Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
326/2000.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: USUCAPIÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
POSSE
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
POSSE TITULADA
VENDA JUDICIAL
ANULAÇÃO DA VENDA
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
RECURSO DE AGRAVO NA 2ª INSTÂNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO / DIREITO DE PROPRIEDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- M. Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1966, pp. 66-67.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pp.64, 75.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 323.º, N.ºS 1 E 2, 1251.º, 1259.º, N.º1, 1260.º, N.º 2, 1263.º, AL.B), 1287.º, 1292.º, 1294.º, 1295.º, N.ºS1, AL. A), 2, 1305.º,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, N.º1, 754.º, N.º2.
Sumário :

I - A usucapião é uma forma de aquisição do direito de propriedade (ou de outros direitos reais de gozo) assente na posse de tal direito, mantida por certo lapso de tempo (art. 1287.º do CC).
II - A posse – poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade – é integrada por dois elementos: o corpus (elemento material), que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus (elemento intelectual ou volitivo), que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto.
III - A arrematação em hasta pública é um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade pelo que a posse nela fundada é posse titulada, ainda que aquela arrematação venha a ser posteriormente anulada por vícios substantivos.
IV - Presumindo-se tal posse de boa fé (art.1260.º, n.º 2, do CC), o prazo de aquisição de imóvel por usucapião é de 10 anos (art. 1294.º do CC).
V - O art. 1294.º do CC, exigindo que o prazo nele referenciado se conte desde a data do registo, deve ser interpretado, restritivamente, no sentido de que à publicidade do registo se deve somar a publicidade natural, decorrente da posse.
VI - Se (i) os réus adquiriram o imóvel por arrematação em hasta pública em 16-10-1984 (ii) registaram essa aquisição a seu favor em 22-10-1984 e (iii) apenas foram investidos na respectiva posse em 20-06-1989, só nesta data se inicia a contagem do prazo de 10 anos pois só a partir de então se cumulam ambas as publicidades – a do registo e a natural decorrente da posse.
VII - São aplicáveis à usucapião as regras relativas à suspensão e à interrupção da prescrição (art. 1292.º do CC).
VIII - Tendo a acção de reivindicação sido intentada pelos autores a 08-04-1999 e verificado o disposto no art. 323.º, n.ºs 1 e 2, do CC, o prazo de usucapião pelos réus tem-se por interrompido a 13-04-1999.
IX - O art. 1295.º,al.a), do CC reporta-se às hipóteses em que há registo da mera posse em vista de decisão final proferida em processo de justificação, nos termos da lei registral.
X - A violação da lei de processo pode ser invocada em revista nos termos e condições do agravo em 2.ª instância, de que é pressuposto a oposição de julgados.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
RELATÓRIO

         AA propôs, no Tribunal de Elvas, contra BB e mulher, CC, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, para que fosse declarado que ela e o seu marido são donos do prédio situado no ..., com os nºs 1, 1-A, 1-B, 1-C e 1-D, e no Beco ... sob os nºs 2 a 2-B, freguesia de ..., concelho de Elvas e para que os RR sejam condenados a restituir tal prédio à Autora e ao seu marido, livre e completamente devoluto.
 .
         Alegou, para o efeito, em síntese, ser comproprietária, com o seu marido DD, de tal prédio, por o terem comprado a EE e FF e que tal prédio encontra-se ocupado pelos réus, há vários anos, sem título que legitime tal ocupação, assim impedindo que a autora dele frua em toda a sua plenitude.

         Os RR contestaram por excepção dilatória, alegando a ilegitimidade activa da Autora por preterição de litisconsórcio necessário e por impugnação,  alegando terem adquirido o prédio por arrematação em hasta pública em 16 de Outubro de 1984 e haverem entrado na posse do mesmo em Maio de 1987, posse essa que se mantém até à presente data, em termos continuados e ininterruptos, como se dele fossem donos, sem contestação ou interpelação por parte de qualquer pessoa; acrescentam que pagaram o preço do imóvel decorrente da mencionada aquisição e nele realizaram benfeitorias, obras e despesas de manutenção, no que despenderam quantia não inferior a Esc. 6.000.000$00, pelo que sempre lhes assistiria, e desde logo, direito de retenção sobre o imóvel nos termos do disposto nos arts. 754º e 759º do Código Civil, sendo que, de todo o modo, adquiriam já o prédio por usucapião, face ao disposto no art. 1287º daquele Código.
            Nestes termos, terminam, pedindo:
- Seja julgada procedente por provada a excepção de ilegitimidade activa, com a consequente absolvição dos réus da instância;
- Caso assim não se entenda, seja a acção julgada improcedente por não provada, absolvendo-se os réus dos pedidos.
E reconvindo, pedem que:
- Em qualquer dos casos, seja o pedido reconvencional julgado procedente por provado e, em consequência, seja declarada a aquisição do prédio urbano sito no Beco da Escola Velha, nºs 1-B a 1-D e Beco ..., nºs 2 a 2-B, freguesia de ..., concelho de Elvas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Elvas sob o nº 7 da freguesia de ..., e inscrito na matriz, sob o nº 180º da aludida freguesia, a favor dos réus ou, caso assim não se entenda, seja declarado que os réus detêm direito de retenção sobre o aludido prédio.

A Autora replicou, respondendo à excepção e contestando a reconvenção.

Falecido BB, foi habilitado, como seu sucessor, GG.
E DD foi admitido a intervir, como associado da Autora.

         Após a tramitação adequada, foi proferida sentença que decidiu:
A) Reconhecer que a autora AA e o interveniente DD são proprietários do prédio urbano inscrito sob o art.º 180 da matriz predial urbana de ... e descrito sobre o nº. 0007/221084, na Conservatória do Registo Predial de Elvas;
B) Condenar os réus a restituir de imediato o sobredito imóvel à autora e ao interveniente, livre de pessoas e bens;
C) Julgar improcedente por não provada a reconvenção e absolver a autora/reconvinda, bem como o interveniente principal, do pedido reconvencional.

Os RR apelaram para o Tribunal da Relação de Évora, mas sem êxito, já que a sentença foi confirmada.

E é do acórdão que tal deliberou que trazem agora a presente revista, pugnando pela sua revogação.
Os AA contra-alegaram em defesa do acórdão recorrido.

Remetido o processo a este STJ, após o exame preliminar, foram corridos os vistos legais.
Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO

Os FACTOS:

As instâncias mostram-nos como provados os seguintes factos:
 

                    1- O prédio urbano inscrito sob o artº. 180 da matriz predial urbana de ... e descrito sobre o nº. 0007/221084 na Conservatória do Registo Predial de Elvas, encontra-se registado a favor da autora e do interveniente principal DD (Al. A) da matéria de facto assente).
                    2- Tal prédio situa-se no Beco da Escola de ... com os nº.s 1, 1A, 1B, 1C e 1D, e entrou na esfera patrimonial da autora e do interveniente por compra que fizeram a EE e FF através da escritura, cuja cópia certificada se encontra a fls. 11 a 20 e que aqui se dá por integralmente reproduzida (Al. B) da matéria de facto assente).
                    3- Tal imóvel encontra-se ocupado há vários anos pelos réus (Al. C) da matéria de facto assente).
                    4- Os réus foram investidos judicialmente na posse do imóvel identificado em 1), a 3), em 20 de Junho de 1989 (Resposta ao quesito 1º).
                    5- Foram feitas obras de recuperação de parte da cobertura do edifício (Resposta ao quesito 7º).
                    6- A 16 de Outubro de 1984, na Repartição de Finanças do concelho de Elvas, HH adquiriu, por arrematação, o prédio urbano inscrito sob o art. 180 da freguesia de ..., do concelho de Elvas, sito no Beco da Escola Velha nºs 1 a 1-D e Beco ... nº 2 a 2B (Facto Provado por documento – cfr. fls. 168 dos autos).
                    7- Tal venda foi declarada nula por acórdão proferido a 24 de Abril de 1990, no âmbito do processo que correu termos pela 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (Facto provado por documento – cfr. fls. 168).
                    8- A aquisição por arrematação referida no ponto 6) foi registada a favor de BB na Conservatória do Registo Predial de Elvas sob a cota G-2, tendo o registo de tal aquisição sido posteriormente cancelado a 18 de Dezembro de 1992, conforme documento de fls. 7-10 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (Facto provado por documento).


O DIREITO:

Antes de mais, importa delimitar as questões em que se analisa o objecto do presente recurso; e sendo, como se sabe, o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, os ora recorrentes finalizam a sua alegação com a seguinte síntese conclusiva:

I - Ocorreu violação de lei processual, dado que do douto Acórdão ora recorrido não transparece que efectivamente tenha sido realizada uma reavaliação fundamentada da prova, violando-se assim, em nossa modesta opinião, o disposto no art, 712.°, n." 1 do CPC não controlando o Tribunal da Relação os factos com base no entendimento definido como "tese do poder-dever da Relação formar uma convicção própria sobre os factos", nos termos acima caracterizados;

II - Face às características da posse induzida pela aquisição do prédio em causa nos autos, numa arrematação em hasta pública, devem os recorrentes ser havidos como possuidores de boa-fé e titulados (com registo de aquisição em nome deles);

III - Aplica-se, pois, o prazo de cinco anos, previsto no art, 1295.°, n. ° 1, al a) do CC, sendo que já havia ocorrido a prescrição aquisitiva do direito de propriedade à data da propositura da presente acção e, também, da citação dos réus ora recorrentes;

IV - Com efeito, tratou-se aqui de um registo do direito de propriedade, que só perdeu essa natureza em função de um pronunciamento judicial (facto assente sob o ponto n.07), reportado a um comportamento que não foi imputável aos recorrentes, mas sim à Administração Fiscal, devendo entender-se esse registo. que perdurou por oito anos - de 22/10/1984 a 18/12/1992 (cf. facto assente sob o Nº 8 e fls 7-10 dos autos), sendo que, a presente acção foi proposta em 8 de Abril de 1999 (o decurso do prazo só se interrompeu com a citação da Ré - art 323.°, nº 1 do CC);

V - Assim, mesmo tendo em consideração os factos dados como provados na douta sentença proferida pela 1ª Instância, a valoração dos mesmos sempre conduziria a uma decisão de procedência da reconvenção apresentada pelos ora recorrentes, considerando como verificada a aquisição do prédio em causa nos autos por usucapião, pelo que, não o fazendo, violou o douto acórdão do Tribunal da Relação as disposições conjugadas dos arts. 1259.°, 1260.°, 1287.° e 1295.°, nº 1, aLa), todos do Código Civil.

Concluem, pedindo que se considere violada a norma processual, ordenando-se a repetição da apreciação da matéria de facto pela 2ª instância; em qualquer caso, devendo considerar-se adquirido o direito de propriedade por usucapião pelos ora recorrentes, julgando-se procedente a reconvenção e improcedente a acção.

Apreciando:
Como fundamento da revista, os recorrentes invocam violação da lei adjectiva e violação da lei substantiva.

I - Quanto à violação da lei adjectiva:
Segundo a recorrente, a Relação não teria procedido a uma nova avaliação da prova, realizando um novo julgamento da matéria de facto através da criação de uma convicção própria, eventualmente diversa da da 1ª instância, mas ter-se-ia ficado pela apreciação do julgamento efectuado na 1ª instância; logo, teria incorrido em erro de procedimento (error in procedendo), ou seja, num erro de natureza meramente processual.
A violação da lei de processo pode ser invocada na revista se bem que nos mesmos termos e condições do agravo em 2ª instância; é o que resulta do art. 722º nº1 CPC ao admiti-la como fundamento de revista, quando for admissível recurso, nos termos do nº2 do artigo 754º.
E o nº2 do art. 754º, por sua vez, impõe como pressuposto da recorribilidade para o STJ de acórdãos da Relação a oposição do julgado com outro proferido no domínio da mesma legislação, pelo STJ ou por qualquer Relação e a inexistência de jurisprudência fixada sobre a questão.
Ora, a recorrente no que concerne à questão dos poderes-deveres da Relação em sede de impugnação da matéria de facto com vista a apurar se se deve limitar a aferir a razoabilidade da decisão proferida na 1ª instância ou, ao invés , se deve ir mais além e realizar um novo julgamento com uma nova decisão, não indicou qualquer jurisprudência (num sentido ou noutro).
Sendo a oposição de julgados um dos pressupostos da admissibilidade da violação da lei de processo com fundamento da revista; logo, não tendo a recorrente indicado qualquer jurisprudência em contradição, improcede este fundamento da revista.


II – Quanto à violação da lei substantiva:
Sustenta a recorrente que, mesmo à luz dos factos provados, deveria ter sido julgado procedente o pedido que formulou em sede reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade por usucapião, pelo decurso de oito anos entre 22-10-1984 e 18-12-1992, - respectivamente datas da inscrição da aquisição a favor dos RR no Registo Predial e do respectivo cancelamento – para efeito do art. 1295º nº1-a) CC.
Não tem razão.
A causa de pedir que fundamenta o pedido reconvencional de reconhecimento do direito de propriedade é a usucapião do respectivo direito.
E a usucapião é uma forma de aquisição do direito de propriedade (ou de outros direitos reais de gozo…) assente, no dizer do art. 1287º CC, na posse de tal direito mantida por certo lapso de tempo.
Ora, a posse é um poder de facto; é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (art. 1251º CC, esclarecendo-se desde já estarem fora das nossas cogitações actuações correspondentes ao exercício de outros direitos reais menores).
A posse é integrada por dois elementos: o corpus (elemento material) que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade desse exercício e o animus (elemento intelectual ou volitivo) que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular o direito real correspondente àquele domínio de facto (Cfr. M. Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1966, p. 66-67).
Assim, a prática de actos materiais (actuação de facto) correspondentes ao exercício do direito de propriedade (corpus) com a intenção de exercício deste direito (animus) e a duração e permanência dessa situação, são, pois, os elementos deste "modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica de uma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa" (Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., p.64).

Mas esta individualização dos elementos da posse tem algo de artificial, porquanto a posse é uma realidade social indivisível em que os elementos materiais não podem dissociar-se dos elementos intelectuais: a posse é uma aparência socialmente significativa que exterioriza e manifesta a propriedade (ou outro direito real).

A invocação, com sucesso, da posse, depende da demonstração desses dois elementos, material e psicológico, que presidem ao exercício do direito de propriedade, ou seja, ao gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas (art.º 1305º do CC).

A usucapião, para além desses dois elementos (corpus e animus), pressupõe também a demonstração de outro, a saber, o decurso do tempo, melhor dito, a manutenção dessa situação de facto durante certo tempo..

É o que, sem margem para dúvidas, decorre do art.º 1287º citado: "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo,...".

Sabendo-se que o Réu adquiriu o prédio em causa em 16-10-1984 por arrematação em hasta pública e foi investido na respectiva posse em 20-06-1989 e que aquela venda foi anulada por acórdão do STA de 24-04-1990, tendo também estes actos sido inscritos no Registo Predial, importa apurar se a posse exercida pelos RR de 22-10-1984 a 18-12-1992, tendo sido anulado o título translativo de direito, é bastante para usucapir o direito de propriedade.

O recorrente entende que sim e louva-se no disposto no art. 1295º nº1-a) CC.

Mas sem razão.

Não obstante a anulação judicial da arrematação, o título da posse subsistia; com efeito, em matéria possessória, o título é qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (art. 1259º nº1 CC).

Deve entender-se modo legítimo de adquirir reportado ao direito em termos do qual se exerce o poder de facto, o direito a que o animus se ordena; portanto, modo legítimo de adquirir o direito de que a posse é exteriorização ou manifestação.

E prescindindo das invalidades substantivas, decorrentes seja da falta de direito do transmitente, seja dos vícios substantivos do negócio, o título em matéria de posse só fica comprometido perante vícios formais.

Ora, a arrematação em hasta pública é um modo legítimo de adquirir o direito de propriedade; significa isto que deve ter, em abstracto, eficácia real para transmitir, a favor do possuidor, o direito ao qual se refere a posse.

Daí que o possuidor afira a sua actuação sobre a coisa por esse facto aquisitivo ou transmissivo (do direito), independentemente da sua validade substancial: a posse não deixa de se titulada no caso de o respectivo título ser nulo ou anulável, por vícios substanciais mas, ao invés, carecerá de título se este não existir ou se for nulo por vícios formais.

Os vícios substantivos que determinaram a sua anulação não comprometem, portanto, a qualificação de tal acto como título para a posse.

A posse fundada em arrematação em hasta pública, e ainda que esta venha a ser posteriormente anulada, é, pois, posse titulada.

Por outro lado, a posse titulada presume-se de boa-fé (art. 1260º nº2).

Tal presunção não foi afastada.

Num tal quadro e para efeitos de usucapião de imóveis, rege o art. 1294º CC que, sob a epígrafe Justo título e registo, prevê que havendo título de aquisição e registo deste a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tiver durado por dez anos, contados desde a data da registo (al a).

Vejamos então o caso em apreço:

Não obstante a arrematação haver tido lugar em 16-10-1984, os RR foram judicialmente investidos na posse do imóvel em 20-06-1989; mas consta da certidão predial de fls 6 e segs que, a aquisição a favor de BB foi inscrita pela Ap 03/221084 e que tal inscrição foi cancelada pela Av1 Ap 05/181292.

E logo aqui se nos depara um problema: se o Réu arrematou em 16-10-1984 mas só foi investido na posse em 20-06-1989, quando teve inicio a sua posse?

Repare-se que o art. 1294º citado exige que a posse tenha durado dez anos contados desde a data do registo (entenda-se do registo do facto que “transmitiu” o direito…) e, no caso em apreço, a aquisição por arrematação foi inscrita em 22-10-1984…

Será possível contar o tempo de posse a partir de momento em que esta efectivamente se iniciou?

É claro que a relevância da questão da posse só surge por força da invalidade do título e do cancelamento ulteriormente declarados por decisão judicial; fosse o título válido e não caberia falar de posse mas tão só de direito…; a ordenação dominial definitiva assente nos direitos prevaleceria, nesse caso, sobre a ordenação dominial provisória, assente na aparência do direito…

Estão em causa dois tipos de publicidade: a publicidade registral, eminentemente jurídica decorrente da inscrição no registo predial e a publicidade natural resultante dos actos possessórios publicamente praticados.

Ora, a mera inscrição no registo predial de factos, desacompanhada de efectivos actos de aproveitamento, nunca poderia operar como posse.

A lei manda contar o prazo desde a data do registo, pressupondo evidentemente que a posse teve o seu início antes do registo, pois o que se exige para a usucapião é a posse de dez ou quinze anos, e não o decurso de dez ou quinze anos de registo do título. A não ser assim, e como pode registar-se o título de aquisição sem a transferência da posse (cfr. art. 1263º alin b)), poderia chegar-se à solução extrema de se adquirir a coisa por usucapião antes mesmo do início da posse, o que é inadmissível. (cfr. Pires de Lima-A, Varela, Código Civil Anotado, vol III, 2ª ed., p75).

O art. 1294º, portanto, alude expressamente à duração da posse desde a data do registo: “quando a posse, sendo de boa-fé, tenha durado …, contados desde a data do registo”.

O mesmo é dizer: quando à publicidade natural (inerente à posse) se acrescentar a publicidade registal, passando a coexistir cumulativamente as duas formas de publicidade.

No caso em apreço, tal não aconteceu: entre 1984 e 1989, muito embora houvesse título e registo, não houve posse efectiva; ou seja, a publicidade meramente decorrente do registo não era acompanhada pela publicidade natural decorrente da posse.

Só, portanto, a partir da investidura dos R na posse do prédio, é que à publicidade do registo se “somou” a publicidade natural decorrente da posse.

Perante este circunstancialismo, o art. 1294º CC deve, portanto, ser objecto de interpretação restritiva.

Inquestionável e inquestionada a qualificação da posse dos RR como de boa-fé, por via da presunção (não afastada) decorrente da existência de título, o prazo da usucapião do respectivo direito de propriedade, assente em tal posse, seria de dez anos a contar de 20-06-1989; logo, completar-se-ia em 20-06-1999.

Por força do art. 1292º CC, são aplicáveis à usucapião as regras relativas à suspensão e á interrupção da prescrição.

A interrupção do decurso do prazo de usucapião por iniciativa do titular do direito tem lugar através da citação ou notificação judicial de qualquer acto revelador da intenção de exercer o direito (art. 323º nº1 CC).

Mas se a citação ou notificação não se efectuarem no prazo de cinco dias depois de terem sido requeridas por facto não imputável ao requerente, o decurso do prazo de usucapião tem-se por interrompido logo que decorram esses cinco dias (art. 323º nº2 CC).

No caso sub Júdice, a acção foi intentada em 08-04-1999 (cfr. carimbo aposto na pi).

E a citação teve lugar em 20-10-1999 (cfr. AR de fls 25), não sendo imputável aos AA a demora na sua efectivação.

O prazo de usucapião tem-se, portanto, por interrompido em 13-04-1999; logo, antes de se consumarem os dez anos previstos no art. 1294º -a) CC.

Não colhe a pretensão dos recorrentes de se valerem do art. 1295º-a) CC, desde logo, porque este preceito aponta para outra hipótese que não a dos autos: a de não haver registo do título de aquisição mas registo de mera posse.

E já vimos que, no nosso caso, há título de aquisição e respectivo registo, inexistindo de outro modo, registo da mera posse, pois que esta, como se lê no nº2 do art. 1295º CC, só será registada em vista de decisão final proferida em processo de justificação, nos termos da lei registral, na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não inferior a cinco anos.

Pelo exposto, improcedem as conclusões da revista.


ACÓRDÃO

Nesta conformidade, acorda-se neste STJ em, confirmando o acórdão recorrido, negar a revista.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa e STJ, 20-03-2014

Os Conselheiros

Fernando Bento (Relator)

João Trindade
Tavares de Paiva