporta-se o mencionado normativo à distribuição do ónus da prova, sendo que, no caso espécie, não pode estar em causa, atentos os termos do litígio, o disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil, que essencialmente se reporta aos factos integrantes de excepções peremptórias deduzidas pelo réu.
A distribuição do ónus da prova no caso vertente deve, naturalmente, ser perspectivada à luz do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar um direito deve fazer a prova dos respectivos factos jurídicos constitutivos.
O direito substantivo que a recorrente pretendida fazer valer na acção era o de crédito consubstanciado na restituição da quantia de € 40.292,85, derivado de pagamento indevido, à luz do artigo 473º, nº 2, do Código Civil.
Para tanto, a recorrente afirmou na petição inicial, por um lado que ela e a recorrida nunca acordaram entre si, verbalmente ou por escrito, a prestação de quaisquer serviços pela segunda a favor da primeira.
E, por outro, que a recorrida nunca foi vista, quer na sede, quer nos locais dos trabalhos de construção levados a cabo pela recorrente no Algarve, a trabalhar ou a prestar quaisquer serviços a favor da recorrente.
Ora, as referidas afirmações é que integraram os quesitos primeiro e segundo da base instrutória e consubstanciam os factos constitutivos do direito de crédito de que a recorrente se arroga.
Consequentemente, apesar da sua estrutura negativa, era à recorrente que incumbia a prova dos referidos factos, ou seja, era a ela que incumbia o respectivo ónus.
Assim, a Relação, ao remeter para o decidido na sentença proferida no tribunal de primeira instância, nos termos do artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil, que tinha considerado não haver a recorrente cumprido, quanto aos referidos factos, o ónus de prova, não infringiu qualquer dos normativos do artigo 342º do Código Civil.

4.
Vejamos agora se o acórdão recorrido infringiu ou não o disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil.
A recorrente afirmou que a Relação omitiu o exame crítico das provas e que, por isso, violou o disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Resulta da lei que na fundamentação da sentença ou do acórdão deverá o tribunal tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpra conhecer (artigos 659º, n.º 3, 713º, n.º 2, e 726º do Código de Processo Civil).
O exame crítico das provas a que aquele normativo se reporta não tem o sentido que a mesma expressão tem no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, porque nesta última situação, e não naquela, está implicada a própria decisão da matéria de facto.
Como é plena a força probatória da confissão, do acordo das partes e dos documentos com esse relevo, o exame crítico das provas a que se refere o n.º 3 do artigo 659º do Código de Processo Civil envolve praticamente apenas a operação do juiz ou do colectivo de juízes de registar e considerar os factos cobertos por aqueles meios de prova.
Ora, no caso vertente, não foi suscitada à Relação a omissão de consideração pelo tribunal de 1ª instância de algum facto provado por algum dos mencionados meios de prova plena, nem no recurso de revista é imputada idêntica omissão à Relação.
Consequentemente, não tem apoio legal a invocação pela recorrente da violação pela Relação do disposto nos artigos 659º, nº 3 e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil.

5.
Atentemos, ora, se os factos provados comportam ou não a decisão absolutória da recorrida no pedido em causa por inverificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.
O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual, por um lado, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (n.º 1).
E, por outro, que a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que se não verificou (n.º 2).
Assim, são elementos do enriquecimento sem causa, em regra, o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro, decorrentes do mesmo facto, e a ausência de causa justificativa para a concernente deslocação patrimonial por eles envolvida.
No quadro deste instituto, o enriquecimento não é uma consequência legal de qualquer facto jurídico que a lei preveja como idóneo para o gerar, isto porque é sua causa justificativa, ou seja, trata-se do facto jurídico que, à luz do direito, é idóneo à concernente aquisição ou liberação.
Conforme já se referiu, incumbia à recorrente o ónus de provar os factos constitutivos do direito de crédito que na acção fez valer contra a recorrida (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
A recorrente logrou provar a entrega que fez à recorrida da referida quantia de € 40 292,85, mas não se provou que tal pagamento não tivesse causa justificativa, pelo que se não pode concluir no sentido do enriquecimento sem causa da segunda à custa da primeira.
Consequentemente, ao confirmar a decisão proferida no tribunal de 1ª instância, a decisão não infringiu, certo que cumpriu, o disposto no artigo 473º do Código Civil.

6.
Vejamos agora se ocorrem ou não na espécie os pressupostos legais de condenação de I e da advogada Q por litigância de má fé no recurso de revista.
A recorrida pretende a condenação de I e da advogada da recorrente sob o argumento de litigância de má fé no recurso de revista, no pagamento de indemnização, em razão de o primeiro haver assinado três dos cheques que lhe foram entregues e de tal significar confissão do direito dela ao montante que lhe foi entregue e de a última, não obstante exercer o patrocínio da recorrente no recurso.
Vejamos então o conteúdo das normas que a recorrida cita para obter a referida condenação.
A confissão é o reconhecimento que a parte faz de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária, e é judicial se feita em juízo e espontânea se ocorrer nos articulados (artigos 352º, 355º, nº 2 e 356º, nº 1, do Código Civil).
A confissão é irretractável, mas a expressa de factos nos articulados pode ser retirada enquanto a parte contrária os não tiver aceitado especificamente (artigo 567º do Código Civil).
Ao abuso do direito reporta-se o artigo 334º do Código Civil, segundo o qual, é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico.
A circunstância de I, sócio e co-gerente da recorrente, haver assinado os três referidos cheques não significa, como é natural, a confissão de factos reveladores de a sua entrega à recorrida representar o pagamento de serviços de secretariado por estes prestados à primeira.
A excepção peremptória imprópria do abuso de direito, a que reporta o artigo 334º do Código Civil, tem a ver com o exercício de direitos substantivos, mas não com o exercício de direitos processuais, cujo abuso é essencialmente previsto na alínea d) do nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil.
Assim, a pretensão da recorrida no sentido de obter a condenação de I, sócio da recorrente, e da advogada dela não tem o mínimo apoio legal, seja nas normas jurídicas acima indicadas relativas à confissão, seja nas concernentes ao abuso do direito.
A lei adjectiva expressa, para além de que quem litigar de má fé com dolo ou negligência grave, será condenada em multa e em indemnização que seja pedida, e densifica esse tipo de litigância censurável do ponto de vista ético-jurídico sob o elenco, por um lado, da dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, da alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a descoberta da verdade (artigo 456º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil).
E, por outro, sob o elenco da omissão grave do dever de colaboração, do uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem sério fundamento, o trânsito de julgado da decisão (artigo 456º, nºs 1 e 2, alíneas c) e d), Código de Processo Civil).
Conforme resulta dos termos da causa, a improcedência da pretensão formulada pela recorrente não resultou de ela não ser titular do direito de crédito de que se arroga no confronto com a recorrida, mas da circunstância de não ter logrado provar os factos reveladores desse direito.
Consequentemente, não são configuráveis no caso espécie os pressupostos de condenação por litigância de má a que se reportam as alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil.
Ademais, também não ocorre no caso a situação de omissão grave do dever de cooperação a que alude a alínea c) do nº 2 do artigo 456º do Código de Processo Civil.

Acresce que, atentos os fundamentos do recurso de revista a que acima se fez referência e o conteúdo do acórdão da Relação, não se vislumbra que a recorrente o tenha interposto de forma manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar sem fundamento pertinente o trânsito de julgado da decisão, a que alude a alínea d) do nº 2 do artigo 456º de Código de Processo Civil.
Não se verificam, pois, na espécie, os pressupostos de que depende o funcionamento das normas de responsabilidade processual civil relativas à litigância de má fé pretendido pela recorrida.
Ainda que se verificassem tais pressupostos, não podia proceder a pretensão da recorrida de condenação de I e da advogada da recorrente na pretendida sanção, quanto ao primeiro por se ignorar se partiu ou não dele a iniciativa de a recorrente interpor o recurso de revista e, no segundo, porque a condenação seria da competência de entidade diversa do tribunal (artigos 458º e 459º do Código de Processo Civil).

7.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
O acórdão recorrido está minimamente fundamentado de facto e de direito e não está afectado de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão a que se reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Acresce que o acórdão em causa não infringiu o disposto nos artigos 659º, nº 3 e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Este tribunal não pode sindicar no recurso de revista a decisão da matéria de facto proferida pela Relação, por se não verificar a excepção prevista na segunda parte do nº 2 do artigo 722º do Código de Processo Civil.
O ónus de prova da inexistência de causa justificativa da entrega monetária operada pela recorrente à recorrida incumbia à primeira, nos termos do nº 1 do artigo 342º do Código Civil, e ela não o cumpriu.
A decisão da Relação no sentido de manutenção da decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância que absolveu a recorrida por inverificação dos requisitos do enriquecimento sem causa, a que se reporta o artigo 473º do Código Civil, cumpriu a lei substantiva e a adjectiva aplicável.
Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de a recorrente, porque vencida, tendo em conta o princípio da causalidade que rege nesta matéria, dever ser condenada no pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Não ocorrem na espécie os pressupostos de condenação, no recurso de revista, de I ou da advogada da recorrente por via do instituto da litigância de má fé a que se reporta o artigo 456º do Código de Processo Civil.

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 11 de Outubro de 2005.
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.